volume I
No Caminho de Swann
ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento[1]
— marcel proust
combray
I(b) ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento[1]
— marcel proust
combray
Ao passo sacudido de seu cavalo, Golo, movido por atroz desígnio, saía da pequena floresta triangular que aveludava de um verde sombrio a vertente de uma colina e avançava aos solavancos para o castelo da pobre Geneviève de Brabant.[1] Esse castelo se recortava em uma linha curva que não era senão o limite de uma das ovais de vidro insertas no caixilho que se introduzia na lanterna. Não era mais que um muro de castelo e tinha a sua frente um descampado onde cismava Geneviève, que usava um cinto azul. O castelo e o terreno eram amarelos e eu não esperava o momento de vê-los para ficar sabendo que cor tinham, pois, antes dos vidros do caixilho, a sonoridade aurirrubra do nome de Brabant me havia mostrado com toda a evidência. Golo parava um instante para ouvir com tristeza a arenga lida em voz alta por minha tia-avó e que ele parecia compreender muito bem, ajustando sua atitude às indicações do texto, com uma brandura que não excluía certa majestade; depois se afastava na mesma andadura sacudida. E coisa alguma podia deter sua lenta cavalgada. Se se movia a lanterna, eu distinguia o cavalo de Golo, que continuava a avançar por sobre as cortinas da janela, enfunando-se em suas dobras, afundando em suas fendas. O próprio corpo de Golo, de uma essência tão sobrenatural como a de sua montaria, aproveitava-se de qualquer obstáculo material, de qualquer objeto incômodo que encontrasse no caminho, tomando-o como ossatura e tornando-o interior, ainda que fosse a maçaneta da porta, à qual logo se adaptava e onde sobrenadava invencivelmente sua veste vermelha, e seu rosto sempre tão pálido e tão melancólico, mas que não deixava transparecer nenhuma inquietude proveniente daquela transvertebração.
Certamente achava eu um especial encanto naquelas brilhantes projeções que pareciam emanar de um passado merovíngio e passeavam em redor de mim tão antigos reflexos de história. Mas não posso descrever que mal-estar me causava aquela intrusão do mistério e da beleza em um quarto que eu acabara de encher com minha personalidade a ponto de não dar mais atenção a ele do que a meu próprio eu. Cessando, assim, a influência anestésica do hábito, punha-me então a pensar e a sentir: coisas tão tristes. Aquela maçaneta da porta de meu quarto, que se diferenciava para mim de todas as maçanetas de porta do mundo, pelo fato de que parecia abrir-se por si, sem que eu tivesse necessidade de torcê-la, de tal modo se me tornara inconsciente seu manejo, ei-la que servia agora de corpo astral a Golo. E assim que tocavam a sineta para o jantar, apressava-me em correr ao refeitório, onde todas as noites esparzia sua luz a grande lâmpada de teto, que nada sabia de Golo nem de Barba-Azul, e que conhecia meus pais e o assado de caçarola; e caía nos braços de mamãe, a quem as desgraças de Geneviève de Brabant me tornavam mais querida, ao passo que os crimes de Golo me faziam examinar com mais escrúpulo minha própria consciência
Após o jantar, ai de mim, via-me obrigado a deixar mamãe, que ficava a conversar com os outros no jardim, se fazia bom tempo, ou na saleta, para onde todos se retiravam quando o tempo era mau.