sexta-feira, 3 de março de 2023

Úrsula - XVIII - A dedicação

Maria Firmina dos Reis


Úrsula

XVIII -  A dedicação


Antero era um escravo velho, que guardava a casa, e cujo maior defeito era a afeição que tinha a todas as bebidas alcoolizadas.
Em presença dos dois homens de má catadura e feições horrendas, ele mostrou-se rígido, e atirou com o prisioneiro para um quarto úmido e nauseabundo, e mostrou interessar-se vivamente em cumprir as ordens, que recebera. Depois colocou-se à porta, qual fiel cão de fila a quem o dono deixou de guarda à sua propriedade ameaçada por ladrões.
Túlio, entretanto, debatia-se de desesperação encerrado nesse quarto, do qual se não poderia escapar sem cometer um crime, que repugnava-lhe o coração. Impaciente, receoso pela sua sorte, e ainda mais pela de seu benfeitor, contava os minutos, e amaldiçoava a mão que assim o retinha.
Curvou a fronte em uma de suas mãos, e descansando o cotovelo sobre a coxa, mergulhou-se em seus pesares e deixou-se levar por eles. A tristeza e o abatimento, que se debuxavam naquele rosto nobre, contristaram ao seu guarda, que atento o considerava.

— Coitado! – dizia ele lá consigo – Sua pobre mãe acabou sob os tratos de meu senhor!... E ele, sabe Deus que sorte o aguarda. Pobre Túlio!...

E o prisioneiro, ora abatido, ora desesperado, entrou a soluçar, e a desafogar por esse modo as dores que lhe assoberbavam o peito. Depois ergueu-se e entrou a passear pela estreita prisão, ora com passos rápidos e incertos, ora com andar frouxo, aflito e desalentado.
Soaram nove horas. Túlio deu um gemido de desesperação.
Antero, que também sofria, quis distraí-lo de seus pensamentos dolorosos, e murmurou:

— Meu filho, não achas que a noite assim vai tão lenta e fastidiosa?

Túlio não respondeu. Pensava então que Tancredo partira já a receber sua noiva, e que apenas saísse da cidade estaria a braços com os seus assassinos.

— Ah! – dizia ele estorcendo as mãos – E eu aqui guardado para o não defender!!...

O velho esteve por algum tempo recolhido em si mesmo; depois levantou-se, pegou de uma cuia e tratou de lançar-lhe dentro o que quer que era que estava em uma cabaça. Mas esta estava completamente vazia. Antero arremessou-a para longe de si com certo ar de desprezo, suspirou, e depois disse:

— Maldito vicio é este! E que não possa eu vencer semelhante desejo!

Oh! Acredita-me, Túlio, estala-me a garganta de secura. E como não há de assim ser? Desde que aqui chegou meu senhor que não mato o bicho. Arre! E nem uma pinga de cachaça! Nem ao menos uma isca de fumo sequer para o cachimbo.
Então passou pela mente do mísero prisioneiro um lampejo de esperança, respirou com indizível satisfação; mas com arte objetou, afetando repreensivo acento:

— Que mau vício em verdade, pai Antero... Sempre a fumar e a beber. Não vos envergonhais de semelhante procedimento? Que conceito fará de vós o senhor comendador?!

— Que conceito? – interrogou o velho desapontado – Que conceito! É o único vício que tenho; e ainda por conservá-lo não prejudiquei ninguém. Que te importa que beba, – acrescentou com voz que queria dizer: não tens coração. — Por ventura pedi-te algum dinheiro para fumo ou cachaça? – e dizendo afagava a cabaça vazia com um desvelo todo paternal, como que arrependido de tê-la desprezado, a ela, a sua companheira constante.

— Não – respondeu friamente Túlio.

— Pois bem, – continuou o velho – no meu tempo bebia muitas vezes; embriagava-me, e ninguém me lançava isso em rosto; porque para sustentar meu vício não me faltavam meios. Trabalhava, e trabalhava muito, o dinheiro era meu, não o esmolei. Entendes?

— Perfeitamente, – retorquiu Túlio, fingindo sorrir-se.

— Pois ouça-me, senhor conselheiro: na minha terra há um dia em cada semana, que se dedica à festa do fetiche, e nesse dia, como não se trabalha, a gente diverte-se, brinca, e bebe. Oh! Lá então é vinho de palmeira mil vezes melhor que cachaça, e ainda que tiquira.

