domingo, 16 de agosto de 2020

A Peste - Albert Camus 1ªParte (03)

Albert Camus


A Peste




Parte I


continuando...



Ao meio-dia, porém, a febre subira bruscamente a quarenta graus, o paciente delirava sem cessar e os vômitos tinham recomeçado. Os gânglios do pescoço eram dolorosos ao tato, e o doente parecia querer manter a cabeça o mais afastada possível do corpo. A mulher estava sentada aos pés da cama, segurando levemente os pés do doente. Olhava para Rieux.
— Ouça — disse ele -, é preciso isolá-lo e tentar um tratamento mais radical. vou telefonar para o hospital e vamos levá-lo de ambulância.

Duas horas depois, na ambulância, o médico e a mulher curvavam-se sobre o doente. Da boca, coberta de fungosidades, saíam fragmentos de palavras: “Os ratos”, dizia ele. Esverdeado, com lábios descorados, pálpebras pesadas, respiração entrecortada e breve, dilacerado pelos gânglios, abatido no fundo da maca, como se quisesse fechá-la em torno dele ou como se qualquer coisa, vinda do fundo da terra, o chamasse sem descanso, o porteiro sufocava sob um peso invisível. A mulher chorava.

— Não há mais esperança, doutor?

— Está morto — disse Rieux.

A morte do porteiro, pode-se dizer, marcou o fim desse período, cheio de sinais desconcertantes, e o início de outro, relativamente mais difícil, em que a surpresa dos primeiros tempos se transformou, pouco a pouco, em pânico. Nossos concidadãos — a partir de agora eles se davam conta disso nunca tinham pensado que nossa pequena cidade pudesse ser um lugar particularmente designado para que os ratos morressem ao sol e os porteiros perecessem de doenças estranhas. Sob esse ponto de vista, era evidente que estavam errados e que suas ideias precisavam ser revistas. Se tudo tivesse ficado por aí, os hábitos, sem dúvida, teriam vencido. Mas outros concidadãos nossos, que nem sempre eram porteiros nem pobres, tiveram de seguir o caminho que Michel fora o primeiro a tomar. Foi a partir desse momento que começou o medo e com ele a reflexão.

Entretanto, antes de entrar nos detalhes desses novos acontecimentos, o narrador acha útil dar, sobre o período que acaba de ser descrito, a opinião de outra testemunha. Jean Tarrou, que já encontramos no início deste relato, fixara-se em Oran há algumas semanas e morava, desde então, em um grande hotel no centro. Parecia ser suficientemente próspero para viver dos seus rendimentos. Mas, embora a cidade se tivesse habituado a ele, pouco a pouco, ninguém sabia dizer de onde vinha, nem por que estava lá. Era encontrado em todos os lugares públicos. A partir do início da primavera, fora visto muitas vezes nas praias, nadando frequentemente e com um prazer manifesto. Bonachão, sempre sorridente, parecia ser amigo de todos os prazeres normais, sem ser escravo deles. Na realidade, o único hábito seu que conheciam era a convivência assídua com os bailarinos e músicos espanhóis, bastante numerosos na nossa cidade.

Seus apontamentos de certa forma constituem também uma espécie de crônica desse período difícil. Mas trata-se de uma crônica muito especial que parece obedecer a uma ideia preconcebida de insignificância. À primeira vista, poderíamos achar que Tarrou se empenhara em ver as coisas e os seres por um binóculo ao contrário. Na confusão geral, ele se empenhara, em suma, em ser o historiador do que não tem história. Pode-se sem dúvida deplorar esse preconceito e suspeitar uma certa dureza de coração. Nem por isso é menos verdade que os seus cadernos podem fornecer, para uma crônica desse período, grande quantidade de pormenores secundários que têm contudo importância; a sua própria singularidade impedirá que se julgue precipitadamente essa interessante personagem.

