sábado, 15 de outubro de 2022

OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Luta: I... Preliminares

OS SERTÕES 


Euclides da Cunha

Volume 1



A Luta



Preliminares

I . Antecedentes.
II . Causas próximas da luta. Uauá.
III . Preparativos da reação. A guerra das caatingas.
IV . Autonomia duvidosa.,



Preliminares

Quando se tornou urgente pacificar o sertão de Canudos, o governo da Bahia estava a braços com outras insurreições. A cidade de Lençóis fora investida por atrevida malta de facínoras, e as suas incursões alastravam-se pelas Lavras Diamantinas; o povoado de Barra do Mendes caíra às mãos de outros turbulentos; e em Jequié se cometiam toda a sorte de atentados.



I - Antecedentes

O mal era antigo.
O trato do território que recortam as cadeias de Sincorá até as margens do S. Francisco era, havia muito, dilatado teatro de tropelias às gentes indisciplinadas do sertão.
Opulentada de esplêndidas minas, aquela paragem, malsina-a a própria opulência. Procuram-na há duzentos anos irrequietos aventureiros ferrotoados pelo anelo de espantosas riquezas, e eles, esquadrinhando afanosamente os flancos das suas serranias e as nascentes dos rios, fizeram mais do que amaninhar a terra com a ruinaria das catas e o indumento áspero das grupiaras: legaram à prole erradia e, de contágio, aos rudes vaqueiros que os seguiram, a mesma vida desenvolta e inútil livremente expandida na região fecunda, onde por muitos anos foram moeda corrente o ouro em pó e o diamante bruto.
De sorte que sem precisarem despertar pela cultura as energias de um solo em que não se fixam e atravessam na faina desnorteada de faiscadores, conservaram na ociosidade turbulenta a índole aventureira dos avós, antigos fazedores de desertos. E como, a pouco e pouco, se foram exaurindo os cascalhos e afundando os veeiros, o banditismo franco impôs-se-lhes como derivativo à vida desmandada.
O jagunço, saqueador de cidades, sucedeu ao garimpeiro, saqueador da terra. O mandão político substituiu o capangueiro decaído.
A transição é antes de tudo um belo caso de reação mesológica.
Caracterizemo-la, de relance.
Vimos como se formaram ali os mamalucos bravos e diligentes, interpostos tão a propósito, na quadra colonial, entre o torvelinho das bandeiras e o curso das missões, como elemento conservador formando o cerne da nossa nacionalidade nascente e criando uma situação de equilíbrio entre o desvario das pesquisas mineiras e as utopias românticas do apostolado. Ora, aqueles homens, depois de esboçarem talvez a única feição útil da nossa atividade naqueles tempos, tiveram desde o começo do século XVIII, quando se desvendaram as lavras do Rio de Contas à Jacobina, perigosos agentes que se lhes não derrancaram o caráter varonil os nortearam a lamentáveis destinos. De feito, transmudaram-se em contacto com os sertanistas gananciosos. Estes vinham, então, do oriente, espavorindo a ferro e fogo o selvagem e fundando povoados que, ao revés dos já existentes, não tinham o gérmen de uma fazenda de gado, mas as ruínas das malocas. Bateram rudemente a região, estacionando largo tempo ante a barreira de serras que vão de Caetité para o norte; e quando as minas esgotadas lhes demandaram aparelhos para a exploração intensiva, tiveram, logo adiante, entre as matas que vão de Macaúbas a Açuruá, novas paragens opulentas, atraindo-os para o âmago das terras.
Devassaram-nas até nova barreira, o Rio S. Francisco. Transpuseram-na. Na frente, indefinido, se lhe antolhou, cavado nos chapadões, aquele maravilhoso vale do Rio das Éguas, tão aurífero que o ouvidor de Jacobina em carta dirigida à rainha Maria I (1794) afirmava “que as suas minas eram a cousa mais rica de que nunca se descobriu nos domínios de Sua Majestade”.
Naquele ponto se abeiravam das lindes de Goiás.
Não deram mais um passo além. Ultimara-se uma empresa deplorável. Pelos campos de criação avermelhavam, nodoando-os, os montões de argila revolvida das catas entorroadas; e da envergadura atlética do vaqueiro surgira, destemeroso, o jagunço. A nossa história tão malsinada de indisciplinados heróis adquiria um de seus mais sombrios atores. Fez-se a metamorfose da situação anterior: de par com a sociedade robusta e tranquila dos campeiros, uma outra caracterizando-se pelo nomadismo desenvolto, pela combatividade irrequieta, e por uma ociosidade singular sulcada de tropelias.
Imaginemos que dentro do arcabouço titânico do vaqueiro estale, de súbito, a vibratibilidade incomparável do bandeirante. Teremos o jagunço.
É um produto histórico expressivo. Nascendo de cruzamento tardio entre colaterais, que o meio físico já diversificara, resume os atributos essenciais de uns e outros — na atividade bifronte que oscila, hoje, das vaquejadas trabalhosas às incursões dos quadrilheiros. E a terra, aquela incomparável terra que mesmo quando abrangida pelas secas, desnuda e empobrecida, ainda lhe sustenta os rebanhos nas baixadas salinas dos barreiros, ampara-o de idêntico modo ante as exigências da vida combatente: dá-lhe grátis em toda a parte o salitre para a composição da pólvora, enquanto as balas, luxuosos projetis feitos de chumbo e prata, lá estão, incontáveis, na galena argentífera do Açuruá... [1]


