segunda-feira, 6 de março de 2023

O Brasil Nação - V2: § 90 – Por fim (10) - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim



O Brasil Nação volume 2



SEGUNDA PARTE 
TRADIÇÕES



À glória de
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução


POR FIM...


(10)


A massa da nação brasileira se há de redimir, num esforço próprio, projetada no torvelinho que lhe acelerará a marcha de ascensão. Para tanto, basta que se infiltre nas consciências, para que sejam livres e fortes, esse espírito revolucionário, em que se fundem ruínas, e o caos convulso soerguer-se-á em cosmos que se organiza. Donde virá, porém, a chama que nos abrasará?... Quando um povo deve subsistir, não lhe será existência a perene resignação na covardia. A mesma necessidade de viver, em indestrutível energia comprimida, fulgirá, finalmente, numa ou noutra consciência. Alastrará, depois. Para que tal se pronuncie, não vale o número, mas a intensidade da devoção e a inflexibilidade do propósito. Algumas inteligências de elite, absorvidas no sentimento da humanidade indispensável, definirão a doutrina, que o ânimo de apostolado difundirá, incorporada, sempre, no mesmo sentimento. E tudo se condensará em vontade de redenção, como de inspirado que entrega o ânimo à comovida ideia que exclusivamente o dominou. E, bem nitidamente, a missão de uma pequena minoria, votada ao sacrifício pessoal, preço fatal de toda vitória contra a injustiça. Iluminados, em cujo ardor social, o sofrimento, o tédio, o desgosto, se caldeiam e se transformam em revolta construtora, esses apóstolos da revolução brotam da emergência, e, uma vez, pronunciados, tornam-se a condição essencial de toda a preparação revolucionária. Ora, aí está um povo, não revelado ainda para a legítima liberdade, com as qualidades bastantes de temperamento, coração e inteligência, e estão, também, os motivos que se fundirão em revolucionarismo; falta-nos, somente, essa minoria capaz de transformar o sofrimento em redenção. Será uma carência irremissível?... Tantos têm havido para sacrificarem-se em aventuras de pura demagogia, sinceros, na fé de ideais esgotados: como não admitir que algumas consciências se exaltem, eficazmente, a querer a legítima redenção?

Se algumas vontades, fortes em convicção e inteligência, nitidamente inspiradas das nossas realidades e dos grandes fins humanos se votassem a essa obra de redenção, acabariam criando e derramando o indispensável espírito revolucionário. E tanto é a ignomínia, e tão patente a insuficiência da ordem reinante, que haverá, sempre, facilidade de infundir e disseminar o inflamável em que essa ordem arderá: cada lineamento de infâmias será o motivo de um novo tracejar, cada processo de injustiça, um veio de remissão, pois que a podridão resiste mal, e melhor destaca a pureza. No contraste, entre o mundo atual e o anunciado, patentear-se-á a verdade, essencial nesses momentos: de que o principal não é a vida, mas o como a vivemos. E haverá consciências para a indispensável constância de sacrifícios, com que se levam a termo as revoluções, aceitando-se, então, refazer a vida bem do ínfimo. O opróbrio da condenação já será aura de redenção. É quando o Gólgota santifica-se em Calvário; o sacrifício, a luta de almas livres, têm de abrir o caminho à renovação. Não pela ufania de provocar a morte: que ela venha, se está no traço da campanha, porque a coragem da revolução não é bem a de morrer, mas a de viver plenamente, ainda que no seio da morte, simples diversão do destino, sem poder de frená-lo.

