segunda-feira, 17 de abril de 2023

Marcel Proust - À Sombra das Moças em Flor (Ao Redor da Sra. Swann - c)

em busca do tempo perdido

volume II
À Sombra das Moças em Flor


Ao Redor da Sra. Swann


(c)

continuando...

Por fim, rompeu meu primeiro sentimento de admiração: foi pelos aplausos frenéticos dos espectadores. Misturei os meus aos deles tentando prolongá-los muito para que, por reconhecimento, a Berma ela superasse a si mesma, a certeza de tê-la ouvido num de seus melhores dias. O que, de resto, é curioso que no momento em que se desencadeou esse entusiasmo do público soube depois, aquele em que a Berma teve um de seus melhores dias. Parece que certas realidades transcendentes emitem, a seu redor, radiações as quais a massa é sensível. É assim, por exemplo, quando ocorre um incidente, quando na fronteira um exército está em perigo, batido ou vitorioso, as notícias bastante obscuras que recebemos e de onde o homem culto não sabe extrair grande coisa, excitam na turbulência, uma emoção que o surpreende e na qual, uma vez que os especialistas o tenham posto ao corrente da verdadeira situação militar, reconhece a percepção, pelo povo, daquela "aura" que envolve os grandes acontecimentos e que pode ser visível a centenas de quilômetros. Tem-se notícia da vitória, ou muito mais quando a guerra acaba, ou imediatamente, pela alegria do porteiro. Descobre-se um traço genial do desempenho da Berma oito dias depois de a ter ouvido, pela crítica, ou de imediato, devido às aclamações da plateia. Porém, estando essa consciência imediata da multidão mesclada a outras cem completamente erradas, os aplausos muitas vezes soavam falso, sem contar que eram levados mecanicamente pela força dos aplausos anteriores, como numa tempestade, uma vez que o mar esteja tão revolto que continua a engrossar, mesmo que o vento não aumente. Não importa; à medida que eu aplaudia, parecia-me que a Berma representava melhor

- Pelo menos - dizia a meu lado uma mulher bem vulgar-, ela se consome, se bate de dar pena, corre; isto sim é que é representar!

E feliz por encontrar estas razões da superioridade da Berma, embora duvidando que elas fossem bastante para explicá-la, como não bastava para explicar a da Gioconda ou do Perseu de Benvenuto a exclamação de um camponês:

- É tudo muito bem-feito! Tudo em ouro, e bonito! Que trabalho! -compartilhei, ébrio, o vinho grosseiro daquele entusiasmo popular. Ao baixar o pano, fiquei meio desapontado porque o prazer que tanto desejara não fora maior, mas ao mesmo tempo sentia necessidade de prolongá-lo, de não deixar mais, ao sair da sala, essa vida do teatro que por algumas horas fora a minha, e da qual teria me arrancado como se partisse para o exílio, ao voltar diretamente para casa, se ali não alimentasse esperanças de aprender muito sobre a Berma com seu admirador, a quem devia a permissão de ter ido ver a Fedra, o Sr. de Norpois. Fui-lhe apresentado, antes do jantar, por meu pai, que me chamou para tanto ao seu gabinete. Quando entrei, o embaixador se ergueu, estendeu-me a mão, inclinou sua grande estatura, fixando em mim, atentamente, seus olhos azuis. Como os estrangeiros de passagem, que lhe eram apresentados, no tempo em que representava a França, eram mais ou menos de bom grado - até mesmo os cantores da moda, pessoas de importância e de quem sabia então que poderia dizer mais tarde, quando falassem nos seus nomes em Paris ou S. Petersburgo, lembrava-se perfeitamente da noite que passara com eles em Munique ou em Sofia; assumira o hábito de fazê-los notar pela afabilidade a satisfação que sentia ao encontrá-los; mas, além disso, persuadido de que na vida das grandes capitais, se ganha ao contacto por um tempo das individualidades interessantes que as percorrem e dos costume do povo que ali habita; adquire-se um conhecimento aprofundado, que não dão os livros de história, da geografia, dos costumes das diferentes nações, do movimento intelectual da Europa, ele exercia sobre cada recém-chegado, das faculdades de observador a fim de saber de imediato com que tipo estava tratando. Há muito tempo, o governo já não lhe confiava qualquer estrangeiro, mas logo que lhe apresentavam alguém, e que seus olhos tivessem recebido notificação de sua disponibilidade, principiavam ao aproveito, enquanto em todas suas atitudes ele procurava mostrar ao estranho não lhe era desconhecido. Assim, falando-me sempre com com o ar de importância de um homem que conhece, sua vasta esperteza cessava de me examinar com uma curiosidade sagaz e para seu próprio prazer como se eu fosse algum hábito exótico, algum monumento instrutivo, ou estrela em tournée. Desse modo dava provas, para comigo, ao mesmo tempo majestosa amabilidade do sábio Mentor e da curiosidade estudiosa de Anacársis.

