sexta-feira, 14 de abril de 2023

Marcel Proust - No Caminho de Swann (Um dia - c)

em busca do tempo perdido

volume I
No Caminho de Swann


ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento[1]
— marcel proust




combray



I(c) 


Um dia em que nos fora visitar em Paris, depois do jantar, desculpando-se por estar de casaca, disse-nos Françoise, após sua partida, que ele tinha jantado “em casa de uma princesa”, segundo lhe contara o cocheiro — “Sim, de uma princesa do demimonde!”, retrucou minha tia erguendo os ombros, em uma ironia serena, sem levantar os olhos do tricô.
 
Assim sendo, tratava-o minha tia-avó com certa superioridade. Como pensava que ele devia sentir-se lisonjeado com nossos convites, achava muito natural que Swann não nos viesse visitar no verão sem trazer uma cestinha de pêssegos ou framboesas de seu pomar e que, de cada uma de suas viagens à Itália, sempre me trouxesse fotografias de obras-primas. 

Ninguém se constrangia em mandar chamá-lo quando se tinha necessidade de molho gribiche ou de salada de ananás para os jantares de cerimônia a que não o convidavam, visto não lhe acharem prestígio suficiente para ser apresentado aos que vinham a nossa casa pela primeira vez. Se a conversa recaía sobre os príncipes da Casa de França: “Gente que nem o senhor nem eu jamais conheceremos, e nem fazemos questão de conhecer, não é verdade?”, dizia minha tia-avó a Swann, que talvez tivesse no bolso uma carta de Twickenham; [1] e mandava-o empurrar o piano e virar as páginas nas noites em que a irmã de minha avó cantava, mostrando, para manejar aquela criatura tão solicitada em outras partes, a ingênua rudeza de uma criança que brinca com um bibelô de coleção tão despreocupadamente como se fosse um objeto barato. Sem dúvida o Swann que tantos clubmen conheceram na mesma época era muito diferente daquele que minha tia criava em seu espírito, quando à noite, no jardinzinho de Combray, depois de ressoarem os dois toques hesitantes da campainha, ela insuflava e vivificava, com tudo quanto sabia da família Swann, a obscura e incerta personagem que se destacava sobre um fundo de trevas, seguida de minha avó, e que era reconhecida pela voz. Mas nem mesmo com referência às mais insignificantes coisas da vida somos nós um todo materialmente constituído, idêntico para toda a gente e de que cada qual não tem mais do que tomar conhecimento, como se se tratasse de um livro de contas ou de um testamento; nossa personalidade social é uma criação do pensamento alheio.[2] Até o ato tão simples a que chamamos “ver uma pessoa conhecida” é em parte um ato intelectual. Enchemos a aparência física do ser que estamos vendo com todas as noções que temos a seu respeito; e, para o aspecto total que dele nos representamos, certamente contribuem essas noções com a maior parte. Acabam elas por arredondar tão perfeitamente as faces, por seguir com tão perfeita aderência a linha do nariz, vêm de tal modo nuançar a sonoridade da voz, como se esta não fosse mais que um transparente invólucro, que, a cada vez que vemos aquele rosto e ouvimos aquela voz, são essas noções o que olhamos e escutamos. Certamente, no Swann que minha família havia construído para si, fora omitida por ignorância uma multidão de particularidades de sua vida mundana que davam motivo para que outros, em sua presença, vissem todo um mundo de elegâncias a dominar-lhe o rosto até o nariz recurvo, que era como sua fronteira natural; mas, em compensação, havia podido acumular naquele rosto despojado de seu prestígio, vago e espaçoso, no fundo daqueles olhos depreciados, o incerto e suave resíduo — meio memória, meio esquecimento — das horas ociosas passadas em sua companhia depois de nossos jantares semanais, em torno da mesa de jogo ou no jardim, durante nossa vida de boa vizinhança campesina. E isso tudo, com mais algumas recordações relativas a seus pais, de tal modo enchera o invólucro corporal de nosso amigo, que este Swann se tornara um ser completo e vivo, e eu tenho a impressão de deixar alguém para ir ter com outra pessoa diferente, quando, em minha memória, retrocedo do Swann que mais tarde conheci deveras para este primeiro Swann — este primeiro Swann que descubro entre os encantadores equívocos de minha juventude, e que aliás se parece menos com o outro do que com as pessoas a quem conheci na mesma época, como se em nossa vida sucedesse como em um museu, onde todos os retratos de um mesmo tempo têm um ar de família, uma mesma tonalidade — para este primeiro Swann cheio de lazeres, perfumado pelo odor do grande castanheiro, do cesto de framboesas e de um quase nada de estragão. 

