quarta-feira, 8 de março de 2023

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (1a.Parte - Mas o momento da vida)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes


Primeira Parte


continuando...


Mas o momento da vida dos Guermantes que mais vivamente excitava o interesse de Françoise, lhe dava mais satisfação e também lhe causava mais mal, era precisamente aquele em que, abrindo-se escancaradamente os dois batentes do portão, a duquesa subia à sua caleça. Em geral, era pouco tempo depois que os nossos criados acabavam de celebrar essa espécie de páscoa solene que ninguém deve interromper, chamada o seu almoço, e durante a qual eles eram de tal modo tabus que nem meu pai se permitia tocar a campainha para chamá-los, sabendo aliás que nenhum se moveria ao quinto como ao primeiro toque, e que assim teria ele cometido essa inconveniência em pura perda, mas não sem desprestígio para si próprio. Pois Françoise (que desde que se tornara velha fazia a todo propósito o que se chama uma "cara de circunstância") não teria deixado de lhe apresentar todo o dia um rosto cheio de pequenos traços cuneiformes e rubros que mostravam no exterior, porém de um modo pouco decifrável, o longo memorial de suas queixas e as profundas razões de seu descontentamento. Desenvolvia-os, aliás, para os bastidores, mas sem que pudéssemos distinguir perfeitamente as palavras. A isso denominava que ela acreditava ser para nós mortificante, vexatório dizer todo santo dia "missa calada".

Acabados os últimos ritos, Françoise, que era a um tempo, como na igreja primitiva, o celebrante e um dos fiéis, servia-se de um derradeiro copo de vinho, desatava o guardanapo do pescoço, dobrava-o, enxugando nos lábios um resto de água avinhada e de café, enfiava-o numa argola, agradecia com um olhar dolente ao "seu" jovem lacaio que, para mostrar zelo, lhe dizia: - Vamos, Madame, mais um pouco de uvas; estão magníficas -, e logo ia abrir a janela sob o pretexto de que fazia demasiado calor "naquela miserável cozinha". Lançando habilmente, ao mesmo tempo que abria os postigos e tomava ar, um olhar desinteressado para o fundo do pátio, ela escondia furtivamente a certeza de que a duquesa ainda não estava pronta, chocava por um momento com olhar desdenhoso e apaixonado a carruagem atrelada, e, uma vez dado com os olhos esse momento de atenção às coisas terrenas, erguia-os para o céu, cuja pureza já adivinhara ao sentir a suavidade do ar e o calor do sol; e mirava no canto do telhado o lugar onde, cada primavera, vinham fazer ninho, bem sobre a lareira do meu quarto, uns pombos semelhantes aos que arrulhavam na sua cozinha, em Combray.

- Ah, Combray, Combray! exclamava. (E o tom quase cantado com que declamava esta invocação poderia, no caso de Françoise, tanto quanto a artesiana pureza do seu rosto, fazer suspeitar uma origem meridional e que a pátria perdida que ela chorava não passava de uma pátria de adoção. Porém, talvez a gente se enganasse, pois parece que não há província que não tenha o seu sul, e com quantos saboianos e bretões não nos encontramos, nos quais se acham todas as doces transposições de longas e breves que identificam o meridional!) - Ah, Combray, quando é que voltarei a te ver, pobre terra! Quando é que poderei passar todo santo dia debaixo de teus espinheiros alvos e nossos pobres lilases, ouvindo os tentilhões e o Vivonne, que faz como que o murmúrio de alguém que sussurrasse, em vez de ouvir essa miserável campainha do nosso jovem patrão que não passa sequer meia hora sem me fazer correr ao longo desse maldito corredor! E ainda acha que não vou suficientemente depressa; seria então preciso ouvi-lo antes que tocasse a campainha; e, se a gente se atrasa um só minuto, ele "explode" em cóleras terríveis. Ai de mim, pobre Combray! Talvez só morta eu te veja de novo, quando me jogarem como uma pedra no buraco do túmulo. Então, não sentirei mais o aroma dos teus belos espinheiros sempre alvos. Porém, no sono da morte, acho que ouvirei ainda os três toques da campainha que já me danaram em vida. 

