domingo, 31 de dezembro de 2023

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Sétimo - O processo de Champmathieu / X - O sistema da negativa

Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Sétimo — O processo de Champmathieu


X — O sistema da negativa

   Chegara o momento de terminar o julgamento. O presidente mandou levantar o réu e dirigiu-lhe a pergunta do estilo:

— Tem alguma coisa a acrescentar à sua defesa?

   O réu, de pé, enrolando e desenrolando o ensebado barrete, pareceu não ouvir. O presidente repetiu a pergunta.
   O homem desta vez ouviu e indicou ter compreendido. Fez um movimento como de quem desperta, olhou à roda de si, encarou o público, os soldados, o seu advogado, os jurados e o presidente, apoiou o monstruoso punho sobre a velha teia que lhe ficava na frente, tornou ainda a olhar para tudo, e de repente, fitando os olhos no advogado, começou a falar. Foi uma erupção.
   Pelo modo como as palavras lhe saíam da boca, incoerentes, impetuosas, embatendo-se umas com as outras e em perfeita confusão, parecia que lhe acudiam todas duma vez, para saírem ao mesmo tempo. Disse ele:

— O que eu tenho a dizer é que fui carpinteiro de carros em Paris, e até que estive em casa do senhor Baloup. É uma peste aquele trabalho dos carros, trabalha-se sempre ao ar livre, nos pátios, ou debaixo de telheiros, se o patrão é melhor, mas nunca em oficinas fechadas, porque vossemecês bem sabem que é preciso campo largo. No Inverno, tem a gente tanto frio que é preciso esfregar os braços, mas os patrões é que não estão por isso, dizem eles que se perde tempo. É uma coisa que custa muito lidar com ferro, quando as pedras estão cobertas de neve. Isto dá cabo dum homem muito depressa. Envelhece-se em pouco tempo: quando um homem tem quarenta anos está pronto. Eu tinha cinquenta e três e estava muito doente. E depois, os operários são más peças! Quando um homem já não é moço não fazem senão chamar-lhe estafermo! Não ganhava mais que trinta soldos por dia; os mestres aproveitavam-se da minha idade e pagavam-me o mais barato que podiam. Ainda assim tinha a minha filha, que era lavadeira, e que ganhava também alguma coisa; para os dois ia chegando. A rapariga levava também muito má vida. Todo o dia metida numa celha até quase à cintura, à chuva, à neve e ao vento, ainda que caia neve é preciso lavar sem descanso: há gente que tem pouca roupa e que está sempre à espera da lavadeira; se não se lavar com todo o tempo, perdem-se os fregueses. As aduelas são mal juntas e a água cai por toda a parte. Estar para ali uma mulher com as saias todas molhadas por dentro e por fora. Isto é para matar! Ela trabalhava também no lavadouro dos Enfants Rouges, onde a água sai por umas torneiras. Lá não se está na celha. A lavadeira ali lava adiante de si, à torneira, e enxuga do outro lado, no tanque. Como é casa fechada sente-se menos frio no corpo, mas fazem lá uma barrela de água quente que dá cabo da vista. A minha filha vinha para casa às sete horas da tarde, e sempre tão estafada que se deitava logo. O marido batia-lhe e ela morreu. Fomos pouco felizes. Sempre era uma rapariga tão sossegada, que nunca ia a divertimento nenhum. Ainda me lembro dum dia de Entrudo, em que ela às oito horas já estava deitada. Isto que eu digo é verídico, não têm mais do que indagar. Mas, é verdade! Que bruto que eu sou! Indagar o quê? Paris é muito grande, quem é que conhece ali o senhor Champmathieu? Ainda assim, em casa do senhor Baloup. Enquanto ao mais, nem eu sei o que é que me querem.