[2] Todos, menos minha avó, que achava “uma lástima ficar-se encerrado, no campo” e que tinha incessantes discussões com meu pai, nos dias de chuva muito forte, porque ele me mandava ler no quarto em vez de ficar fora. “Não é assim que o tornarão robusto e enérgico”, dizia ela, “ainda mais esse menino que tanto precisa adquirir forças e vontade.” Meu pai dava de ombros e examinava o barômetro, pois gostava de meteorologia, enquanto minha mãe, evitando fazer ruído para não perturbá-lo, olhava-o com enternecido respeito, mas não muito fixamente, como para não parecer que tentava devassar o mistério de sua superioridade. Mas minha avó, essa, por qualquer tempo, mesmo quando chovia forte e Françoise recolhia as preciosas cadeiras de vime para que não se molhassem, viam-na no jardim deserto e fustigado pelo aguaceiro erguendo as mechas desordenadas e grisalhas para que sua fronte melhor se impregnasse da salubridade do vento e da chuva. “Enfim, respira-se!”, dizia ela, e percorria os caminhos encharcados do jardim — alinhados muito simetricamente para seu gosto pelo novo jardineiro desprovido de sentimento da natureza e a quem meu pai perguntara desde manhã cedo se o tempo se comporia —, com aquele seu passo entusiástico e brusco, regulado pelos diversos impulsos que lhe suscitavam na alma a embriaguez da tempestade, o poder da higiene, a estupidez de minha educação e a simetria dos jardins, antes que pelo desejo, que lhe era desconhecido, de evitar os salpicos de lama na saia cor de ameixa e que a cobriam até uma altura que era sempre um desespero e um problema para sua criada
Se essas voltas de minha avó pelo jardim se efetuavam após o jantar, uma coisa havia que tinha o poder de fazê-la entrar em casa: era — em um dos momentos em que a revolução de seu passeio a trazia periodicamente, como um inseto, para diante das luzes da saleta, onde eram servidos os licores na mesinha de jogo — quando minha tia-avó lhe gritava: “Bathilde! Vem ver se impedes teu marido de beber conhaque!”. Para arreliá-la, com efeito (trouxera para a família de meu pai um espírito tão diferente que todos zombavam dela e atormentavam-na), como a meu avô estavam proibidos os licores, costumava minha tia-avó fazê-lo beber algumas gotas. Minha pobre avó entrava, rogava ardentemente ao marido que não provasse do conhaque; ele irritava-se, tomava apesar de tudo seu gole, e ela tornava a partir, triste, desanimada, mas sorridente, pois era tão humilde de coração e tão bondosa que sua ternura pelos outros e a pouca importância que dava à própria pessoa e a seus sofrimentos se conciliavam, em seu olhar, em um sorriso no qual, contrariamente ao que se lê no rosto de muitos humanos, não havia ironia senão para consigo mesma, e, para nós todos, como que um beijo de seus olhos, que não podiam ver aqueles a quem queria sem os acariciar apaixonadamente com o olhar. Esse suplício que lhe infligia minha tia-avó, o espetáculo das inúteis súplicas de minha avó e de sua fraqueza, de antemão vencida, tentando embalde tirar o cálice a meu avô, era dessas coisas a cuja vista a gente se habitua mais tarde a considerar sorrindo e a tomar resoluta e alegremente o partido do perseguidor, para nos persuadirmos de que não se trata de perseguição; causavam-me então tamanho horror que me vinha a vontade de bater em minha tia-avó. Mas logo que ouvia: “Bathilde! Vem ver se impedes teu marido de beber conhaque!”, já homem pela covardia, eu fazia o que todos nós fazemos, uma vez que somos grandes, quando há diante de nós sofrimentos e injustiças: não queria vê-los; ia soluçar lá no alto da casa, ao lado da sala de estudos, sob os telhados, em uma pequena peça que cheirava a íris, também perfumada por uma groselheira silvestre que crescera fora entre as pedras da muralha e passava um ramo florido pela janela entreaberta. Destinada a um uso mais especial e mais vulgar, aquela peça, de onde se tinha vista, de dia, até o torreão de Roussainvile-le-Pin, serviu-me por muito tempo de refúgio, sem dúvida por ser a única que me era permitido fechar à chave, para todas as minhas ocupações que demandavam uma inviolável solidão: a leitura, a cisma, as lágrimas e a voluptuosidade. Ah!, eu então não sabia