Mas ela era interrompida pelos chamados do coleteiro do pátio, aquele que antigamente tanto havia agradado à minha avó no dia em que tinha ido ver a Sra. de Villeparisis e que não ocupava um lugar menos elevado na simpatia de Françoise. Tendo erguido a cabeça ao ouvir abrir-se a nossa janela, já procurava há alguns instantes atrair a atenção de sua vizinha para lhe desejar bom-dia. A coqueteria da moça que fora um dia Françoise afinava então, para o Sr. Jupien, o rosto mal-humorado da nossa velha cozinheira entorpecido pela idade e pelo calor do forno, e foi com uma encantadora mistura de reserva, familiaridade e pudor que ela dirigiu ao coleteiro uma graciosa saudação, mas sem lhe responder em voz alta, pois, se ela de fato transgredia as recomendações de mamãe olhando para o pátio, não teria coragem de desafiá-las a ponto de conversar pela janela, o que teria o dom, segundo Françoise, de lhe valer, da parte de Madame, "um sermão completo". Ela lhe mostrava a caleça atrelada dando a impressão de dizer: "Belos cavalos, hein?", mas sempre murmurando: - Que velho traste! -e sobretudo porque sabia que ele iria responder, pondo a mão sobre a boca para ser ouvido à meia-voz:

- Vocês também poderiam ter uma dessas se quisessem, e até mesmo mais que eles, mas não gostam disso.

Françoise, depois de um sinal modesto, evasivo e encantador, cujo significado era mais ou menos: "Cada qual no seu gênero; conosco é a simplicidade", voltava a fechar a janela, de medo que mamãe chegasse. Esses vocês que poderiam ter mais cavalos que os Guermantes éramos nós, mas Jupien tinha razão em dizer "vocês", pois, a não ser no caso de certos prazeres de amor-próprio puramente pessoais (como aquele, quando ela tossia sem parar e a casa inteira receava se contaminar, de pretender, com um risinho irritante, que não estava gripada), semelhante a essas plantas que um animal, ao qual aderem por completo, nutre com os alimentos que apanha, come e digere para elas e lhes oferece em seu último e assimilável resíduo, Françoise vivia em simbiose conosco; nós é que, com nossas virtudes, nossa fortuna, nosso modo de viver, nossa posição social, devíamos nos encarregar de elaborar as pequenas satisfações de amor-próprio de que se formava acrescentando-lhe o direito reconhecido de exercer livremente o culto do almoço segundo o velho costume, comportando a conseqüente pequena tomada de ar à janela, quando acabava, algum passeio pela rua para fazer compras e uma saída aos domingos para ver a sobrinha a parte de contentamento indispensável à sua existência. Assim compreendese que Françoise tenha ficado abatida, nos primeiros dias, numa casa em que todos os títulos honoríficos de meu pai ainda não eram conhecidos presa de um mal que ela mesma denominava aborrecimento, aborrecimento no sentido enérgico que o termo tem em Corneille ou na pena dos soldados que acabam por se suicidar porque se "aborrecem" demais longe das noivas, da cidade natal. O aborrecimento de Françoise fora rapidamente curado precisamente por Jupien, pois ele logo lhe causou um prazer tão vivo e mais refinado do que o prazer que teria tido se nos decidíssemos a comprar uma carruagem. - São boa gente esses Jupiens (Françoise assimilava de bom grado os novos termos aos que já conhecia), muito boa gente; está na cara. - Jupien de fato soube compreender e dar a entender a todos que, se não tínhamos equipagem, era porque não queríamos. Esse amigo de Françoise vivia pouco em casa, pois obtivera um lugar de funcionário num ministério. Fabricante de coletes a princípio, com a "garota" que minha avó tomara por sua filha, perdera toda vantagem em exercer o ofício depois que a menina que, desde quase ainda criança, já sabia muito bem recoser uma saia na época em que minha avó fora visitar a Sra. de Villeparisis se dedicara à costura para damas e se tornara uma especialista em saias. Primeiro, fora auxiliar de uma modista, empregada para dar um ponto, remendar um volante, pregar um botão ou um colchete, ajustar uma prova com alfinetes; logo passara a segunda, depois a primeira oficial, e, tendo feito uma freguesia de damas da melhor sociedade, trabalhava em casa, ou seja, no nosso pátio, na maioria das vezes com uma ou duas de suas pequenas companheiras de ateliê, a quem empregava como aprendizes. Desde então, a presença de Jupien fora menos útil. Sem dúvida a menina, desde que crescera, precisava muitas vezes fazer coletes. Mas, ajudada por suas amigas, não tinha necessidade de ninguém. Portanto, Jupien, seu tio, solicitara um emprego. No começo era livre para voltar para casa ao meio-dia, mas depois, tendo substituído definitivamente o empregado a quem apenas auxiliava, nunca voltava antes da hora do jantar. Aliás sua titularização só se efetuou algumas semanas depois da nossa mudança, de modo que a gentileza de Jupien pôde se exercer durante muito tempo no sentido de ajudar Françoise a vencer sem muito sofrimento os primeiros tempos tão difíceis. Além disso, sem desconhecer a utilidade que assim teve para Françoise a título de "medicamento de transição", devo confessar que Jupien não me agradara muito à primeira vista. A alguns passos de distância, destruindo inteiramente o efeito que, sem isso, causariam suas faces rechonchudas e sua tez rosada, os olhos transbordantes de um olhar compadecido, desolado e sonhador, faziam pensar que estivesse bem doente ou que acabava de sofrer um grande desgosto. Não só não era nada disso como, desde que principiava a falar, aliás perfeitamente bem, mostrava-se antes frio e sarcástico. Desse desacordo entre o olhar e a palavra, resultava algo de falso que não era simpático e com o qual ele próprio parecia sentir-se tão constrangido como um convidado em traje de passeio em um sarau onde todo mundo está de casaca, ou como alguém que, tendo de responder a uma Alteza, não sabe exatamente o que é necessário dizer e contorna a dificuldade reduzindo suas frases a quase nada. As de Jupien, ao contrário pois é simples comparação -, eram encantadoras.

