quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (1a.Parte - Por que, em determinado dia...)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes


Primeira Parte


continuando...


   Por que, em determinado dia, vendo avançar de frente sob um capuz cor-de-malva um rosto suave e liso de encantos distribuídos com simetria ao redor de dois olhos azuis, e no qual a linha do nariz parecia reabsorvida, sabia com alegre comoção que não retornaria sem ter avistado a Sra. de Guermantes? Por que sentia a mesma perturbação, afetava a mesma indiferença, desviava os olhos da mesma forma distraída que na véspera, ao aparecimento de perfil, numa rua transversal e sob uma touquinha azul-marinho, de um nariz em formato de bico de pássaro, ao longo de uma face vermelha, cortado por um olho penetrante, como uma divindade egípcia? Certa vez, não foi apenas uma mulher de bico de pássaro o que vi, mas como que um pássaro verdadeiro: o vestido e até a touquinha da Sra. de Guermantes eram de peles e, não deixando assim ver nenhum tecido, ela parecia naturalmente forrada, como certos abutres cuja plumagem espessa, unida, fulva e macia, tem o aspecto de uma espécie de pelame. No meio dessa plumagem natural, a pequena cabeça recobria o seu bico de pássaro e os olhos saltados eram azuis e penetrantes.

   Nesse dia, eu acabava de passear de um lado para o outro na rua durante horas sem avistar a Sra. de Guermantes, quando, de repente, no fundo de uma loja que vendia laticínios, escondida entre dois palacetes nesse bairro aristocrático e popular, se destacou o rosto confuso e novo de uma mulher elegante que examinava petits suisses e, antes que tivesse tempo de identificá-la, veio ferir-me, como um clarão que tivesse levado menos tempo a chegar até mim do que o resto da imagem, o olhar da duquesa; de outra vez, não a tendo encontrado e ouvindo bater meio-dia, compreendi que já não valia a pena ficar à sua espera, e voltava tristemente para casa; e, absorvido em minha decepção, olhando sem ver um carro que se afastava, compreendi de súbito que o movimento de cabeça que uma dama fizera pela portinhola era para mim, e que essa dama, cujas feições desfeitas e pálidas ou, pelo contrário, compostas e vivas, formavam, sob um chapéu redondo abaixo de uma longa aigrette, o rosto de uma estranha que eu julgara não conhecer, era a Sra. de Guermantes, por quem me deixara cumprimentar sem mesmo corresponder. E às vezes, ao voltar, encontrava-a junto da portaria, onde o detestável porteiro, cujo olhar metediço eu odiava, lhe fazia grandes cumprimentos e também, com certeza, "relatórios". Pois todo o pessoal dos Guermantes, dissimulado por trás das cortinas das janelas, espiava trêmulo o diálogo que não ouvia e em resultado do qual a duquesa não deixava de privar de suas saídas este ou aquele criado que o "alcaguete" denunciara. Devido a todas as aparições sucessivas de rostos diferentes que a Sra. de Guermantes oferecia, rostos que ocupavam uma extensão relativa e variada, ora estreita, ora ampla, no conjunto de sua toalete, meu amor não se ligava a esta ou aquela das partes mutantes de carne e de tecido, que assumiam, de acordo com os dias, o lugar de outras e que ela podia modificar e renovar quase inteiramente sem alterar minha perturbação, porque, através delas, através da gola nova e da face desconhecida, eu sentia que era sempre a Sra. de Guermantes. O que eu amava era a pessoa invisível que punha em movimento tudo aquilo, era ela, cuja hostilidade me desgostava, cuja aproximação me perturbava, cuja vida desejaria captar, e dela expulsar seus amigos. Ela podia arvorar uma pluma azul ou mostrar ou exibir uma pele em chamas sem que suas ações perdessem para mim qualquer importância.

