segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (10)

 Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1


1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada



Memórias de duas jovens esposas





PRIMEIRA PARTE




X – A SRTA. DE CHAULIEU À SRA. DE L’ESTORADE



Janeiro


Ó Renata, entristeceste-me por muitos dias! Assim, pois, esse corpo delicioso, esse belo e altivo rosto, essas maneiras de uma elegância natural, essa alma cheia de dons preciosos, esses olhos onde a alma se dessedenta como numa fonte viva de amor, esse coração repleto de delicadezas finíssimas, esse espírito vasto, todas essas faculdades tão raras, esses esforços da natureza e de nossa mútua educação, esses tesouros de onde deviam sair, para a paixão e para o desejo, riquezas únicas, poemas, horas que valeriam por anos, prazeres de tornar um homem escravo por um único movimento gracioso, tudo isso se vai perder na sensaboria de um casamento vulgar e comum, apagar-se no vácuo de uma vida que se tornará fastidiosa! Odeio de antemão os filhos que tiveres; eles serão malfeitos. Tudo em tua vida está previsto: nada tens a esperar, temer ou sofrer. E se num dia de esplendor encontrares um ser que te desperta do sono a que te vais entregar?... Ah! Senti-me gelar ante esse pensamento. Enfim tens uma amiga. Vais ser, sem dúvida, o espírito desse vale, serás iniciada nas suas belezas, viverás com essa natureza, penetrar-te-á a grandeza das coisas, o vagar com que procede a vegetação, a rapidez com que o pensamento voa, e, quando olhares tuas ridentes flores, tu te recolherás dentro de ti mesma. Depois, quando caminhares entre teu marido, à frente, e teus filhos, atrás, estes esganiçando-se, murmurando, brincando, aquele, calado e contente, sei de antemão que me escreverás. Teu vale nevoento e suas colinas áridas ou guarnecidas de belas árvores, teu prado provençal tão interessante, suas águas claras divididas em filetes, as diversas tonalidades da luz, todo esse infinito, variado por Deus, e que te cerca, te lembrará a infinita monotonia de teu coração. Mas, enfim, estarei aí, minha Renata, e encontrarás uma amiga cujo coração jamais será atingido pela menor pequenez social, um coração teu.

Segunda-feira

Minha querida, o meu espanhol é de uma melancolia admirável: há nele não sei quê de calmo, de austero, de digno, de profundo, que me interessa no mais alto grau. Essa constante solenidade e o silêncio que envolve esse homem têm qualquer coisa de provocante para a alma. É mudo e soberbo como um rei decaído. Eu e Griffith nos preocupamos com ele, como com um enigma. Que singularidade! Um professor de línguas obtém sobre minha atenção o triunfo que nenhum homem conseguiu, eu que agora já passei em revista todos os filhos de família, todos os adidos de embaixada e os embaixadores, os generais e os segundos-tenentes, os pares de França, seus filhos e sobrinhos, a corte e a cidade. A frieza desse homem é irritante. O mais profundo orgulho enche o deserto que ele tenta estabelecer e estabelece entre nós; enfim, ele se envolve em sombras. É ele quem tem coquetismo, e sou eu quem tem ousadia. Essa estranheza diverte-me tanto mais por ser tudo isso sem consequências. Que é um homem, um espanhol, um professor de línguas? Não sinto o menor respeito seja lá por que homem for, mesmo por um rei. Acho que valemos mais do que todos os homens, mesmo os mais merecidamente ilustres. Oh! Como eu teria dominado Napoleão! Como lhe teria feito sentir, se me amasse, que estava à minha discrição!

Ontem, lancei um epigrama que deve ter ferido Henarez ao vivo; ele nada respondeu, tinha acabado a lição, pegou o chapéu e saudou-me, dirigindo-me um olhar que me deu a impressão que não voltaria mais. Isso me senta muito bem: haveria qualquer coisa de sinistro em recomeçar a Nova Heloísa [121] de JeanJacques Rousseau, que acabo de ler e que me fez odiar o amor. O amor discutidor e palrador, acho-o insuportável. Clarissa [122] também mostra-se contente demais por ter escrito sua longa cartinha; mas a obra de Richardson, disse-me meu pai, explica admiravelmente as inglesas. A de Rousseau faz-me o efeito de um sermão filosófico em cartas. 

O amor, creio eu, é um poema inteiramente pessoal. Não há nada que não seja ao mesmo tempo verdadeiro e falso em tudo o que os autores escrevem. Realmente, minha linda querida, como não me podes mais falar senão em amor conjugal, creio, no interesse bem entendido de nossa dupla existência, que é necessário que eu permaneça solteira e tenha alguma bela paixão, a fim de que possamos bem conhecer a vida. Conta-me exatamente tudo o que te acontecer, sobretudo nos primeiros dias, com esse animal que eu denomino um marido. Prometo-te a mesma exatidão, se jamais for amada. Adeus, pobre querida soterrada.




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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.

Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844.[1] Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).

Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava.[1] De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850. 
          A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac;                            orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São                  Paulo: Globo, 2012. 

          (A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1                    0.000 kb; ePUB 

1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série. 

12-13086                                                                               cdd-843 

Índices para catálogo sistemático: 
1. Romances: Literatura francesa 843

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[119] Gonçalvez de Córdoba: general espanhol (1445-1515), herói da Reconquista. 
[120]Cardeal Ximenez: Ximenez de Cisneros (1436-1517), arcebispo de Toledo. 

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[121] Recomeçar a Nova Heloísa de Rousseau: nesse romance, como é sabido, a heroína Júlia, aluna de SaintPreux, é seduzida pelo seu professor. 

[122] Clarissa Harlowe: o título de um romance em cartas do escritor inglês Richardson e, ao mesmo tempo, o nome da heroína. Perseguida pelos membros da própria família que, unicamente inspirados por interesses materiais, querem forçá-la a casar com um pretendente indigno, Clarissa deixa-se raptar por seu namorado Lovelace. Este, abusando da confiança da moça, leva-a a um prostíbulo e a viola, apesar da heroica resistência que ela lhe opõe. Clarissa morre, Lovelace é executado em duelo por um dos parentes de sua vítima. Eis o enredo dessa obra famosa, cuja publicação em fascículos (impressos aliás pelo próprio autor, que era tipógrafo) manteve todo o público inglês numa expectativa febril durante vários anos. Inúmeras leitoras escreveram ao autor para obter o perdão de Clarissa, mas Richardson, que chegara a considerar a sua heroína uma pessoa real, permaneceu inflexível: seguindo seus princípios de puritano, nunca pôde perdoar Clarissa por ter deixado a família, por antipática que fosse. O êxito da obra foi tamanho que o nome de Lovelace entrou na língua como sinônimo de sedutor. Em Memórias de duas jovens esposas, em que a influência de Clarissa Harlowe é manifesta, Balzac faz a esta última obra constantes alusões.


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