que, muito mais tristemente que as pequenas infrações ao regime do marido, era minha falta de vontade, minha saúde delicada, a incerteza que ambas as coisas projetavam em meu futuro, o que preocupava minha avó durante suas incessantes perambulações da tarde e da noite, quando se via passar e repassar, obliquamente erguido para o céu, seu belo rosto de faces morenas e sulcadas, que, no declínio da vida, haviam-se tornado quase cor de malva como as lavras pelo outono, e que ela cobria, ao sair, com um véu curto e nas quais, trazida ali pelo frio ou por algum triste pensamento, estava sempre a secar uma lágrima involuntária.[3]
Quando subia para me deitar, meu único consolo era que mamãe viria beijar-me na cama. Mas tão pouco durava aquilo, tão depressa descia ela, que o momento em que a ouvia subir a escada e quando passava pelo corredor de porta dupla o leve frêmito de seu vestido de jardim, de musselina branca, com pequenos festões de palha trançada, era para mim um momento doloroso. Anunciava aquele que viria depois, em que ela me deixaria, voltando para baixo. Assim, aquela despedida de que tanto gostava chegava eu a desejar que viesse o mais tarde possível, para que se prolongasse o tempo de espera em que mamãe ainda não aparecia. Às vezes, quando depois de me haver beijado, abria a porta para partir, desejava dizer-lhe “beija-me ainda outra vez”, mas sabia que logo seu rosto assumiria um ar de zanga, pois a concessão que fazia a minha tristeza e inquietude, subindo para levar-me aquele beijo de paz, irritava a meu pai, que achava esses ritos absurdos, e ela, que tanto desejaria fazer-me perder a necessidade e o hábito daquilo, longe estava de deixar-me adquirir o novo costume de pedir-lhe, quando já se achava com o pé no limiar da porta, um beijo a mais. E vê-la incomodada destruía toda a calma que me trouxera um momento antes, quando havia inclinado sobre meu leito sua face amorável, oferecendo-a como uma hóstia para uma comunhão de paz, em que meus lábios saboreariam sua presença real e ganhariam a possibilidade de dormir. Mas essas noites em que mamãe ficava tão pouco tempo em meu quarto ainda eram muito boas em comparação com outras, quando havia convidados para jantar e em que, por causa disso, não subia para se despedir de mim. Em geral, o visitante era o sr. Swann, o qual, além de alguns forasteiros de passagem, era quase a única pessoa que vinha a nossa casa em Combray, algumas vezes para jantar como vizinho (mais raramente depois que fizera aquele mau casamento, pois meus pais não desejavam receber sua mulher), outras vezes após o jantar, de surpresa.[4] Nas noites em que estávamos sentados à frente de casa, em redor da mesa de ferro, sob o grande castanheiro, e ouvíamos na entrada do jardim, não a sineta estridente e profusa que borrifava, que aturdia, na passagem, com seu ruído ferruginoso, inextinguível e gélido, a qualquer pessoa de casa que a disparasse ao entrar “sem chamar”, mas o duplo tinido tímido, redondo e dourado da campainha para os de fora, todos indagavam consigo: “Uma visita, quem poderá ser?”, mas bem se sabia que não poderia ser outro senão o sr. Swann; minha tia-avó, falando em voz alta, para pregar com o exemplo, em um tom que se esforçava por tornar natural, dizia que não cochichassem daquela maneira, que nada é mais descortês para quem chega e que, com isso, poderá supor que se está falando em coisas que ele não deve ouvir; e mandava-se à frente, como batedor, minha avó, sempre feliz de ter um pretexto para dar mais uma volta no jardim e que aproveitava para arrancar sub-repticiamente, de passagem, algumas estacas de roseiras, a fim de dar às rosas um ar mais natural, como uma mãe que afofa com os dedos os cabelos do filho, porque o barbeiro os deixava muito lisos.