   Mesmo que eu próprio não sentisse que a Sra. de Guermantes estava cansada de me encontrar todos os dias, sabê-lo-ia indiretamente pelo rosto cheio de frieza, de reprovação, de piedade que era o de Françoise quando me ajudara na preparação para essas saídas matinais. Desde que lhe pedia os meus objetos, sentia erguer-se um vento contrário nas feições retraídas e pisadas do seu rosto. Nem sequer tentava ganhar a confiança de Françoise, pois sentia que o não poderia conseguir. Por saber de imediato tudo aquilo que podia nos ocorrer de desagradável, a meus pais e a mim, ela possuía um poder cuja natureza sempre me permaneceu obscura. Talvez não fosse sobrenatural e teria sido possível explicá-lo pelos meios de informação que lhe eram próprios; é assim que povos selvagens sabem de certas notícias vários dias antes que o correio as traga à colônia europeia, e que, na realidade, lhes foram transmitidas não por telefone, mas de colina em colina com o auxílio de fogueiras acesas. Assim, no caso particular de meus passeios, talvez os criados da Sra. de Guermantes tenham ouvido a patroa expressar o seu cansaço de me encontrar inevitavelmente no seu caminho e tivessem repetido tais frases a Françoise. Meus pais, é verdade, poderiam pôr a meu serviço outra pessoa que não Françoise, mas eu nada ganharia com isso. De certo modo, Françoise era menos doméstica que os outros. Em sua maneira de sentir, de ser boa e piedosa, dura e altiva, fina e limitada, de ter a pele branca e as mãos vermelhas, ela era a senhorita da aldeia cujos pais "tinham casa própria", mas, arruinados, foram obrigados a pô-la para trabalhar. Sua presença em nossa casa, graças a uma espécie de viagem ao contrário, onde é a vilegiatura que vem ao encontro do viajante, era como o ar do campo e a vida social numa fazenda de há cinqüenta anos, até nós transportados. Como a vitrine de um museu regional é decorada com essas curiosas obras que os camponeses ainda realizam e guarnecem de apassamanes em certas províncias, o nosso apartamento parisiense era decorado pelas palavras de Françoise inspiradas em um sentimento tradicional e local, e que obedeciam a regras muito antigas. E ela sabia ali traçar, como com fios coloridos, as cerejeiras e os pássaros de sua infância, o leito em que morrera sua mãe, e que ela ainda contemplava. Mas, apesar de tudo isso, desde que entrara para o nosso serviço em Paris, havia partilhado e com mais forte motivo do que qualquer outra o faria em seu lugar as ideias, as jurisprudências de interpretação dos criados dos outros pavimentos, recuperando-se o respeito que era obrigada a nos testemunhar, repetindo-nos o que a cozinheira do quarto andar dizia de grosserias à patroa, e com uma tal satisfação de doméstica que, pela primeira vez na nossa vida, sentindo uma espécie de solidariedade com a locatária do quarto andar, nós nos dizíamos que, de fato, talvez fôssemos patrões. Essa alteração do caráter de Françoise era talvez inevitável. Certas existências são tão anormais que devem fatalmente engendrar determinadas taras, como a vida que o rei levava em Versalhes entre seus cortesãos, tão estranha como a de um faraó ou de um doge e, muito mais que a do rei, a vida dos cortesãos. A dos criados é sem dúvida de uma estranheza ainda mais monstruosa e apenas o hábito no-la oculta. Porém, ainda nos mais particulares detalhes é que eu teria sido condenado, mesmo que me livrasse de Françoise, a conservar a mesma criadagem. Pois diversos outros puderam entrar mais tarde ao meu serviço; já providos dos defeitos gerais dos criados, nem por isso deixavam de sofrer em minha casa uma rápida transformação. Como as leis do ataque acionam as do revide, para não serem feridos pelas asperezas do meu caráter, todos realizavam no seu uma reentrância idêntica e no mesmo local; e, em compensação, aproveitavam minhas lacunas para ali instalar seus avanços. Tais lacunas, eu não as conhecia, como também não as saliências a que seus intervalos davam espaço, precisamente por serem lacunas. Mas meus criados, estragando-se aos poucos, fizeram-me conhecê-las. Foi devido a seus defeitos, invariavelmente adquiridos, que soube de meus próprios defeitos naturais e invariáveis, o caráter deles me apresentou uma espécie de negativo do meu. Muito havíamos rido antigamente, minha mãe e eu, da Sra. Sazerat que dizia, falando dos criados: "Essa raça, essa espécie." Mas devo confessar que o motivo pelo qual não me ocorria substituir Françoise por qualquer outro é que esse outro teria pertencido, do mesmo modo e inevitavelmente, à raça geral dos criados e à espécie particular dos meus.

