quarta-feira, 19 de abril de 2023

Marcel Proust - A Prisioneira (Eu não imaginava)

em busca do tempo perdido

volume V
A Prisioneira


continuando...


Eu não imaginava que a apatia em descarregar desse modo sobre Andrée ou o motorista os cuidados de acalmar a minha agitação, deixando-lhes a tarefa de vigiar Albertine, paralisasse em mim, tornando inertes, todos esses movimentos imaginativos da inteligência, todas as inspirações da vontade que auxiliam a adivinhar e a impedir o que uma pessoa vai fazer. Era tanto mais perigoso, visto que, por natureza, o mundo das possibilidades sempre me estivera mais aberto que o da contingência real. Isto ajuda a conhecer a alma, porém a gente se deixa enganar pelos indivíduos. Meu ciúme nascia através de imagens, devido a um sofrimento e não de acordo com uma probabilidade. Ora, pode haver na vida dos homens e dos povos (e um dia deveria haver na minha) um momento em que seja necessário ter dentro de si um chefe de polícia, um diplomata de larga visão, um delegado de segurança, que, ao invés de pensar nos possíveis que estende aos quatro pontos cardeais, raciocina corretamente, dizendo consigo: "Se a Alemanha declara isto, é que nos deseja fazer outra coisa, não uma outra coisa vaga, mas precisamente esta ou aquela que talvez já esteja começada. Se determinada pessoa fugiu, não foi para os locais a, b ou d, mas para o ponto c, e o local onde é necessário realizar nossas buscas é etc." Ai de mim, essa faculdade, não muito desenvolvida em mim, eu a deixava entorpecer-se, perder suas forças, desaparecer, ao me habituar a ficar sossegado no momento em que outros se ocupavam da vigilância por mim. Quanto à razão desse desejo, ter-me-ia sido desagradável externá-la a Albertine. Dizia-lhe que o médico me ordenara que permanecesse deitado. Não era verdade. E, mesmo que o fosse, suas prescrições não me impediriam de acompanhar a minha amiga. Pedia a esta que me dispensasse de acompanhá-la e à Andrée.

Direi apenas uma das razões, e que era uma razão de cautela. Quando saía com Albertine, por um momento em que ela ficasse sem mim, eu me mostrava inquieto, imaginava que ela talvez falasse a alguém ou apenas olhasse alguém. Se ela não estava de muito bom humor, eu logo pensava que a estava fazendo perder ou adiar um projeto. A realidade não passa jamais de uma isca lançada a um desconhecido em cujo caminho não podemos ir muito longe. É preferível não saber, pensar o menos possível, não fornecer ao ciúme o menor detalhe concreto. Infelizmente, à falta da vida exterior, os incidentes igualmente são causados pela vida interior; à falta dos passeios de Albertine, as eventualidades encontradas nas reflexões que eu fazia sozinho forneciam-se às vezes esses pequenos retalhos de realidade que atraem a si próprios, como um ímã, um pouco do desconhecido, que desde então faz-se doloroso. Por mais que se viva sob o equivalente de uma campânula pneumática, as associações de ideias e as lembranças continuam a agir.

Mas semelhantes choques internos não ocorriam de imediato; logo que Albertine saía para seu passeio, eu me sentia revivescer, nem que fosse apenas por alguns segundos, pelas virtudes exaltantes da solidão. Tomava a minha parte nos prazeres do dia que principiava; o desejo arbitrário a veleidade caprichosa e puramente minha-de gozá-los não teria bastado para pô-los à minha disposição, se o tempo especial que fazia não me tivesse não só evocado imagens passadas, como afirmado a realidade atual, imediatamente acessível a todos os homens a que uma circunstância contingente (e, por conseguinte, desprezível) não forçasse a ficar em casa.

