quarta-feira, 8 de março de 2023

Marcel Proust - À Sombra das Moças em Flor (Ao Redor da Sra. Swann - b)

em busca do tempo perdido

volume II
À Sombra das Moças em Flor


Ao Redor da Sra. Swann


(b)

continuando...

Teria preferido voltar aos projetos literários que fizera outrora, os quais abandonara no decurso de meus passeios pelos caminhos de Guermantes. Porém meu pai mantivera uma oposição constante a que eu me destinasse à carreira das letras, que julgava bastante inferior à diplomacia, rejeitando-lhe mesmo o nome de carreira, até o dia em que o Sr. de Norpois, que não gostava muito dos agentes diplomáticos das novas fornadas, lhe assegurara que era possível a alguém, enquanto escritor, atrair tanta consideração, exercer tanta ação e conservar mais independência do que nas embaixadas.

-Vou trazê-lo para jantar uma noite destas, saindo da Comissão. Vais falar um pouquinho com ele, a fim de que ele possa te avaliar. Escreve alguma coisa que possas lhe mostrar; é muito relacionado com o diretor da Revista dos Dois Mundos, conseguirá que faças parte dela, arranjará isso, é um velho esperto; e, por Deus, dá a impressão do que é a diplomacia hoje...

A felicidade que sentia em não me ver separado de Gilberte me tornava desejoso, porém não capaz, de escrever algo bem bonito para ser mostrado ao Sr. De Norpois. Depois de algumas páginas preliminares, com o tédio me fazendo cair a pena das mãos, eu chorava de raiva pensando que jamais teria talento, que não era dotado e nem poderia sequer aproveitar a oportunidade que a próxima visita do Sr. Norpois me ofereceria de permanecer sempre em Paris.

Somente a ideia de que me deixar ouvir a Berma me aliviava o desgosto. Mas assim como só desejava contemplar tempestades nos litorais onde eram mais violentas, da mesma forma iria ouvir a grande atriz num daqueles papéis clássicos em que Swann me afirmara que ela atingia a sublimidade. Pois, quando estamos na espera de preciosa descoberta e desejamos receber certas impressões da natureza, sentimos algum escrúpulo em deixar nossa alma acolher, em vez de impressões menores, que poderiam nos enganar quanto ao exato valor de Berma em Andrômaca, nos Caprichos de Marianne, em Fedra, era uma das coisas famosas que minha imaginação tanto desejara. Teria o mesmo divertimento que no dia em que uma gôndola me conduzisse para junto do Ti Frari ou dos Carpaccio de San Giorgio del Schiavoni, se alguma vez ouvidos pela Berma os versos: ''Diz-se que uma súbita partida vos afasta de nós, Senhor,'' etc

Eu os reconhecia pela simples reprodução em preto-e-branco das edições impressas; mas meu coração batia quando pensava, como na real uma viagem, que por fim os veria banharem-se de fato na atmosfera o ensolaramento da voz dourada. Um Carpaccio em Veneza, a Berma obras-primas da arte pictórica ou dramática cujo prestígio que se lhes faziam, eram tão vivas em mim, isto é, tão indivisíveis, que, se eu tivesse ido ver os quadros numa sala do Louvre ou a Berma em alguma peça da qual jamais ouvira; teria experimentado o mesmo espanto delicioso de ter enfim os olhos, diante do objeto inconcebível e único de tantos milhares de sonhos meus; esperando do desempenho da Berma revelações sobre certos aspectos da dor, parecia-me que o que houvesse de grande e verdadeiro nesse, deveria sê-lo ainda mais se a atriz o super pusesse à uma obra de valor legítimo em vez de ornar; em suma, verdade e beleza sobre uma trama medíocre e valiosa.