No entanto, um dia em que minha avó fora pedir um favor a uma dama que conhecera no Sacré-Cœur[3] (e com a qual, devido à nossa concepção das castas, não procurava continuar em relações, apesar da simpatia recíproca), a marquesa de Villeparisis, da célebre família dos Bouillon, dissera-lhe a referida senhora: “Creio que você conhece muito o senhor Swann, que é um grande amigo de meus sobrinhos Des Laumes”. Minha avó voltara da visita muito entusiasmada com a residência, que dava para um jardim público, onde a sra. de Villeparisis aconselhava-lhe que alugasse casa,[4] e também com um alfaiate e sua filha, que tinham loja ali perto e onde ela entrara para pedir que lhe dessem um ponto na saia, que havia se rasgado na escada. Minha avó achara-os perfeitos, declarava que a pequena era uma pérola e que o alfaiate era o homem melhor e mais distinto que já vira. Pois para ela a distinção era algo absolutamente autônomo da posição social. Extasiava-se ante uma resposta que o alfaiate lhe dera, dizendo a mamãe: “Sévigné não teria dito melhor!”, e, por outro lado, a respeito de um sobrinho da sra. de Villeparisis, que encontrara em sua casa: “Ah!, minha filha, como ele é vulgar!”.[5]

Ora, a referência a Swann tivera como resultado não o de elevar a este no conceito de minha tia-avó, mas sim o de rebaixar a sra. de Villeparisis. Parecia que a consideração que, fiados em minha avó, dedicávamos à sra. de Villeparisis impunha-lhe a obrigação de nada fazer que a tornasse menos digna de tal apreço, obrigação a que havia faltado, tomando conhecimento da existência de Swann e permitindo a parentes seus que privassem com ele. “Como pode ela conhecer Swann? Uma pessoa que tu dizias parenta do marechal Mac-Mahon!”[6] Esta opinião de minha família sobre as relações de Swann logo pareceu confirmada por seu casamento com uma mulher da pior sociedade, quase uma cocote, que ele, aliás, jamais procurou apresentar, continuando a visitar-nos sozinho, embora cada vez mais espaçadamente; mas, por essa mulher, aferiam o meio social, desconhecido para eles, que Swann frequentava e onde supunham que a fora buscar.[7]

Mas certa vez leu meu avô em um jornal que o sr. Swann era um dos mais fiéis convivas dos almoços dominicais do duque de x***, cujo pai e cujo tio haviam figurado entre os primeiros estadistas do reinado de Louis-Phillipe. Ora, meu avô tinha grande curiosidade por todas as miudezas que pudessem fazê-lo penetrar, em pensamento, na vida privada de homens como Molé, como o duque de Pasquier, como o duque de Broglie.[8] Ficou encantado ao saber que Swann mantinha relações com pessoas que os haviam conhecido. Minha tia-avó, pelo contrário, interpretou essa novidade em um sentido desfavorável a Swann: quem quer que escolhesse suas relações fora da casta em que nascera, fora de sua “classe” social, sofria a seus olhos uma lamentável desqualificação. Parecia-lhe que assim se renunciava, de vez, às vantagens de todas as boas relações com pessoas bem situadas que as famílias previdentes honradamente cultivavam e guardavam para os filhos (minha tia-avó até deixara de visitar o filho de um notário nosso amigo e que havia desposado uma alteza, descendo assim, a seu ver, da respeitada posição de filho de notário para a de um desses aventureiros, antigos mordomos ou moços de estrebaria, com quem se conta que as rainhas tiveram por vezes certas condescendências). Censurou o projeto que tinha meu avô de interrogar a Swann, em sua próxima visita, sobre aqueles amigos que lhe descobríramos. Por outro lado, as duas irmãs de minha avó, solteironas que tinham a nobre natureza desta, mas não seu espírito, declararam que não compreendiam o prazer que podia achar seu cunhado em falar de tais ninharias. Eram pessoas de aspirações elevadas e por isso mesmo incapazes de se interessar pelo que se chama bisbilhotice, ainda que de interesse histórico, e de um modo geral por tudo que não se ligasse diretamente a um fim estético ou moral. Tal era o desinteresse de seu pensamento com referência a tudo que, de perto ou de longe, pudesse estar relacionado com a vida mundana, que seu sentido auditivo — acabando por compreender sua momentânea inutilidade logo que ao jantar a conversa assumia um tom frívolo ou apenas terra-a-terra, sem que elas a pudessem reconduzir a seus temas prediletos — deixava então em repouso os respectivos órgãos receptores, fazendo-os sofrer um verdadeiro princípio de atrofia. Se então meu avô necessitava chamar a atenção das duas irmãs, tinha de recorrer a essas advertências físicas de que se servem os alienistas para com certos maníacos da distração: golpes repetidos em um copo, com a lâmina da faca, coincidindo com uma brusca interpelação da voz e do olhar, meios violentos que esses psiquiatras empregam muitas vezes no trato corrente com as pessoas sãs, ou por hábito profissional, ou porque julgam todo mundo meio louco. 