As primeiras notas de Tarrou datam de sua chegada a Oran. Mostram desde o princípio uma curiosa satisfação por se encontrar numa cidade em si tão feia. Encontra-se uma descrição pormenorizada dos dois leões de bronze que ornam a municipalidade, considerações benévolas sobre a ausência de árvores, as casas sem graça e o plano absurdo da cidade. Tarrou mistura, ainda, diálogos ouvidos nos bondes e nas ruas, sem acrescentar comentários, exceto um pouco mais tarde, em relação às conversas a respeito de um tal Camps. Tarrou assistira à conversa de dois condutores de bonde:

— Você conheceu o Camps — dizia um.

— Camps? Um alto, de bigode preto?

— Exatamente. Trabalhava no controle.

— Sim, isso mesmo.

— Pois bem, morreu.

— Ah! E quando foi isso?

— Depois da história dos ratos.

— Veja só! E que foi que ele teve?

— Não sei. Febre. Além disso, não era forte. Teve abscessos debaixo dos braços. Não resistiu.

— No entanto, parecia um homem como os outros.

— Não, tinha o peito fraco e tocava no orfeão. Soprar num pistom acaba com a pessoa.

— Ah! — terminou o segundo. — Quando se é doente, não se deve tocar um instrumento de sopro.

Depois dessas poucas indicações, Tarrou perguntava a si próprio por que razão Camps tinha entrado para o orfeão contra seu próprio interesse e quais eram as razões profundas que o tinham levado a arriscar a vida pelos desfiles dominicais.

Tarrou parecia, em seguida, ter sido favoravelmente impressionado por uma cena que se desenrolava muitas vezes na varanda que ficava em frente à sua janela. Na verdade, seu quarto dava para uma rua transversal, onde os gatos dormiam à sombra dos muros. Mas, todos os dias, depois do almoço, nas horas em que a cidade inteira cochilava no calor, um velhinho aparecia numa varanda do outro lado da rua. com os cabelos brancos e bem penteados, ereto e austero nas suas roupas de corte militar, chamava os gatos com um “bichano. . . bichano” ao mesmo tempo meigo e distante. Os gatos levantavam os olhos pálidos de sono, sem se perturbarem. O outro rasgava pedacinhos de papel e os jogava para a rua; os bichos, atraídos por essa chuva de borboletas brancas, avançavam para o meio da calçada, estendendo uma pata hesitante para os últimos pedaços de papel. O velhinho escarrava, então, sobre os gatos, com força e precisão. Se um dos escarros atingia o alvo, ele ria.

Por fim, Tarrou parecia ter sido definitivamente seduzido pelo caráter comercial da cidade, cuja aparência, animação e até prazeres pareciam comandados pelas necessidades do negócio. Essa singularidade (é o termo empregado nos cadernos) recebia a aprovação de Tarrou e uma de suas observações elogiosas chegava a terminar por esta exclamação: “Finalmente!” São os únicos pontos em que as notas do viajante, nessa data, parecem assumir um caráter pessoal. É difícil avaliar o seu significado e seriedade. Assim é que depois de ter relatado que a descoberta de um rato morto levara o caixa do hotel a cometer um erro na sua conta, Tarrou acrescentara, com uma letra menos nítida que de costume: “Pergunta: Como fazer para não se perder tempo? Resposta: Senti-lo em toda a sua extensão. Meios: Passar os dias na sala de espera de um dentista, numa cadeira desconfortável; viver as tardes de domingo na varanda, ouvir conferências numa língua que não se compreende; escolher os itinerários de trem mais longos e menos cômodos e viajar de pé, naturalmente; fazer fila nas bilheterias dos espetáculos e não ocupar o seu lugar, etc.” Mas de repente, após essas digressões de linguagem e de pensamento, os cadernos começam uma descrição detalhada dos bondes da nossa cidade, da sua forma de bote, da sua cor indecisa, da sua sujeira habitual, terminando essas considerações por um é notável!” que nada explica.