Por fim, se fosse ouvir a Berma numa peça nova, não me seria sua arte, sua dicção, visto que não poderia fazer distinção entre um conhecido previamente, e aquele que lhe acrescentariam entonações e me pareciam formar um só corpo com ele; ao passo que as obras antigas, sabia de cor, surgiam-se como vastos espaços reservados e prontos, onde apreciar em plena liberdade as invenções de que a Berma as cobriria, com os permanentes achados de sua inspiração. Infelizmente, há anos que ela deixara os grandes palcos e fazia a fortuna de um teatro do qual era a estrela, e já não representava os clássicos, e por mais que eu conhecesse os cartazes, eles nunca anunciavam senão peças recentes, escritas expressamente para ela pelos autores em voga; quando, certa manhã, procurando na coluna de teatros as matinês da semana do Ano-Novo, vi pela primeira vez no fim do espetáculo, depois de um erguer de pano provavelmente insignificante, pareceu opaco, pois continha todo o pormenor de uma ação que eu ignorava nos atos da Fedra com a Sra. Berma, e nas matinês seguintes: Le Demi-Monde; Os caprichos de Marianne, nomes que, como o de Fedra, eram transparentes a mim, preenchidos unicamente de claridade, de tanto que a obra me era combinada até o fundo por um sorriso de arte. Eles me pareceram acrescentar natureza à própria Sra. Berma quando li nos jornais, após o programa desses espetáculos, que fora ela quem resolvera mostrar-se novamente ao público em algumas de suas antigas criações. Portanto, a artista sabia que determinados papéis têm um interesse que sobrevive à novidade de seu aparecimento, ou ao sucesso da reprise; considerava-os, interpretados por ela, como obras-primas de museu que podia ser instrutivo repor aos olhos da geração que a havia admirado, ou daquela que não a vira. Colocando assim em cartazes, no meio de peças que só eram destinadas a fazer passar o tempo de um sarau, Fedra, cujo título não era maior que o das outras; onde se imprimia em caracteres diferentes, ela o acrescentava ali como o subentendido de uma dona de casa que, ao apresentá-lo aos convivas no momento de ir para a mesa, lhes diz, em meio aos nomes dos convidados que são apenas convidados, e no mesmo tom com que citou os outros: Sr. Anatole France.

O médico que me tratava o que me proibira qualquer viagem desaconselhou a meus pais que me deixassem ir ao teatro; voltaria para casa doente, talvez por muito tempo, e afinal sentiria mais sofrimento do que prazer. Esse temor poderia me fazer desistir, se aquilo que esperava de uma tal representação fosse unicamente um prazer que, em suma, um sofrimento posterior pode anular. Porém-assim como no caso da viagem a Balbec e a Veneza, que desejara tanto o que eu pedia àquela manhã, era algo bem diverso de um prazer: eram verdades pertencentes a um mundo mais real que aquele em que eu vivia, e as quais, uma vez processada a aquisição, não poderiam mais ser subtraídas por incidentes insignificantes da minha vida ociosa, mesmo que fossem dolorosos ao meu corpo. Quando muito, o prazer que sentiria durante o espetáculo se me afigurava como a forma talvez necessária da percepção dessas verdades; e era o bastante para que eu desejasse que as moléstias previstas só começassem depois de finda a representação, para que esta não fosse comprometida e falseada por elas. Implorava a meus pais que, desde a visita do médico, já não queriam permitir que fosse à Fedra. Recitava pra mim mesmo, sem parar, atirada:

Diz-se que uma súbita partida vos afasta de nós... procurando todas as nações possíveis, a fim de melhor avaliar o inesperado da que a Berma acharia. Oculta como o Santo dos Santos sob o pano, de boca que a disfarçava e por trás do coral eu lhe atribuía a cada instante um novo aspecto, segundo estas palavras decoradas na plaqueta encontrada por Gilberte que me voltavam ao espírito:

''-Nobreza plástica, cilício cristão, palidez jansenista, princesa de Trézene e de Cleves, miceniano, símbolo délfico, mito solar", a divina beleza que devia me revelar o empenho da noite e do dia sobre um altar perpétuo à Berma, a mensagem ficava no fundo da minha alma, a cujo respeito meus pais severos e levianos decidiram se ela encerraria ou não, e para sempre, as perfeições da Deusa revelada no mesmo lugar onde se erguia sua forma invisível. E, com os olhos fixos na imagem inconcebível, eu lutava da manhã à noite, contra os obstáculos que a família me opunha. Porém, quando todos foram vencidos, quando ainda que aquela matinê tivesse lugar precisamente no dia da sessão, após a qual meu pai devia trazer o Sr. de Norpois para jantar ele me disse:

"Mas não queremos te aborrecer; se achas que terás tanto prazer, então deves ir''; aquele dia de teatro, até então proibido, só dependeu de mim, então, pela primeira vez, já não tendo que me preocupar que deixasse de ser impossível, per se seria desejável, se outros motivos além da proibição de meus pais levariam a renunciar a ele. Em primeiro lugar, após ter detestado sua crueldade, o consentimento deles os tornava tão caros para mim, que a ideia de desgosto me aborrecia, e, através desse aborrecimento, a vida já não parecia como tendo por objetivo a verdade, e sim o carinho, e não me parecia melhor ou pior, senão conforme os meus pais fossem felizes ou infelizes.

