quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Marcel Proust - À Sombra das Moças em Flor (Ao Redor da Sra. Swann - h)

em busca do tempo perdido

volume II
À Sombra das Moças em Flor


Ao Redor da Sra. Swann


(h)

continuando...

   Um momento depois, despedia-me da "marquesa", acompanhando Françoise, e deixava esta para voltar para junto de Gilberte. Divisei-a imponente numa cadeira, por detrás do bosquezinho de loureiros. Era para não ser vista pelas amigas: brincavam de esconde-esconde. Fui me sentar a seu lado. Usava um gorro achatado que caía sobre os olhos, dando-lhe aquele mesmo olhar sonhador e maroto que lhe vira da primeira vez em Combray. Perguntei se havia meios de que eu tivesse uma explicação verbal com seu pai. Gilberte dissera que ela mesma a propusera, mas que ele a julgara inútil.

- Olhe - acrescentou - esqueça sua carta; preciso me reunir às outras, pois elas não me encontraram.

   Se Swann tivesse chegado então, antes mesmo que eu tivesse pegado essa carta sobre cuja sinceridade eu considerava que ele fora tão insensato, deixara persuadir, talvez tivesse visto que era ele quem estava com a razão. Pois, aproximando-me de Gilberte, que, inclinada para trás na cadeira, me dizia que pegasse a carta sem estendê-la a mim, senti-me tão atraído pelo seu corpo que lhe disse:

-Vamos, impeça-me de pegá-la; vamos ver quem é mais forte.

   Ela escondeu a carta nas costas, passei minhas mãos pela sua nuca erguendo as tranças dos cabelos que ela usava sobre os ombros, fosse porque ainda era dessa idade, fosse porque sua mãe desejava fazê-la parecer criança por mais tempo, a fim de se rejuvenescer ela própria; lutamos, retesados. Tentava atraí-la, ela resistia; suas bochechas, inflamadas pelo esforço, estavam rubras e redondas como cerejas; ela ria como se eu lhe estivesse fazendo cócegas; mantinha-a presa entre minhas pernas como um arbusto ao qual quisesse trepar; e, no meio da ginástica que fazia, sem que ao menos aumentasse a sufocação que me dava o exercício muscular e o ardor do jogo, espalhei o meu prazer com algumas gotas de suor arrancadas pelo esforço, prazer no qual nem pude me deter o bastante para lhe sentir o gosto; e logo peguei a carta. Então, Gilberte me disse bondosamente: 

-Sabe, se quiser podemos lutar um pouco mais. 