Mais interessadas se mostraram elas em um dia anterior ao da visita de Swann e em que este lhes remetera pessoalmente uma caixa de vinho de Asti, quando nos disse minha tia, apresentando um número do Figaro onde se liam as seguintes palavras ao lado do nome de uma tela que figurava em uma exposição de Corot: “da coleção do sr. Charles Swann”:

— Já viram como Swann tem “as honras” do Figaro? 

— Mas eu sempre disse que ele tinha muito bom gosto — observou minha avó

— Naturalmente, quem mais havia de dizer isso senão tu, se a questão é pensar diferente de nós? — retrucou minha tia, pois sabia que minha avó nunca era do mesmo parecer, e, como não tinha muita certeza de que era a ela própria, e não à outra, que nós dávamos sempre razão, queria arrancar-nos uma condenação em bloco das opiniões de minha avó, contra as quais procurava solidarizar-nos à força com as suas. Mas nós permanecemos silenciosos. E, tendo as irmãs de minha avó manifestado a intenção de falar a Swann desse informe do Figaro, minha tia procurou dissuadi-las. Cada vez que descobria nos outros uma vantagem, por mínima que fosse, mas que ela própria não possuía, persuadia-se de que não se tratava de uma vantagem, e sim de um mal, e, para não ter de invejá-los, lamentava-os. “Creio que não lhe dariam nenhum prazer com isso; quanto a mim, bem sei que me seria muito desagradável ver meu nome assim em evidência em um jornal, e não ficaria nada lisonjeada se me viessem falar de tal coisa.” Todavia não se empenhou muito em persuadir as duas irmãs, pois elas levavam tão longe a arte de dissimular sob perífrases engenhosas uma alusão pessoal, que esta muitas vezes passava despercebida à própria pessoa a quem se dirigia. Quanto a minha mãe, só pensava em conseguir de meu pai que consentisse em falar a Swann, não de sua mulher, mas de sua filha, a quem ele adorava, e por causa de quem se dizia que fizera afinal aquele casamento. “Bastava que lhe dissesses umas palavras, perguntando como vai a menina. Essa situação deve ser tão cruel para ele.” Mas meu pai agastava-se: “Não! Tens cada ideia! Seria ridículo”.

Mas fui eu a única pessoa de casa para quem a vinda de Swann se tornou objeto de dolorosa preocupação. Era que nas noites em que havia estranhos, ou apenas o sr. Swann, mamãe não subia ao meu quarto.[9] Eu jantava antes de todos e ia em seguida sentar-me à mesa, até as oito, hora em que estava convencionado de que deveria deitar-me; aquele beijo, precioso e frágil, que mamãe de costume me confiava em meu leito antes de eu adormecer, era-me preciso transportá-lo da sala de jantar para o quarto e guardá-lo durante todo o tempo em que me despia, sem que se quebrasse sua doçura, sem que sua virtude volátil se expandisse e evaporasse e, justamente naquelas noites em que necessitaria recebê-lo com maior precaução, via-me obrigado a apanhá-lo, a roubá-lo bruscamente, publicamente, sem ter ao menos o necessário tempo e liberdade de espírito para dedicar ao que fazia essa atenção dos maníacos que se esforçam por não pensar em outra coisa enquanto fecham uma porta, a fim de poderem, quando lhes sobrevém a mórbida incerteza, opor-lhe vitoriosamente a recordação do momento em que a fecharam. 