"Preferia que não fosse se isso vai afligi-lo", disse a minha mãe, a qual, ao contrário, se esforçava por me fazer ter essa ideia preconcebida de que ela pudesse se entristecer com aquilo; agora acabaria por estragar o prazer que eu teria em ouvir a Fedra, cuja concessão, ela e meu pai tinham voltado atrás em sua proibição. Aí então, aquela obrigação de sentir prazer me parecia bem pesada. Depois, se eu voltasse estaria curado suficientemente rápido para poder ir aos Champs-Élysées; durante as férias, logo que Gilberte voltasse?

Para decidir do que devia ultrapassar todas essas razões; eu confrontava a idéia, invisível por trás de seu véu, a perfeição de Berma. Punha num dos pratos da balança "sentir mamãe triste, arrependido por não poder ir aos Champs-Élysées", no outro, "palidez jansenista, mito solar'', porém essas mesmas palavras acabavam se obscurecendo em meu espírito; não diziam mais nada, perdiam todo seu peso; pouco a pouco minhas hesitações tornavam-se tão dolorosas que, se agora optasse pelo teatro, seria apenas para cessar as dúvidas e livrar-me delas de uma vez por todas. Seria para abreviar meu sofrimento, não mais na esperança de um benefício intelectual e cedendo à atração da perfeição, que me deixaria levar não para a Sábia Deusa e, sim, para a implacável Divindade sem rosto e sem nome que a substituíra sub-repticiamente debaixo do véu. Porém bruscamente tudo se mudou, meu desejo de ir ouvir a Berma recebeu um novo impulso, que me permitiu esperar com impaciência e alegria aquela matinê; ocorreu-me quando fui fazer diante da coluna dos teatros a minha parada diária de elitista; ultimamente, vira, úmido ainda, o cartaz detalhado da Fedra que tinham acabado de colar pela primeira vez (e onde, na verdade, o resto da distribuição não tinha nenhum atrativo novo que pudesse me fazer tomar uma decisão). Mas, um dos objetivos, entre os quais oscilava a minha indecisão, uma forma mais concreta e - já que o cartaz estava datado, não do dia em que o lia; mas daquele em que ocorreria a representação, e com a própria hora em que se ergue - quase iminente, já em vias de realização, de modo que pulei de alegria, ao pensar que, naquele dia, exatamente naquela hora, estaria presente para ouvir Berma; sentado no meu lugar; e, com medo que meus pais já não tivessem reservado dois lugares para mim e minha avó; dei um pulo até em casa, como estava entusiasmado por estas palavras mágicas que haviam substituído, em meu pensamento, as expressões "palidez jansenista" e "mito solar": "As damas devem permanecer sem chapéu durante a representação, e as portas serão fechadas às duas horas em ponto.''

Infelizmente, essa primeira representação foi grandemente um desgosto. Meu pai propôs nos levar, a minha avó e a mim, ao teatro, quando saísse da sessão da Comissão. Antes de sair de casa, disse à minha mãe:

"Trata de fazer um bom jantar, estás lembrada que vou trazer o Sr. de Norpois?"

Minha mãe não se lembrava. E desde a véspera, Françoise, feliz por entregar-se à arte culinária, com certeza possuía um dom, e aliás estimulada pelo anúncio de um convidado novo, no sabendo que teria de preparar, segundo os métodos só dela conhecidos: vaca na geléia, vivia na efervescência da criação; como desse extrema importância à qualidade intrínseca dos materiais que deveriam entrar no preparo, foi ela mesma ao Mercado Central Halles para obter os mais belos pedaços de alcatra, de pé e de mocotó de vitela, tal como Michelangelo quando passava oito meses nas montanhas de Carrara para escolher os blocos de mármore mais perfeitos destinados ao monumento de Júlio II. Françoise empregava tal ardor, nessas idas e vindas, que mamãe vendo o seu rosto inflamado, temia que a nossa velha criada ficasse doente de exaustão como o autor do túmulo dos Médicis nas pedras de Pietrasanta. E, desde a véspera, Françoise mandara cozer, no forno de padeiro, protegido por uma camada de miolo de pão, como um mármore cor-de-rosa; que ela denomina presunto de New York. Julgando o idioma menos rico e seus próprios ouvidos não muito confiáveis, sem dúvida na primeira vez que ouviu falar do presunto de New York pensara - achando um desperdício inacreditável o vocabulário que pudesse existir, ao mesmo tempo, York e New York – que não tinha ouvido direito e que lhe tinham querido dizer o nome que ela já conhecia. Desde então a palavra York se fazia preceder, nos seus ouvidos, ou diante de seus olhos que lesse num anúncio, de um "New", que ela pronunciava Neu. E era com a melhor boa-fé do mundo que ela dizia à criada de cozinha:

"Vá buscar presunto a senhora me recomendou que seja de ''Neu York."