[1] Vide Descrições Práticas da Província da Bahia pelo tenente-coronel Durval Vieira de Aguiar.

É natural que desde o começo do século passado a história dramática dos povoados do S. Francisco começasse a refletir uma situação anômala. [2] E embora em todas as narrativas emocionantes, que a formam, se destaquem rivalidades partidárias e desmandos impunes de uma política intolerável de potentados locais, todas as desordens, surgindo sempre precisamente nos lugares em que se ostentou, outrora, mais ativa a ânsia mineradora, denunciam a gênese remota que esboçamos.

[2] Caetano Pinto de Miranda Montenegro, vindo em 1804 de Cuiabá ao Recife, andando 670 léguas, passou pela Barra do Rio Grande, e no relatório que enviou ao visconde de Anadia, diz, referindo-se àqueles lugares, que “em nenhuma parte dos domínios portugueses a vida dos homens tem menos segurança”. (Liv. 16. Corr. da Corte, 1804 — 1808)

Exemplifiquemos. Todo o vale do Rio das Éguas e, para o norte, o do Rio Preto, formam a pátria original dos homens mais bravos e mais inúteis da nossa terra. [3] Dali abalam para as algaras aventurosas alugando a bravura aos poteneados, e têm sempre, culminando-lhas, o incêndio e o saque de vilas e cidades, em todo o vale do grande rio. Avançando contra a corrente já chegaram, em 1879, à cidade mineira de Januária que conquistaram, tornando a Carinhanha, de onde haviam partido, carregados de despojos. Desta vila para o norte a história das depredações avulta cada vez maior, até Xiquexique, lendária nas campanhas eleitorais do Império.

[3] “Quem precisa de jagunços no Rio S. Francisco manda-os contratar nesse grande viveiro. O clavinote com a munição é o preço; o mais arranjam facilmente conforme o valor da impunidade que a influência do patrão oferece.” Tenente-coronel Durval. Idem.

