quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Marcel Proust - No Caminho de Swann (Combray, Quando Françoise - b)

em busca do tempo perdido

volume I
No Caminho de Swann


ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust



combray


II(b) 

continuando...

   Quando Françoise, depois de cuidar que não faltasse nada a meus pais, subia pela primeira vez ao quarto de minha tia para lhe dar sua pepsina e perguntar-lhe o que queria para o almoço, era muito raro que não fosse solicitada a dar opinião ou fornecer explicações sobre algum acontecimento de importância.

— Imagine, Françoise, que a senhora Goupil passou com mais de um quarto de hora de atraso para ir buscar a irmã; por pouco que se demore no caminho, não me espantaria que chegue depois da Elevação.

— É, não seria de admirar — respondia Françoise.

— Françoise, se você tivesse chegado cinco minutos antes, teria visto passar a senhora Imbert com uns aspargos duas vezes maiores que os da tia Callot; trate de saber pela criada onde foi que os conseguiu. Você que, este ano, mete aspargos em tudo quanto é molho, bem poderia conseguir uns iguais para nossos hóspedes. 

— Não seria de admirar que fossem da horta do senhor cura — dizia Françoise.

— Pois sim! Da horta do senhor cura! — retrucava minha tia, dando de ombros. — Você bem sabe, minha pobre Françoise, que ele mal consegue uns miseráveis aspargos de nada. Garanto-lhe que aqueles eram da grossura de um braço. Não como o seu, é claro; mas como um destes meus pobres braços que ainda afinaram mais este ano… Françoise, você não ouviu essa campainhada que quase me rebenta a cabeça?

— Não, senhora.

— Ah!, minha pobre filha, você tem a cabeça sólida, pode dar graças a Deus! Era a Maguelone que veio procurar o doutor Piperaud. Saiu em seguida com ela e dobraram a rua do Pássaro. Deve haver alguma criança doente. 

— Valha-nos Deus! — suspirava Françoise, que não podia ouvir falar de uma desgraça acontecida a um estranho, mesmo em uma parte afastada do mundo, sem que começasse a gemer.

— Françoise, mas por quem terá dobrado a finados? Ah!, meu Deus, deve ser pela senhora Rousseau. Pois não é que me havia esquecido de que ela se foi na noite passada? Ah!, já é tempo que o Bom Deus me chame, pois não sei mais onde tenho a cabeça desde a morte de meu pobre Octave. Mas estou fazendo você perder o seu tempo, minha filha. 

— Isso não, senhora, o meu tempo não vale tanto assim, e aquele que fez o tempo não o vendeu para a gente. Vou apenas ver se o meu fogo não se apaga.

   Assim Françoise e minha tia apreciavam juntas, no decurso daquela sessão matinal, os primeiros acontecimentos do dia. Mas às vezes esses acontecimentos assumiam um caráter tão misterioso e tão grave que minha tia não podia esperar até o momento em que Françoise subisse, e quatro formidáveis toques de campainha ecoavam pela casa.

— Mas, senhora, ainda não está na hora da pepsina — dizia Françoise. — Será que sentiu alguma tontura?

— Não, Françoise, isto é, você bem sabe que agora são raros os momentos em que eu não tenha tonturas; um dia me finarei como a senhora Rousseau, sem ter tempo de me confessar; mas não é por isso que eu chamo. Acredita que acabo de ver, como estou vendo a você, a senhora Goupil com uma menina que eu não conheço? Olhe, vá ao Camus comprar um pouco de sal. É muito raro que Théodore não possa informar quem é

— Mas deve ser a filha do senhor Pupin — dizia Françoise, que preferia apegar-se a uma explicação imediata, pois aquela manhã já estivera por duas vezes no Camus.

— A filha do senhor Pupin! Mas minha pobre Françoise, então você imagina que eu não ia reconhecer a filha do senhor Pupin? 

— Mas não quero dizer a grande, senhora, eu falo é na garota, a que está num internato em Jouy. Parece-me que já a vi hoje de manhã.

— Ah!, só se é isso — dizia minha tia. — Deve ter vindo para as Festas. É isto! Não é preciso procurar mais, veio para as Festas. Mas então veremos daqui a pouco a senhora Sazerat bater à porta da irmã para almoçar com ela. É isto! Vi o pequeno do Galopin passar com uma torta. Você vai ver como era para a casa da senhora Goupil. 

— Pois se ela tem visitas, a senhora não tardará a ver chegarem os convidados para o almoço, porque já está ficando tarde — dizia Françoise, que, com pressa de descer para tratar da comida, não desgostava de deixar a minha tia aquela distração em perspectiva. 

