OS SERTÕES
Euclides da Cunha
Volume 1
A Travessia do Cambaio
I . Monte Santo. Triunfos antecipados.
II . Incompreensão da campanha. Em marcha para Canudos.
III . O Cambaio. Baluartes sine calcii linimenti. Primeiro recontro. Episódio dramático.IV . Nos Tabuleirinhos. Segundo combate. A Legio Fulminata de João Abade. Novo milagre de Antônio Conselheiro.V. RetiradaVI. Procissão dos jiraus
I - Monte Santo
No dia 29 de dezembro entraram os expedicionários em Monte Santo. O povoado de Frei Apolônio de Todi ia, a partir daquela data, celebrizar-se como base das operações de todas as arremetidas contra Canudos. Era o que mais se avantajava por aqueles sertões em fora na direção do objetivo da campanha, permitindo, além disto, mais rápidas comunicações com o litoral, por intermédio da estação de Queimadas.
A tais requisitos aliavam-se outros.
Vimos-lhe em páginas anteriores a gênese tocante.
Não dissemos, porém, que, criando-o, o estóico Anchieta do Norte aquilatara bem as condições privilegiadas do local.
De fato, a vila — ereta no sopé da serrania de onde promana a única fonte perene da redondeza — contrasta, insulada, com a esterilidade ambiente. Decorre isto de sua situação topográfica. A sublevação de rochas primitivas que se alteiam aos lados, para o norte e para leste, levanta-se como anteparo aos ventos regulares, que até lá progridem, e torna-se condensador admirável dos escassos vapores que ainda os impregnam, graças ao resfriamento decorrente de uma ascensão repentina pelos flancos das serranias. Depõem-se, então, aqueles, em chuvas quase regulares, originando regime climatológico mais suportável, a dous passos dos sertões estéreis para onde rolam, mais secos, os ventos, depois da travessia.
De sorte que enquanto em roda se desenrolam plainos desolados, num raio de alguns quilômetros partindo de Monte Santo se estende região incomparavelmente mais vivaz. Recortam-na pequenos cursos d’água resistentes às secas. Pelas baixadas, para onde descaem os morros, notam-se rudimentos de florestas, transmudando-se as caatingas em cerradões virentes; e o rio de Cariacá com seus tributários minúsculos, embora efêmero como os demais das cercanias, não se esgota de todo nas maiores secas: fraciona-se, retalhado em cacimbas reduzidas a imperceptíveis filetes deslizando entre pedras, mas permitindo ainda que resistam ao flagelo os habitantes convizinhos.
É natural que seja Monte Santo, desde muito, uma paragem remansada, predileta aos que se aventuram naquele sertão bravio. Não surgia pela primeira vez na história. Muito antes dos que agora o procuravam, outros expedicionários, porventura mais destemerosos e, com certeza, mais interessantes, por ali haviam passado, norteados por outros desígnios. Mas quer para os bandeirantes do século XVII, quer para os soldados destes tempos, o lugar predestinado constituiu-se escala transitória e breve mal relembrando em acontecimentos de maior monta. Não deixa, contudo, de ser expressiva a sua função histórica, entre devassadores de sertões, distintos por opostos intuitos e desunidos por três séculos, porém tendo — como veremos — a afinidade dos mesmos rancores e das mesmas arrancadas violentas.
Ali estacionara o pai de Robério Dias, Belchior Moréia, na sua rota atrevida “do rio Real para as serras de Jacobina pelo rio Itapicuru acima, buscando os sertões de Maçacará”. E em torno desta entrada, continuaram outras, orientadas pelos roteiros confusos nos quais, todavia, o antigo nome da serra — Piquaraçá — se lê sempre, demarcando uma paragem benfazeja naqueles terrenos agros.
Por isto centralizou, de algum modo, a primeira agitação feita em torno das lendárias “Minas de Prata”, desde as pesquisas inúteis do Muribeca, que até lá chegara e não passara avante, “com pouco efeito e pouca diligência”, até ao tenaz Pedro Barbosa Leal, acompanhando as trilhas de Moréia e estacionando por muitos dias na montanha, onde marcas indecifráveis denotavam a passagem de antecessores igualmente audazes.
Passaram-se, porém, os tempos. Ficou perdida no sertão a serraria misteriosa onde muitos imaginavam, talvez a sede do eldorado apetecido, até que Apolônio de Todi a transformasse em templo majestoso e rude, como vimos.