Ficávamos todos suspensos das notícias que minha avó iria trazer-nos do inimigo, como se se pudesse hesitar entre um grande número possível de assaltantes, e logo em seguida meu avô dizia: “Reconheço a voz do Swann”. Com efeito, só pela voz podia a gente reconhecê-lo, não se distinguia bem seu rosto de nariz recurvo e olhos verdes, a alta fronte circundada de cabelos de um loiro-avermelhado, penteados à Bressant,[5] pois conservávamos o menos possível de luz no jardim, para não atrair os mosquitos, e eu, disfarçadamente, como o queria minha avó, ia dizer que trouxessem refrescos, pois ela considerava mais amável que os refrescos fossem servidos como por costume, e não excepcionalmente, só para os visitantes. Embora muito mais jovem do que ele, o sr. Swann era muito afeiçoado a meu avô, que fora um dos melhores amigos de seu pai, homem excelente, mas singular, a quem bastava uma ninharia, às vezes, para interromper os impulsos afetivos ou desviar-lhe o curso do pensamento. Várias vezes por ano, ouvia eu meu avô contar, à mesa, sempre as mesmas anedotas a respeito da atitude que tivera o velho Swann por ocasião da morte de sua esposa, de quem cuidava dia e noite. Meu avô, que de há muito não o via, acorrera para junto dele, na propriedade que possuíam os Swann nos arredores de Combray, e conseguira fazê-lo deixar por um momento, todo em pranto, a câmara mortuária, para que não estivesse presente quando pusessem o corpo no caixão. Deram alguns passos pelo parque, onde havia um pouco de sol. De repente, o sr. Swann, pegando pelo braço a meu avô, exclamara: “Ah!, meu velho amigo, que felicidade passearmos juntos por um tempo tão lindo como este! Não acha isso bonito, todas as árvores, esses pilriteiros e meu tanque? Você nunca me felicitou por meu tanque! Mas que cara mais murcha é essa?! Não está sentindo este ventinho agora? Ah!, por mais que se diga, ainda existem coisas boas nesta vida, meu caro Amadeu!”. Nisto, voltou-lhe a lembrança da morta e, achando decerto muito complicado explicar como se deixava arrastar em tal momento a um impulso de alegria, contentou-se em passar a mão pela testa e esfregar os olhos e os vidros do lornhão, em um gesto que lhe era habitual, sempre que se lhe apresentava ao espírito uma questão delicada
Nunca pôde, no entanto, consolar-se da morte da esposa, mas, durante os dois anos que lhe sobreviveu, costumava dizer a meu avô: “É engraçado, penso muitas vezes em minha pobre mulher, mas não posso pensar muito de cada vez”. “Muitas vezes, mas pouco de cada vez, como o pobre do velho Swann”, tornara-se uma das frases favoritas de meu avô, que a dizia a propósito das coisas mais diversas. Esse velho Swann me pareceria um monstro na certa, se meu avô, a quem considerava melhor juiz e cujas sentenças firmavam jurisprudência para mim, auxiliando-me muitas vezes a absolver faltas que me sentia inclinado a condenar, não exclamasse peremptoriamente:
“Mas como? Era um coração de ouro!”
Durante muitos anos, quando o sr. Swann, o filho, vinha nos visitar com tanta frequência em Combray, principalmente antes de seu casamento, minha tia-avó e meus avós nunca chegaram a suspeitar de que ele já não vivia na sociedade que sua família frequentava e que, sob a espécie de incógnito que lhe emprestava em nossa casa esse nome de Swann, estavam eles abrigando — com a perfeita inocência de honrados hoteleiros que albergam, sem o saber, um bandido famoso — um dos mais elegantes membros do Jockey Club, amigo predileto do conde de Paris e do príncipe de Gales, um dos homens mais requestados da alta sociedade do bairro de Saint-Germain.[6]
A ignorância em que nos achávamos da brilhante vida mundana de Swann provinha, evidentemente, em parte da reserva e discrição de seu caráter, mas também da ideia um tanto indiana que os burgueses de então formavam a respeito da sociedade, considerando-a composta de castas fechadas, onde cada qual se via, desde o nascimento, colocado na posição que ocupavam seus pais, e de onde nada poderia nos tirar para fazer com que penetrássemos em uma casta superior, a não ser os casos de uma carreira excepcional ou de um casamento inesperado.
