quinta-feira, 6 de agosto de 2020

O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (8)

Simone de Beauvoir



02. A Experiência Vivida




O SEGUNDO SEXO
SlMONE DE BEAUVOIR



continuando...


Eis a série de respostas que obteve a propósito o Dr. Liepmann (1) durante um inquérito acerca da sexualidade juvenil: 

(1) Cf. Dr. Liepmann, Jeunesse et sexualité.
Aos dezesseis anos, quando me senti indisposta pela primeira vez, fiquei muito assustada ao verificá-lo certa manhã. Em verdade sabia que isso deveria acontecer; mas tive tal vergonha que permaneci deitada durante metade do dia e a todas as perguntas respondia unicamente: não posso levantar-me.
Fiquei muda de espanto quando, não tendo ainda doze anos, me senti indisposta pela primeira vez. Apavorei-me, e como minha mãe se contentou com ms dizer num tom seco que se tinha isso todos os meses, considerei-o uma porcaria e recusei-me a admitir que o mesmo não acontecesse com os homens.
Essa aventura levou minha mãe a fazer minha iniciação, sem esquecer ao mesmo tempo a menstruação. Tive então meu segundo desaponto porque logo que fiquei indisposta precipitei-me louca de alegria ao encontro de minha mãe que ainda dormia e a acordei gritante: "Mamãe, já tenho!" — "E é para isso que me acordas?" limitou-se ela a responder. Apesar de tudo considerei a coisa como um verdadeiro terremoto em minha existência.
Por isso senti o pavor mais intenso quando fiquei indisposta pela primeira vez ao constatar que a hemorragia não parava ao fim de alguns minutos. Ainda assim não disse palavra a ninguém, nem a minha mãe. Acabava de fazer exatamente 15 anos. Demais, sofri muito pouco. Uma só vez fui presa de dores tão tremendas que desfaleci e permaneci cerca de três horas estendida no soalho de meu quarto. Mas não disse nada disso tampouco.
Quando pela primeira vez essa indisposição se produziu em mim, tinha mais ou menos 13 anos. Já tínhamos falado disso, minhas colegas de classe e eu, e senti-me muito orgulhosa por me ter tornado uma das grandes, eu também. Cheia de importância, expliquei à professora de ginástica que nesse dia me era impossível participar dos exercícios porque estava indisposta.
Não foi minha mãe quem me iniciou. Esta só teve suas regras com dezenove anos e de medo de ser ralhada por ter sujado a roupa, enterrou- a num campo.
Atingi a idade de 18 anos e tive pela primeira vez minhas regras (2). Estava desprovida de qualquer iniciação. . . À noite, tive hemorragias violentas acompanhadas de fortes cólicas e não pude descansar um só momento. Logo pela manhã, corri a minha mãe com o coração batendo e sem parar de soluçar pedi-lhe conselho. Mas só obtive esta severa repressão: "Bem que poderias ter percebido antes, para não sujar assim os lençóis e a cama". Foi tudo, à guisa de explicações. Naturalmente quebrei a cabeça para saber que crime poderia ter cometido e experimentei terrível angústia.

(2) Trata-se de uma jovem pertencente a uma família berlinense miserável

Já sabia de que se tratava. Esperava a coisa com impaciência porque esperava que minha mãe revelaria então a maneira pela qual se fabricavam crianças. O famigerado dia chegou: mas minha mãe guardou silêncio. Ainda assim eu me sentia muito alegre: "Agora, dizia a mim mesma, podes também fazer filhos, és mulher".


Essa crise ocorre numa idade ainda tenra; o menino só atinge a adolescência por volta de 15 ou 16 anos; é de 13 a 14 que a menina se transforma em mulher. Mas não é daí que vem a diferença essencial de sua experiência; ela não reside tampouco nas manifestações fisiológicas que, no caso da moça, lhe dão sua horrível aparência: a puberdade assume nos dois sexos uma significação radicalmente diferente porque não é um mesmo futuro que lhes anuncia.