Não me ofereceu absolutamente nada para a Revista dos Dois; mas fez-me um certo número de perguntas sobre minha vida e meras especulações sobre meus gostos, dos quais ouvi falar pela primeira vez como poderia segui-los; ao passo que acreditara até então que seria um dever contando que meus gostos se inclinavam para a literatura, ele não se desviou dele ao contrário com deferência, como de uma pessoa venerável e encantada do círculo seleto, em Roma ou em Dresde, se conserva a melhor lembrança e lastima encontrar tão poucas vezes depois. Devido às circunstâncias dava aparência de invejar-me, sorrindo com um ar quase licencioso, os bons momentos de felicidade que ele, e mais livre, a literatura me faria passar. Mas os próprios textos que o Sr. De Norpois me mostrava da literatura parecia-me como bem diversa da imagem que eu formara em Combray; e, compreendi que tinha tido duplamente razão em renunciar à ela. Até aqui eu percebera apenas que não possuía o dom da escrita; agora o Sr. De Norpois me matava até o desejo de praticá-la. Quis lhe explicar o que havia sido minhas ilusões; trêmulo de emoção, tinha o maior escrúpulo em que todas as minhas palavras fossem o mais sincero equivalente possível; do que havia sentido e tentara formular; o que significava minhas palavras que careciam de claridade. Talvez por hábito profissional, talvez em virtude da tranquilidade de homem importante; a quem se pede conselho e que, sabendo que terá direção da conversa, deixa o interlocutor se agitar, se esforçar, sofrendo; talvez também, para fazer valer os aspectos de sua cabeça (grega segundo ele, apesar das grandezas suíças), o Sr. de Norpois, enquanto eu lhe expunha, observava uma imobilidade fisionômica tão absoluta como se a gente estivesse diante de um busto antigo e surdo em uma biblioteca. De resto, como o martelo do leiloeiro, ou como um oráculo de Delfos, a voz do que nos respondia impressionava, tanto mais que nada em seu rosto suspeitara qualquer espécie de impressão que havíamos deixado nele, nem sua opinião.

- Exatamente - disse de súbito, como se a causa estivesse julgada e após haver deixado de gaguejar diante dos olhos imóveis que não me largavam nem um só instante-, conheço o filho de um de meus amigos que, mutatis mutandis, é como você - (e, para falar de nossas inclinações comuns, assumiu o mesmo tom tranquilizador como se se tratasse não de tendências para a literatura e sim para o reumatismo, e quisesse mostrar que a gente não morria disso). - Ele também preferiu largar o Quai d'Orsay, onde no entanto, o caminho já lhe fora aberto pelo pai e, sem se preocupar com o que diriam, pôs-se a escrever. E certamente não teve ocasião de se arrepender. Publicou há dois anos; além disso, naturalmente, ele é muito mais velho que você; uma obra relativa ao sentimento do Infinito na margem ocidental do lago Vitória-Nianza e, este ano, um opúsculo menos importante, mas traçado com pena hábil, às vezes até acertada, sobre o fuzil de repetição no exército búlgaro, que o puseram numa situação verdadeiramente única. Já percorreu um belo caminho, não é homem de parar no meio, e sei que, sem que tenha sido considerada a ideia de uma candidatura, aventaram seu nome duas ou três vezes na conversação, e de um modo que nada era desfavorável, à Academia de Ciências Morais. Em suma, sem poder dizer ainda que ele esteja no auge, o fato é que conquistou com muita luta uma posição bastante boa e o sucesso, que nem sempre acorre aos agitados e espertalhões, aos bisbilhoteiros que quase sempre são uns farsantes, o sucesso recompensou os seus esforços.

Meu pai, já me vendo acadêmico dentro de alguns anos, respirava uma satisfação que o Sr. de Norpois levou ao máximo quando, após um momento de hesitação, durante o qual parecia calcular as consequências de seu ato, me disse estendendo-me seu cartão de visitas:

- Portanto, vá vê-lo de minha parte, ele poderá lhe dar conselhos úteis. - causando-me com tais palavras uma agitação tão penosa como se tivesse anunciado que no dia seguinte eu seria embarcado como grumete a bordo de um veleiro.