   Voltando a Françoise, nunca em minha vida experimentei uma humilhação sem ter encontrado prévias condolências no seu rosto; e quando, encolerizado por sofrer os lamentos dela, tentava ao contrário fingir que obtivera um êxito, minhas mentiras vinham se quebrar inutilmente em sua incredulidade respeitosa, porém visível, e na consciência que ela possuía de sua infalibilidade. Pois conhecia a verdade; calava-a e fazia apenas um pequeno movimento de lábios como se ainda tivesse a boca cheia e acabasse de comer um bom bocado. Calava-a? Pelo menos, foi o que julguei durante muito tempo, pois a essa época eu pensava ainda que era por meio das palavras que a gente revela aos outros a verdade. Mesmo as palavras que me diziam depositavam tão bem a sua significação inalterável em meu espírito sensível, que eu já não achava possível que alguém que me tivesse dito que me amava não me amasse, que a própria Françoise não poderia duvidar, depois de o ter lido no jornal, que um padre ou um senhor qualquer fosse capaz, a um pedido enviado pelo correio, de nos remeter gratuitamente um remédio infalível contra todas as enfermidades ou um meio de centuplicar nossas rendas. (Em compensação, se o nosso médico lhe desse a mais simples pomada contra o defluxo, ela, tão dura nos mais rudes sofrimentos, gemia por tudo quanto havia fungado, assegurando que aquilo "lhe pelava o nariz", e que a gente não sabia mais onde se meter.) Mas Françoise foi a primeira a me dar o exemplo (que só mais tarde eu devia compreender, quando me foi dado de novo, mais dolorosamente, como se verá nos últimos volumes desta obra, por uma pessoa que me era mais querida) de que a verdade não precisa ser dita para ser manifestada, e que talvez se possa obtê-la com mais certeza, sem esperar as palavras e até mesmo sem levá-las em consideração, em mil sinais exteriores, mesmo em certos fenômenos invisíveis, análogos, no mundo dos caracteres, ao que representam, na natureza física, as mudanças atmosféricas. Talvez pudesse ter desconfiado disso, visto que a mim mesmo, então, ocorria-me dizer muitas vezes coisas em que não havia verdade alguma, ao passo que a manifestava por tantas confidências involuntárias de meu corpo e de meus atos (as quais eram muito bem interpretadas por Françoise); talvez pudesse ter desconfiado, mas para isso seria necessário que eu soubesse que era então, às vezes, mentiroso e trapaceiro. Ora, a mentira e a trapaça eram em mim, como em todo mundo, comandadas de uma forma tão imediata e contingente, e para sua defesa, por um interesse tão particular, que meu espírito, fixo num belo ideal, deixava meu caráter cumprir na sombra aquelas tarefas urgentes e miseráveis e não se desviava para observá-las. Quando Françoise, à noite, era gentil comigo, e me pedia licença para se sentar no meu quarto, parecia-me que seu rosto se tornava transparente e que nela eu percebia a bondade e a franqueza. Mas Jupien, que possuía queda para a indiscrição que só vim a conhecer mais tarde, revelou posteriormente que ela dizia que eu não valia a corda para me enforcar e que procurara lhe fazer todo o mal possível. Estas palavras de Jupien mostraram-me logo, sob uma luz desconhecida, uma prova de minhas relações com Françoise tão diferente daquela em que me comprazia muitas vezes em descansar os olhos e na qual, sem a mais leve indecisão, Françoise me adorava e não perdia ocasião de me celebrar, que compreendi que não é só o mundo físico que difere do aspecto sob o qual o vemos; que toda realidade é talvez tão dissemelhante da que julgamos perceber diretamente e que compomos com a ajuda de ideias que não se mostram mas são ativas, assim como as árvores, o sol e o céu não seriam tais como os vemos se fossem conhecidos por seres que tivessem olhos constituídos de maneira diversa da nossa, ou então, que possuíssem, para esse fim, órgãos diferentes dos olhos e que proporcionassem das árvores, do sol e do céu equivalentes não-visuais. Assim como ocorreu, essa brusca fugida que me abriu uma vez Jupien para o mundo real me aterrorizou. Mesmo assim, só se tratava de Françoise, com quem pouco me preocupava. Seria assim em todas as relações sociais? E até que desespero aquilo poderia me levar um dia, se o mesmo ocorresse no amor? Era o segredo do futuro. Então, só se tratava ainda de Françoise. Pensaria ela sinceramente o que havia dito a Jupien? Dissera-o apenas para indispor Jupien comigo, talvez para que não tomassem a sobrinha de Jupien para substituí-la? O fato é que percebi a impossibilidade de saber de modo direto e seguro se Françoise me amava ou detestava. E assim, foi ela a primeira a me dar a ideia de que uma pessoa não é, como o acreditara, clara e imóvel diante de nós com suas qualidades, seus defeitos, seus projetos, suas intenções a nosso respeito (como um jardim que se contempla, com todas as suas platibandas, através de uma grade), e sim uma sombra onde jamais podemos penetrar, para a qual não existe conhecimento direto, a respeito de quem formamos numerosas crenças com o auxílio de palavras e até mesmo de ações, umas e outras nos dando apenas informações insuficientes e, aliás, contraditórias, uma sombra onde podemos, alternadamente, imaginar, com tanto maior verossimilhança, que brilham o ódio e o amor.
   