Sem dúvida, os meninos também sentem, no momento da puberdade, seu corpo como uma presença embaraçosa, mas ufanos desde a infância de sua virilidade é para ela que orgulhosamente transcendem no momento da transformação; mostram-se envaidecidos com o pelo que lhes cresce nas pernas e os torna homens. Mais do que nunca, o sexo é então objeto de comparação e desafio. Tornar-se adulto é uma metamorfose que os intimida: muitos adolescentes sentem-se angustiados quando se anuncia uma liberdade exigente; mas é com alegria que alcançam a dignidade de machos. Ao contrário, para transformar-se em adulto, é preciso que a menina se confine nos limites impostos por sua feminilidade. 0 menino admira em seus novos pelos promessas indefinidas: ela fica confundida diante do "drama brutal e definido" que detém seu destino. Assim como o pênis tira do contexto social seu valor privilegiado, é o contexto social que faz da menstruação uma maldição. Um simboliza a virilidade, a outra a feminilidade. E é porque a feminilidade significa alteridade e inferioridade que sua revelação é acolhida com escândalo. A vida da menina sempre lhe apareceu como determinada por essa impalpável essência a que a ausência do pênis não conseguia dar uma figura positiva: é esta que se descobre no fluxo de sangue que lhe escorre entre as coxas. Se já assumiu sua condição é com alegria que ela acolhe o acontecimento. . . "Agora, és uma mulher." Se sempre a recusou, o veredito sangrento a fulmina; o mais das vezes ela hesita: a mácula menstrual inclina-a para a repugnância e o medo: "Es então o que significam estas palavras: ser mulher!" A fatalidade que até então pesava confusamente sobre ela, e de fora, escondeu-se em seu ventre; não há mais meio de escapar; ela sente-se acuada. Em uma sociedade sexualmente igualitária, ela só encararia a menstruação como sua maneira particular de atingir a vida adulta; o corpo humano conhece nos homens e nas mulheres muitas outras servidões mais repugnantes: eles se acomodam facilmente porque, sendo comuns a todos, não representam uma tara para ninguém. As regras inspiram horror à adolescente porque a precipitam numa categoria inferior e mutilada. Esse sentimento de decadência pesará fortemente sobre ela. Conservaria o orgulho de seu corpo sangrento se não perdesse seu orgulho de ser humano. E se consegue conservar este, sente menos vivamente a humilhação de sua carne: a moça que abre os caminhos da transcendência em atividades esportivas, sociais, intelectuais, místicas, não verá uma mutilação em sua especificação e a superará facilmente. Se por volta dessa época a moça desenvolve muitas vezes psicoses é porque se sente sem defesa diante de uma fatalidade surda que a conduz a provações inimagináveis; sua feminilidade significa a seus olhos doença, sofrimento, morte e esse destino subjuga-a.

Um exemplo que ilustra de maneira impressionante essas angústias é o da doente descrita por H. Deutsch sob o nome de Molly.