Em alguns dias bonitos fazia tanto frio, estávamos em tão ampla comunicação com a rua que parecia que haviam derrubado as paredes da casa, e cada vez que passava o bonde o seu timbre ressoava como o teria feito uma faca de prata batendo numa casa de vidro. Mas era sobretudo em mim que eu ouvia inebriado um som novo emitido pelo violino interior. Suas cordas são retesadas ou soltas por simples diferenças de temperatura e da luz exteriores. Em nosso ser, instrumento que a uniformidade do hábito fez silencioso, o canto nasce desses desvios, dessas variações, origem de toda música: o tempo que faz em certos dias transporta-nos logo de uma nota a outra. Reencontramos a ária esquecida cuja necessidade matemática poderíamos ter adivinhado e que nos primeiros instantes cantamos sem conhecer. Somente essas modificações internas, conquanto vindas de fora, renovariam para mim o mundo exterior. Portas de comunicação, desde há muito condenadas, reabririam-se em meu cérebro. A vida de certas cidades, a alegria de certos passeios retomavam o seu lugar em mim. Fremindo todo inteiro ao redor da corda vibrante, eu teria sacrificado minha mortiça vida de outrora e o meu porvir, apagados pela borracha do hábito, por esse estado tão particular.

Se eu não tinha ido acompanhar Albertine em seu longo passeio, meu espírito vagabundeava mais ainda e, por haver recusado desfrutar com os sentidos aquela manhã, gozava em imaginação todas as manhãs parecidas, passadas ou possíveis, mais precisamente um gênero de manhãs de que as do mesmo tipo não eram mais que a intermitente aparição, e que eu logo reconhecia; pois o ar vivo se incumbia de virar as páginas necessárias, e eu achava bem indicado diante de mim, para poder segui-lo do meu leito, o evangelho do dia. Essa manhã ideal enchia meu espírito de realidade permanente, idêntica a todas as manhãs parecidas, e me comunicava uma alegria que meu estado de debilidade não fazia diminuir; o bem estar resulta, para nós, muito menos de nossa boa saúde que do excedente não empregado de nossas forças; podemos alcançá-lo tanto aumentando estas, como restringindo a nossa atividade. A que transbordava em mim e que eu mantinha em potencial em meu leito, fazia-me estremecer, saltar interiormente, como uma máquina que, impedida de mudar de lugar, gira sobre si mesma.