   Talvez ela tivesse obscuramente sentido que meu jogo tinha outro objetivo que não o que havia confessado, mas não soubera perceber que eu já o alcançara. Quanto a mim, que temia que ela o percebesse (um certo movimento retraído e tenso de pudor ofendido, que ela teve um momento depois, me fez pensar que não estava errado ao temê-lo), aceitei continuar lutando, com medo que ela pensasse que não me propusera outro objetivo senão aquele cuja realização não me deu mais vontade de ficar quieto a seu lado. 
   Voltando para casa, percebi que recordei bruscamente a imagem, escondida até então, de que me aproximara sem me deixar vê-la, nem reconhecê-la, o frescor, quase cheirando a fuligem, do pavilhão gradeado. Essa imagem era a do pequeno aposento do tio Adolphe, em Combray, o qual de fato exalava o mesmo aroma de umidade. Mas não pude compreender, e deixei para mais tarde o indagar por que a recordação de uma imagem tão insignificante me dera tanta felicidade. À espera, me pareceu que merecia na verdade o desdém do Sr. de Norpois; até então, havia preferido a todos os escritores, logo aquele a quem de Norpois chamara de simples ''tocador de flauta", e uma verdadeira exaltação me fora comunicada não por uma ideia importante, e, sim, por um cheiro de mofo.
   Desde algum tempo, em certas famílias, o nome de Champs-Élysées, se um visitante o pronunciava, era acolhido pelas mães com o ar maldoso que reservam para um médico renomado a quem teriam visto fazer diagnósticos errados em demasia para ainda terem confiança; asseguravam que esse parque não convinha às crianças, que podiam citar mais de uma dor de garganta, mais de um caso de sarampo e numerosas febres pelas quais era responsável. Sem pôr abertamente em dúvida a ternura de mamãe, que continuava a me mandar para lá, certas amigas suas pelo menos deploravam sua cegueira. 
   Os nevropatas são talvez, malgrado a expressão consagrada, os que menos "se escutam"; ouvem dentro de si tantas coisas que depois compreendem não ser motivo de alarme, que acabam por não prestar mais atenção em nenhuma. Tão insignificante que o seu sistema nervoso gritou tantas vezes: "Socorro!" como se se tratasse de uma doença grave, quando simplesmente ia nevar; ou que iriam mudar de casa, que eles assumem o hábito de já não levar em conta esses avisos, como um soldado que, no ardor da batalha, percebe-os tão pouco que, já fica moribundo de levar por alguns dias uma vida de homem saudável.
   Certas manhãs, ordenados dentro de mim os meus males de costume, de cuja circulação interna eu mantinha sempre o meu espírito desviado, bem como da circulação do sangue; eu corria alegremente para a sala de jantar onde meus pais já estavam sentados à mesa, e dizendo a mim mesmo, como de hábito, que se sentir frio pode ser que não seja necessário aquecer-se, mas, por exemplo, a gente não ter fome, pode ser que vai chover e não que não se deva comer sentando à mesa quando, no momento de engolir o primeiro bocado de costeleta apetitosa, uma náusea, uma tonteira me interromperam, em resposta do início de uma doença cujos sintomas o gelo da minha indiferença havia mascarado, retardado, mas que recusava obstinadamente o alimento que eu não estava em condições de absorver. Então, no mesmo minuto, a ideia de que não me deixariam sair se percebessem que estava doente me deu, como o instinto de conservação a um ferido, forças para me arrastar até meu quarto, onde vi que estava com febre de quarenta graus, para em seguida me preparar para ir aos Champs-Élysées. Meu corpo lânguido e permeável que o envolvia, meu pensamento sorridente, desejava o prazer tão doce de uma partida de barras com Gilberte; que mais tarde, mal me sustentando, porém feliz a seu lado, eu tinha ainda forças para desfrutá-lo.
   Na volta, Françoise declarou que eu me "achara indisposto", que eu deveria ter tido uma "constipação", e o médico, chamado em seguida, declarou que preferia "severidade" do que a "virulência" da subida da febre, que acompanhava minha constipação pulmonar não passaria de "fogo de palha", há formas mais "insidiosas e latentes''. Há muito tempo eu estava sujeito a sufocações, e o nosso médico, apesar da desaprovação de minha avó, que já me via agonizando de coma a aconselhara, além da cafeína que me era prescrita para me ajudar a respirar, cerveja, champanha ou conhaque quando sentisse se aproximar uma sufocação que assim a abortariam, dizia ele, na "euforia" causada pelo álcool. Muitas vezes eu só dissimulava meu estado, para que minha avó consentisse em que me dessem bebida, chegava quase fazer exibição de meu estado de sufocação. Além disso, ao aproximar-se uma crise, sempre incerto quanto às proporções que teria, preocupava por causa da tristeza de minha avó, que eu temia muito mais que minha doença. Mas ao mesmo tempo o meu corpo, ou por ser muito fraco para guardar sozinho o segredo da dor, ou por recear que na ignorância do mal iminente exigissem de mim um esforço que lhe fosse impossível ou perigoso, dava-me a necessidade de advertir minha avó de minhas indisposições com uma exatidão em que eu acabava colocando uma espécie de escrúpulo fisiológico. Logo, ao perceber em mim um sintoma incômodo que antes não discernira, meu corpo sentia-se aflito enquanto não o comunicava à minha avó. Se ela fingia não prestar atenção alguma, meu corpo me pedia que insistisse.
   Às vezes, eu ia longe demais; e o rosto amado, que já não era sempre senhor de suas emoções como antigamente, deixava transparecer uma expressão de piedade, uma contração dolorosa. Então meu coração se torturava à vista da mágoa que ela sentia: como se meus beijos devessem apagar essa mágoa, como se meu carinho pudesse dar à minha avó tanta alegria quanto o meu bem-estar, eu me lançava nos seus braços. E sendo os escrúpulos, por outro lado, serenados pela certeza de que ela conhecia o mal sentido, meu corpo já não fazia oposição a que a tranquilizasse. Eu protestava que a indisposição nada tinha de penosa, que de modo algum precisava que tivessem pena de mim, que ela podia estar certa de que eu era feliz; meu corpo quisera obter exatamente aquilo que merecia de piedade e, desde que soubessem que sentia dores do lado direito, não via inconveniente em que eu declarasse que semelhante dor não era um mal e não oferecia obstáculo à felicidade, pois meu corpo não ligava para filosofia; não era sua especialidade. Quase todos os dias fui assaltado por aquelas crises de sufocação durante minha convalescença. Uma tarde em que minha avó me deixara em boas condições, voltou para o meu quarto já noite alta e, percebendo que me faltava a respiração:

- Oh, meu Deus! Como estás sofrendo! - gritou, com as feições transtornadas. Em seguida me deixou, ouvi bater a porta da frente, e ela voltou logo depois com conhaque: fora comprá-lo, pois não havia nenhum em casa. Em breve comecei a me sentir bem. Minha avó, um tanto vermelha, mostrava-se constrangida sem seus olhos notava-se uma expressão de cansaço e desânimo.

- Acho melhor te deixar para que possas gozar isto um pouco melhor. - disse ela saindo bruscamente. Todavia, beijei-a e senti em suas frescas faces algo molhado, que não soube se era a umidade do ar noturno que ela acabara de receber. No dia seguinte, ela só veio à tardinha ao meu quarto, pois, segundo me disseram, teve que sair. Achei que era mostrar muita indiferença por mim e contive-me para não censurá-la.

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