Não há traçá-la em meia dúzia de páginas. O mais obscuro daqueles arraiais tem a sua tradição especial e sinistra.
Um único, talvez, se destaca sob outro aspecto, o de Bom Jesus da Lapa. É a Meca dos sertanejos. A sua conformação original, ostentando-se na serra de grimpas altaneiras, que ressoam como sinos; abrindo-se na gruta de âmbito caprichoso semelhando a nave de uma igreja, escassamente aclarada; tendo pendidos dos tetos grandes candelabros de estalactites; prolongando-se em corredores cheios de velhos ossuários diluvianos; e a lenda emocionante do monge que ali viveu em companhia de uma onça — tornaram-no objetivo predileto de romarias piedosas, convergentes dos mais longínquos lugares, de Sergipe, Piauí e Goiás.
Ora, entre as dádivas que jazem em considerável cópia no chão e às paredes do estranho templo, o visitante observa de par com as imagens e as relíquias, um traço sombrio de religiosidade singular: facas e espingardas.
O clavinoteiro ali entra, contrito, descoberto. Traz à mão o chapéu de couro, e a arma à bandoleira. Tomba genuflexo, a fronte abatida sobre o chão úmido do calcário transudante... E reza. Sonda longo tempo, batendo no peito, as velhas culpas. Ao cabo cumpre devotamente a promessa que fizera para que lhe fosse favorável o último conflito que travara: entrega ao Bom Jesus o trabuco famoso, tendo da coronha alguns talhos de canivete lembrando o número de mortes cometidas. Sai desapertado de remorsos, feliz pelo tributo que rendeu. Amatula-se de novo à quadrilha. Reata a vida temerosa.
Pilão Arcado, outrora florescente e hoje deserta, na derradeira fase de uma decadência que começou em 1856; Xiquexique, onde durante decêncios se digladiaram liberais e conservadores; Macaúbas, Monte Alegre e outras, e todas as fazendas de seus termos, delatam, nas vivendas derruídas ou esburacadas a bala, esse velho regime de desmandos.
São lugares em que se normalizou a desordem esteada no banditismo disciplinado.
O conceito é paradoxal, mas exato.
Porque há, de fato, uma ordem notável entre os jagunços. Vaidosos de seu papel de bravos condutícios e batendo-se lentamente pelo mandão que os chefia, restringem as desordens às minúsculas batalhas em que entram, militarmente, arregimentados.
O saque das povoações que conquistam, têm-no como direito de guerra, e neste ponto os absolve a História inteira.
Fora disto, são raros os casos de roubos, que consideram desaire e indigno labéu. O mais frágil positivo pode atravessar, inerme e indene, procurando o litoral, aquelas matas e campos, com os picuás atestados de diamantes e pepitas. Não lhe faltará um só no termo da viagem. O forasteiro, alheio às lutas partidárias, atravessa-os igualmente imune.
Não raro um mascate, seguindo por ali, com seus cargueiros rengueando ao peso das caixas preciosas, estaca — tremendo — ao ver aparecer inesperadamente um grupo de jagunços, acampados na volta do caminho...
Mas perde em momentos o medo. O clavinoteiro-chefe aproxima-se. Saúda-o com boa sombra; dirige-lhe a palavra, risonho; e mete-lhe à bulha o terror, galhofeiro. Depois lhe exige um tributo — um cigarro. Acende-o numa pancada única do isqueiro; e deixa-o passar, levando, intactas, a vida e a fortuna.
São numerosos os casos deste teor revelando notável nobreza entre aqueles valentes desgarrados.
Cerca de dez ou oito léguas de Xiquexique demora a sua capital, o arraial de Santo Inácio, erecto entre montanhas e inacessível até hoje a todas as diligências policiais.
Estas, de ordinário, conseguem pacificar os lugares conflagrados, tornando-se interventoras neutras ante as facções combatentes. É uma ação diplomática entre potências. A justiça armada parlamentada com os criminosos; balanceia as condições de um e outro partido; discute; evita os ultimatos; e acaba ratificando verdadeiros tratados de paz, sancionando a soberania da capangagem impune.
Assim os estigmas hereditários da população mestiça se têm fortalecido na própria transigência das leis.
Não surpreende que hajam crescido, avassalando todo o vale do S. Francisco, e desbordando para o norte.
Porque o cangaceiro da Paraíba e Pernambuco é um produto idêntico, com diverso nome. Distingue-o do jagunço talvez a nulíssima variante da arma predileta: a parnaíba de lâmina rígida e longa suplanta a fama tradicional do clavinote de boca-de-sino. As duas sociedades irmãs tiveram, entretanto, longo afastamento que as isolou uma da outra. Os cangaceiros nas incursões para o sul, e os jagunços nas incursões para o norte, defrontavam-se, sem se unirem, separados pelo valado em declive de Paulo Afonso.
A insurreição da comarca de Monte Santo ia ligá-las.
A campanha de Canudos despontou da convergência espontânea de todas estas forças desvairadas, perdidas nos sertões.


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Leia também:

OS SERTÕES - A Terra: I Preliminares
OS SERTÕES - A Terra: II Do alto de Monte Santo
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OS SERTÕES - A Luta: I... Preliminares
OS SERTÕES - A Luta: II... Causas próximas da luta
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Os Sertões, de Euclides da Cunha

Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).

Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.


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