quarta-feira, 22 de março de 2023

Chico Buarque - Ópera do Malandro / Segundo Ato - Cena 3 (3a)

 Ópera do malandro



Chico Buarque 
 

Ópera do malandro
americanismo: da pirataria à modernização autoritária (e o que se pode seguir)
 

"A multidão vai estar é seduzida" — Teresinha Fernandes de Duran


SEGUNDO ATO

CENA 3


Cadeia; Max e Chaves em frente à cela; Max gesticula muito, mesmo algemado.


MAX
Não vai dizer que se impressionou com aquele forrobodó, vai? As meninas morrem de medo da puta velha da minha sogra. Elas me adoram, Chaves. Os rapazes então, são unha e carne comigo. E você é muito macaco velho pra cair no blefe dos Duran. Me solta pra ver se acontece passeata. . . Acontece nada. Olha pra mim, Chaves! Não vai me soltar?

CHAVES
Sabe que as minhas instruções são pra te aplicar uma execução sumária, né? O Duran diz que a Justiça é morosa e que tu é um pinta escorregadio. Eu é que to tentando contornar a situação, ganhar tempo. . . Vou fazer o possível pra não te eliminar.

MAX 
Muito obrigado, você é um anjo.

CHAVES
Entende, Max. Esse emprego eu não posso perder. Ainda mais com a minha filha Lúcia que me rouba e não para de comer bombom.

MAX
Mais um motivo pra me soltar. Meus negócios estão incrementando dum jeito que só você vendo. Hoje mesmo, tem sete cargueiros chegando aí. E eu tava pensando em reajustar a tua comissão. . . Pergunta à Teresinha. Eu tinha decidido que ia te pagar dez por cento do meu rendimento bruto. Daí você podia largar este empreguinho miserável. E depois comprava o Pão de Açúcar pra tua filha comer.

CHAVES
Essa não. Tu já não me paga mesmo. Se eu saio da polícia então, que interesse tu vai ter em me dar sociedade?

MAX
Interesse? É só nisso que você pensa? Sabe duma coisa, Chaves? Acabei de descobrir que você é venal. É desumano, é mercenário. Na minha cabeça não era assim não. Pra mim, a amizade tava acima de tudo. Ah, eu sou o último romântico.

CHAVES
Não é assim, Tião. Mesmo que o nosso negócio vá pras picas, eu continuo prezando a tua amizade. E com você preso, praticamente morando na minha casa, acho que vai dar pra gente se divertir que nem nos doze anos.

MAX
Nada feito. Você não é mais meu amigo, é meu carcereiro. Nunca mais lhe dirijo a palavra! Palavra de honra!

O juiz do casamento, algemado e escoltado, sai de uma porta e passa pelos dois, aos prantos

JUIZ
Eu apenas cumpri ordens! Eu sempre cumpri ordens! (Sai)

MAX
Vem cá. Esse aí não é o juiz do meu casamento?

CHAVES
Era. Foi denunciado pelo teu sogro. No começo eu pensei que fosse só picuinha do Duran, talvez porque ele registrou o casamento em livro oficial. Mas eu, como inspetor, tenho a obrigação de mandar investigar objeto da denúncia. Pegamos o homem, investigamos, investigamos, e não é que o sujeitinho confessou cada crime mais criminoso que o outro? Confessou uns crimes que eu nem sabia da existência. Eta juizinho subversivo, sô.

BARRABÁS (A porta)
Quem é o próximo?

MAX
Barrabás, você por aqui? Também te pegaram?

CHAVES
Ah, Tião, esse aí é o Chagas, nosso novo investigador. Agora me desculpa que eu vou ter que te trancar. Se precisar de alguma coisa, fala com o Chagas. Até. (Tranca a cela e sai levando as chaves)
MAX
Vai, ingrato! Vai, bunda mole! E você, Barrabás, trabalhando na polícia? Não tem vergonha? O que houve?

BARRABÁS
Vergonha até que tenho. Mas não cavei nada melhor depois que a tua mulher me botou na rua.

MAX
Não! Teresinha não pode ter feito isso com o meu melhor amigo!

BARRABÁS
Agora eu tenho que preparar teu interrogatório pra logo mais. Vai querer superluxo, luxo ou standard?

MAX
Como é que é isso?

BARRABÁS
Superluxo custa dois contos e é sentado. Luxo custa quinhentos e é em pé. Standard é de quatro e sai grátis.