— Bem, mas não chegarão antes do meio-dia — retrucava minha tia em um tom resignado, lançando ao relógio um olhar inquieto mas furtivo, para não deixar transparecer que ela, que já havia renunciado a tudo neste mundo, achava entretanto, só em saber quem teria ao almoço a sra. Goupil, um prazer assim tão vivo e que infelizmente se fazia esperar ainda um pouco mais de uma hora. — E ainda por cima será na hora do meu almoço! — acrescentou em voz baixa para si mesma. O almoço já era uma distração suficiente para que não desejasse outra ao mesmo tempo. — Ao menos não se esqueça de servir-me os ovos com creme num prato raso, hem? — Eram os únicos pratos que tinham decorações, e minha tia divertia-se, em cada refeição, a ler a legenda do que lhe traziam naquele dia. Punha os óculos e ia decifrando: Ali Babá e os quarenta ladrões, Aladim e a lâmpada maravilhosa, e dizia sorridente: “Muito bem, muito bem”. 

— Eu bem podia ir ao Camus… — dizia Françoise, vendo que minha tia já não a mandaria lá.

— Não, não vale mais a pena, com certeza é a senhorita Pupin. Minha pobre Françoise, sinto ter feito você subir por coisa nenhuma.

   Mas minha tia sabia muito bem que não era por coisa nenhuma que tinha chamado Françoise, pois, em Combray, uma pessoa “que não se conhecia” era um ser tão inacreditável como um deus da mitologia e, com efeito, não havia lembrança de que cada vez que se dera, na rua do Espírito Santo, ou na praça, uma dessas estupefacientes aparições, pesquisas bem orientadas não tivessem terminado por reduzir a personagem fabulosa às proporções de uma “pessoa que se conhecia”, ou pessoalmente, ou abstratamente, em sua situação civil, conforme seu grau de parentesco com alguém de Combray. Era o filho da sra. Sauton que voltava do serviço militar, a sobrinha do abade Perdreau que saía do convento, o irmão do cura, cobrador em Châteaudun, que acabava de se aposentar ou que viera passar as Festas. Se, ao vê-los, tinham passado pela emoção de pensar que houvesse em Combray pessoas a quem não conheciam, era simplesmente porque não as tinham reconhecido ou identificado de imediato. E, contudo, muito tempo antes, a sra. Sauton e o cura haviam prevenido que esperavam seus “viajantes”. Quando ao regressar, à tarde, eu subia para contar nosso passeio a minha tia, se acaso cometia a imprudência de lhe dizer que encontráramos perto da Ponte Velha um homem que meu avô não conhecia: “Um homem que teu avô não conhece!”, exclamava ela. “Ah!, não pode ser!” No entanto, um pouco abalada com tal novidade, queria ficar com a consciência tranquila, e meu avô era chamado.

— Mas quem foi então que o senhor encontrou perto da Ponte Velha, meu tio? Um homem que o senhor não conhecia? 

— Como não!, pois se era Prosper, irmão do jardineiro da senhora Bouillebouef. 

— Ah, bem — dizia minha tia, tranquilizada e com as faces um pouco afogueadas; depois, erguendo os ombros com um sorriso irônico, acrescentava: — Pois não é que ele me contou que o senhor tinha encontrado um homem a quem não conhecia! 

   E me recomendavam que fosse mais circunspecto da próxima vez e não agitasse assim minha tia com palavras irrefletidas. De tal modo se conhecia a todo mundo, em Combray, pessoas e animais, que se por acaso minha tia via passar um cachorro que “ela não conhecia”, não cessava de pensar nisso e de consagrar a esse fato incompreensível seus talentos de indução e suas horas de liberdade. 

— Deve ser o cachorro da senhora Sazerat [1] — dizia Françoise sem grande convicção, mas em uma intenção de apaziguamento e para que minha tia não “quebrasse a cabeça”. 
 
— Como se eu não conhecesse o cachorro da senhora Sazerat! — retrucava minha tia, cujo espírito crítico não admitia tão facilmente um fato. 

— Então deve ser o novo cachorro que o senhor Galopin trouxe de Lisieux...

— Ah! Só se é isso!

— Parece que é um animal muito afável — acrescentava Françoise, que obtivera o informe de Théodore [2] —, espirituoso como uma pessoa, sempre de bom humor, sempre amável, sempre com alguma graça. É raro que um animal tão novo já seja tão gentil. Senhora, vai ser preciso deixá-la, não tenho tempo de me divertir, daqui a pouco são dez horas, e meu fogo ainda não está aceso, tenho ainda de pelar os meus aspargos.

— Como, Françoise, mais aspargos! Mas é uma verdadeira febre de aspargos que você tem este ano! Assim acaba enjoando os nossos parisienses!

— Não, senhora, eles gostam muito de aspargos. Voltarão da igreja com apetite e não os comerão com a ponta do garfo.

— Mas eles já devem estar na igreja; você faria bem em não perder tempo. Vá cuidar das suas panelas. 

continua na página 52...
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Leia também:

Volume 1
No Caminho de Swann (Combray, de longe - b)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7

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[1] Essa moradora de Combray aparecerá em vários outros momentos do livro, até que nos serão surpreendentemente revelados os motivos de sua ruína econômica e de sua vida parca. [n. e.]
[2] Théodore, ajudante de mercearia e coroinha da igreja, voltará já quase no final do livro, trilhando os caminhos de Sodoma. Gilberte Swann revelará na figura do garoto o grande iniciador sexual das camponezinhas da região de Combray. [n. e.]
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