   O homem calou-se e conservou-se de pé. Tinha dito todas estas coisas com uma voz alta, breve, rouca e áspera, com uma espécie de ingenuidade irritada e selvagem. No meio do seu aranzel interrompera-se para cumprimentar alguém que estava entre a multidão.
   A espécie de afirmativas que ele parecia lançar ao acaso saíam-lhe como soluços, acompanhando cada uma delas com o gesto de um rachador de lenha, quando descarrega o machado.
   Quando ele terminou, rompeu o riso em todo o auditório. Olhando então para o público, e vendo que se ria, sem que compreendesse o motivo, riu-se também.
   Era sinistro aquele espetáculo.
   O presidente, homem reto e ao mesmo tempo benévolo, elevou a voz. Recordou aos «senhores jurados» que o senhor Baloup, antigo mestre carpinteiro de carros, em casa de quem o acusado dizia ter servido, fora inutilmente citado. Tinha falido, e não fora possível encontrá-lo. Depois, voltando-se para o acusado, convidou-o a escutar o que ia dizer-lhe e acrescentou:

— Você está numa situação em que precisa refletir. Pesam sobre a sua cabeça suspeitas muito graves e que lhe podem produzir consequências capitais. Acusado, em seu interesse interpelo-o ainda uma vez; explique-se claramente sobre estes dois factos: Em primeiro lugar, saltou ou não o quintal de Pierron, partiu o tronco e roubou as maçãs, isto é, cometeu o crime de roubo com escalada? Em segundo lugar, é ou não o forçado liberto Jean Valjean?

   O acusado meneou a cabeça com o ar de um homem que compreendeu muito bem e que sabe o que vai responder. Abriu a boca, voltou-se para o presidente e disse:

— Primeiro...

   Em seguida olhou para o barrete, depois para o teto, e calou-se.

— Acusado — tornou o delegado do procurador-régio com voz severa —, preste atenção ao que se lhe diz: você não responde a coisa alguma das que se lhe perguntam. A sua perturbação condena-o. É evidente que não se chama Champmathieu, que é o forçado Jean Valjean, que em princípio se ocultou sob o nome de Jean Mathieu, que era o nome de sua mãe; que esteve no Auvergne e que nasceu em Faverolles, onde exercia a profissão de podador. É evidente que roubou, por meio de escalada, algumas maçãs maduras, do quintal de Pierron. Tudo isto será devidamente apreciado pelos senhores jurados.

   O acusado tinha-se sentado, mas quando o delegado acabou de falar, levantou-se arrebatadamente e exclamou:

— Você é que é muito mau homem! Aqui está o que eu queria dizer, mas não dava ao princípio com a palavra. Eu não roubei nada a ninguém, eu sou um homem que muitas vezes passo sem comer, porque o não tenho. Vinha de Ailly, e como havia pouco tempo que tinha desabado uma grande trovoada de água, que pôs os campos todos amarelos, de modo que os pântanos iam cobertos de água a mais não poder ser e não se viam senão as pontinhas da erva a sair das areias da margem da estrada achei um ramo quebrado no chão, ainda com maçãs, e apanhei-o, muito longe de suspeitar que me havia de ser causa de tantos trabalhos. Há três meses que estou preso e que andam comigo às voltas. Ora agora, que hei-de eu dizer? Falam contra mim, dizem-me: «Responda!» O gendarme, que é bom rapaz, dá-me sinal com o cotovelo e diz-me em voz baixa: «Anda, responde»; mas eu não me sei explicar. Eu sou um pobre homem; disto não entendo, porque nunca tive estudos. Aí está o que fizeram mal em não ver. Eu não roubei nada, apanhei o que estava no chão. Os senhores falam de Jean Valjean, Jean Mathieu! Eu não conheço esses homens, que são da aldeia, e eu trabalhei no boulevard do Hospital em casa do senhor Baloup, e chamo-me Champmathieu. Tem graça dizerem-me onde eu nasci! Eu não o sei. Nem toda a gente tem uma casa para vir ao mundo; se assim fosse, era um regalo. Eu julgo que meu pai e minha mãe era gente que andavam por essas estradas; não sei mais do que isto. Quando era criança chamavam-me pequeno, agora chamam-me velho. São esses os meus nomes de baptismo. Entendam lá isto como quiserem. Estive em Auvergne, estive em Faverolles. O que tem lá isso? Então não se pode ter estado em Auvergne, nem em Faverolles, sem ter estado nas galés? Torno a dizer: eu sou Champmathieu, e não roubei nada a ninguém. Estive em casa do senhor Baloup, e aí era o meu domicílio. Os senhores, afinal de contas, já me aborrecem com os seus disparates Porque é que andam tão encarniçados atrás de mim?

