volume VI
A Fugitiva
Capítulo I
Mágoa e Esquecimento
continuando...
Passa o tempo, e, aos poucos, tudo o que dizíamos mentirosamente transforma em verdade; já o experimentara bastante com Gilberte. A indiferença que eu fingira, quando não parava de soluçar, acabara por cumprir-se; pouco a pouco, como eu dizia a Gilberte numa fórmula mentirosa e que, retrospectivamente, tornara-se verdadeira, a vida nos havia separado. Lembrava-me disso e disse comigo: "Se Albertine deixa correr alguns meses, minhas mentiras se transformarão em verdade. E agora que o mais duro já passou, não seria o caso de desejar que ela deixasse correr este mês? Se ela voltar, renunciarei à vida verdadeira que realmente ainda não estou em condições de desfrutar, mas que progressivamente poderá começar a me apresentar encantos, ao passo que a lembrança de Albertine irá enfraquecendo." Não digo que o esquecimento não começasse a cumprir sua tarefa. Mas um dos efeitos do esquecimento-fazendo com que muitos dos aspectos desagradáveis de Albertine, das horas aborrecidas que eu passava com ela, já não se reproduzissem na minha memória, e deixassem portanto de ser motivos para desejar que ela não estivesse ali, como era o meu desejo quando ela ainda estava aqui era precisamente o de me fornecer dela uma imagem sumária, embelezada de todo o amor que eu sentira por outras. Sob essa forma particular, o esquecimento, que no entanto trabalhava para me habituar à separação, fazia-me, ao mostrar-me Albertine mais doce, mais bonita, desejar ainda mais a sua volta. Desde que ela se fora, muitas vezes, quando me parecia que não podiam perceber que eu estivera chorando, tocava a campainha chamando Françoise, e lhe dizia:
- Precisa ver se a Srta. Albertine esqueceu alguma coisa. Cuide para fazer a sua cama, de
modo que esteja pronta quando ela chegar. - Ou simplesmente: - Ainda outro dia, a Senhorita
Albertine me dizia... Olhe, justamente na véspera de sua partida...- Com isso, queria diminuir em
Françoise o detestável prazer que lhe causava a partida de Albertine, dando-lhe a entender que
sua ausência seria curta; e também queria mostrar a Françoise que não temia falar dessa partida,
mostrá-la como o fazem certos generais que chamam de recuos forçados a uma retirada
estratégica e realizada segundo um plano preestabelecido - como sendo intencional, como
constituindo um episódio cujo verdadeiro significado eu escondia momentaneamente, mas de
modo algum como o fim da minha amizade com Albertine. Nomeando Albertine sem cessar,
desejava por fim entrar de novo, como um pouco de ar, algo dela neste quarto onde a sua partida
deixara o vazio e onde eu já não respirava mais. E buscamos diminuir as proporções de nossa
dor, fazendo-a tomar parte da linguagem falada, entre a encomenda de um terno e as ordens para
o jantar.
Ao arrumar o quarto de Albertine, Françoise, curiosa, abriu a gaveta de uma mesinha de
madeira rosada, onde minha amiga punha os objetos íntimos que tirava ao deitar.
- Oh, Senhor, a Senhorita Albertine se esqueceu de pegar os anéis! Ficaram na gaveta. -
Meu primeiro impulso foi dizer:
- É necessário enviá-los. - Mas isso daria a impressão de ser incerta a sua volta.
- Bem - respondi após um instante de silêncio -, quase não vale a pena mandá-los, pelo
pouco tempo que ela deve ficar ausente. Dê-mos, vou cuidar disso. - Françoise os entregou com
uma certa desconfiança. Detestava Albertine mas, julgando-me por si mesma, pensava que não
me podiam confiar uma carta escrita por minha amiga sem receio de que eu a abrisse. Peguei os
anéis.
- Tenha cuidado para não perdê-los, senhor - disse Françoise -, são verdadeiramente
bonitos! Não sei quem os deu, se foi o senhor ou outra pessoa, mas sei perfeitamente que é
alguém muito rico e de bom-gosto!
- Não fui eu - respondi a Françoise - e além disso não foram os dois presentes da mesma
pessoa; um lhe foi dado pela sua tia e o outro ela comprou
- Não foram da mesma pessoa! - exclamou Françoise -; o senhor está brincando; são
iguaizinhos, menos o rubi, que foi acrescentado num deles. Em ambos existe a mesma figura de
mesmas iniciais no lado de dentro. -
Não sei se Françoise percebia o mal que estava me fazendo, mas começou a esboçar um
sorriso que não mais abandonou seus lábios.
- Como, a mesma águia? Você está louca. Neste que não tem rubi águia, mas no outro
está cinzelada uma espécie de cabeça de homem.
- Homem? Onde o senhor viu isso? Com o meu lorgnon eu vi logo que se trata de uma das
asas da águia; o senhor deve pegar sua lente; verá a outra asa do outro lado, a cabeça e o bico
no meio. Vêem-se até as penas, uma a uma. Ah, é que trabalho. -
A necessidade ansiosa de saber se Albertine me havia mentido; esquecer que eu deveria
manter alguma dignidade na presença de Françoise recusar-lhe o maldoso prazer que ela sentia,
se não em me torturar, ao me difamar a minha amiga. Eu arquejava, enquanto Françoise ia buscar
minha lente. Peguei-a, pedi a Françoise que me mostrasse a águia no anel com rubi, e teve
dificuldade em me fazer reconhecer as asas, estilizadas do mesmo modo no outro anel, o relevo
de cada pena, a cabeça. Assinalou-me também insígnias parecidas, às quais, é verdade,
acrescentavam-se outras no anel com rubi. E de dentro o monograma de Albertine.
- Mas espanta-me que o senhor tenha necessidade de tudo isto para ver que se tratava do
mesmo anel - disse Françoise - Mesmo sem os olharmos de perto, sente-se muito bem o mesmo
jeito, a mesma forma de preguear o ouro, a mesma maneira. Só com uma olhadela eu seria de
jurar que teriam vindo do mesmo local. Isto se reconhece como a cozinha de uma boa cozinheira.
- E, de fato, à sua curiosidade de doméstica atiçada e habituada a reparar em detalhes com
espantosa precisão, juntara-se, para ela nessa vistoria, o gosto que ela possuía, esse mesmo
gosto, efetivamente mostrava na cozinha e que, talvez, fora aguçado, como eu percebera ao
seguir à Balbec, em seu modo de vestir, sua faceirice de mulher que tinha sido bonita, havia
reparado nas joias e vestidos das outras mulheres. Se me enganasse com a caixinha de remédio
e, em vez de tomar alguns comprimidos de veronal, ou em que reparasse ter bebido taças de chá
em excesso, engolisse outros comprimidos de cafeína, meu coração não teria batido com mais
violência.
Pedi a Françoise que saísse do quarto.
Volume 6
continua na página 24...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
A Prisioneira (Prefácio)Volume 6
A Fugitiva (Mágoa e Esquecimento - h)
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