Estávamos todos no jardim quando ressoaram os dois toques hesitantes da campainha. Sabia-se que era Swann; no entanto, todos se entreolharam com ar interrogativo, e mandou-se minha avó em missão de reconhecimento. “Tratem de agradecer-lhe inteligivelmente pelo vinho; bem sabem que é uma delícia e a caixa é enorme”, recomendou meu avô às duas cunhadas. “Não comecem a cochichar”, disse minha tia-avó. “Há de ser muito agradável chegar em uma casa onde todo mundo fala baixinho!” “Ah!, aí está o senhor Swann. Vamos perguntar-lhe se ele acha que fará bom tempo amanhã”, disse meu pai. Minha mãe imaginava que uma só palavra sua apagaria toda pena que nossa família tivesse causado a Swann desde que se casara. Achou maneira de o tomar à parte um momento. Mas eu a acompanhei; não me podia resolver a afastar-me um só passo dela, pensando que dali a pouco teria de deixá-la na sala de jantar e subir para o meu quarto sem ter, como nas outras noites, o consolo de que ela fosse me beijar. 

— Vamos ver, senhor Swann — disse-lhe ela —, fale-me um pouco a respeito de sua filha; estou certa de que ela já tem gosto pelas belas coisas, como o pai.[10]

— Mas venham sentar-se conosco na varanda — disse meu avô, aproximando-se.

Minha mãe se viu forçada a interromper-se, mas até dessa coação soube ela retirar mais um delicado pensamento, como os verdadeiros poetas a quem a tirania da rima obriga a fazerem seus melhores achados. “Falaremos na sua filha quando estivermos sozinhos”, disse ela a meia-voz a Swann. “Só mesmo uma mãe poderia compreender o senhor. Creio que a mãe dela há de ser da mesma opinião.” Sentamo-nos todos em torno à mesa de ferro. Eu desejava não pensar nas horas de angústia que naquela noite passaria sozinho em meu quarto, sem poder dormir; procurava convencer-me de que elas não tinham nenhuma importância, pois no dia seguinte as teria esquecido, e tratava de apegar-me a coisas futuras que me conduziriam, como por uma ponte, além do abismo próximo que me amedrontava. Mas meu espírito, tenso com aquela preocupação, convexo como o olhar que eu dardejava sobre minha mãe, não se deixava penetrar por nenhuma impressão estranha. Na verdade os pensamentos entravam nele, mas sob a condição de deixarem fora todo elemento de beleza ou simplesmente de diversão que me pudesse emocionar ou distrair. Da mesma forma que um doente, graças a um anestésico, assiste em plena lucidez à operação que lhe fazem, mas sem nada sentir, eu podia recitar para mim mesmo os versos de que mais gostava ou observar os esforços que fazia meu avô para falar a Swann do duque de Audiffret-Pasquier, sem que estes me despertassem nenhuma alacridade nem aqueles nenhuma emoção.[11] Tais esforços foram infrutíferos. Apenas meu avô fizera a Swann uma pergunta relativa àquele orador, quando uma das irmãs de minha avó, a cujos ouvidos aquilo ressoara como um silêncio profundo mas intempestivo e que seria polido romper, interpelou a outra: “Sabes, Céline? Travei conhecimento com uma jovem governanta sueca que me forneceu detalhes dos mais interessantes sobre as cooperativas nos países escandinavos. É preciso convidá-la qualquer dia destes para jantar aqui”.