Molly tinha 14 anos quando começou a sofrer de perturbações psíquicas; era a quarta filha de uma família de cinco filhos; o pai, muito severo, criticava as filhas em todas as refeições, a mãe era infeliz e muitas vezes pai e mãe não se falavam. Um dos irmãos fugira de casa. Molly era muito talentosa, dançava o sapateado muito bem mas era tímida e sentia penosamente a atmosfera familiar; os meninos amedrontavam-na. Sua irmã mais velha casou-se contra a vontade da mãe e Molly interessou-se muito pela gravidez da irmã; esta teve um parto difícil em que foi necessário empregar o fórceps; Molly, que soube dos detalhes e que foi informada de que muitas vezes as mulheres morriam de parto, ficou muito impressionada. Durante dois meses tomou conta do bebê; quando a irmã deixou a casa houve uma cena terrível e a mãe desmaiou; Molly desmaiou também; vira colegas desmaiar na classe e as idéias de morte e desmaio obsidiavam-na. Quando ficou regrada disse à mãe com um ar de embaraço: "A coisa aconteceu" e foi comprar toalhas higiênicas com a irmã; encontrando um homem na rua baixou a cabeça; de uma maneira geral manifestava repugnância por si mesma. Não sofria durante esses períodos, mas tentava sempre escondê-los da mãe. De uma feita, tendo visto uma mancha nos lençóis, a mãe perguntou-lhe se se achava indisposta e ela o negou, embora fosse verdade. Um dia disse à irmã: "Tudo pode acontecer agora, posso ter um filho. — Para isso precisarias viver com um homem, respondeu a irmã. — Mas eu vivo com. dois homens: papai e teu marido".
O pai não permitia às filhas que saíssem sozinhas à noite, de medo que as violentassem: esses temores contribuíam para dar a Molly a ideia de que os homens eram seres perigosos. O medo de ficar grávida, de morrer de parto, assumiu tal intensidade a partir do momento em que ficou regrada, que pouco a pouco ela se recusou a sair do quarto, queria permanecer o dia inteiro na cama; tem crises terríveis de ansiedade se a obrigam a sair; se precisa afastar-se da casa, tem um ataque e desmaia. Tem medo dos automóveis, dos táxis, não pode mais dormir, acredita que ladrões entram em casa à noite, grita e chora. Tem manias alimentares, por momentos come demais para não desfalecer; tem medo igualmente quando se sente fechada em algum lugar. Não pode reais ir à escola nem levar uma vida normal.

História análoga, que não se liga à crise da menstruação mas em que se manifesta a ansiedade que experimenta a menina em relação a seus ' interiores", é a de Nancy (3).

(3) Citada também por H. Deutsch, Psychology of Women.

Com mais ou menos 13 anos a menina era íntima da irmã mais velha e ficou muito orgulhosa por ter sido a confidente quando esta se tornou noiva secretamente e depois casou: partilhar o segredo de uma pessoa grande, era ser aceita entre os adultos. Viveu durante algum tempo na casa da irmã; mas quando esta lhe disse que ia comprar" um bebê, Nancy tornou-se ciumenta do cunhado e da criança que ia chegar; ser novamente tratada como uma criança a quem se contam lorotas fora-lhe insuportável. Começou a sentir perturbações internas e quis que a operassem de apendicite; a operação correu bem, Mas, durante sua estada no hospital, Nancy viveu em meio a uma terrível agitação; tinha cenas violentas com a enfermeira que detestava; tentava seduzir o médico, marcava-lhe encontros, mostrava-se provocante, exigia com crises nervosas que êle a tratasse como mulher; acusava-se de ser responsável pela morte do irmãozinho ocorrida anos antes; e principalmente tinha certeza de que não lhe haviam tirado o apêndice, que tinham esquecido o bisturi no seu estômago: quis por força que a examinassem pelos raios X a pretexto de que engolira um "penny".

Esse desejo de operação — em particular da extirpação do apêndice — encontra-se amiúde nessa idade; as meninas exprimem assim seu medo da violação, da gravidez, do parto. Sentem no ventre obscuras ameaças e esperam que o cirurgião as salvará do perigo desconhecido que as aguarda.

