sábado, 23 de dezembro de 2023

Memórias - 02: fatos e mentiras

No se puede hacer la revolucion sin las mujeres

Livro Dois

baitasar

Memórias

02 – fatos e mentiras

e aqui, entre nós duas, aquela mulher me assustava. acho que fazia de propósito, sabia do meu jeito assustadiço

eu procurava ficar firme, sem estardalhaços, apertava as pernas e segurava o xixi, sempre fui muito mijona. precisava fazer xixi com frequência, devia ter uma bexiga muito pequenina

um dia estava brincando no milharal com os meninos de esconde-esconde, me divertia tanto que nem percebi as horas pulando de espiga em espiga, escurecendo lentamente, até que minha bexiga miúda e acanhada deu sinal de incômodo, fiquei apreensiva, sabia que precisava encontrar um esconderijo o mais rápido possível

corri pelo milharal

não consegui segurar mais e o aguardado imprevisto aconteceu, fiz xixi no meio do milharal, bem na frente dos meninos

fiquei desonrada

a situação constrangedora

os meninos riam que se espremiam e dançavam

até que comecei a rir junto, aprendia assim a encontrar humor em situações inusitadas, aceitar peculiaridades e encontrar alegria em todas situações da vida

a menina mijona e suas aventuras divertidas

A mocinha não é nenhum menino, perdi a vontade de rir e corri assustada da patroa para o meu quarto enquanto as tábuas do chão estalavam com meus passos apertados

dentes gemendo

pelos arrepiando

atirada na cama, rosto enfiado no travesseiro, chorava de saudade com uma tristeza áspera e quente derramando de mim

lembro da minha amiga destes dias, longe dos meus amores, uma saudade de aflição, Espere um instante, já volto. Quero mostrar para você minha amiguinha.

volto do nosso quarto com minha almofada de cabeceira, Uma grande companheira e confidente.

só ela e eu sabemos quanto das lágrimas me vazaram em suas penas

uma pequena almofada de veludo forrada com amor, sempre em meio as outras almofadas, uma confidente silenciosa que recebia as lágrimas na solidão das nossas noites

meu consolo estava nessa almofada que abraçava com carinho todas noites, um amiga que entendia minhas tristezas e segredos mais doídos, a única testemunha das minhas perturbações mais íntimas, escutava sem reclamar 

noites de solidão insuportáveis

um testemunho do amor e da saudade

um pequeno conforto e alívio sem julgamentos, Meus segredos com o mundo estão guardados aqui.

com o tempo, minha querida, encontrei algumas alegrias e amores, outras lágrimas derramadas aqui foram rareando, aprendi a deixar o passado no passado, olhar à frente sem esquecer, aprendendo e vivendo

a tristeza também faz parte da vida, testemunha silenciosa do nosso caminho caminhado, fui salva muitas vezes por essa amiga, Claro, minha querida, que alguns detalhes dessa história me veio pela imaginação, não quis deixar de colocar todos os pontos com agulha.

não quis deixar ponto sem nó

considere como minha contribuição para melhor ilustrar a história da família Gonçalves Lara e o entorno daquele povoado vizinho de Piedras Altas

fatos e mentiras que vi, outras tantas que ouvi

uma vida de aia, muro de lamentações, objeto e utensílio para uso geral, até ser rejeitada pelo desgaste dos anos, dia após dia, sem tréguas, marcas cruéis como lanças que perfuram o tempo sem piedade, asas do vento em uma alma cansada, coração faminto, passos gastos, hesitantes, perplexos, cicatrizes em um corpo exausto e dolorido

nosso cárcere

minha querida, não te preocupes que ainda não estou aguando as plantas quando chove

por aqueles dias, minha meninice sentia vaidade de importância quando la mujer do patrão se abria em confidências. E não me ocorria desabrigar os segredos vistos e ouvidos daquela casa.

mantinha silêncio da falação de esa mujer tão triste de sonhos, mas siempre tão envolta de gente, não enxergava razão para fazer conversa de mexerico, talvez, quem sabe, porque não tinha alguém seguro com quem cochichar

de qualquer maneira, seguia o empenho de Blanca, comer o pão do diabo sem fazer da tristeza desalento para outros

en la Montaña, não se tinha o hábito da leitura, muito menos, o uso da escrevinhação. não tínhamos precisão dessas futilidades para sobreviver. por lá, era imposição da sabedoria entender o tempo de semear e colher, prever chuvas e sua escassez, ou sua abastança desgovernada, vigiar os humores da lua, aprender a ler estrelas e os ventos quentes da poeira cinza das queimadas, reconhecer o brilhantismo do sol, o desassossego da seca, o imprevisto das pragas, era preciso resistir com enxada e mãos nas entranhas da terra

fui compreender o denotado sentido de ler e escrever, muito depois, até então, não havia motivos nem tempo para contar com lápis e papel esta história de luta eterna pelo alimento

minha querida, você percebe a importância da tua escutação atenta? o teu testemunho de ouvinte não deixará que tudo isso seja esquecido

depois de mim, você carrega essas histórias de fatos e mentiras

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Leia também:

Livro Um:
Memórias - 01: a lua cheia
Livro Dois:
Memórias - 02: fatos e mentiras

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