Correspondendo talvez àquela inundação do rosto pelos olhos (à qual não se prestava mais atenção desde que a gente o conhecia), de fato, logo lhe percebi uma inteligência rara e uma das mais naturalmente literárias que me foi dado conhecer, neste sentido em que, provavelmente sem cultura, ele possuía ou assimilara, com o auxílio de alguns livros percorridos às pressas, as mais engenhosas expressões da língua. As pessoas mais bem-dotadas que eu conhecera haviam morrido muito jovens. Portanto, eu estava convencido de que a vida de Jupien terminaria em breve. Tinha bondade, piedade, os mais delicados e generosos sentimentos. Seu papel na vida de Françoise deixara depressa de ser indispensável. Ela aprendera a substituí-la. 

Mesmo quando um fornecedor ou um criado vinha nos trazer algum pacote, Françoise, sempre dando a impressão de não se preocupar com ele, indicando-lhe apenas, com ar desligado, uma cadeira, enquanto ela continuava o seu serviço, aproveitava de modo tão hábil os poucos instantes que ele passava na cozinha à espera da resposta de mamãe, que raramente ele partia sem levar consigo indestrutivelmente gravada a certeza de que "se não tínhamos, era porque não queríamos". Se, aliás, ela se empenhava tanto para que soubessem que tínhamos "dinheiro" (pois ignorava o emprego do que Saint-Loup denominava artigos partitivos e dizia "ter dinheiro", 'trazer água"),' em que nos soubessem ricos, não era porque a riqueza sem mais nada, a riqueza sem a virtude, fosse o bem supremo aos olhos de Françoise, mas a virtude sem riqueza tampouco era o seu ideal. Para ela, a riqueza era como uma condição necessária da virtude, cuja falta faria a virtude destituída de mérito e de encanto. Separava-as tampouco que acabara por emprestar a cada uma as qualidades da outra, a exigir algum conforto na virtude, a reconhecer algo de edificante na riqueza.

Assim que fechava a janela, bem depressa senão mamãe, pelo visto, "lhe lançaria todas as injúrias imagináveis" -, Françoise começava, suspirando, a arrumar a mesa da cozinha.

- Há alguns Guermantes que continuam na rua da Chaise - dizia um criado-grave. - Eu tinha um amigo que trabalhou com eles de segundo cocheiro. E conheço alguém, não meu companheiro, e sim um seu cunhado, que serviu no exército com um picador do barão de Guermantes. "Vamos lá, afinal não é meu pai!", acrescentava o criado-grave, que tinha o costume de cantarolar as canções da moda, pontuando as frases com as mais recentes piadas.