— Acredito! — respondeu sua irmã Flora —, mas eu também não perdi o meu tempo. Encontrei em casa do senhor Vinteuil um velho sábio que conhece muito Maubant, e a quem Maubant explicou com os maiores detalhes como se arranja para compor um papel. Nada mais interessante. E vizinho do senhor Vinteuil, eu não sabia; e é muito amável.[12] 

— Não é só o senhor Vinteuil que tem vizinhos amáveis — exclamou minha tia Céline, com uma voz que a timidez tornava forte e a premeditação, falsa, lançando a Swann o que ela chamava um olhar significativo. Ao mesmo tempo minha tia Flora, que compreendera que aquela frase era o agradecimento de Céline pelo vinho de Asti, olhava igualmente para Swann com um ar mesclado de congratulação e de ironia, ou simplesmente para sublinhar o dito de espírito da irmã, ou porque invejasse a Swann o havê-lo inspirado, ou ainda porque não pudesse deixar de rir-se à sua custa por julgá-lo na berlinda. 

— Acho que poderemos conseguir que esse senhor venha jantar conosco — continuou Flora. — Quando a gente lhe dá corda a respeito de Maubant ou da senhora Materna, ele fala horas sem parar.[13]

— Deve ser delicioso — suspirou meu avô, pois a natureza infelizmente se esquecera de pôr em seu espírito a possibilidade de interessar-se apaixonadamente pelas cooperativas suecas ou a preparação dos papéis de Maubant, tão completamente como se esquecera de abastecer o das irmãs de minha avó com esse grãozinho de sal que a gente mesmo deve acrescentar, para lhe achar algum sabor, a uma narrativa sobre a vida íntima de Molé ou do conde de Paris.

— Olhe! — disse Swann a meu avô —, o que eu vou lhe dizer tem mais relação do que parece com o que o senhor me perguntava, pois, em certos pontos, as coisas não mudaram muito. Ainda esta manhã, relia eu em Saint-Simon uma coisa que o teria divertido. Está no volume sobre a sua embaixada na Espanha; não é dos melhores, pois não passa de um jornal, mas ao menos de um jornal maravilhosamente bem escrito; o que já basta para diferenciá-lo desses aborrecidos jornais que agora nos julgamos obrigados a ler pela manhã e à noite. 

— Não sou da sua opinião; há dias em que a leitura dos jornais me parece muito agradável… — interrompeu minha tia Flora, para mostrar que lera no Figaro a frase sobre o Corot de Swann.

— Quando falam de coisas ou pessoas que nos interessam! — encareceu minha tia Céline. 

— Não digo que não — respondeu Swann espantado. — O que censuro aos jornais é fazer-nos prestar atenção todos os dias a coisas insignificantes, ao passo que lemos três ou quatro vezes na vida os livros em que há coisas essenciais. De vez que rasgamos febrilmente cada manhã a faixa do jornal, deviam-se então mudar as coisas e pôr no jornal digamos… os Pensamentos de Pascal! (acentuou o título com uma ênfase irônica para não parecer pedante).[14] E no volume de corte dourado que só abrimos uma vez a cada dez anos — acrescentou, testemunhando pelas coisas mundanas esse desdém que afeta certos homens da sociedade — é que leríamos que a rainha da Grécia foi a Cannes, ou que a princesa de Léon deu um baile à fantasia. Com isto, estaria restabelecida a justa proporção. — Mas, lamentando haver-se permitido falar de coisas sérias, embora ligeiramente, disse com ironia: — Bela conversação a nossa! Não sei por que abordamos esses “cumes”. — E, voltando-se para meu avô: — Conta, pois, Saint-Simon que Maulévrier tivera a audácia de estender a mão a seus filhos.[15] O senhor sabe, é esse Maulévrier de quem ele diz: “Nunca vi nessa botelha ordinária mais do que azedume, grosseria e tolices”. 

— Ordinárias, ou não, sei de botelhas onde há coisas muito diferentes — disse vivamente Flora, que fazia questão de também agradecer a Swann, pois o presente de vinho de Asti era para ambas.