Françoise vinha acender o fogo e, para fazê-lo, lançava nele alguns raminhos, cujo aroma, esquecido durante todo o verão, descrevia em torno da lareira um círculo mágico, dentro do qual, vendo-me a mim mesmo no ato de ler, ora em Combray, ora em Doncieres, sentia-me tão contente, permanecendo em meu quarto em Paris, como se estivesse a ponto de sair em passeio para os lados de Méséglise ou de reencontrar Saint-Loup e seus amigos em serviço no campo. Acontece muitas vezes que o prazer que todos os homens sentem em rever as lembranças que sua memória colecionou é mais vivo, por exemplo, naqueles a quem a tirania do mal físico e a esperança diária de cura privam, por um lado, de ir buscar na natureza os quadros que se assemelham a tais lembranças e, por outro lado, deixam bem confiantes de o poderem fazer em breve, para ficarem diante deles em estado de desejo, de apetite, e não considerá-los apenas como lembranças, como quadros. Porém, mesmo que nunca mais devessem ser senão isso para mim, e pudesse eu, ao recordá-los, revê-los somente, de súbito já se refaziam em mim, totalmente de mim, pela virtude de uma sensação idêntica, a criança e o adolescente que os tinha visto. Não houvera apenas mudança de tempo lá fora, ou modificação de aromas no quarto, mas, em mim, diferença de idade, substituição de pessoa. No ar gelado, o aroma dos raminhos de árvore era como um pedaço do passado, uma banquisa invisível destacada de um inverno antigo e avançando pelo quarto adentro, aliás muitas vezes estriada por tal perfume, tal clarão, como por anos diferentes onde eu me achava remergulhado, e até mesmo invadido, antes que os houvesse identificado pela alegria de esperanças abandonadas há muito. O sol chegava até minha cama e atravessava o tabique transparente de meu corpo adelgaçado, aquecia-me, tornava-me ardente como o cristal. Então, convalescente famoso que já se repasta de todas as iguarias que ainda lhe recusam, eu me perguntava se casar com Albertine não estragaria a minha vida, ou fazendo-me assumir o encargo, pesado demais para mim, de me consagrar a outra criatura, ou forçando-me a viver ausente de mim mesmo por causa de sua presença contínua, e privando-me para sempre das alegrias da solidão. E não somente dessas. Mesmo não pedindo ao dia senão desejos, existem alguns - os que são provocados não mais pelas coisas e sim pelas criaturas-cuja natureza é serem individuais. Assim, se, saltando da cama, ia abrir por um instante as cortinas da janela, não era apenas como um músico abre por um momento o seu piano, e para verificar se, sobre o balcão e na rua, a luz do sol estava exatamente no mesmo diapasão que na minha lembrança; era também para avistar alguma lavadeira carregando o seu cesto de roupa, uma padeira de avental azul, uma leiteira com um babador e mangas de algodão branco, segurando o gancho em que estão suspensas as garrafas de leite, alguma altiva jovem loura seguindo a sua governanta, uma imagem enfim cuja diferença de linhas, talvez quantitativamente insignificantes, bastava para fazer tão diferente de qualquer outra como, para uma frase musical, a diferença de duas notas, e sem cuja visão eu teria empobrecido o dia dos objetos que ele podia propor a meus desejos de felicidade. Mas, se o excesso de alegria, trazido pela visão das mulheres impossíveis de imaginara priori, fazia-me mais desejáveis, mais dignas de serem exploradas, a rua, a cidade, o mundo, dava-me, por isso mesmo a sede de ficar curado, de sair e, sem Albertine, de ser livre. Quantas vezes, no momento em que a mulher desconhecida com quem eu ia sonhar passava diante de casa, ora a pé, ora a toda velocidade de seu automóvel, sofri porque meu corpo não pôde seguir o meu olhar que a agarrava e, caindo sobre ela como que atirado do vão da minha janela por um arcabuz, deter a fuga do rosto no qual me esperava a oferta de uma ventura que eu, assim enclausurado, jamais poderia desfrutar! 

Em compensação, nada mais me restava para descobrir de Albertine. A cada dia ela me parecia menos bonita. Somente o desejo que excitava nos outros, quando, ao percebê-lo, eu começava a sofrer e queria disputá-la aos demais, a elevava em meus sonhos a um alto patamar. Ela era capaz de me causar sofrimento, mas de modo algum alegria. Só pelo sofrimento é que subsistia a minha tediosa ligação. Quando ela desaparecia, e com ela a necessidade de acalmar essa ligação, exigindo toda a minha atenção como uma distração atroz, eu sentia o nada que ela era para mim, que eu devia ser para ela. Sentia-me infeliz com a duração desse estado e por momentos desejava conhecer algo terrível que ela tivesse feito e que fosse capaz de nos deixar brigados até que eu me curasse, o que permitiria que nos reconciliássemos, que reatássemos de modo diverso e mais flexível a corrente que nos una. Enquanto esperava, encarregava mil circunstâncias, mil prazeres, de lhe proporcionarem junto a mim a ilusão dessa felicidade que eu já não me sentia capaz de lhe oferecer. Logo que estivesse curado, gostaria de partir para Veneza; mas como fazê-lo se me casasse com Albertine, eu tão ciumento dela que, mesmo em Paris, quando me resolvia a mexer-me era para sair com ela? Mesmo quando ficava em casa a tarde inteira, meu pensamento a seguia em seu passeio, descrevia um horizonte longínquo, azulado, engendrava em torno ao centro que eu era uma zona móvel de incerteza e vaguidão. 