MAX
Escuta, sem interrogatório, quanto é que você faz?

BARRABÁS
Cinco contos.

MAX
Quatro.

BARRABÁS
Por menos de quatro e quinhentos eu não posso fazer, que entro no prejuízo.

MAX (Abre a carteira)
É tudo o que eu tenho comigo. Quatro, duzentos e cinqüenta. . .

BARRABÁS (Pega a carteira)
Vá lá. Mas eu fico com a carteira.

MAX Não! É de couro argentino! Então tira as algemas. . .

Barrabás tira as algemas de Max; gritos de mulher

LÚCIA (Off)
Cadê aquele barba-azul de merda?

BARRABÁS
Ih, Max, é a Lúcia!

MAX
Pelo amor de Deus, Barrabás, diz que eu saí. . .

LÚCIA (Entra)
Ah, canalha, você me desonrou pra sempre! Na tua sessão de tortura eu quero sentar na primeira fila!

MAX
Lúcia, que surpresa! (Barrabás sai)

LÚCIA
Aplaudindo de pé e pedindo bis! O autor! O autor!

MAX
Lúcia, você se esqueceu do meu beijo.

LÚCIA
Que beijo!

MAX
Falando sério, Lúcia, você não tem entranhas? Teu pai vai me jogar no Guandu, Lúcia! Você não tem dó da situação do teu marido?

LÚCIA
Que marido! Pensa que eu não sei da Teresinha, pensa?

MAX
Teresinha? Que Teresinha?

LÚCIA
Ah, veado, quando você estiver pendurado no pau, eu vou mandar te capar!

MAX
Lúcia, cuidado! Eu não sei por que você tá tão nervosinha hoje. Só sei que nos primeiros meses de gravidez isso é um perigo. Li num livro. O histerismo da gestante enrijece o colo uterino e afeta o desenvolvimento do embrião.

LÚCIA
Filho do cão!

MAX
Juro, Lúcia, se há uma coisa no mundo que eu não posso perder é esse meu filho. (Acaricia-lhe a barriga). O primogênito, o herdeiro, o Max Júnior!

LÚCIA
Tira a mão daí! Eu vou criar sozinha o filho adulterino, filho de mãe solteira. . . Oh, Max! (Quase chora).

MAX
Lúcia, Max Júnior vai ser a goma-arábica que nos manterá unidos pra sempre. Ele vai consolidar nosso matrimônio.

LÚCIA
Ô, patife, você sabe que eu sei que você sabe que eu sei do seu casamento com a Teresinha!

MAX
Lá vem essa Teresinha de novo, porra! Parece ioiô!

LÚCIA
E antes que você esbanje tudo na lua-de-merda, devolva os trinta contos que eu lhe emprestei!

MAX
O quê? Calúnia! Eu só troquei teu dinheiro em dólar por causa da inflação. Graças a mim, os teus vinte contos hoje são vinte e cinco.

LÚCIA
Quero os meus trinta contos! Meus não, do papai!

MAX
É claro, faço questão de te entregar tudo. Chega de fazer favor e receber desaforo. Só que tem que me tirar daqui, porque tá tudo no City Bank. Eu não sou irresponsável de andar com dinheiro dos outros no bolso.

LÚCIA
Faz um cheque!

MAX
E eu venho à cadeia com talão de cheque? Teu pai é perito em fazer nego assinar tudo quanto é confissão. . . Imagine um cheque do City Bank! Eu fico bobo é com a tua tacanharia, Lúcia. Daqui a pouco eu começo a cobrar pelas caixas de marrom-glacê que eu trago pra você devorar.

LÚCIA
Olha, pega os teus marrom-glacê e enfia no cu da Teresinha Duran!

MAX
Teresinha Duran! Ahhhh, então a Teresinha era essa? Oh, baby, você não vai ser bobinha a ponto de ter ciúme de Teresinha Duran, vai?

LÚCIA
Vai dizer que não casou com ela, vai?

MAX
Mulher já não prima pelo intelecto. Quando tá com ciúme então, aí é que emburrece de vez.

LÚCIA
Vai dizer, vai?

MAX
Ha ha ha, já sei! Só pode ser arranjo daquele velho safado! Tá com a filha encalhada na prateleira, o velho. Daí, só porque eu fui lá vez e outra, tralalá, trololó, coisa e tal, o velho espalha boato de casório pra valorizar o material.