Françoise, com o cansaço de seus olhos de mulher já de idade, e que aliás via tudo quanto se referia a Combray numa vaga lonjura, distinguiu não o gracejo contido naquelas palavras, mas sim que deviam mostrar alguma graça, pois não se relacionavam com o resto da conversa, e tinham sido lançadas com força por alguém que ela sabia ser brincalhão. Assim, sorriu com ar benévolo e fascinado, como se dissesse: "Sempre o mesmo, este Victor!" Ademais, sentia-se feliz, pois sabia que ouvir coisas desse tipo se assemelha de longe a essas distrações honestas da sociedade para as quais, em todas as esferas, a gente se apressa em preparar-se, arriscando-se a apanhar um resfriado por elas. Enfim, achava que o criado-grave era um amigo para ela, pois não cessava de lhe denunciar com indignação as medidas terríveis que a República ia tomar contra o clero. Françoise ainda não compreendera que os nossos adversários mais cruéis não são os que nos contradizem e procuram nos convencer, mas aqueles que exageram ou inventam notícias que podem nos afligir, evitando dar-lhes uma aparência de justificação que diminua a nossa mágoa e nos inspire talvez uma leve estima por um partido que eles timbram em nos mostrar, para nossa tortura completa, a um tempo atroz e triunfante.

- A duquesa deve ser ligada a tudo isso disse Françoise retomando a conversação sobre os Guermantes da rua Chaise, como se recomeça um trecho musical no andante.

- Já nem sei mais quem me disse que um deles casara uma prima com o duque. Em todo caso, são dos mesmos parênteses. Uma grande família, os Guermantes! -acrescentava com respeito, assentando a grandeza dessa família a um tempo no número de membros e no brilho de sua ilustração, como Pascal assentava a verdade da religião sobre a razão e a autoridade das Escrituras. Pois, tendo apenas o vocábulo "grande" para as duas coisas, parecia-lhe que elas formavam uma só; assim, o seu vocabulário, como certas pedras, apresentava um defeito em alguns pontos, defeito que projetava obscuridade em seu pensamento.

- Pergunto-me se não serão esses que têm seu castelo de Guermantes, a dez léguas de Combray; então devem também ser parentes de sua prima de Argel.

Por muito tempo nos indagamos, minha mãe e eu, quem poderia ser essa prima de Argel, mas afinal compreendemos que Françoise queria indicar, com o nome de Argel, a cidade de Angers. O que está distante pode nos ser mais conhecido do que o que está próximo. Françoise, que conhecia o nome de Argel por causa das detestáveis tâmaras que recebíamos pelo Ano Novo, ignorava o de Angers. Sua linguagem, como a própria língua francesa, e principalmente sua toponímia, era semeada de erros. 

- Eu queria falar sobre isso ao mordomo dos Guermantes. Como é mesmo que se diz? interrompeu-se, como levantando uma questão de protocolo; e respondeu a si própria: - Ah, sim! É Antoine que se diz como se Antoine fosse um título. - Ele é quem poderá me dizer, mas é um verdadeiro senhor, um grande pedante, dir-se-ia que lhe cortaram a língua ou que ele se esqueceu de aprender a falar. Ele nem sequer faz resposta quando lhe falam acrescentava Françoise, que dizia "fazer resposta" como a Sra. de Sévigné. - Mas ajuntava sem sinceridade -, desde o momento em que eu sei o que está cozinhando na minha marmita, não me ocupo com a dos outros. Em todo caso, tudo isso não é lá muito católico. E, depois, não é um homem corajoso (esta avaliação poderia fazer acreditar que Françoise mudara de opinião acerca da bravura que, segundo ela, em Combray, nivelava os homens aos animais ferozes; mas não se tratava disso. Corajoso para ela significava trabalhador). Diz-se também que é ladrão como uma pega, mas nem sempre se deve acreditar nos mexericos. Aqui todos os criados vão embora por causa da portaria; os porteiros são invejosos e enchem de coisas a cabeça da duquesa. Mas bem se pode dizer que é um grande fingido esse Antoine, e sua Antoinesse não vale mais que ele; dizia Françoise que, para encontrar para o nome de Antoine um feminino que designasse a mulher do mordomo, sem dúvida, em sua criação gramatical, tinha uma inconsciente recordação de chanoine e chanoinesse [cônego e canonisa]. 