— Então, pai Antero, gostais assim tão loucamente de matar esse imortal bicho?

— Oh! Se gosto! – exclamou o velho africano lambendo os beiços só de esperança.

— Pois bem, – tornou o jovem negro, metendo-lhe nas mãos tanto dinheiro quanto era bastante para Antero embriagar-se dez vezes pelo menos –, tomai, e ide saciar à farta essa maldita sede.

O velho arregalou os olhos, e o prazer transbordou-lhe as feições ridentes; tomou a cabaça e saiu correndo; mas não sem ter fechado sobre si a porta da prisão.
Então Túlio olhou em derredor de si a assegurar-se da situação e dos meios de fuga, e viu nesse quarto horrível troncos, correntes, cepos, anjinhos, que se cruzavam. Aí, quantos desgraçados não tinham no meio das torturas amaldiçoado, como Jó, o dia do seu nascimento?!... Quantas lágrimas não teriam regado aqueles instrumentos de suplício?!...

— Ah! Se eu sempre tivesse destes bons prisioneiros!... – exclamou contente, e batendo as palmas o bom Antero, que voltava já bastante alegre, e que não satisfeito com a dose, que engolira, de novo beijava ternamente sua querida cabaça, agora cheia da bebida de sua predileção.

— Deus te pague, meu filho, e te dê uma boa sorte. – E daí arremessava-se à sua amante, e já os beijos eram tão repetidos, que pareciam um só e contínuo.

Contava já o incansável Túlio com a possibilidade de escapar-se; porque o silêncio, que reinava na casa, o advertia da ausência do comendador.
Dez horas ecoaram aos seus ouvidos. Túlio estava sobre espinhos.

— Dez horas! – murmurou – Que silêncio! Parece-me, pai Antero, que o mundo inteiro dorme: pelo menos nesta casa aposto que só nós estamos acordados.

— Adivinhaste – resmungou o velho com a língua tão pesada, que parecia um moribundo – porque se não fôramos nós, ela estaria completamente deserta.

— Deserta! – perguntou Túlio, tremendo em face de uma coisa que ele adivinhara já: – E então aonde foi o comendador?

Antero bebia freneticamente, esquecendo destarte o bárbaro rigor de Fernando P.; e por isso já meio dormindo apenas respondeu:

— Achei a porta fechada... por fora...

— E por onde então saíste? – perguntou Túlio, sacudindo-o. – Falai.– An! – Balbuciou a custo abrindo os olhos.

— Por onde saíste, se achaste a porta fechada por fora?

Pai Antero fez um esforço, e respondeu:

— Pelo quintal.

Não pôde mais falar, e caiu em profundo sono, entrecortado só por uma respiração forte e estrepitosa. Então Túlio arrastou-o pelas pernas, e o foi levando até um tronco, que se unia à parede, e lá depois de o ter bem seguro, tirou-lhe da algibeira a chave da prisão e saiu.
O negro previra a explosão de cólera do comendador, quando de volta de sua traidora emboscada, e reclamando o preso, só encontrasse Antero embriagado, a prisão aberta, e a sua vítima fora do alcance de sua ira. Naturalmente o comendador vendo Antero preso no tronco, acreditaria que se dera uma luta entre ele e o prisioneiro, e que aquele, velho e sem forças, fora subjugado e preso, e que assim tolhido e sem socorro algum, vira-lhe a fuga, sem poder sequer opor-lhe a menor resistência.
Túlio não se enganou – o seu estratagema salvou o velho escravo.
Livre, Túlio deitou a correr em direitura da casa, tendo só na mente salvar a seu benfeitor e amigo.
Estava esbaforido, e mal entrou, sabendo que Tancredo há muito saíra acompanhado das testemunhas, partiu sem respirar pela estrada que levava ao convento.

— Meu Deus! – dizia ele consigo – será ainda tempo? Poupai-o, Senhor: livrai-o de seus inimigos.

E finda esta breve súplica, a esperança, que começava a abandoná-lo, voltou-lhe risonha e vigorosa.
Já lhe faltava o fôlego, já as pernas se lhe afracavam de cansaço, e ele corria sempre veloz como o fuzilar de um relâmpago, como o cervo que o caçador persegue.
No meio da sua carreira, avistou um homem montado em uma mula, que caminhava a passos lentos.
O jovem negro conheceu-o e respirou.

– Louvemos ao Senhor Deus! – disse. E acrescentou: – Senhor, vindes do convento de ***?