   O delegado do ministério público, que permanecia de pé, dirigiu-se ao presidente:

— Senhor presidente, em vista das negativas confusas, mas extremamente hábeis do réu, que ainda que quisesse passar por idiota não seria capaz de o conseguir, desde já o prevenimos, requeremos que tenha a bondade, bem como os senhores jurados, de chamar a este recinto os condenados Brevet, Cochepaille e Chenildieu, e o inspetor de polícia Javert, e ainda outra vez interrogá-los sobre a identidade do réu com o forçado Jean Valjean.

— Devo observar ao senhor delegado — disse o presidente —, que o inspetor de polícia Javert, chamado no exercício das suas funções, à capital do vizinho distrito, apenas fez o seu depoimento saiu, não só da audiência, mas da cidade. Concedemos-lhe a autorização para se retirar, com o assentimento do senhor delegado e do senhor advogado de defesa.

— É exato, senhor presidente — tornou o delegado. — Mas, em vista da ausência do senhor Javert, julgo dever recordar aos senhores jurados o que ele há poucas horas disse neste mesmo lugar. Javert é um homem geralmente estimado, e que honra pela sua rigorosa e estrita probidade as funções subalternas, mas importantes. Eis o seu depoimento: 

Não necessito de presunções morais e provas materiais que desmintam as negativas do acusado. Reconheço perfeitamente. Esse homem não se chama Champmathieu; é um ex-forçado de péssimas qualidades e muito temido chamado Jean Valjean. Houve até grande pena de o soltarem, apesar de haver concluído o tempo de castigo. Sofreu dezenove anos de trabalhos forçados por um roubo qualificado. Além do roubo de Gervásio, e desse de Pierron, tenho ainda suspeitas de outro cometido em casa de sua grandeza o defunto bispo de Digne. Quando fui guarda ajudante da chusma nas galés de Toulon, vi-o muitas vezes. Repito que o reconheço perfeitamente.

   Esta declaração tão categórica, pareceu produzir profunda impressão tanto no público como no júri. O delegado terminou insistindo para que, na falta de Javert, fossem ouvidas de novo e interpeladas solenemente as três testemunhas, Brevet, Cheneldieu e Cochepaille. 
   O presidente deu uma ordem a um oficial de diligências, e um momento depois abriu-se a porta da sala em que estavam as testemunhas. O oficial de diligências, acompanhado de um gendarme, pronto a prestar-lhe auxílio, introduziu na sala o condenado Brevet. O auditório estava como suspenso, todos os peitos palpitavam como se fossem animados por uma só alma.
   O antigo forçado Brevet trazia o vestuário preto e pardo das casas centrais. Brevet era um homem de uns sessenta anos, com uma espécie de figura de procurador de causas e o ar de um velhaco. Encontram-se por vezes juntas estas qualidades. Na prisão, aonde novas proezas o tinham reconduzido, tornara-se o que quer que era como guarda-chaves. Era um homem de quem os chefes diziam: diligencia tornar-se útil; e de quem os capelães testemunhavam os bons hábitos religiosos. É necessário não esquecer que tudo isto ocorria no tempo da restauração.
 
— Brevet — disse o presidente — não pode prestar juramento porque sofreu uma sentença infamante.

   Brevet baixou os olhos.

— Todavia — continuou o presidente — mesmo no homem que a lei degradou pode conservar-se, quando a piedade divina o permite, um sentimento de honra e de piedade. É para este sentimento que eu apelo neste momento decisivo. Se, como julgo, ele existe ainda no seu íntimo, reflita antes de me responder; considere de um lado esse homem que uma palavra só pode perder, e do outro a justiça a quem pode esclarecer. O momento é solene; se julga ter-se enganado, é ainda tempo de se retratar. Acusado, levante-se. Brevet, observe-o bem, concentre as suas recordações e diga-nos, com a alma e a consciência, se persiste em reconhecer esse homem por Jean Valjean, outrora seu camarada nas galés.

   Brevet olhou para o acusado e voltou-se para a mesa.