O sr. Swann pai era corretor; o “jovem Swann” devia, pois, pertencer toda a vida a uma casta em que as fortunas, como em uma determinada categoria de contribuintes, variavam entre tal e tal renda. Sabia-se quais tinham sido as relações de seu pai; sabia-se, pois, quais eram as suas, com que pessoas estava “em situação” de privar. Outras que acaso conhecesse seriam meras relações de rapaz, às quais velhos amigos de sua família, como minha gente, fechavam benevolamente os olhos, tanto mais que ele, ainda depois que perdera o pai, continuava fielmente a visitar-nos; mas era de apostar que as pessoas para nós desconhecidas que frequentava seriam dessas a quem não ousaria tirar o chapéu em nossa presença. Se a todo custo se lhe quisesse aplicar um coeficiente social adequado, dentre os demais filhos de corretores de situação igual a de seus pais, tal coeficiente não seria dos mais altos, pois Swann, que era muito simples de trato e sempre tivera a “mania” de antiguidades e pintura, morava agora em uma velha casa onde acumulava suas coleções e que minha avó sonhava visitar, mas que ficava no cais de Orléans, lugar em que era infamante residir, na opinião de minha tia-avó. “Mas o senhor ao menos entende dessas coisas? Pergunto-lhe isso em seu interesse, pois os comerciantes lhe devem impingir muitas drogas”, dizia-lhe minha tia-avó; não lhe atribuía, de fato, competência alguma e não formava uma ideia muito elevada, nem mesmo do ponto de vista intelectual, de um homem que evitava na conversação os assuntos sérios e demonstrava uma precisão muito prosaica, não só quando nos fornecia receitas de cozinha, entrando nos mínimos detalhes, mas até mesmo quando as irmãs de minha avó abordavam assuntos artísticos. Provocado por elas a opinar, a exprimir sua admiração por determinado quadro, guardava um silêncio quase descortês, mas emendava-se, afinal, quando podia dar algum informe material quanto ao museu onde se achava o mesmo ou a data em que fora pintado. Mas habitualmente se contentava em divertir-nos contando de cada vez uma história nova que acabava de lhe acontecer com gente conhecida nossa, com o farmacêutico de Combray, com nossa cozinheira, nosso cocheiro. Sem dúvida essas narrativas faziam rir a minha tia-avó, mas sem que ela pudesse bem discernir se era devido ao papel ridículo que ele sempre se atribuía no caso ou ao espírito com que o sabia contar: “Ah!, o senhor é mesmo um grande tipo!”. E, como era a única pessoa um pouco vulgar de nossa família, tinha o cuidado de observar aos estranhos, quando se falava de Swann, que este poderia, se quisesse, morar no bulevar Haussmann ou na avenida da Ópera, que era filho do sr. Swann, que lhe devia ter deixado uns quatro ou cinco milhões, e que isso de residir no cais de Orléans era um simples capricho seu. Capricho que aliás considerava tão divertido para os outros que, em Paris, quando o sr. Swann, no dia primeiro de janeiro, vinha-lhe trazer seu saquinho de marrons-glacês, nunca deixava ela de lhe dizer, se havia gente de fora: “Com que então continua o senhor a morar perto do Entreposto do Vinho, para ter a certeza de não perder o trem quando vai a Lyon?”. E olhava para os outros, por cima do lornhão.[7]
Mas se lhe contassem que esse mesmo Swann, que estava perfeitamente “qualificado”, dada sua origem, para ser recebido por toda a “alta burguesia”, pelos notários ou advogados mais ilustres de Paris (privilégio que ele parecia negligenciar um pouco), tinha, como que às escondidas, uma vida inteiramente diversa; que, ao sair de nossa casa em Paris, depois de haver dito que iria deitar-se, arrepiava caminho mal dobrava a esquina e se dirigia para um salão que jamais contemplaram olhos de corretor ou de sócio de corretor, pareceria isso uma coisa tão extraordinária a minha tia como, para uma senhora mais culta, o pensamento de manter relações pessoais com Aristeu e de que este, após conversar com ela, iria mergulhar nos remos de Tétis, um império oculto aos olhos dos mortais e onde Virgílio no-lo mostra acolhido de braços abertos;[8] ou, para nos limitarmos a uma imagem que tinha mais probabilidade de lhe ocorrer ao espírito, pois a vira pintada em nossos pratos de biscoitos de Combray, que tivera para jantar a Ali Babá, o qual, quando se visse a sós, penetraria na caverna ofuscante de insuspeitados tesouros.