Com o ânimo de sacrifício, o essencial, na revolução, é a legitimidade e pureza do ideal, que não aceita meia verdade nem simples miragem de solução; não transige, nem se ilude. Se o espetáculo do mundo ambiente não dá frestas por onde passe o pensamento anunciador, tanto melhor: será quando a pressão provoca a ruptura. Ânsia de melhor, desejo de palpar grandezas morais, o sofrimento da vida recalcada, por sobre a eterna realidade do amor e da esperança, farão brotar o ideal em todo o seu poderoso influxo. Plenitude de vida, a crise-revolução distingue de pronto o legítimo ideal da mera utopia, pois que deriva daqueles imediatamente, das mesmas condições determinantes, apuradas nos fatos. E, sobre o fundo das casualidades reais, é ele força e direção, para tornar-se também em razão final. Ilumina, sustém, eleva, dinamiza toda a obra, conduzindo-a numa ascendência que lhe dá feição divina. Em verdade, não há, na história, vitória revolucionária que não seja vitória de um ideal (Marx). Como, de outro modo, tirar da nossa natureza falível, os cálidos, radiantes e esplêndidos efeitos que consagram a renovação social? Tudo isso que nutre o coração e nele se vivifica, doçura, essencial generosidade,respeito humano, inteira justiça, bondade desafrontada, tudo que é a mesma beleza da alma, é o próprio ideal reclamado. E, tanto, que o verdadeiro realizador social é, de essência, um artista: realiza uma das formas superiores de harmonia e perfeição.

A perspectiva dá para consolar. Se nos penetramos e inteiramos desse pensamento, abate o tapume negro, e pelo desvão da garganta derrama-se a vista: a imaginação se precipitará para traçar a curva sobre o porvir... Ergamos no coração a forma do destino ideado: beleza, a escalar grandezas, numa marcha de lâminas ao sol. E, por que não?.. A grandeza de um povo está nos fins morais que ele inclui, na dose de bondade que vai deixando pela vida, nos recursos intelectuais que incorpora aos destinos sociais. E, nisto, pelo menos, podemos francamente organizar e mover a nossa vontade prática. Ideias que revolvamos em torno da generosidade e da justiça, hão de multiplicar-se; aspirações de humanidade que associemos à realidade onde estamos, serão gérmens infalíveis. Cada um de nós, que mergulha a consciência na miséria circundante, e tem fundido o seu destino no desta tradição brasileira, erguerá o olhar para o longe, e dará um passo para lá... E tanta, tanta realização generosamente humana podemos alcançar no gesto simples, como o salutar desprezo de puros preconceitos! Substituir essas arcaicas militanças por um serviço realmente nacional, em todos os ramos da atividade útil, serviço essencialmente solidarizante e educativo; a sociedade garantindo a mantença e assegurando a conveniente educação a toda criança que carecer de boa assistência para o pleno desenvolvimento de sua personalidade; um efetivo e cordial movimento de aproximação de todos os povos ibéricos do continente, o sonho generoso de Arruda Câmara e dos seus pupilos, e que foi o glorioso programa de Bolívar; toda a América irmanada no sonho-utopia para o resto do mundo, possibilidade banal para este Novo Mundo, sem perspectivas de guerras; um bem-disseminado regime educativo, solidarizante em torno do sentimento nacional, embora simples e crescente expansão da cordialidade; a possibilidade, para todos que o quiserem, de dar-se à pura ciência; o Estado, apenas, para impedir a injustiça e assegurar a defesa social contra o mal evitável...

Nesta hora mesmo: de cada criança ao nosso influxo façamos um homem, certos de que todo espírito forte e justo inclui uma parcela de divindade. Jaurés, realmente grande e bom, fez a sua melhor página, quando ergue a dolorida canção da miséria humana no concertante donde irradiam perenes esperanças: “... c’est un même souffle de plainte et d’espérance qui sort de la bouche de l’esclave, du serf, du proletaire, c’est ce soufle immortel de l’humanité qui est l’âme même de ce qu’on appelle droit”. Nos eternos espoliados deste Brasil, a subir idealmente, o sopro é bem de humanidade, tanto com ele se incorpora a pátria na justiça. Acompanhemo-lo, e esperemos, seguros de confiança. O pântano apodrece, ganha calor da podridão; banha-o o sol rutilante, penetra-o a luz soberana, eterno palpitar de novas energias, que ao seio da vasa leva a própria vibração de vida... E a podridão se regenera: organiza-se o paul – o pântano purifica-se...

Março de 1928.

fim

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"Manoel Bomfim morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."

Cecília Costa Junqueira
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Bomfim, Manoel, 1868-1932  
                O Brasil nação: vol. II / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 392 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 31).

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nunca é demais pensar...


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