Minha tia Léonie me fizera herdeiro, ao mesmo tempo que de muitos objetos e móveis bastante incômodos, de quase toda a sua fortuna líquida; revelando assim, após a morte, um afeto por mim que eu estava longe de suspeitar enquanto ela vivera. Meu pai, que devia gerir essa fortuna até a minha maioridade, consultou o Sr. de Norpois sobre um certo número de investimentos. Este o aconselhou a empregar o dinheiro em títulos de escasso rendimento, que julgava especificamente sólidos; notadamente os Consolidados ingleses de 4% por 100% russo.

- Com investidores de primeiríssima qualidade - disse o Sr. de Norpois-, se o rendimento é muito elevado, pelo menos você tem segurança de nunca ver em perigo o capital

Quanto ao resto, meu pai lhe contou por alto o que havia comprado. O Sr. Norpois demonstrou um imperceptível sorriso de felicitações; como todos os capitalistas considerava a fortuna uma coisa invejável; porém achava mais delicado só cumprimentar por um sinal de inteligência mal-confesso à pessoa que a possuía; por outro lado, como ele próprio era fabulosamente rico, julgava de bom grado a impressão de considerar enormes os rendimentos menores de outrem; o reconhecimento alegre e confortável quanto à superioridade dos seus. E não hesitou em cumprimentar meu pai pela "composição" de seus papéis, "de um gosto seguro, delicado e fino". Poderia se dizer que atribuía às relações dos valores aplicados na bolsa entre si; e até aos valores da Bolsa em si mesmos, tal um mérito estético. De um deles, bem novo e desconhecido, de que lhe falou meu pai, o Sr. de Norpois, semelhante a essas pessoas que leram livros os quais apenas achava conhecer, lhe disse:

- Sim, e me diverti durante algum tempo ao seguir as cotações; era interessante - com o sorriso retrospectivamente de um assinante que leu o último romance de uma revista, aos pedaços. - Eu não o desaconselharia a subscrever a emissão que vai ser lançada novamente. É atraente, pois os títulos são oferecidos a preços tentadores. Ao contrário, para certos valores antigos, meu pai, não se recordando os nomes, fáceis de confundir com os de ações similares, abriu uma mostrou os próprios títulos ao embaixador. A vista deles me encantou; eram todos de flechas de catedrais e de figuras alegóricas, como certas publicações românticas antigas, que eu outrora folheara. Tudo aquilo que pertence a um tempo se assemelha; os artistas que ilustram os poemas de uma época; mesmos que têm trabalhos encomendados pelas Sociedades Financeiras lembrava tão bem certas brochuras da Notre Dame de Paris e das obras de Gerardo de Nerval, tais como eram penduradas na fachada do armazém de Combray, em seu enquadramento retangular, florido, que divindades fluviais suspendiam uma ação nominativa da Companhia das Águas.

Meu pai sentia pelo meu tipo de inteligência um desprezo suficientemente temperado pela ternura para que, no total, seu sentimento sobre tudo o que fosse de uma indulgência cega. Assim, não hesitou em me mandar buscar um pequeno poema em prosa, que eu fizera antigamente em Combray, durante um passeio. Escrevera-o com uma exaltação que me parecia dever continuar aos que o lessem. Porém, a peça não conseguiu seduzir o Sr. de Norpois porque sem me dizer uma só palavra ele me restituiu. 

Minha mãe, cheia de respeito pelas ocupações de meu pai, veio perguntar timidamente se poderia mandar servir. Tinha medo de interromper uma conversa na qual não teria de tomar parte. E, de fato, a todo o instante meu pai lera ao marquês alguma medida útil que tivessem decidido sustentar na próxima sessão da Comissão, e o fazia no tom particular de dois colegas que se encontram num meio diferente - e nisso se assemelhavam a dois colegiais - cujos profissionais criam lembranças comuns onde não têm acesso os outros os quais se desculpam por se reportar em sua presença.