— Sim, senhor presidente. Fui eu o primeiro que o reconheci e persisto em que é o mesmo. Este homem é o Jean Valjean, que foi para Toulon em 1796, e que saiu de lá em 1815. Eu saí passado um ano. Agora parece ter assim o ar de um bruto: é talvez da idade, nas galés era ele triste e dissimulado. Reconheço-o positivamente. 

— Sente-se — disse o presidente. — Acusado, conserve-se de pé.

   Trouxeram em seguida Cheneldieu, condenado a trabalhos forçados por toda a vida, como o indicavam a roupeta vermelha e o barrete verde. Estava cumprindo a sentença em Toulon de onde fora trazido a Arras para ser testemunha neste processo. Era um homem baixo, com cinquenta anos, pouco mais ou menos, vivo, encarquilhado, raquítico, amarelo, descarado, febril, que apresentava em todo o seu físico extrema fraqueza e no olhar uma força imensa. Os seus companheiros das galés tinham-no apelidado de Nega-a-Deus. O presidente dirigiu-lhe quase as mesmas perguntas que fizera a Brevet. No momento em que o presidente lhe recordava que a sua infâmia lhe tirava o direito de prestar juramento, Cheneldieu levantou a cabeça e encarou a multidão. O presidente convidou-o a recolher as recordações e perguntou-lhe, como a Brevet, se persistia em reconhecer o acusado.
   Cheneldieu soltou uma gargalhada.

— Ora essa! Se o reconheço! Andámos cinco anos presos à mesma grilheta. Não te faças amarelo, meu velho!

— Pode sentar-se — disse o presidente.

   O oficial de diligências conduziu Cochepaille. Este outro condenado por toda a vida, vindo de Toulon e vestido de vermelho como Cheneldieu, era um camponês de Lourdes, um semi-urso dos Pirinéus. Guardara, rebanhos na montanha, e de pastor transformara-se em salteador. Cochepaille não era menos selvagem nem parecia menos estúpido do que o acusado. Era um desgraçado dos que a natureza esboça para animais bravios, e que a sociedade completa em forçados. O presidente tentou movê-lo com algumas palavras patéticas e graves, e perguntou-lhe como aos outros, se persistia, sem hesitação ou dúvida, em reconhecer o homem que tinha diante de si.

— É o Jean Valjean — disse Cochepaille —, é o mesmo a quem chamavam Jean-le-Cric, tanta era a força que ele tinha!

   Cada uma das afirmavas destes três homens, evidentemente sinceras e de boa fé, suscitara no auditório um murmúrio que crescia e se prolongava por muito tempo, cada vez que uma nova declaração se juntava à precedente.
   O acusado escutara-as com a expressão de espanto que, segundo a acusação, era o principal meio de defesa. A primeira tinham-no os gendarmes que estavam ao lado dele, ouvido dizer por entre os dentes: «Bem, cá está um!» Depois, à segunda, dissera um pouco mais alto e com ar quase satisfeito: «bom!» À terceira, exclamou: «Magnífico!»

— Acusado, ouviu o que se disse? O que tem a responder?

— Eu respondo, magnífico!

   No mesmo momento rompeu no auditório prolongado rumor, que quase se comunicou ao juiz.

— Oficiais de justiça, façam restabelecer o silêncio. Vão-se formular os quesitos.

   Ato contínuo, houve certo movimento ao lado do presidente e ouviu-se uma voz dizer:

— Brevet, Cheneldieu, Cochepaille! Olhem para este lado!

   Todos os que ouviram esta voz se sentiram gelados, tanto ela era lastimosa e terrível. Todos os olhos se voltaram para o lado de onde ela partira. Um homem que se encontrava entre os espectadores privilegiados que tinham assento por trás da presidência, levantara-se, empurrara a porta da teia que separava o tribunal do pretório, e avançara para o meio da sala. O presidente, o delegado, o senhor Barmatabois, vinte pessoas em suma, o reconheceram imediatamente e exclamaram: 

— O senhor Madelaine! 

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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.

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Os Miseráveis: Fantine, Livro Sétimo - X — O sistema da negativa
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Victor Hugo

OS MISERÁVEIS

Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira (1851-1888)

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