Naquele dia, Françoise na ardente certeza dos grandes criadores, seu quinhão era a cruel pesquisadora. Sem dúvida, enquanto não ouvi a Berma senti prazer. Desfrutava do largo que precedia o teatro e cujos castanheiros desfolhados iam depois, luzir com reflexos metálicos assim que os bicos de gás acesos passassem em detalhe os seus ramos; diante dos encarregados da fiscalização dos bilhetes de entrada - cuja promoção e o destino dependiam da grande artistapois só ela mandava nessa administração, a cuja testa diretores efêmeros e puramente na obscuridade e que pegavam nossas entradas sem nos olhar, porque tinham a preocupação de saber se todas as prescrições da Sra. Berma tinham sido transmitidas ao pessoal novo; se ficara bem claro que nunca teriam de aplaudi-la; que as janelas deviam estar abertas, enquanto ela não estivesse e a menor porta fechada depois; com um pote de água quente dissimulando dela para fazer cair a poeira do palco; de fato, dali a um instante a sua tirada por dois cavalos de longa crina ia parar diante do teatro, e ela desceria em peles, respondendo com um gesto entediado aos cumprimentos; e uma de suas acompanhantes para se informar sobre o proscénio reservado para seus amigos; sobre a temperatura da sala, o arranjo dos camarotes, a arrumadeiras, teatro e público; sendo que para ela o teatro era apenas um segundo traje, mais externo; um condutor, melhor ou pior que seu talento teria de atravessar. Senti-me feliz na própria sala; desde que soubera que - ao contrário do que me fora por um tempo representado pela minha imaginação infantil; só haveria um cenário para todo o mundo, pensava que os outros espectadores deviam impedir de ver direito, como quando estamos no meio de uma multidão - ora, percebi, ao contrário, graças a uma disposição que é como o símbolo de toda percepção que cada um se sente no centro do teatro; o que me explicou por que uma vez mandado Françoise ver um melodrama na terceira galeria, ela houvesse, ao voltar, que o seu posto era o melhor que podia haver, em vez de ser muito longe sentira-se intimidada pela viva e misteriosa proximidade das cortinas. Meu prazer aumentou ainda mais quando comecei a distinguir, atrás, abaixado, rumores confusos como os que a gente ouve sob a casca do ovo de um pinto que vai nascer, rumores que logo aumentaram e, de repente, daquele impenetrável ao nosso olhar, mas que nos via do seu, dirigiram-se indubitáveis a nós sob a forma imperiosa de três pancadas, tão emocionantes, vindos do planeta Marte. E tão logo se ergueu o pano quando, no palco apareceu uma escrivaninha e uma lareira, aliás bem ordinárias, indicaram que as personagens iam entrar seriam, não atores que tivessem vindo para recitar, como vira numa recepção, porém homens dispostos a viver um dia de suas vidas; penetrava por arrombamento sem que pudessem me ver, meu prazer duradouro; foi interrompido por uma breve inquietação; justo quando eu tinha os ouvidos em alerta, antes que a peça começasse, dois homens entraram no palco, visto que falavam com força bastante para que naquela sala, onde havia mais de mil pessoas, se entendessem todas as suas palavras, ao passo que num café a gente é obrigado a perguntar ao garçom o que dizem dois indivíduos engalfinhados; mas, no mesmo instante, espantado por ver que o público sem protestar, mergulhado como estava num silêncio unânime; breve veio sussurrar um riso aqui, um outro ali, compreendi que esses, eram atores e que a peça, chamada anteato, acabava de começar. Foi por um entreato tão longo que os espectadores, de volta a seus lugares impacientavam e batiam com os pés. Aquilo me assustou; pois, assim como no sumário de um processo, quando eu lia que um homem de coração generoso, vinha, a despeito de seus interesses, testemunhar em favor de um inocente, eu temia sempre que não fossem suficientemente amáveis com ele, que não se mostrassem bastante reconhecidos, que não o recompensassem largamente, e que, desgostoso, ele se pusesse ao lado da injustiça - da mesma forma, assimilando naquilo o gênio à virtude, temia eu que a Berma, aborrecida com os maus modos de um público tão mal-educado no qual, pelo contrário, gostaria que ela pudesse reconhecer com satisfação algumas celebridades a cuja crítica ela atribuía importância-, exprimisse o seu descontentamento e seu desdém atuando mal. E olhava com ar de súplica aqueles brutamontes turbulentos que, no seu furor, iam quebrar a preciosa e frágil impressão que eu viera buscar. Por fim, os últimos momentos de meu prazer ocorreram durante as primeiras cenas de Fedra. A personagem Fedra não aparece nesse começo do segundo ato; e, no entanto, desde que se ergueu o pano e um segundo pano, este de veludo vermelho, se afastou, aumentando o tamanho do palco em todas as peças em que atuasse a estrela, uma atriz entrou pelos fundos, com o rosto e a voz que me haviam dito serem os da Berma. Provavelmente haviam mudado a distribuição dos papéis, tornava-se inútil o cuidado que eu tivera em estudar o papel da mulher de Teseu. Mas uma outra atriz replicou à primeira. Enganara-me tomando esta pela Berma, pois a segunda se parecia ainda mais com ela e, mais que a outra, possuía a sua dicção. Além disso, ambas acrescentavam nobres gestos a seu papel-gestos que eu percebia claramente, compreendendo sua relação com o texto, enquanto elas erguiam seus belos peplos (túnica sem mangas) -, e também engenhosas entonações, ora passionais, ora irônicas, que me faziam entender o significado de um verso que havia lido em casa sem prestar muita atenção ao que dizia. Mas de súbito, na separação do pano vermelho do santuário, como num quadro, surgiu uma mulher e, a seguir, pelo medo que senti, muito mais do que o podia ser o da Berma, de que a incomodassem abrindo uma janela, de que alterassem o som de uma de suas palavras amarrotando um programa, de que a indispusessem aplaudindo suas companheiras e não a aplaudissem de forma suficiente; à minha maneira, mais absoluta ainda que a da Berma, de não considerar, desde aquele instante, sala, público, atores, peça, e meu próprio corpo, senão como um meio acústico que só tivesse importância na medida em que fosse favorável às inflexões daquela voz, compreendi que as duas atrizes que admirava há poucos minutos não tinham qualquer semelhança com a que acabava de ouvir.