Mas a perfeita independência dos músculos da face, a que atinou o Sr. De Norpois, permitia-lhe escutar sem dar impressão de ouvir. Meu pai acabava de se empalhar:

- Tinha pensado em pedir a opinião da Comissão... - dizia ao Sr. de Norpois depois de longos preliminares. Então, do rosto do aristocrata virtuose que guardara a inércia de um instrumentista ao qual ainda não chegou o momento de executar a sua parte, saía com fluência monótona, num tom agudo e como que só para encerrar, mas desta vez confiada a um outro timbre, a frase começada: - Que, fica entendido, você não hesitará em reunir, tanto mais que conhece individualmente os membros, que podem ser facilmente substituídos. - Em si mesma não era, evidentemente, um remate muito extraordinário. Mas a imobilidade que a precedera fazia-a destacar-se com a nitidez cristalina, o imprevisto quase malicioso dessas frases pelas quais o piano, silencioso até então, replica, no momento desejado, ao violoncelo que a gente acaba de ouvir, em um concerto de Mozart

- Muito bem, ficaste contente com tua matinê? - perguntou meu pai enquanto íamos para a mesa, para me fazer brilhar e pensando que meu entusiasmo me faria ser bem avaliado pelo Sr. de Norpois. -Ele foi ouvir a Berma hoje cedo; lembra que tínhamos falado nisto juntos - disse, voltando-se para o diplomata com o mesmo tom de alusão retrospectiva, técnica e misteriosa como se se tratasse de uma sessão da Comissão. 

- Deve ter ficado encantado, sobretudo se era a primeira vez que a ouvia. O senhor seu pai se alarmava com as consequências que essa pequena saída podia ter sobre seu estado de saúde, pois você é um tanto delicado, um tanto frágil, creio. Porém, tranquilizei-o. Os teatros já não são hoje o que eram há apenas vinte anos. Temos lugares mais ou menos confortáveis, uma atmosfera renovada, embora ainda tenhamos muito que fazer para atingir a Alemanha ou a Inglaterra, que, a esse respeito, como a muitos outros, estão bastante avançadas quanto a nós. Não vi a Sra. Berma em Fedra, mas ouvi dizer que estava admirável. E você naturalmente ficou deslumbrado?

O Sr. de Norpois, mil vezes mais inteligente que eu, devia ter aquela verdade que eu não soubera extrair do desempenho da Berma, e ia revelá-la para mim; respondendo à sua pergunta, ia rogar-lhe que me dissesse em que consistia essa verdade; e ele justificaria assim o desejo que eu tivera de ver a atriz. Só desfrutava de um momento, era preciso aproveitá-lo e fazer encaminhar meu interrogatório sobre os pontos essenciais. Mas quais eram? Fixando toda minha atenção sobre as impressões tão confusas que tivera, e de modo algum pensando em me fazer admirar pelo Sr. de Norpois, e sim em obter dele a verdade ansiada, não buscava substituir as palavras que me faltavam por expressões feitas; balbuciei e finalmente, para tentar provocá-lo a declarar o que a Berma possuía de admirável, confessei que ficara decepcionado.

- Mas como - exclamou meu pai, preocupado com a impressão lastimável, alegando minha incompreensão, poderia produzir sobre o Sr. de Norpois-, como dizer que não sentiste prazer? Tua avó nos contou que não perdias uma só palavra do que a Berma dizia, que teus olhos estavam fora das órbitas, não havia ninguém na sala como tu.

- Mas sim, eu escutava com todas as forças para saber o que fazia de tão notável. É claro que ela está muito bem...

- Se ela está muito bem, que mais te falta?

- Uma das coisas que certamente contribuem para o sucesso Berma, disse o Sr. de Norpois, voltando-se com deferência para minha mãe, a fim não deixá-la fora da conversa e de cumprir conscienciosamente com sua cortesia para com uma dona-de-casa, é o gosto perfeito que ela aplica na interpretação de seus papéis e que lhe vale sempre êxito legítimo e de boa qualidade. Não faz o papel de mediocridades. Veja, ela se atirou ao papel de Fedra. Aliás, esse bom gosto ela o aplica em suas toaletes, no seu desempenho. Ainda que tenha feito proveitosas turnês na Inglaterra e na América, a vulgaridade, não diria, John Bull, o que seria injusto pelo menos para a Inglaterra da era vitoriana, Tio Sam não se abateu sobre ela. Jamais cores muito berrantes, jamais grito exagerados. E depois, aquela voz admirável que a serve tão bem e que ela emprega de maneira fascinante, seria quase tentado a dizer musical!