continua na página 27...
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Leia também:
Volume 1
No Caminho de Swann (Ao passo sacudido - b)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
[1] A lenda merovíngia fala dos avanços de Golo junto a Geneviève, na ausência de seu marido. Ante sua negativa, Golo a acusa de adultério. Os criados, em vez de executar a sentença de morte, apenas a abandonam na selva, onde é encontrada muito depois pelo marido; Golo é executado. Mais referências à lenda serão encontradas nas paredes da igreja de Combray. A violência pungente nessas projeções da lanterna mágica sinaliza o “dilaceramento cortês” da convivência entre as pessoas em Combray. [n. e.]
[2] O motivo da criança isolada em seu quarto, ouvindo as vozes dos adultos, já aparecia nos projetos de escrita anteriores à Recherche, como o romance abandonado Jean Santeuil. Ele possibilita, desde o início, figurar a agitação da vida adulta como um doloroso pesadelo do tempo perdido. [n. e.]
[3] Mais de um olhar se dirige à cena das deambulações da avó: ao do garoto culpado mistura-se o olhar distanciado do narrador, que nos mostra a figura ansiosa, infeliz e autocentrada da avó. [n. e.]
[4] A personagem que aparece no título desse primeiro volume, e cuja vida pregressa conheceremos no segundo capítulo, é figura contrastiva para o herói. Com ela surgem paralelos que orientam o herói na percepção da dinâmica do amor, da relação com a arte e do próprio sentido da vida. [n. e.]
[5] Das poucas e fugidias descrições físicas na obra de Proust. O cabelo “à la Bressant” refere-se ao corte usado por um ator célebre na época, Prosper Bressant (1815-86), cabelos escovados na frente e longos atrás. [n. e.]
[6] O conde de Paris, Luís Felipe de Orléans, neto de Louis-Philippe, era pretendente
ao trono e futuro chefe do partido monarquista. O príncipe de Gales era filho e
sucessor da rainha Vitória, da Inglaterra, país em que o conde se refugiará. Ambos
pertenciam ao Jockey Club, o mais fechado dos círculos sociais parisienses. [n. e.]
[7] A referência ao cais de Orléans, situado na ilha Saint-Louis, é a de um lugar fora
das preferências da burguesia parisiense da época, que optava pelos bulevares abertos
pelo prefeito Haussmann e os bairros perto do Bois de Boulogne, para os quais, aliás,
Swann se mudará assim que se casar. Entre os moradores da ilha constavam os poetas
Théophile Gautier, Baudelaire e o pintor Cézanne. [n. e.]
[8] Procedimento tipicamente proustiano de mistura de uma referência literária (das
Geórgicas de Virgílio) para falar de ações costumeiras das personagens do livro. Filho de
Apolo e Cirene, Aristeu provoca involuntariamente a morte de Eurídice. A pedido de
Orfeu, ele é punido com a extinção das abelhas que criava. Desesperado, ele se refugia
junto da mãe, no fundo das águas do rio Peneu. [n. e.]
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