terça-feira, 18 de abril de 2023

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (1a.Parte - E falava-lhe até de Eulalie)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes


Primeira Parte


continuando...


E falava-lhe até de Eulalie como de uma boa pessoa. Pois, desde que Eulalie morrera, Françoise esquecera por completo que a estimara muito pouco em vida, como estimara bem pouco toda pessoa que nada tinha a comer dentro de casa, que "arrebentava" de fome e vinha depois, como uma imprestável, fazer uma boquinha graças à bondade dos ricos. Já não se aborrecia pelo fato de ter Eulalie sabido tão bem "receber o seu" da parte de minha tia, todas as semanas. Quanto a esta última, Françoise não cessava de lhe entoar louvores.

- Mas então era mesmo em Combray, na casa de uma prima da patroa, que a senhora estava? - perguntava o jovem lacaio.

- Sim, na casa da Sra. Octave; ah! uma santa mulher, meus filhos. E lá havia sempre de tudo, do bom e do melhor; era uma boa mulher, pode-se dizer, que não lastimava as perdizes nem os faisões, nem nada; e a gente podia chegar para jantar às cinco, às seis, que não era carne o que havia de faltar; e de primeira, ainda por cima; e vinho branco, vinho tinto, tudo o que fosse necessário. - (Françoise empregava o verbo lastimar no mesmo sentido que La Bruyere.) - Tudo era sempre às suas custas, mesmo que a família ficasse meses ou anos. (Essa reflexão nada tinha de indelicado para conosco, pois Françoise era de um tempo em que 'custas' não era reservada ao estilo judiciário e significava simplesmente despesas.) - Ah, garanto-lhe que ninguém saía com fome. Como o Senhor cura nos observou tantas vezes, se existe uma mulher que vai direitinho para junto de Deus, é, com certeza, ela. Pobre senhora, ouço-a ainda a me dizer com sua vozinha: "Françoise, você sabe, eu não como, mas quero que seja tão bom para todos como se eu comesse." Certo que não era para ela. Se a tivessem visto; não pesava mais que um cestinho de cerejas. Não tinha mais peso nenhum. Nunca ligou para os meus conselhos, jamais quis ir ao médico. Ah! Não era lá que se comia às pressas. Ela queria que seus criados fossem bem alimentados. Aqui, ainda hoje de manhã, mal tivemos tempo de roer um bocado de pão. Tudo se faz correndo.

Exasperava-se principalmente com as torradas que meu pai comia. Estava convencida de que ele costumava comê-las de pura afetação e para obrigá-la a raspar-se. 

- Posso jurar - aprovava o jovem lacaio - que nunca vi uma coisa dessas! 

Dizia aquilo como se tivesse visto todas as coisas e os conhecimentos de uma experiência milenar se estendessem a todas as terras e seus usos, entre os quais não figurava em parte alguma o hábito de comer torradas. 

- Sim, sim - resmungava o mordomo -, mas tudo isto bem que poderia mudar, os operários devem fazer uma greve no Canadá, e o ministro disse outro dia ao patrão que para isso ganhou duzentos mil francos.

O mordomo estava longe de censurá-lo, não que ele próprio não fosse perfeitamente honesto, mas, julgando venais todos os políticos, o crime de concussão lhe parecia menos grave que o mais leve delito de roubo. Não se indagava sequer se ouvira bem aquela frase histórica e não o abalava a inverossimilhança de que tivesse sido pronunciada pelo próprio culpado ao meu pai, sem que este o pusesse porta a fora. Mas a filosofia de Combray impedia que Françoise esperasse que as greves no Canadá tivessem repercussão sobre o uso das torradas:

- Enquanto o mundo for mundo -dizia -, haverá patrões para nos fazerem trotar e criados para se prestarem a seus caprichos.

A despeito da teoria daquele trote perpétuo, já há um quarto de hora minha mãe, que provavelmente não empregava as mesmas medidas de Françoise para avaliar a duração do almoço dela, dizia:

- Mas o que é que pode estar fazendo lá? Há mais de duas horas que almoçam.

E tocava timidamente a campainha três ou quatro vezes. Françoise, seu lacaio e o mordomo ouviam os toques não como um chamado e sem pensar em atender, mas como os primeiros sons dos instrumentos que se afinam quando em breve recomeça um concerto e vê-se que só haverá alguns minutos de intervalo. Assim, quando os toques começavam a se repetir, e a se tornar mais insistentes, nossos criados principiavam a lhes prestar mais atenção e, calculando que já não tinham muito tempo e que estava próxima a retomada do trabalho, davam um suspiro a um tilintar mais sonoro que os outros e, tomando cada qual o seu partido, descia o lacaio para fumar um cigarro diante da porta; Françoise, após algumas reflexões a nosso respeito, tais como "parece que estão com o diabo no corpo", subia para arrumar suas coisas no sexto andar, e o mordomo, tendo ido buscar papel de carta no meu quarto, expedia rapidamente a sua correspondência privada.