Meu interesse pelo desempenho da Berma, não cessara de aumentar desde o fim da representação, porque não mais sofria a compressão dos limites da realidade; porém, eu experimentava a necessidade de lhe achar explicação disso; o interesse agira com igual intensidade, enquanto a Berma atuo tudo aquilo que ela oferecia, na indivisibilidade da vida, a meus olhos, ouvidos; não distinguira, nem havia separado nada; assim meu interesse ao descobrir um motivo racional naqueles elogios à simplicidade, ao bom artista, os atraía para si pelo seu poder de absorção, apoderava-se como o otimismo de um bêbado se apodera das ações do próximo, nas quais encontra motivo de enternecimento. "É verdade", dizia comigo, "que voz bonita, que gritos, que vestidos simples, que inteligência em ter escolhido a Fedra; fiquei decepcionado."

Apareceu o rosbife com cenouras, deitado pelo Michelangelo de nossa cozinha, sobre enormes cristais de geleia semelhantes a blocos de quartzo transparente.

- A senhora tem um mestre-cuca de primeira ordem, madame disse o Sr. de Norpois. - E isso não é pouco. Eu que tive de sustentar no estrangeiro padrão de vida doméstica, sei o quanto é frequentemente difícil encontrar um perfeito mestre-cuca. A senhora nos convidou para um verdadeiro banquete. 

E, de fato, Françoise, sobre excitada pela ambição de realizar, à um convidado importante, um jantar semeado de dificuldades dignas dela, pelo esforço a que não se entregava mais quando estávamos a sós, reencontrara na forma incomparável de Combray.

- Eis o que não se pode encontrar nos restaurantes, e digo nos melhores: um prato de carne estufada e onde a geleia não cheire a cola; em que a carne se impregne do odor das cenouras, é admirável! Permita-me repetir - acrescentou ele, fazendo sinal de que desejava mais geleia. -Teria curiosidade de julgar o seu Vatel, agora numa iguaria inteiramente diversa; gostaria, por exemplo, de encontrá-lo às voltas com a carne à Strogonoff

O Sr. de Norpois, para contribuir também seu lado à satisfação do repasto, contou-nos várias histórias com as quais muitas vezes brindava os colegas de carreira; ora citando um discurso ridículo pronunciado por um político useiro e vezeiro nessas coisas; que os fazia longos e cheios de imagens incoerentes; ora determinada frase lapidar de um diplomata cheio de concisão. Mas, para falar a verdade, o critério que, para ele, distinguia essas duas espécies de frase em nada se parecia com o que eu aplicava à literatura. Muitas das nuanças me escapavam; as palavras que ele recitava às gargalhadas não me pareciam muito diferentes das que eu julgava notáveis. O Sr. de Norpois pertencia ao gênero de homens que, para as obras que eu amava, teria dito: 

"Então, compreende? Quanto a mim, confesso que não compreendo, não sou um iniciado", mas eu podia retrucar na mesma moeda, pois não alcançava o espírito, ou a asneira, a eloquência, ou o excesso, que ele encontrava numa réplica ou num discurso; a ausência de toda a razão perceptível, para que isto fosse mau, e aquilo fosse bom, fazia com que essa espécie de literatura me parecesse mais misteriosa, mais obscura que qualquer outra. Percebi apenas que repetir o que todos pensavam não era em política, um sinal de inferioridade mas de superioridade. Quando o Sr. de Norpois se utilizava de certas expressões que se encontram nos jornais, pronunciando-as com força, sentia-se que elas se transformavam em ação, pelo simples fato de que as empregara, e uma ação que suscitaria comentários.

Minha mãe contava muito com a salada de ananás e trufas. Mas o embaixador, depois de exercer sobre as iguarias, por alguns instantes, a penetração de seu olhar de observador, comeu-as, permanecendo envolto em discrição diplomática sem nos externar seu pensamento. Minha mãe insistiu que ele repetisse, e o Sr. de Norpois concordou, dizendo apenas em vez do cumprimento que esperavam:

- Obedeço, madame, pois vejo que se trata de um verdadeiro ucasse de sua parte.

- Lemos nas "folhas" que o senhor conversou longamente com o rei Teodósio III. - disse meu pai. 

- De fato, o rei, que tem uma memória fisionômica rara, lembrou, ao me avistar no proscênio, que eu tivera a honra de vê-lo durante alguns dias na corte da Baviera, quando ainda nem pensava no trono oriental ( foi chamado por um congresso europeu; até hesitou muito em aceitá-lo, que essa soberania não estava à altura da sua linhagem, a mais nobre do ponto de vista da heráldica, de toda a Europa). Um ajudante de campo veio dizer-me para que fosse saudar Sua Majestade, cujas ordens, naturalmente, apressei-me em obedecer.