   Eu amava de verdade a Sra. de Guermantes. A maior felicidade que teria podido pedir a Deus seria a de lançar sobre sua cabeça todas as calamidades e que, arruinada, desconsiderada, destituída de todos os privilégios que me separavam dela, já não tendo casa onde morar nem pessoas que consentissem em cumprimentá-la, ela fosse me pedir asilo. Imaginava-a fazendo isto. E, mesmo nas noites em que alguma mudança na atmosfera ou na minha própria saúde me traziam à consciência algum rolo esquecido, no qual estavam inscritas as impressões de outrora, ao invés de aproveitar as forças de renovação que acabavam de nascer em mim, em vez de empregá-las para decifrar em mim mesmo os pensamentos que de costume me fugiam, em vez de me pôr enfim a trabalhar, preferia falar em voz alta, pensar de forma movimentada, exterior, que não passava de uma gesticulação e um discurso inúteis, um romance puramente de aventuras, estéril e sem verdade, onde a duquesa, caída na miséria, vinha me implorar, a mim que, por uma série de circunstâncias opostas, me tornara rico e poderoso. E, quando havia passado horas dessa maneira, imaginando circunstâncias, pronunciando frases que diria à duquesa ao acolhê-la sob o meu teto, a situação permanecia a mesma; infelizmente, na realidade, eu havia escolhido para amar a mulher que reunia talvez o maior número de vantagens diferentes; e aos olhos de quem, por causa disso, eu não podia esperar ter qualquer prestígio; pois ela era tão rica como o mais rico que não fosse nobre; sem contar aquele encanto pessoal que a colocava na moda, fazendo-a dentre todas uma espécie de rainha.

   Sentia que lhe era desagradável ir todas as manhãs ao encontro dela; mas, mesmo que tivesse tido a coragem de ficar dois ou três dias sem fazê-lo, talvez essa abstenção, que para mim significaria um sacrifício enorme, a Sra. de Guermantes não a tivesse notado, ou a teria atribuído a algum impedimento independente da minha vontade. Na verdade eu não conseguiria deixar de ir pelo seu caminho a não ser arrumando uma forma de ficar na impossibilidade de fazê-lo, pois a necessidade incessantemente renovada de encontrá-la, de ser durante um momento o objeto de sua atenção, a pessoa a quem se dirigia o seu cumprimento, tal necessidade era mais poderosa que o tédio de lhe ser desagradável. Seria preciso que me afastasse por algum tempo; e não tinha coragem de assim proceder. Às vezes pensava nisso. Então, dizia a Françoise que fizesse as minhas malas e, logo depois, que as desfizesse. E, como o demônio do pasticho e do medo de parecer antiquado altera a forma mais natural e mais segura de nós mesmos, Françoise, tomando emprestado este termo ao vocabulário da filha, dizia que eu era 'dingo' (louco). Não gostava daquilo, dizia que eu "balançava" sempre, pois empregava, quando não queria rivalizar com os modernos, a linguagem de Saint-Simon. É certo que gostava ainda menos quando lhe falava como patrão. Sabia que isso não me era natural e não me assentava bem, o que ela traduzia dizendo que "o intencional não me quadrava bem". Eu só teria coragem de partir numa direção que me aproximasse da Sra. de Guermantes. Não era coisa impossível. De fato, não seria me encontrar mais perto dela do que o estava de manhã na rua, solitário, humilhado, sentindo que nem um só dos pensamentos que desejaria lhe dirigir nunca chegaria até ela, nesse marcar passo dos meus passeios, que poderia durar indefinidamente sem me trazer qualquer avanço se eu fosse para muitas léguas da Sra. de Guermantes, mas para a casa de alguém que ela conhecesse, que soubesse ser difícil na escolha de suas relações, e que me apreciasse, que poderia lhe falar de mim e, se não obter dela aquilo que eu desejava, ao menos lhe fazer saber, alguém graças ao qual, em todo caso, só pelo fato de discutir com ele se poderia encarregar-se ou não desta ou daquela mensagem junto a ela, não daria eu a meus devaneios solitários e silenciosos uma nova forma, falada, ativa, que me parecesse um progresso, quase uma realização? O que ela fazia durante a vida misteriosa da "Guermantes" que era, isto, que era objeto de um devaneio constante, intervir nessa vida, mesmo de forma indireta, como com uma alavanca, pondo em ação alguém a quem não fossem interditos o palacete da duquesa, as suas reuniões noturnas, a conversação prolongada com ela, não seria isso um contato mais distante porém mais efetivo que a minha contemplação na rua todas as manhãs?

continua na página 30...
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