— Sim. Acabo de fazer aí um casamento, – redarguiu o retardatário viajante, que era um sacerdote.

— E os noivos, senhor?

— Deixei-os na igreja, filho.

Túlio deixou o padre, e de novo começou a correr, e não tardou muito em descobrir as negras paredes do templo, onde uma lua minguada projetava tíbia claridade.
E Túlio avistou um coche, cujos cavalos, mordendo o freio, iam já partir para a cidade.
Depois ouviu pronunciar-se um adeus, logo depois outro, e o coche partiu a trote largo. Outro coche, porém, estava ainda postado à porta da igreja.
Faltavam-lhe já forças, estava aniquilado de cansaço, entretanto corria sempre; porque o coche que passou não era o dos noivos, e ainda talvez fosse tempo de salvá-los.
Na sua carreira, pressentiu um vago rumor à beira da estrada, e um vulto negro que se escondeu atrás de uma árvore copada. Uma tal aparição veio dar-lhe novas forças, e a suspeita fê-lo ativar a sua carreira.

— São eles! – disse a si mesmo, e no ardor da sua dedicação gritou com voz que repercutiu na solidão.

— Cilada, senhor... Querem assassi...

Dois tiros de pistola disparados ao mesmo tempo ressoaram com pavoroso estampido, e Túlio não acabou a palavra!
A mão que os disparou era certeira, e ele, moribundo, só pôde exclamar:

— Jesus! Eu mor...ro!...

Então Tancredo e sua jovem esposa, que acabavam de entrar no coche, tremeram de dor e de surpresa. Reconheceram que a voz era a de Túlio, que lhes advertia na íntima desesperação da sua alma.
E Tancredo bradou desatinado:

— É ele, é o meu fiel Túlio! Monstros! Porque o assassinaram? – e deu um passo para ir socorrê-lo; mas Úrsula puxou-o pelo braço, dizendo-lhe:

— Não ouvistes o seu aviso? Ah! Tancredo, querem assassinar-vos! – E cobriu-o com seus níveos braços.

E um tropel como de lobos, que devorados pela fome uivam medonhamente, aproximou-se do coche; e o grito do postilhão denunciou-lhes que estavam cercados por essas feras humanas mil vezes mais temíveis que os chacais e as hienas.
Tancredo reconheceu o perigo iminente que o cercava e, abrindo a portinhola, fez fogo com as suas pistolas. A primeira errou a pontaria, a segunda feriu de leve a um homem vestido de luto. Nesse homem Tancredo reconheceu o comendador.

— Úrsula tinha razão! – disse ele consigo – Eu é que me perco sem a poder salvar!...

E Fernando P. furioso e com ímpeto subiu ao coche, e apareceu a suas vítimas sinistro e ameaçador, como o anjo deve-o ser no dia do supremo julgamento.
Feroz e hórrido sorriso arregaçava-lhe os lábios, que resfolegavam o ódio e o crime. Assim deviam sorrir-se Nero, Heliogábalo e Sila nas suas saturnais de sangue.

— Poupai-o, senhor. Ah! Pelo céu, poupai-o! – exclamou Úrsula aflita e pálida caindo aos pés desse homem desapiedado.

E por um esforço sublime, que só a mulher – ente feito para a dedicação e o amor – pode conceber, disse-lhe, apresentando-lhe o peito:

— Ofendi-vos, senhor, vingai-vos: eis-me, não me poupeis: mas ele? Oh! não o assassineis! Oh! Não tem culpa de que o ame mais que a vida...

E caiu prostrada aos pés de Fernando, que semelhante à hiena, que meneia a cauda e lambe os beiços, porque a presa lhe não escapará, olhava-a sorrindo de ferocidade.
Estava agora face a face com Tancredo, que desarmado só podia esperar a morte fria e cruel que lhe preparava seu implacável inimigo.
E vendo a esposa desmaiada aos pés do comendador, abaixou-se e tomou-a em seus braços.
E essa beleza adormecida e pálida como o lírio do vale, parecia sorrir- -lhe com celeste meiguice, e o jovem esposo, transportado de amor e de aflição, imprimiu nesses lábios de voluptuosa perfeição um beijo ardente com que parecia ir-lhe a vida – era o seu último adeus.
Ao contato desses lábios amados, ela abriu seus grandes olhos alquebrados pela dor, e com um olhar que exprimia a mais singular e indefinível ternura, pareceu dizer-lhe:

— Amo-te!