- Ficou satisfeito com os resultados de sua visita?

- Encantado! Era justo conceber algumas apreensões sobre como um monarca, tão jovem ainda, se sairia naquele passo tão difícil; em conjunturas tão delicadas. De minha parte, eu tinha plena confiança na política do soberano. Mas confesso que foram além de minhas esperanças. O brinde que ele pronunciou no Élysée. De acordo com as informações que me deram de fontes de inteira confiança, fora redigido por ele mesmo, da primeira até a última palavra, era perfeitamente digno do interesse que despertou por todas as partes. É simplesmente um golpe de mestre; parece-me um tanto ousado; reconheço sua audácia que, afinal, os acontecimentos justificaram plenamente. As tradições diplomáticas têm de fato o seu lado bom, mas, especificamente, acabaram, tanto do seu lado quanto do nosso país, por viverem numa atmosfera abafada que já não era respirável. Muito bem, uma das formas de renovar o ar, evidentemente uma daquelas que não se pode recomendar, mas que o rei Teodósio podia se permitir, era romper os vidros. E ele o fez com um bom humor que encantou a todos; também a precisão de termos onde se reconheceu de imediato a estirpe dos príncipes, à qual ele pertence pelo lado materno. É certo que, quando falou das afinidades que unem seu país à França, a expressão, por mais desusada no vocabulário das chancelarias, era singularmente feliz. Vejam que a literatura vai mal, mesmo na diplomacia, mesmo sobre um trono - acrescentou, dirigindo-se à mim. - A situação era constatada há muito tempo, admito-o, e as relações das duas potências eram excelentes. Ainda assim, era necessário que a expressão fosse dita. A palavra era esperada, foi escolhida às maravilhas, vocês viram o resultado. De minha parte, aplaudi com entusiasmo.

- Seu amigo, o Sr. de Vaugoubert, que preparava a aproximação há tantos anos, deve ter ficado contente.

- Tanto mais que Sua Majestade, que tem o hábito de tais gestos fez questão de lhe preparar esta surpresa. De resto, a surpresa foi completa no mundo, a começar pelo ministro das Relações Exteriores, que, ao que diziam, não achou a seu gosto. A alguém que lhe falava, teria respondido com nitidez, em voz bastante alta para ser ouvido pelas pessoas próximas sem ser consultado nem prevenido; indicando claramente assim, que declina responsabilidade pelo ocorrido. É preciso confessar que o acontecimento causou barulho e não ousaria afirmar, acrescentou com um sorriso – que certos colegas, para quem a lei suprema parece ser a do menor valor tinham sido perturbados no seu sossego. Quanto a Vaugoubert, vocês sabem muito tem atacado por sua política de aproximação com a França; deve ter sofrido muito com isso porque é uma pessoa sensível, uma alma requintada. Tenho motivos para confirmá-lo, pois, embora seja bem mais moço que eu de carreira, somos amigos de longa data e conheço-o muito. Aliás, quem o atacaria? É uma alma de cristal. É até o único defeito que se lhe pode alegar: não é preciso que o coração de um diplomata seja tão transparente como o seu - e que se fale em enviá-lo a Roma, o que seria uma bela promoção; porém é um problema sério. Entre nós, creio que Vaugoubert, por mais que seja de ambição, ficaria bem contente e não pediria que o afastassem dele. Quiçá operasse prodígios por lá; é o candidato da Consulta e, de minha parte, imagino-o muito bem; ele que é tão artista, no ambiente do palácio Farnese e na galeria de Carraggios. Parece que pelo menos ninguém poderia odiá-lo. Porém existe em torno do rei Teodósio toda uma camarilha, mais ou menos submetida na Wilhelmstrasse, as inspirações segue docilmente e que tem procurado de todas as maneiras obstáculos. Vaugoubert não tem apenas que enfrentar as intrigas de bastidores; também as injúrias de foliculários pagos, que, mais tarde, covarde jornalista venal, são os primeiros a pedir perdão; mas, enquanto isso são os que lançam, contra o nosso representante, ineptas acusações irresponsáveis. Durante mais de um mês, os inimigos de Vaugobert dançam ao seu redor a dança do escalpo - disse o Sr. de Norpois, sublinhando a última palavra. - Mas um homem prevenido vale por dois; essas injúrias, ele rechaça com a ponta dos pés - acrescentou de forma ainda mais enérgica e com um olhar tão firme que paramos um instante de comer. - Como diz um belo provérbio árabe ''Os cães ladram e a caravana passa."



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