Maria Firmina dos Reis
Úrsula
O amor que se nutre no coração do homem generoso é puro e nobre, leal e santo, profundo e imenso, e capaz de quanta virtude o mundo pode conhecer, de quanta dedicação se possa conceber. Ele o eleva acima de si próprio, e as suas ações são o perfume embriagador desse sentimento, que o anima: mas o amor no peito do homem feroz e concupiscente é uma paixão funesta, que conduz ao crime, que lhe mata a alma e a despenha no inferno.
Tal era o amor que abrasava a alma indômita e malvada de Fernando P. O amor perdera-o. Ele já não sonhava com a vingança; mas começava a sentir alguma coisa, que lhe rasgava o coração. Seriam os espinhos do remorso?
Fernando até ali sopitara esse castigo do céu, e nunca seu sono fora atribulado. Entretanto agora, cada sombra era um espectro pavoroso e ameaçador, que lhe erguia os braços descarnados, e acenava-lhe para as feridas gotejantes: e ele fechava os olhos e via-o ainda, e sempre, e por toda a parte.
Então corria espavorido e louco, como se pretendesse fugir a si mesmo para escapar a tão pungente martírio, mas embalde porque a sombra de sua vítima o seguia impassível.
Após a noite da horrível catástrofe, tinham-se sucedido já duas, e a tranquilidade não voltara ao espírito do comendador. Em todo esse tempo não pudera conciliar o sono um só momento; porque o sono foge àquele que perdeu a paz de espírito.
E para serenar a tempestade da sua alma, lembrou-se de Úrsula, por quem empreendera esses novos e horrendos crimes, e tentou vê-la. De há muito que já se esforçava por ir ver aquele anjo de candura e beleza, mas o ânimo lhe faltava com a lembrança de que ela lhe lançaria em rosto os seus crimes. Por último, vencendo sua pusilanimidade, correu desvairado ao seu quarto.
Úrsula tinha os olhos cerrados; dormia o sono agitado do febricitante. As horas, que se escoavam já tão longas, os desvelos de que a cercavam, nem a dor, que lhe despedaçava a alma, tinham-na arrancado a esse doloroso torpor.
Então Fernando P. ajoelhou ante esse anjo, olhou-a extasiado, sem atrever-se a tocá-la, ou a chamar pelo seu nome. Temeu despertá-la.
Nessa atitude passou ele muitas horas sem que Úrsula voltasse a si. Um assomo de cólera concentrada enuviou a fronte pálida desse homem feroz, e prorrompeu blasfemando:
— Maldição! Mil vezes o mataria, se mil vidas o inferno lhe tivesse dado.
E Úrsula continuou o seu letargo agitado, e ele recaiu na adoração íntima e silenciosa em que estivera.
Mas o fantasma aí veio persegui-lo; ele fechou os olhos, depois abriu-os para fitá-los sobre a donzela adormecida. E estremeceu
A presença dessa menina era um remorso vivo para o seu coração; seus olhos cerrados, seus lábios entreabertos, sua respiração curta e anelante, pareciam repetir-lhe: — Assassino!
O comendador tentou espantar do espírito essa ideia, que lhe voltava incessante, e ele caiu em dolorosa prostração, que excitaria dó em quem não soubesse os seus nefandos crimes.
Úrsula estremeceu no leito, torceu os braços com desesperação, lançou-os fora da cama e deixou-os depois cair sobre o peito.
O comendador gemeu de dor e atreveu-se a exclamar:
— Úrsula!
Sua voz era trêmula, e o som fraco e doloroso.
Ao som dessa voz, que lhe despertava tão agudas dores, a moça debateu-se no leito, e convulsa, pálida e angustiada, levantou-se com impetuosidade. Abriu os olhos, e dilatou-os sobre Fernando P., sempre ajoelhado a seus pés, e soltou um grito, que o fez estremecer de angústia.
Depois levou ambas as mãos aos olhos, e um soluçar doído e magoado parecia despedaçar-lhe o aflito peito.
Então esse homem endurecido e cruel vergou ao peso de tão enorme remorso... Fernando P. pela vez primeira compreendeu o que era a dor no coração de outrem! Gemeu de aflitiva angústia ante o supremo sofrimento da mulher que amava; e invocou-a com ternura.
— Úrsula! Oh! Quanto te hei amado! Poderás tu compreender a extensão dos meus afetos, e eu não sentira agora envenenarem-me a alma a desesperação e o remorso. Desdenhaste o amor do meu coração... Por quê? Não era ele puro como a tua alma? Donzela! Se te dignasses lançar a vista sobre o meu sofrimento, talvez te apiedasses de mim, e acreditasses na minha afeição; porque muito hei sofrido, Úrsula, muito.... Desde o dia fatal em que te vi na mata, esqueci o meu orgulho, e uma ardente e inextinguível paixão me abrasou a alma. Nesse dia, eu jurei pelo céu ou pelo inferno que serias minha esposa. Perdoa, Úrsula. Nesse dia, ainda eu era orgulhoso. Hoje peço-te suplicante: negar-me-ás? Úrsula, em nome do céu, uma só palavra, ainda que essa seja para amaldiçoar-me...
E dizendo, rojava-se pelo chão, e beijava-lhe a fímbria de seu vestido.
Então ela desvendou os olhos, e pôs-se a contemplá-lo, muda e impassível como se nada a inquietasse; e depois de alguns momentos levantou-se, deu alguns passos vagarosos e incertos, e voltando-se para Fernando, que a seguia com a vista e o coração, deixou escapar um sorriso descomposto, que o gelou de neve.
E Fernando P. conheceu que estava punido! Varreram-se suas afagadoras esperanças. Nesses olhos espantados e brilhantes, nesse andar incerto, e nesse sorriso descomunal reconhecera que estava louca!
Tão doída foi-lhe essa triste convicção, que a cabeça pendeu-lhe para a terra, e ficou prostrado como se um raio o tivesse ferido. E as esperanças tão queridas do seu coração mirraram-se, e extinguiram-se!....
Passou algum tempo nessa posição, e depois esse homem robusto, altivo, feroz e colérico chorou como débil criança.
Mas seu desespero, seu pranto de amargura, não os compreendia Úrsula, que distraída brincava com as flores já murchas de sua capela de noiva.
Então o comendador saiu correndo; porque a presença dessa mulher matava-o.
Na sua desesperação ninguém o consolava; porque era mau e cruel para os que o conheciam.
Seus escravos olhavam-no pasmo, e não o reconheciam. O remorso o havia completamente desfigurado.
continua pág 136...
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Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.
Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.
O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.
Ao aposentar-se, em 1880, fundou uma escola mista e gratuita. Maria morre aos 92 anos, na cidade de Guimarães, no dia 11 de novembro de 1917.
Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.
A importância da obra de Firmina, primeira escritora negra de que se tem notícia em nossa literatura, se deve ao pioneirismo na denúncia da opressão a negros e mulheres no Brasil do século XIX. Antes do Navio negreiro de Castro Alves, declamado pela primeira vez em 1868, Firmina já descrevia em seu livro Úrsula, de 1859, a crueldade do tráfico de pessoas sequestradas na África e transportadas nos porões dos “tumbeiros”. Neste mesmo romance, a crítica da escritora abrange o retrato lamentável da condição feminina da época ao delinear personagens como o pai de Tancredo ou o comendador, tiranos não só de escravos, mas também de mulheres.
Maria Firmina foi uma voz profundamente legítima e dissonante que não encontrou acolhida e reconhecimento em seu tempo. Longe de fracassar, essa voz ressoa hoje cheia de significado, recriminando males que ainda assombram e permeiam nossa sociedade.
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