OS SERTÕES
Euclides da Cunha
Volume 1
A Travessia do Cambaio
Triunfos antecipados
Ali acantonaram as 543 praças, 14 oficiais combatentes e 3 médicos — toda a primeira expedição regular contra Canudos. Era uma massa heterogênea de três cascos de batalhões, o 9º, o 26º e o 33º, tendo, adidas, duzentas e tantas praças de polícia e pequena divisão de artilharia, dous canhões Krupp 7 ½ e duas metralhadoras Nordenfeldt.
Menos de uma brigada, pouco mais de um batalhão completo.
Entretanto, afinados pelo otimismo oficial, as autoridades receberam os lutadores em triunfo, antes da batalha. Engalanou-se o vilarejo pobre, transfigurando-se, ataviado de bandeiras e ramagens, com o ornamento supletivo dos vivos fortes das fardas e irradiação das armas.
E fez-se um dia de festa. A missão mais concorrida, a mais animada feira, jamais tiveram tanto brilho. Tudo aquilo era uma novidade estupenda. Ao chegarem da rota fatigante, rompendo, surpreendidos, pelas ruas cheias de combatentes, os vaqueiros amarravam o campeão à sombra do tamarineiro, na praça, e iam quedar-se, longo tempo, contemplando as peças em que tanto ouviam falar e nunca haviam visto, capazes de esboroar montanhas e abalar com um só tiro, mais forte que o de mil roqueiras, o sertão inteiro. E aqueles titãs, enrijados pelos climas duros, estremeciam dentro das armaduras de couro considerando as armas portentosas da civilização.
Galgavam, muitos, logo, os lombilhos retovados e largavam, transidos de susto, da vila, demandando a caatinga. Alguns volviam a toda a brida para o norte, tocando para Canudos. Ninguém os percebia. Na alacridade dos festejos, não se distinguiam os emissários solertes de Antônio Conselheiro — espiando, observando, indagando, contando o número de praças, examinando todo o trem de guerra e desaparecendo depois, rápidos, precipitando-se para a aldeia sagrada.
Outros ali ficavam, encapotados, contemplando tudo aquilo com ironia cruel, certos do prelúdio hilariante de um drama doloroso. O profeta não podia errar: a sua vitória era fatal. Dissera-o — os invasores não veriam sequer as torres das igrejas sacrossantas.
Acendiam-se recônditos altares. E o riso dos soldados, e o estrépito das botas, percutindo as calçadas, e o vibrar dos clarins, e os vivas entusiásticos das ruas, coavam-se pelas paredes, penetravam as frestas das casas e iam perturbar, lá dentro, as preces abafadas dos fiéis genuflexos...
No banquete, preparado na melhor vivenda, ao mesmo tempo se ostentava o mais simples e emocionante gênero de oratória — a eloquência militar, esta eloquência singular do soldado, que é tanto mais expressiva quanto é mais rude — feita de frases sacudidas e breves, como as vozes de comando, e em que as palavras mágicas — Pátria, Glória e Liberdade — ditas em todos os tons, são toda a matéria-prima dos períodos retumbantes. Os rebeldes seriam destruídos a ferro e fogo... Como as rodas dos carros de Shiva, as rodas dos canhões Krupp, rodando pelas chapadas amplas, rodando pelas serranias altas, rodando pelos tabuleiros vastos, deixariam sulcos sanguinolentos. Era preciso um grande exemplo e uma lição. Os rudes impenitentes, os criminosos retardatários, que tinham a gravíssima culpa de um apego estúpido às mais antigas tradições, requeriam corretivo enérgico. Era preciso que saíssem afinal da barbaria em que escandalizavam o nosso tempo, e entrassem repentinamente pela civilização adentro, a pranchadas.
O exemplo seria dado. Era a convicção geral. Dizia-o a despreocupação e todo o arrebatamento feliz de uma população inteira; e a alegria ruidosa e vibrante dos oficiais e das praças; e toda aquela festa — ali — na véspera dos combates, a dous passos do sertão referto de emboscadas...
À tarde grupos ruidosos salpintavam a praça. Derivavam pelos becos. Espalhavam-se pelas cercanias. Atraídos pela novidade de uma perspectiva rara, outros ascendiam a montanha, pela ladeira sinuosa orlada de capelinhas brancas.
Paravam nos passos, refazendo-se para a ascensão exaustiva. Examinavam, curiosos, os registros e estampas, que pendiam às paredes, e os altares toscos; e subiam.
No “alto da Santa Cruz”, batidos pelas lufadas fortes do nordeste, consideravam em torno.
Ali estava — defronte — o sertão...
Uma breve opressão salteava os mais tímidos; mas desaparecia prestes. Volviam tranquilos para a vila, onde se acendiam as primeiras luzes, ao cair da noite...
Decididamente a campanha começara bem auspiciada.
Monte Santo antecipara-lhe as honras da vitória.
continua 110...
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Leia também:
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OS SERTÕES - Travessia do Cambaio: I - Triunfos antecipados
OS SERTÕES - Travessia do Cambaio: II - Incompreensão da campanha
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Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Os Sertões, de Euclides da Cunha
Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.
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