LÚCIA
Vocês têm papel passado em cartório, que eu sei!

MAX
Lúcia, eu já estou envolvido em vinte e nove processos. Tá querendo me enquadrar por bigamia também, é?

LÚCIA
Tô cagando, sabe o que é isso? Quero que você morra! E quero ver aquela galinha viúva, todinha de preto!

MAX
Logo a Teresinha, pô. Se é pra me acusar de casamento, arranja uma mulher melhor. Uma Joan Crawford, por aí. Mas nunca a Teresinha, ainda mais com aquele problema chato. . .

LÚCIA
Que problema?

MAX
Aquele corrimento que não para. Você acha que o seu Max ia casar com uma mulher que vive vazando?

LÚCIA
Max, você tá com jeito de quem vai me enganar. . .

MAX
Deixa disso, baby, você sabe que eu sou louco por você. Quem já deitou contigo não esquece, minha pombinha de veludo. Se eu pudesse, comia você agora mesmo, com grade e tudo. (Agarra Lúcia) Abre a porta, Lúcia. Eu te desejo! Lúcia, amor de pica é amor que fica!

TERESINHA (Entra)
Preciso falar com meu marido. Oh, que é isso?

MAX
Que azar!

LÚCIA Que bandido!

TERESINHA
Quem é essa pessoa?

LÚCIA
Quem é essa pessoa?

TERESINHA
Sou a senhora Max Overseas, encantada. Querido, você jurou que não punha mais os pés num bordel. Viu no que é que deu?

LÚCIA
Ah, é? Andando com as putas de novo? Seu cachorro!

TERESINHA
Meu bem, eu trago grandes novidades! Consegui um contato direto com Nova Iorque! Já mandei um telegrama em nosso nome para a United Merchants and Manufacturers. . . Max, você tá me ouvindo? Por que não olha pra tua esposinha?

LÚCIA 
Olha pra tua esposinha, tarado! Polígono! Você nunca vai ver os cornos do teu filho, viu?

TERESINHA
Que filho?

LÚCIA
Isto aqui. (Mostra a barriga) Tá pensando que é chope? Isto é o bendito fruto do meu casamento com Max.

TERESINHA
Você tá enganada, moça. Eu é que casei com ele. De branco e tudo, véu, grinalda, juiz e padrinho, né, Max?

MAX
Não exagera, tá? A brincadeira já foi longe demais.

TERESINHA
O quê? Tem coragem de me renegar?

MAX 
Ah, Teresinha, eu não tô te renegando. Você é uma moça excelente, muito prestativa, boa datilografa. Sabe inglês, foi por isso que eu te admiti como secretária.

TERESINHA
O quê?

MAX
E assim mesmo você andou abusando. Quem foi que te deu o direito de dispensar o Barrabás?

TERESINHA
Max, os teus negócios também são meus! Ah, antes que eu me esqueça, a tua aliança. . . Toma, você esqueceu na mesinha de cabeceira. . .

LÚCIA
O quê? Ah, agora sim, a prova do crime! (Torce o braço de Max) Vai confessar ou não vai?

MAX
Que é isso, Lúcia, me larga! Não tá vendo que isso é truque dela pra nos separar? Truque barato! (Atira longe a aliança) Bijuteria de camelô!

TERESINHA
Max, olha o que você fez!

MAX
Você não desconfia de nada, Teresinha? Quer ver a minha caveira, quer?

LÚCIA
É isso mesmo, mocinha. Tá vendo que ele tá com um pé na cova e ainda vem tripudiar?

TERESINHA
Se a rapariga tivesse recebido um mínimo de educação, saberia que, em conversa particular de marido e mulher, não se mete a colher.

LÚCIA
Educação, é? A leide estudou no Sacrequer, é? Pois vamos ali na salinha ao lado que vou te mostrar um pouco de educação pra senhorita!

TERESINHA
Senhorita, não. Senhora!

LÚCIA
Pois a senhora vá tomar no seu rabo.

TERESINHA
Que coisa mais vulgar!

LÚCIA
Vou chamar o investigador pra tu ver o que é bom pra tosse.

TERESINHA
Pode chamar quem quiser, moça. O Max me protege.

LÚCIA
Deixa disso, mulher. O negócio do Max é aqui comigo.