Não é somente o aparecimento das regras que anuncia à menina o seu destino de mulher. Outros fenômenos suspeitos produzem- se nela. Até então seu erotismo era clitoridiano. É difícil saber se as práticas solitárias são menos comuns nela do que nos meninos; a essas práticas ela se entrega durante os dois primeiros anos de sua vida, talvez mesmo desde os primeiros meses; parece que as abandona por volta dos dois anos para voltar a elas mais tarde; pela sua conformação anatômica essa haste plantada na carne masculina solicita, mais do que uma mucosa secreta, toques e apalpadelas: mas os acasos de uma esfregadela — a criança subindo em barras, em árvores, montando em bicicleta — de um contato vestimentar, de um jogo, ou ainda a iniciação por colegas mais velhos, por adultos, revelam freqüentemente à menina sensações que ela se esforça por ressuscitar. Em todo caso, o prazer, quando alcançado, é uma sensação autônoma: tem a leveza e a inocência de todos os divertimentos infantis (4). Ela quase não estabelece relações entre as deleitações íntimas e seu destino de mulher; suas relações sexuais com meninos, se é que existem, são baseadas essencialmente na curiosidade. E ei-la que se sente tomada de perturbadoras emoções em que não se reconhece. A sensibilidade das zonas erógenas desenvolve-se e estas são na mulher tão numerosas que se pode considerar todo o corpo como erógeno: é o que lhe revelam carícias familiares, beijos inocentes, apalpadelas indiferentes de uma costureira, de um médico, de um cabeleireiro, uma mão amiga pousada nos cabelos ou na nuca; ela descobre, e muitas vezes procura deliberadamente, uma perturbação mais profunda dos contatos de jogo, de luta com meninos e meninas: como Gilberte lutando nos Champs- Elysées com Proust. Nos braços dos dançarinos, sob o olhar ingênuo da mãe, ela conhece estranhos langores. E depois, mesmo uma juventude bem defendida expõe-se a experiências mais precisas. Nos meios "bem" silenciam-se de comum acordo tais incidentes lamentáveis; mas é freqüente que certas carícias de amigos da casa, tios, primos, para não falar dos avôs e dois pais, sejam menos inofensivas do que o supõe a mãe; um professor, um padre, um médico podem ter sido ousados, indiscretos. Encontram-se relatos de semelhantes experiências em L'Asphyxie, de Violette Leduc, em La Haine maternelle, de S. de Tervagnes, e em L'Orange bleue de Yassu Gauclère. Stekel estima que os avôs, entre outros, são amiúde perigosos.

(4) Salvo, bem entendido, nos casos assaz numerosos em que a intervenção direta ou indireta dos pais, ou escrúpulos religiosos, fazem disso um pecado. Encontrar-se-á, em apêndice, um exemplo abominável das perseguições a que submetem por vezes as crianças, a pretexto de libertá-las de "maus hábitos".
Tinha 15 anos. Na véspera do enterro, meu avô viera dormir em casa. No dia seguinte, minha mãe já se tendo levantado, ele me perguntou se não podia deitar na minha cama para brincar comigo; levantei-me imediatamente sem responder. . . Comecei a ter medo dos homens, conta uma mulher (5).

(5) A Mulher Fria.

Outra jovem lembra-se de ter sofrido um sério choque com a idade de 8 ou 10 anos quando o avô, velho de 70 anos, lhe bulira nos órgãos genitais. Êle a tomara nos joelhos enfiando-lhe a dedo na vagina. A criança sentira uma imensa angústia mas não ousou entretanto falam. Desde então teve muito medo de tudo o que é sexual 1.

Tais incidentes são geralmente silenciados pela menina por causa da vergonha que lhe inspiram. Muitas vezes, de resto, se se abre com os pais, a reação destes é de ralhar com ela. "Não digas tolices. . . Tens más ideias." Ela se cala também acerca dos gestos estranhos de certos desconhecidos. Uma menina contou ao Dr. Liepmann (6):

(6) Liepmann, Jeunesse et sexualité.

Tínhamos alugado um quarto no porão de um sapateiro. Muitas vezes, quando estava sozinha, nosso proprietário vinha buscar-me, tomava- me nos braços, beijava-me longamente remexendo-se para frente e para trás. Demais, seu beijo não era superficial; enfiava-me a língua na boca. Eu o detestava por causa dessas coisas. Mas nunca disse nada porque era muito tímida.



continua página 59...

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As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.
Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.



"O que é uma mulher?"




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