Apesar do ar arrogante do seu mordomo, Françoise, logo nos primeiros dias, pudera me informar que os Guermantes não moravam no seu palácio em virtude de um direito imemorial, e sim devido a uma locação bem recente, e que o jardim para onde dava, do lado que eu não conhecia, era muito pequeno e parecido com todos os jardins vizinhos; e eu soube, enfim, que ali não se viam nem forca senhoril, nem moinho fortificado, nem sauvoir, nem pombal com pilastras, nem forno comum, nem celeiro de nave, nem castelinho, nem pontes fixas ou levadiças, nem sequer volantes, nem tampouco pedágio, agulhas, diplomas, murais ou marcos. Mas como Elstir, quando a baía de Balbec, tendo perdido seu mistério, tornara-se para mim uma parte qualquer, intercambiável com qualquer outra, de certa quantidade de água salgada que existe no globo terrestre, lhe restituíra subitamente uma individualidade ao me dizer que era o golfo de opala de Whistler em sua harmonia de azul prateado assim o nome de Guermantes vira morrer, aos golpes de Françoise, a última morada que dele saíra, quando um velho amigo de meu pai nos disse um dia, falando da duquesa: 

- Ela ocupa a posição mais destacada no faubourg Saint-Germain, tem a primeira casa do faubourg Saint-Germain. - Decerto, o primeiro salão e a primeira residência do faubourg Saint-Germain eram bem pouca coisa diante das outras residências que eu sucessivamente havia imaginado. Enfim, esta ainda, e devia ser a última, possuía algo, por mais humilde que fosse e que seria, além de sua própria matéria, uma secreta diferenciação.

E tanto me era mais necessário poder procurar no "salão" da Sra. de Guermantes, em seus amigos, o mistério de seu nome, quanto não o encontrava em sua pessoa, quando a via sair a pé de manhã, ou de carro, à tarde. Certamente, já na igreja de Combray ela me surgira ao fulgor de uma metamorfose, com suas faces irredutíveis, impenetráveis à cor do nome de Guermantes e das tardes à beira do Vivonne, no lugar do meu sonho fulminado, como um cisne ou um salgueiro no qual foi transformado um deus ou uma ninfa e que, desde então submetido às leis da natureza, deslizará pelas águas ou será agitado pelo vento. No entanto, esses reflexos desvanecidos, mal os havia deixado, tornavam a formar-se, como os reflexos róseos e verdes do sol posto, por detrás do remo que os quebrara, e, na solidão de meu pensamento, o nome de imediato se apropriara da lembrança do rosto. Mas agora eu a via muitas vezes à sua janela, no pátio, na rua; e, se nem ao menos conseguia integrar nela o nome de Guermantes, pensar que ela era a Sra. de Guermantes, eu acusava apenas a impotência do meu espírito em ir até o fim do ato que lhe pedia; mas ela, nossa vizinha, parecia cometer o mesmo erro; mais ainda, cometê-lo sem se perturbar, sem nenhum dos meus escrúpulos, sem nem sequer a suspeita de que se tratasse de um erro. Assim, a Sra. de Guermantes mostrava em seus vestidos a mesma preocupação de seguir a moda como se, julgando-se uma mulher como as outras, tivesse aspirado a essa elegância de toalete em que qualquer das mulheres a podia igualar, talvez ultrapassá-la; vira-a, na rua, olhar com admiração uma atriz bem-vestida; e de manhã, no momento em que ela ia sair a pé, como se a opinião dos transeuntes, cuja vulgaridade fazia ressaltar passeando no meio deles a sua vida inacessível, pudesse ser um tribunal para ela, eu podia vê-la diante do espelho, desempenhando, com uma convicção isenta de duplicidade e ironia, com paixão, com mau humor, com amor-próprio, como uma rainha que aceitou representar uma criada numa comédia da corte, esse papel, tão inferior a ela, de mulher elegante; e, no esquecimento mitológico de sua grandeza nativa, ela verificava se o véu estava bem colocado, ajeitava as mangas, ajustava a capa, como o cisne divino faz todos os movimentos de sua espécie animal, conserva os olhos pintados de cada lado do bico sem neles pôr o olhar e se lança de súbito sobre um botão ou um guarda-chuva, como cisne, sem se lembrar que é um deus. Mas como o viajante, decepcionado pela primeira impressão recebida de uma cidade, diz consigo mesmo que talvez penetre nos seus encantos visitando os museus, travando conhecimento com o povo, trabalhando em suas bibliotecas, eu dizia a mim mesmo que, se fosse recebido em casa da Sra. de Guermantes, se fosse um de seus amigos, se penetrasse em sua existência, haveria de conhecer aquilo que, sob o invólucro alaranjado e brilhante, o seu nome ocultava de fato, de modo objetivo, para os outros, visto que, enfim, o amigo de meu pai dissera que o meio dos Guermantes era algo à parte no faubourg Saint-Germain.