E, sob este aspecto, não se expressava mal. Existe ainda, perto da Notre-Dame, uma rua chamada Canonisa, nome que lhe fora dado (por ser habitada somente de cônegos) por aqueles franceses de outrora de que Françoise era de fato contemporânea. Aliás, tinha-se, logo depois, um novo exemplo dessa maneira de formar os femininos, pois Françoise acrescentava:

- Mas seguro e certo é que o castelo de Guermantes pertence à duquesa. E na região ela é que é a senhora mairesse [prefeita]. Já é alguma coisa.

- Compreendo que é alguma coisa. -dizia convicto o criado-grave, sem ter percebido a ironia.

- Pensa que seja alguma coisa, meu filho? Mas, para gente como aquela, ser maire e mairesse é três vezes nada. Ah, se fosse meu o castelo de Guermantes, não me veriam com freqüência em Paris. É mesmo necessário que uns senhores, pessoas que têm com quê, como o patrão e a patroa, tenham idéias malucas na cabeça para ficarem nesta cidade miserável, em vez de irem para Combray, já que podem fazer livremente o que quiserem que ninguém os prende. Que é que esperam para ir embora, visto que nada lhes falta? Estarem mortos? Ah, se eu só tivesse pão seco para comer e um pouco de lenha para me aquecer no inverno, há muito que estaria em casa, na pobre morada do meu irmão em Combray. Lá, pelo menos, a gente se sente viver, não tem todas essas mansões pela frente, há tão pouco barulho que à noite se ouve as rãs coaxarem a mais de duas léguas.

- Isto deve ser verdadeiramente bonito, senhora! - exclamou o jovem lacaio com entusiasmo, como se esta última particularidade fosse tão exclusiva de Combray como a vida em gôndola a Veneza.

Além disso, mais recente na casa que o criado-grave, o lacaio falava a Françoise de assuntos que podiam interessar não a si mesmo, mas a ela. E Françoise, que fazia uma careta quando a tratavam de cozinheira, tinha para com o lacaio, que dizia ao falar dela "a governanta", a benevolência especial que mostram certos príncipes de segunda categoria em relação aos jovens que os tratam por Alteza.

- Ao menos a gente sabe o que está fazendo e em que estação se encontra. Não é como aqui, onde não há um mísero botão de ouro pela Páscoa nem no Natal, e nem sequer ouço um pequeno angelus quando ergo a minha velha carcaça. Lá a gente ouve cada hora; não passa de um pobre sino, mas você diz consigo: "Aí vem o meu irmão que volta do campo", você vê o dia que vem baixando, tocam pelos bens da terra, e você tem tempo de voltar antes de acender o lampião. Aqui é dia, é noite, e a gente vai se deitar sem poder ao menos dizer o que fez, como os animais.

- Parece que Méséglise também é muito bonita, senhora. -interrompeu o jovem lacaio, para cujo gosto a conversa ia tomando um rumo um tanto abstrato e que, por acaso, se lembrava de nos ter ouvido falar à mesa de Méséglise.

- Oh, Méséglise! - dizia Françoise com um largo sorriso que lhe vinha aos lábios sempre que pronunciavam, na sua presença, os nomes de Méséglise, de Combray e de Tansonville. De tal modo faziam parte de sua própria existência que ela experimentava, ao encontrá-los no exterior, ao ouvi-los numa conversa, uma alegria bem próxima da que um professor excita em sua classe ao fazer alusão a um determinado personagem contemporâneo, cujo nome os alunos jamais esperariam pudesse cair do alto da cátedra. Seu prazer provinha igualmente de sentir que aqueles lugares eram, para ela, algo que não seriam para os outros, velhos camaradas com quem se passam bons momentos; e ela lhes sorria como se os achasse espirituosos, porque neles encontrava muito de si própria.

- Sim, você pode dizer, meu filho, que Méséglise é muito bonita replicava ela, sorrindo sutilmente. - Mas como foi que ouviu falar de Méséglise? 

- Como foi que ouvi falar de Méséglise? Mas é bastante conhecida. Falaram-me dela uma porção de vezes respondeu ele com essa inexatidão criminosa dos informantes que, todas as vezes que procuramos nos certificar objetivamente da importância que pode ter para os outros alguma coisa que nos concerne, colocam-nos na impossibilidade de consegui-lo. 

- Ah, digo-lhe que a gente está melhor ali debaixo das cerejeiras do que junto do fogão.



continua na página 10...
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Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (1a.Parte - Mas o momento da vida)
Volume 7


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