TERESINHA
Pode falar à vontade. O Max me ama.

LÚCIA
Te ama? Pois em mim ele dá cinco sem sair de cima.

TERESINHA
Comigo ele chora de prazer!

LÚCIA
Comigo ele rola no tapete!

TERESINHA
Comigo ele fica vesguinho. ..

LÚCIA
Comigo ele fala um montão de porcaria. . .


A orquestra ataca a introdução. Teresinha e Lúcia cantam "O Meu Amor"


TERESINHA
O meu amor
Tem um jeito manso que ê só seu
E que me deixa louca
Quando me beija a boca
A minha pele toda fica arrepiada
E me beija com calma e fundo
Até minh'alma se sentir beijada


LÚCIA
O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
Que rouba os meus sentidos
Viola os meus ouvidos
Com tantos segredos
Lindos e indecentes
Depois brinca comigo
Ri do meu umbigo
E me crava os dentes


AS DUAS
Eu sou sua menina, viu?
E ele é o meu rapaz
Meu corpo é testemunha
Do bem que ele me faz


LÚCIA
Meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
De me deixar maluca
Quando me roça a nuca
E quase me machuca
Com a barba mal feita
E de pousar as coxas
Entre as minhas coxas
Quando ele se deita


TERESINHA
O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
De me fazer rodeios
De me beijar os seios
Me beijar o ventre
E me beijar o sexo
E o mundo sai rodando
E tudo vai ficando
Solto e desconexo


AS DUAS
Eu sou sua menina, viu?
E ele ê o meu rapaz
Meu corpo é testemunha
Do bem que ele me faz






continua pág 108 ...

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NOTA 

O texto da "Ópera do Malandro" ê baseado na "Ópera dos Mendigos" (1728), de John Gay, e na "Ópera dos Três Vinténs" (1928), de Bertolt Brecht e Kurt Weill. O trabalho partiu de uma análise dessas duas peças conduzida por Luís Antônio Martinez Corrêa e que contou com a colaboração de Maurício Sette, Marieta Severo, Rita Murtinho, Carlos Gregório e, posteriormente, Maurício Arraes. A  equipe também cooperou na realização do texto final através de leituras, críticas e sugestões. Nessa etapa do trabalho, muito nos valeram os filmes "Ópera dos Três Vinténs", de Pabst, e "Getúlio Vargas", de Ana Carolina, os estudos de Bernard Dort ("O Teatro e Sua Realidade"), as memórias de Madame Satã, bem como a amizade e o testemunho de Grande Otelo. Contamos ainda com a orientação do prof. Manoel Maurício de Albuquerque para uma melhor percepção dos diferentes momentos históricos em que se passam as três "óperas". E o prof. Luiz Werneck Vianna contribuiu com observações muito esclarecedoras. Esta peça é dedicada à lembrança de Paulo Pontes. 

Chico Buarque Rio, junho de 1978


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Leia também:

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Chico Buarque - Ópera do Malandro / Segundo Ato - Cena 1
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Chico Buarque - foi musicando o poema "Morte e Vida Severina", de João Cabral de Mello Neto, encenado pelo grupo universitário TUCA, que Chico Buarque se revelou como compositor, dois anos antes do sucesso de "A Banda", "Roda Viva", sua primeira peça, teve uma carreira tumultuada: estreou no Rio, em 1967, com um sucesso que desgostou a muita gente; em São Paulo, os atores foram espancados durante o espetáculo e, em Porto Alegre, sequestraram a atriz Elizabeth Gasper. A peça acabou proibida pela censura.
Chico só voltou ao teatro em 1972. OU melhor: tentou voltar.. Depois de muito tempo e dinheiro gastos com ensaios e produção, "Calabar - O Elogio da Traição", teve sua encenação vetada. E a censura foi além: proibiu a imprensa de fazer qualquer referência à obra, aos autores e até ao próprio Calabar. Mas, transcrita em livro, a peça esgotou-se rapidamente.
No ano seguinte, outro sucesso de venda: "Fazendo Modelo - Uma Novela Pecuária". E, em 1975, apesar de inúmeros cortes, "Gota d'Água" chegou aos palcos de Rio e São Paulo, onde ficou por dois anos. Agora, aí está a "Ópera do Malandro", que estreou no Rio  a 26 de julho de 1978, e que é mais uma prova do gênio de Chico Buarque de Hollanda.

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