sábado, 4 de março de 2023

Memórias - 01 a lua cheia

No se puede hacer la revolucion sin las mujeres

Livro Um

baitasar

Memórias

01 – a lua cheia

Minha querida, o que rouba o sono dos teus olhos, movia a cabeça para um lado e outro, atenta e acomodada, Tens medo da morte dormindo? Bobagem, que bela morte terias, sem medos, sem dores, sem despedidas, sem submissão às incapacidades de governar-se, dormir e não acordar mais a tua sombra, esfriar o corpo até tirar o peso de tanto sofrimento

calma, minha querida

dorme e escuta meus sussurros, não é uma despedida, eu acho, não tem como saber, de qualquer modo, partindo ou ficando mais um pouco, o céu – ora amarelento e sufocante do sol rachando, ora acinzentado das tempestades, ora brilhante e leitoso na via láctea, ora chorando suas águas – é testemunha das histórias que tenho para contar, as memórias de la Montaña e suas roças de milho e punhais, vidas e muertes, hombres sinceros e sublimes, mujeres duras vivendo entre escombros, inimigos brutais e infames, mariposas e abelhas voando, formigas e cobras rastejando, bebendo as lágrimas doces do arroyo manso dos olhos do povo, da roça e dos rios

não confiaria em mais ninguém, deposito-me na tua discrição e desassombro com a agitação desta obsoleta e desusada velha. venha, isso mesmo, te acomoda em meu colo. aborrecem-me palavras soltas, sem destino, preciso da tua atenção de redoma, profunda e cega

desde siempre vivi en la Montaña, uma besta assassina misteriosa, siempre viva, milhares de milhos nasciam, encompridavam e amarelavam nas suas costas até a beirada do rio

éramos tres, naquela cabaña de barro e palha: eu, papá y Blanca, minha irmã encantada, a lua que me iluminava em noites de escuridão e espanto medroso, siempre tive  problemas com os espíritos que rondavam e rodeavam meu pequeno corpo procurando um abraço de reconciliação com a vida, ela os afastava para os milharais com suas cantorias

filhas do mesmo padre, madres sortidas, as duas já muertas, adubando as terras de plantar maíz, sina da mestiçagem

la madre de Blanca, dizia papá, antes de emudecer, foi uma índia voluntariosa, cheia de apetites, espumas e águas dos rios. durante o dia, com as tranças escondidas, apertava el maíz até quebrar em farelo amarelento enquanto cantarolava para Blanca com su voz de carícias

as tortillas não surgiam por encantamento

sentada em seu banco de piedra, o chão de tierra, os pés descalços, o fogo acesso no centro de tudo esquentava a chapa, cozinhava a massa depois de bem amarrotada e esticada

ela refrescava as mãos na vasilha de água antes de mergulhar uma delas no jarro com a massa de milho, arrancava outro punhado para ser amassado e achatado com pequenas batidinhas, afinava mais e mais, depois de afinada no seu gosto e aparência, a massa era jogada na quentura da chapa, primeiro um lado, depois o outro, virava de novo e revirava, assava aos poucos, sem afobação, sem alvoroço, um pouquinho de cada lado

empilhava las tortillas assadas

na mesma chapa fritava as cebolas, os alhos picadinhos, juntava o louro, o feijão cozido e amassado, os tomates, a pimenta, tudo refogado e pronto para ser enrolado na massa assada

à noite, saiam de seus ojos o brilho prateado e úmido dos lábios rosados que envolviam papá até o seu gozo de hombre, foi num desses encantamentos que ela arredondou a barriga de nuevo

as noites passaram a ser iluminadas por sua lua cheia

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