A vida que eu supunha levassem naquele meio derivava de uma fonte tão diversa da experiência e me parecia dever ser tão particular, que não teria podido imaginar nos saraus da duquesa a presença de pessoas que eu tivesse frequentado outrora, pessoas reais. Pois, não podendo mudar bruscamente a sua natureza, ali diriam frases análogas às que já lhes conhecia; seus parceiros talvez se abaixassem a lhes responder na mesma linguagem humana; e, durante uma reunião no primeiro salão do faubourg Saint-Germain, teria havido instantes idênticos àqueles que eu já vivenciara: o que era impossível. É verdade que meu espírito se sentia embaraçado por certas dificuldades, e a presença do corpo de Jesus Cristo na hóstia não se me afigurava um mistério mais obscuro que esse primeiro salão do faubourg Saint-Germain, situado à margem direita do Sena, e cujos móveis eu podia ouvir limpar pela manhã. Mas a linha de demarcação que me separava do faubourg Saint-Germain, por ser inteiramente ideal, tanto mais real me parecia; bem sentia que era já o faubourg, o capacho dos Guermantes estendido do outro lado desse Equador e do qual minha mãe ousara dizer, tendo-o visto como eu, no dia em que se achava aberta a porta deles, que se encontrava em muito mau estado. Além do mais, de que forma a sua sala de jantar, sua galeria obscura, de móveis forrados de pelúcia vermelha, que eu podia às vezes entrever pela janela da nossa cozinha, não me pareceriam possuir o encanto misterioso do faubourg Saint-Germain, fazendo parte dele de um modo essencial, estar ali situados geograficamente, visto que o fato de ser recebido naquela sala de jantar era ter ido ao faubourg Saint-Germain, ter respirado a sua atmosfera, já que todos aqueles que, antes de ir para a mesa, sentavam-se ao lado da Sra. de Guermantes no canapé de couro da galeria eram do faubourg Saint-Germain? Sem dúvida, em outros locais que não Saint-Germain, em certas reuniões, podia-se ver às vezes, imperando majestosamente no meio da multidão banal dos elegantes, um desses homens que não passam de nomes e que assumem, alternadamente, quando tentamos representá-los, o aspecto de um torneio e de uma floresta patrimonial. Mas aqui, no primeiro salão do faubourg Saint-Germain, na galeria obscura, só existiam eles. Eram de preciosa matéria as colunas que sustentavam o templo. Mesmo para as reuniões familiares, era apenas entre eles que a Sra. de Guermantes podia escolher os seus convivas, e nos jantares de doze pessoas, reunidas em torno da mesa servida, eram como estátuas de ouro dos apóstolos da Santa Capela, pilares simbólicos e consagradores, diante da Santa Mesa. Quanto à pequena extremidade do jardim que se estendia entre altos muros, atrás do palácio, e onde, no verão, a Sra. de Guermantes mandava servir, depois do jantar, laranjada e licores, como não pensaria eu que sentar, entre as nove e onze da noite, em suas cadeiras de ferro dotadas de um tão grande poder como o canapé de couro sem respirar as brisas próprias ao faubourg Saint-Germain, era tão impossível como fazer a sesta no oásis de Figuig, sem por isso mesmo estar na África? Só a imaginação e a fé é que podem distinguir dos outros certos objetos, certos seres e criar uma atmosfera. Infelizmente aqueles sítios pitorescos, aqueles acidentes naturais, aquelas curiosidades locais, aquelas obras de arte do faubourg Saint-Germain, certamente nunca me seria dado pousar meus passos entre eles. E eu me contentava em estremecer quando lobrigava do alto-mar (e sem esperança de jamais ali abordar), como um minarete avançado, como uma palmeira inicial, como o princípio da indústria ou da vegetação exótica, o capacho gasto da margem.