E hoje quem segue pelo caminho de Queimadas, trilhando um solo abrolhando cactos e pedras, ao divisá-la, das cercanias de Quirinquinquá, duas léguas aquém, — estaca: volve em cheio para o levante a vista deslumbrada, e acredita que o ondular dos ares referventes e a fascinação da luz lhe alteiam defronte, entre o firmamento claro e as chapadas amplas, uma miragem estonteadora e grande.
A serra feita dessa massa de quartzito, tão própria às arquiteturas monumentais da Terra, alteia-se, ao longe, acrescida a altitude pelas várzeas deprimidas em torno. Lança retilínea a linha de cumeadas. A vertente oriental cai, a pique, lembrando uma muralha, sobre o vilarejo. Este ali se encosta, sobre socalco breve, humílimo, assoberbado pela majestade da montanha.
Entretanto é por esta acima até ao vértice que se prolonga, saindo da praça, a mais bela de suas ruas — a viasacra dos sertões, macadamizada de quartzito alvíssimo, por onde têm passado multidões sem conto em um século de romarias. A religiosidade ingênua dos matutos ali talhou, em milhares de degraus, coleante, em caracol pelas ladeiras sucessivas, aquela vereda branca de sílica, longa de mais de dous quilômetros, como se construísse uma escada para os céus...
Esta ilusão é empolgante ao longe.
Vêem-se as capelinhas alvas, que a pontilham a espaços, subindo a princípio em rampa fortíssima, derivando depois, tornejantes, à feição dos pendores; alteando-se sempre, erectas sobre despenhadeiros, perdendo-se nas alturas, cada vez menores, diluídas a pouco e pouco no azul puríssimo dos ares, até a última, no alto...
E quem segue pelo caminho de Queimadas, atravessando um esboço de deserto, onde agoniza uma flora de gravetos — arbustos que nos esgalhos revoltos retratam contorções de espasmos, cardos agarrados a pedras ao modo de tentáculos constritores, bromélias desabotoando em floração sanguinolenta — avança rápido, ansiando pela paragem que o arrebata.
Chega; e não sofreia doloroso desapontamento.
A estrada vai até à praça, retangular, em declive, de chão estriado de enxurros. No centro o indefectível barracão da feira tem, ao lado, pequena igreja, e de outro o único ornamento da vila — um tamarineiro, secular talvez. Em torno casas baixas e velhas; e, sobressaído, um sobrado único que seria mais tarde o quartel-general das tropas.
Monte Santo, afinal, resume-se naquele largo. Ali desembocam pequenas ruas, descendo umas em ladeiras para larga sanga apaulada; abrindo outras para a várzea; outras embatendo, sem saídas, contra a serra.
Esta por sua vez, de perto, perde parte do encanto. Parece diminuir de altitude. Sem mais o perfil regular que assume à distância, tem, revestindo-lhe as encostas, uma flora de vivacidade inexplicável, arraigada na pedra, brotando pelas frinchas dos estratos e vivendo apenas das reações maravilhosas da luz. As capelinhas, tão brancas de longe, por sua vez aparecem exíguas e descuradas. E a estrada ciclópica de muros laterais, de alvenaria, a desabarem em certos trechos, cheia de degraus fendidos, tortuosa, lembra uma enorme escadaria em ruínas. O povoado triste e de todo decadente reflete o mesmo abandono, traindo os desalentos de uma raça que morre, desconhecida à História, entre paredes de taipa. Nada recorda o encanto clássico das aldeias. As casas baixas, unidas umas contra as outras, feitas à feição dos acidentes do solo, têm todas a mesma forma — tetos deprimidos sobre quatro muros de barro — gizadas todas por este estilo brutalmente chato a que tanto se afeiçoavam os primitivos colonizadores. Algumas devem ter cem anos. As mais novas, copiando-lhes, linha a linha, os contornos desgraciosos, por sua vez nascem velhas.
Deste modo, Monte Santo surge desgracioso dentro de uma natureza que lhe cria em roda — como um parênteses naquele sertão aspérrimo — situação aprazível e ridente.
A campanha incipiente ia agravar o seu aspecto. Menos que arraial obscuro, transformá-lo-ia em grandíssimo quartel acaçapado, envolto de casernas
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Leia também:
OS SERTÕES - A Terra: I Preliminares
OS SERTÕES - A Terra: II Do alto de Monte Santo
OS SERTÕES - A Terra: III O clima
OS SERTÕES - A Terra: IV As secas
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OS SERTÕES - Travessia do Cambaio: I - Monte Santo
OS SERTÕES - Travessia do Cambaio: I - Triunfos antecipados
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Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.
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