Porém, ao mesmo tempo, todo meu prazer cessara; por mais que estendesse para Berma os meus olhos, meus ouvidos, meu espírito, para não deixar escapar uma migalha dos motivos que ela me daria para admirá-la, não logrei recolher um sequer. Nem podia, como no caso de suas companheiras, distinguirem, no jogo das inflexões inteligentes, os belos gestos. Escutava-a como se, lendo a Fedra, ou como se a própria Fedra dissesse naquele momento eu a ouvia, sem que o talento da Berma parecesse lhe ter acrescentado coisa alguma. Gostaria para poder aprofundá-la, para tentar descobrir o que havia nela de belo; de parar, imobilizar cada inflexão da artista, cada expressão sua; pelo menos, à força de agilidade mental, tendo, antes de um verso, toda a atenção instalada e alerta. Tentava não me distrair em preparativos uma parte da atenção de cada palavra, de cada gesto; graças à intensidade da minha procura chegara descer tão profundamente nelas como o teria feito se tivesse longo tempo à minha disposição. Mas como era breve essa duração! Mal meus ouvidos ouviam um som, este já era substituído por outro. Numa cena em que permanece imóvel por um instante, o braço erguido à altura do rosto; numa luz esverdeada graças a um artifício de iluminação, diante da decoração que representava o mar, a sala rompeu em aplausos, mas a atriz já havia mudado; o quadro que eu desejaria estudar não mais existia.

Disse à minha avó que não via bem, e ela me passou o binóculo. Apenas, quando se crê na realidade de usar um meio artificial para fazer com que se mostrem; não equivale inteiramente sentir-se próximo delas. Achava que já não era a Berma a quem via na imagem na lente de aumento. Deixei o binóculo; mas talvez a imagem que o olho recebia, diminuída pela distância, não fosse mais exata; qual das duas era a verdadeira? Quanto à declaração a Hipólito, eu confiara muito nesse que, a julgar pelos sentidos engenhosos que suas companheiras descobriram a todo momento nas partes menos belas, elas certamente teriam entonações muito mais surpreendentes que, em casa, lendo-o, tentara imaginar; mas ela nem sequer chegou aos acentos que Oenone ou Aricie teriam encontrado, passou pela plataforma de melopéia uniforme em todo parágrafo, onde se acham confundidos todos em uma só massa de oposição claríssima; todavia tão ressaltados, cujos efeitos uma atriz trágica mediana teria dado; ou até alunos do colégio, não deixariam de acentuar; além disso, ela o declamou tão depressa que somente quando chegou ao último verso é que minha mente se conscientizou da monotonia intencional que havia imposto aos primeiros.


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