- "O quanto Albertine", dizia comigo, "me pouparia as angústias da separação se, no decurso de um desses passeios, vendo que não mais lhe falava de casamento, decidisse não regressar e partisse com a tia, sem que eu precisasse de lhe dizer adeus!"-

Meu coração, desde que sua chaga cicatrizava, já principiava a não aderir ao da minha amiga; por meio da imaginação, eu podia substituí-la, afastá-la de mim sem sofrer. Por certo, na falta de mim mesmo, algum outro seria seu esposo e, livre, ela talvez tivesse dessas aventuras que me causavam horror. Mas fazia um tempo tão lindo, eu estava tão seguro de que ela regressaria à noitinha, que, mesmo se essa idéia de possíveis culpas me vinha ao espírito, eu podia, por um ato livre, aprisioná-la numa parte de meu cérebro onde ela não tinha mais importância do que teriam para a minha vida real os vícios de uma pessoa imaginária; fazendo ranger os suaves gonzos de meu pensamento, eu tinha, com uma energia que sentia, na cabeça, ser a um tempo física e mental, como um movimento muscular e uma iniciativa espiritual, ultrapassado o estado de preocupação costumeira a que estivera confinado até então, e começava a mover-me ao ar livre, de onde tudo sacrificar para evitar o casamento de Albertine com um outro e criar obstáculo ao seu gosto pelas mulheres parecia tão desarrazoado a meus próprios olhos como aos de alguém que não a conhecesse. Aliás, o ciúme é uma dessas doenças intermitentes, cuja causa é caprichosa, imperativa, sempre idêntica no mesmo doente, às vezes completamente diversa em outro. Há os asmáticos que só acalmam suas crises abrindo as janelas, respirando o vento forte, o ar puro das alturas; outros, refugiando-se no centro da cidade, num quarto cheio de fumaça. Existem poucos ciumentos cujo ciúme não admite certas abolições. Este consente em ser traído, contanto que lhe confessem a traição; este outro contanto que lhe ocultem, no que um não é menos absurdo que o outro, visto que, se o segundo é mais verdadeiramente enganado, já que lhe dissimulam a verdade, o primeiro reclama, nessa verdade, o alimento, a extensão e o renovar de seus sofrimentos.

Ainda mais, essas duas manias inversas do ciúme vão muitas vezes além das palavras, implorem ou recusem as confidências. Veem-se ciumentos que só o são dos homens com que sua amante se relaciona longe deles, mas consentem que ela se dê a outro homem, com sua autorização, perto deles e, se não à sua vista, ao menos sob o mesmo teto. Esse caso é bastante comum entre os homens idosos apaixonados por uma moça. Sentem a dificuldade de agradá-la, às vezes a impotência de satisfazê-la e, em vez de serem traídos, preferem deixar que venha à casa deles, num quarto próximo, alguém que julgam incapaz de dar a ela maus conselhos porém não de lhe proporcionar prazer. Para outros, é exatamente o contrário: não deixando a amante sair um minuto sozinha numa cidade que eles conhecem, mantendo-a em verdadeira escravidão, permitem-lhe partir por um mês a um país que não conhecem, onde não podem imaginar o que ela há de fazer. Em relação a Albertine, eu cultivava essas duas espécies de mania apaziguadora. Não teria ficado com ciúmes se ela desfrutasse prazeres perto de mim, encorajados por mim, todos mantidos inteiramente sob minha supervisão, poupando-me desse modo o temor da mentira; também não me enciumaria se ela viajasse para um país bem desconhecido de mim, e afastado, para que eu não pudesse imaginar, nem ter possibilidade e tentação de conhecer seu gênero de vida. Em ambos os casos, a dúvida teria sido suprimida por uma ignorância ou por um conhecimento igualmente completos.


continua na página 12...
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Leia também:

Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
A Prisioneira (Prefácio)
A Prisioneira (Eu não imaginava)
A Prisioneira (O declínio do dia remergulhava-me)


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