Depois esses dois astros de amor, que guiavam ainda no perigo, ou nas trevas da desesperação, ao infeliz mancebo, recaíram em seu lânguido torpor.
Esse beijo foi a expressão profunda de tão sublime amor: foi o primeiro, o casto e puro ósculo de amor, que o comendador jurou ser o derradeiro.
Esse ósculo pareceu-lhe insultuosa ofensa: rangeu os dentes de raiva, e arremessando-se contra o seu odioso rival, arrancou-o com força do ódio dos braços de sua jovem esposa.

— Vingança! – bradou – Vingança! É a hora da vingança. Julgavas que eu a tinha esquecido? Louco! Não sabes que a essa mulher, que amaste, eu dei a alma e o coração, e que jurei que há de ser minha?

Roubaste-ma e envileceste-a a meus olhos! Cuspiste-me a face, e nodoaste-a com o teu amor impuro!... Poluíste-a com o teu hálito... Tancredo, esse ósculo trespassou-me o coração de ciúme. Só o teu sangue poderá purificá-la ante mim, que jurei esposá-la. Prepara-te para morrer!...

— Covarde!... Miserável assassino – exclamou o mancebo atirando-se sobre o seu adversário. – Respeita ao menos a pureza de Úrsula, não calunies a sua inocência.

Luta desesperada travou-se entre ambos. Os asseclas do comendador agarraram Tancredo pelas costas, e o covarde comendador embebeu-lhe no peito o punhal que trazia na mão.

— Mataste-me! – exclamou o infeliz Tancredo. — Farta-te de sangue, fera indômita e cruel! Mas eu te juro à hora suprema da minha existência que Úrsula não será tua esposa.

Fernando P., essa menina, que jaz desfalecida, ama-me muito para poder esquecer-me; e odeia-te demais para poder perdoar-te. O teu amor será a punição do teu crime.
Entretanto Fernando, vitorioso e triunfante, uivava de feroz alegria, e vociferou rangendo os dentes:

— Mentes! Mentes! Olha-a pela derradeira vez; não é ela formosa como um anjo? Não é assim? Achei-a também, amei-a, rendi-lhe um culto de louca adoração, e agora é minha. Amaste-a, Tancredo? Amou-te ela? Oh! Há de amar-me também, quando tuas cinzas já frias no sepulcro lhe não recordarem tua passada ternura.

E o infeliz Tancredo, no último transe de sua íntima agonia, estendeu os braços e exclamou com delírio amoroso:

— Úrsula! Minha Úrsula!

Então a donzela despertou de seu dorido letargo, abriu os olhos, e num excesso de amor apaixonado, e de uma dor íntima, lançou-se sobre seu desditoso esposo, e unindo-o ao coração recebeu-lhe o derradeiro suspiro.
Um mar de sangue tingiu-lhe as mãos e os puros seios! Tinha os olhos fixos e pasmados sobre o doloroso espetáculo, e entretanto parecia nada ver; estava absorta em sua dor suprema, muda, e impassível em presença de tão monstruosa desgraça!...
O seu sofrimento era horrível, e profundo, e o que se passava de amargo e pungente naquela alma cândida e meiga foi bastante para perturbar-lhe a razão.

continua pág 133...

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Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.
Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.
O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.
Ao aposentar-se, em 1880, fundou uma escola mista e gratuita. Maria morre aos 92 anos, na cidade de Guimarães, no dia 11 de novembro de 1917.
Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.
A importância da obra de Firmina, primeira escritora negra de que se tem notícia em nossa literatura, se deve ao pioneirismo na denúncia da opressão a negros e mulheres no Brasil do século XIX. Antes do Navio negreiro de Castro Alves, declamado pela primeira vez em 1868, Firmina já descrevia em seu livro Úrsula, de 1859, a crueldade do tráfico de pessoas sequestradas na África e transportadas nos porões dos “tumbeiros”. Neste mesmo romance, a crítica da escritora abrange o retrato lamentável da condição feminina da época ao delinear personagens como o pai de Tancredo ou o comendador, tiranos não só de escravos, mas também de mulheres.
Maria Firmina foi uma voz profundamente legítima e dissonante que não encontrou acolhida e reconhecimento em seu tempo. Longe de fracassar, essa voz ressoa hoje cheia de significado, recriminando males que ainda assombram e permeiam nossa sociedade.


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Úrsula - XVIII - A dedicação
Úrsula - XIX - O despertar


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