Mas, se o palácio de Guermantes começava para mim no limiar do vestíbulo, suas dependências deviam estender-se muito mais além, a julgar pelo duque, o qual, considerando todos os seus locatários como rendeiros, camponeses, compradores de bens nacionais, cuja opinião não importa, fazia a barba de manhã em camisa de dormir, diante de sua janela, descia para o pátio conforme fizesse mais ou menos calor, em mangas de camisa, de pijama, de jaqueta escocesa felpuda, de cor singular, de casacos claros mais curtos que o paletó, e fazia com que um de seus picadores pusesse a trote, diante dele, algum cavalo novo que comprara. Por mais de uma vez, o cavalo derrubou o mostruário de Jupien, o qual deixou o duque indignado ao pedir uma indenização. - Quando mais não fosse, em consideração por todos os benefícios que a Senhora Duquesa faz na casa e na paróquia dizia o Sr. de Guermantes - é uma infâmia da parte desse fulano reclamar qualquer coisa. - Mas Jupien sustentara a demanda, parecendo ignorar de todo qual o "bem" que havia feito a duquesa. Entretanto, ela o fazia, mas, como não é possível estendê-lo a todo mundo, a lembrança de ter cumulado a um é motivo para se abster em relação a outro, no qual se provoca tanto maior descontentamento. Aliás, sob outros pontos de vista que não o da beneficência, o bairro parecia ao duque e isso a grandes distâncias apenas um prolongamento do seu pátio, uma pista mais comprida para seus cavalos. depois de ter visto como trotava sozinho um cavalo novo, o fazia enganchar, atravessar todas as ruas próximas, com o picador correndo a par, do carro, empunhando as rédeas, fazendo-o passar e voltar a passar por diante do duque, parado na calçada, em pé, gigantesco, enorme, vestido de claro, com o charuto na boca, a cabeça ao ar, o monóculo curioso, até o momento em que saltava à boleia, guiava ele mesmo ao cavalo para prová-lo, e se ia com o novo tiro a recolher a sua querida aos Champs-Élysées. O senhor do Guermantes dava o bom-dia no pátio a dois casais que estavam, mais ou menos, a seu mundo: um matrimônio de primos deles que, como os matrimônios de operários, nunca estava em casa para cuidar dos meninos, já que desde a manhã a mulher se ia à escola a aprender contraponto e fuga, e o marido à seu estudo fazer esculturas em madeira e couros esculpidos; além disso, o barão e a baronesa do Norpois, vestidos sempre de negro; a mulher locadora de cadeiras e o marido de enterrar mortos que saíam várias vezes ao dia para ir à igreja. Eram sobrinhos do velho embaixador que conhecíamos e a quem justamente havia encontrado meu pai no patamar da escada, mas sem compreender de onde vinha; porque meu pai pensava que um personagem tão considerável que tinha relação com os homens mais eminentes da Europa e que provavelmente era indiferente à distinções aristocráticas, devia tratar apenas a estes nobres obscuros, clericais e limitados. Fazia pouco que viviam na casa; como Jupien fosse dizer duas palavras no pátio ao marido, que estava saudando o senhor do Guermantes, chamou-lhe Senhor Norpois por não saber exatamente seu nome.

- Ah! Senhor Norpois! Ah! A verdade que é um achado! Paciência! Esse Juan Particular não demorará para chamá-lo cuidado-no Norpois - exclama voltando-se para o barão, o senhor de Guermantes. Afinal podia exalar seu mau humor contra Jupien, que chamava-o senhor e não senhor duque.

Um dia que o senhor Guermantes necessitava de umas informações relacionados com a profissão de meu pai, apresentou-se com muito boa graça. Depois disso tinha que lhe pedir freqüentemente algum favor como vizinho, e assim que o via descendo a escada pensando em algum trabalho, e desejoso de evitar todo encontro, o duque deixava seus moços de quadra, saía atrás de meu pai no pátio, punha-lhe bem o capote como um serviçal dá aos antigos ajuda de câmara ao Rei; agarrava-lhe a mão e, retendo-a na sua, acariciando-lhe inclusive para lhe provar, sem pudor de cortesão, que não lhe regateava o contato de sua preciosa carne; levava-o assim, farto e sem pensar mais que em escapar, até além da porta da garagem. Tinha-nos feito grande saudações um dia que cruzou conosco no momento em que saía de carro com sua mulher, a qual devia lhe ter dito meu nome; mas, que provavelmente tinha ela recordado, tampouco minha cara. Além disso, dava uma recomendação de ser designado meramente como um de seus inquilinos! Mais importante talvez, era encontrar à duquesa em casa da senhora Villeparisis, que precisamente me tinha pedido por meio de minha avó que fosse vê-la; e ao saber que eu tinha intenção de me dedicar à literatura, tinha acrescentado que em sua casa me encontraria com alguns escritores. Mas meu pai dissera que eu era muito jovem ainda para fazer vida em sociedade, e como o estado de minha saúde não deixava de o preocupar, não tinha vontade de em ocasiões inúteis fazer novas saídas.



continua na página 14...
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