Céline se pôs a rir. Swann, desconcertado, prosseguiu:

— “Não sei se por ignorância ou esperteza”, escreve Saint-Simon, “mas o fato é que ele pretendeu estender a mão a meus filhos! Percebi isso a tempo de impedi-los.” — Meu avô já estava se extasiando com o “por ignorância ou esperteza”, quando Céline, em cuja pessoa o nome de Saint-Simon — um literato — impedira a anestesia completa das faculdades auditivas, indignou-se:

— Mas como? O senhor admira isso? Muito bonito! Mas que é que isso quererá dizer? Será que um homem não vale tanto como qualquer outro? Que importa que seja duque ou cocheiro, se tem inteligência e coração? Boa maneira tinha o seu Saint-Simon de educar os filhos, se não lhes dizia que dessem a mão a todas as pessoas honradas. Mas é abominável, simplesmente abominável. E o senhor se anima a citar uma coisa dessas? — E meu avô, consternado, sentindo a impossibilidade, ante aquela obstrução, de conseguir que Swann contasse as histórias que poderiam diverti-lo, murmurava para mamãe: 

— Como é mesmo aquele verso que me disseste e que tanto me alivia em momentos como este? Ah!, sim: “Senhor! Quantas virtudes tu nos fazes odiar!”. Ah!, como é verdade isso![16]


continua na página 33...
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Leia também:

Volume 1
No Caminho de Swann (Um dia - c)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7

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[1]  Referência à cidade inglesa em que se refugiaria a família d’Orléans, confirmando a amizade já mencionada de Swann com o “conde de Paris”, Luís Felipe de Orléans. [n. e.]
[2] Seguindo esse preceito, as personagens do livro serão iluminadas por visões diferentes e, por vezes, contraditórias, integrando-se na vasta teia de esforços de relativização dos perfis. [n. e.]
[3] Sociedade das religiosas do Sacré-Cœur, fundada em 1800 com regras calcadas nas da Companhia de Jesus e destinada à educação das filhas de famílias burguesas. [n. e.]
[4] Antecipa-se em muitas páginas a mudança da família para o imóvel perto da casa da marquesa, visando a uma melhora na saúde da avó, mudança que se dará no terceiro volume da obra. [n. e.]
[5] Como que ao acaso são introduzidas duas das principais personagens do livro: o alfaiate Jupien e o “vulgar sobrinho” da sra. de Villeparisis, o sr. de Guermantes. [n. e.]
[6] Muito mais tarde confirmaremos que a sra. de Villeparisis, apesar de ser membro da nobre família dos Guermantes, faz parte de uma elite decadente, que não recebe senão jovens “intelectuais” e “talentosos”. Será justamente em seu salão que o herói debutará na vida mundana. O general Mac-Mahon é levado à Presidência da República por uma coalizão monárquica, depois do fracasso da Restauração, em 1873. Em 1879, ele abandona o governo por causa da pressão republicana. [n. e.]
[7] Acompanharemos a história minuciosa desse enlace no segundo capítulo deste volume, “Um amor de Swann”. [n. e.]
[8] Três ministros que tomaram parte na Monarquia de Julho. [n. e.]
[9] A essas primeiras lembranças de Swann se juntará a narrativa de sua existência antes mesmo do nascimento do herói e leremos, por fim, as linhas secas da crônica mundana anunciando a morte desse “ilustre parisiense”. [n. e.]
[10] Gilberte, filha de Swann, será a grande paixão juvenil do herói. [n. e.]
[11]  Sobrinho do já citado duque de Pasquier, deputado orleanista que acaba fracassando mais tarde no empenho de restaurar a monarquia na França. [n. e.]
[12]  Henri Maubant (1821-1902), ator do teatro do Odéon, depois da Comédie Française, era especialista nos papéis de pai bondoso e de rei nas grandes tragédias. Assim como desconhece o “valor social” do jovem Swann, a família do herói não pode adivinhar no sr. Vinteuil, velho professor de piano, aquele que será talvez o maior e mais importante artista do livro. [n. e.]
[13] Amalia Materna (1847-1918), cantora austríaca. [n. e.]
[14] A “ênfase irônica” da voz de Swann sinaliza sua posição de diletante artístico e crítico, daquele que jamais conseguirá levar realmente a sério suas impressões, sensações e ideias. [n. e.]
[15] Maulévrier era embaixador francês em Madri na mesma época em que Saint-Simon é enviado para favorecer o casamento de Luís xv com a infanta da Espanha. [n. e.]
[16]  O avô cita verso da peça La mort de Pompée, de Corneille. Novamente a citação literária vem aplicada a uma cena do cotidiano. [n. e.]
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