Eis em todo caso as explicações dadas por Tarrou sobre a história dos ratos:

“Hoje, o velhinho que mora em frente está perturbado. Já não há gatos. Desapareceram na verdade excitados pela grande quantidade de ratos mortos que se descobrem nas ruas. Na minha opinião é impossível que os gatos comam ratos mortos. Lembro-me de que os meus detestam isso. O que não impede que eles corram pelos porões e que o velhinho esteja perturbado. Está menos bem penteado, menos vigoroso. Percebe-se que ele está inquieto. Demorou-se um momento apenas e entrou. Só que, dessa vez, escarrara no vazio.

Na cidade, pararam um bonde hoje porque se descobriu um rato morto que, não se sabe como, chegara lá. Duas ou três mulheres desceram. Jogou-se fora o rato. O bonde voltou a funcionar.

No hotel, o vigia da noite, que é homem digno de confiança, disse-me que com todos esses ratos esperava uma desgraça. ‘Quando os ratos abandonam o navio. . .’ Disse-lhe que era verdade no caso dos navios, mas que nunca se tinha verificado isso com as cidades. No entanto, sua convicção persistia. Perguntei-lhe que desgraça, em sua opinião, se podia esperar. Não sabia. É impossível prever a desgraça. Mas não se admiraria se fosse um tremor de terra. Reconheci que era possível, e ele perguntou se isso não me inquietava.

‘A única coisa que me interessa’, respondi-lhe, ‘é encontrar a paz interior. ’

Ele me compreendeu perfeitamente.

No restaurante do hotel há uma família bastante interessante. O pai é um homem alto e magro, vestido de preto, de colarinho engomado. Tem o meio do crânio calvo e dois tufos de cabelos grisalhos à direita e à esquerda. Uns olhinhos redondos e duros, nariz fino, boca horizontal dão-lhe um ar de uma coruja bem-educada. É sempre o primeiro a chegar à porta do restaurante. Afasta-se, deixa passar a mulher, pequenina como um rato preto, e então entra, trazendo atrás um rapaz e uma mocinha vestidos como cachorros comportados. Ao chegar à mesa, espera a mulher sentar-se, senta-se, e os dois cachorrinhos podem finalmente empoleirar-se nas cadeiras. Trata a mulher e os filhos cerimoniosamente, dirige gracejos bem-educados à primeira e palavras terminantes aos herdeiros:

‘Nicole, está soberanamente antipática!’

‘A menina está prestes a chorar. É o que é preciso.’

Essa manhã, o rapaz estava todo agitado com a história dos ratos. Quis dizer qualquer coisa à mesa.

‘Não se fala de ratos à mesa, Philippe. Proíbo-o, daqui em diante, de pronunciar essa palavra.’

‘Seu pai tem razão’, disse a rata preta.

Os dois cãezinhos meteram os narizes nos pratos, e a coruja agradeceu com um sinal de cabeça, que não queria dizer muita coisa.

Apesar desse belo exemplo, na cidade fala-se muito dessa história de ratos. O jornal ocupou-se do caso. A crônica local, que é habitualmente muito variada, é agora totalmente ocupada por uma campanha contra a municipalidade: ‘compreenderam os nossos edis o perigo que podiam representar os cadáveres podres desses roedores?’ O diretor do hotel não consegue falar de outra coisa. Mas é também porque se sente envergonhado. Descobrir ratos no elevador de um hotel respeitável parece-lhe inconcebível. Para consolá-lo disse-lhe: ‘Mas acontece o mesmo a todos!’

‘Justamente’, respondeu-me, ‘somos agora como todos os outros.’

Foi ele que me falou dos primeiros casos dessa febre que começou a se tornar inquietante. Uma das camareiras do hotel foi atacada.

‘Mas, evidentemente, não é contagioso’, apressou-se a declarar.

Respondi-lhe que isso me era indiferente.

‘Ah, compreendo, o senhor é como eu, o senhor é fatalista. ’

Eu não tinha dito nada de semelhante e, aliás, não sou fatalista. E eu lhe disse isso.




continua pág 19...


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A Peste - Albert Camus 1ªParte (02)


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