1
Estudos de Costumes
- Cenas da Vida Privada
Memórias de duas jovens esposas
SEGUNDA PARTE
LIV – A SRA. GASTÃO À CONDESSA DE L’ESTORADE
Estudos de Costumes
- Cenas da Vida Privada
Memórias de duas jovens esposas
SEGUNDA PARTE
LIV – A SRA. GASTÃO À CONDESSA DE L’ESTORADE
20 de maio
Renata, chegou a desgraça; não, ela caiu em cima da tua pobre Luísa com a rapidez do raio e tu me compreendes: a desgraça para mim é a dúvida. A convicção seria a morte. Anteontem, após minha primeira toilette, procurei Gastão por toda parte para darmos um pequeno passeio antes do almoço e não o encontrei: fui à estrebaria, vi sua égua banhada em suor, enquanto o groom, com o auxílio de uma faca, limpava os flocos de espuma antes de enxugá-la.
— Quem pôs Fedelta em semelhante estado? — perguntei.
— O patrão — respondeu o menino.
Verifiquei nos jarretes da égua a presença da lama de Paris, a qual não se parece
com a do campo.
“Foi a Paris”, pensei.
Esse pensamento fez jorrarem outros mil no meu coração, afluindo a este todo o
meu sangue. Ir a Paris sem nada me dizer, aproveitar a hora em que o deixo só, ir e
voltar com tanta rapidez, a ponto de deixar Fedelta quase estafada!... A suspeita
constringiu-me com seu terrível laço, a ponto de me tolher a respiração. Retirei-me
a alguns passos dali e sentei-me num banco para tentar recuperar a calma. Gastão
surpreendeu-me nessa situação, lívida, assustadora, segundo parece, pois disse-me
“Que tens?” tão precipitadamente e com um tom de voz tão inquieto que me
levantei e segurei-lhe o braço; mas tinha as articulações sem força e me vi
constrangida a sentar outra vez; ele, então, tomou-me nos braços e levou-me a dois
passos dali, para a sala de estar, onde a nossa criadagem assustada nos havia
seguido; Gastão, porém, com um gesto, os mandou embora. Quando ficamos sós,
pude, sem nada lhe querer dizer, fugir para o meu quarto, onde me fechei para
poder chorar à vontade. Gastão permaneceu cerca de duas horas atrás da porta
ouvindo os meus soluços, interrogando a sua criatura, com uma paciência de anjo, e
eu sem lhe responder.
— Eu o receberei quando meus olhos não estiverem mais vermelhos e quando
minha voz não tremer mais — respondi-lhe por fim.
O tratamento cerimonioso o fez retirar-se de casa. Lavei os olhos com água
gelada, refresquei meu rosto, a porta do nosso quarto se abriu, e eu o encontrei ali;
ele voltara sem que eu ouvisse o ruído de seus passos.
— Que tens? — perguntou-me.
— Nada — respondi. — Reconheci a lama de Paris nos jarretes cansados de
Fedelta, não compreendi que tivesses ido sem me prevenir; aliás és livre.
— Como castigo por tuas desconfianças criminosas, só amanhã saberás dos
meus motivos — respondeu ele.
— Olha-me — disse-lhe eu.
Mergulhei os olhos nos seus: o infinito penetrou o infinito. Não, não percebi
aquela nuvem que a infidelidade espalha na alma e que deve alterar a pureza das
pupilas. Aparentei tranquilidade, conquanto continuasse inquieta. Os homens,
tanto como nós, sabem enganar e mentir! Não nos separamos mais. Oh! Querida,
quanto por momentos, ao olhá-lo, me senti indissoluvelmente presa a ele. Que
tremores interiores me agitaram quando ele voltou depois de ter-me deixado só por
um instante! Minha vida está nele e não em mim. Dei desmentidos cruéis à tua
cruel carta. Senti eu jamais essa dependência com aquele divino espanhol para
quem eu era o que este atroz pequeno é para mim? Como odeio aquela égua! Que
tolice a minha em ter comprado cavalos! Mas seria preciso também cortar os pés de
Gastão, ou detê-lo no chalé. Esses estúpidos pensamentos me ocuparam, por aí
podes julgar a minha loucura. Se o amor não lhe construiu uma jaula, não há poder
capaz de reter um homem que se entedia.
— Eu te aborreço? — perguntei-lhe à queima-roupa.
— Como te atormentas sem motivo! — respondeu-me com os olhos cheios de
uma meiga piedade. — Nunca te amei tanto.
— Se isso é verdade, meu anjo adorado — repliquei-lhe —, deixa-me mandar
vender Fedelta.
— Vende! — disse ele.
Essa palavra como que me aniquilou. Gastão parecia dizer-me: “Só tu és rica
aqui; eu nada sou, minha vontade não existe”. Se ele não o pensou, eu acreditei que
o pensava e deixei-o novamente para me ir deitar: anoitecera.
Ó, Renata, na solidão, um pensamento devastador nos leva a suicídio. Os
deliciosos jardins, a noite estrelada, a frescura que me trazia em ondas o perfume
de todas as nossas flores, nosso vale, nossa colinas, tudo me parecia sombrio, negro
e deserto. Achava-me como que no fundo de um precipício entre serpentes e plantas
venenosas; não via mais Deus no céu. Depois de uma noite dessas uma mulher
envelhece.
— Monta Fedelta, vai a Paris — disse-lhe eu no dia seguinte pela manhã —, não a
vendamos; gosto dela; ela te carrega!
Não obstante, ele não se enganou com o meu acento, onde transparecia a raiva
interior que eu tentava ocultar.
— Confiança! — respondeu estendendo-me a mão num gesto tão nobre e
dirigindo-me um olhar tão nobre que me senti aniquilada.
— Somos bem pequenas! — exclamei.
— Não, amas-me, eis tudo — disse ele, apertando-me contra si.
— Vá a Paris sem mim — disse-lhe, fazendo-lhe compreender que não desistia de
minhas suspeitas.
Ele partiu, eu pensei que ele ficaria em casa. Desisto de te descrever meus
sofrimentos. Havia em mim um outro eu, que eu ignorava. Essas espécies de cenas,
querida, têm, para uma mulher que ama, uma solenidade trágica que nada poderia
exprimir; toda a vida passa diante dos nossos olhos, no momento em que elas se
realizam, e o olhar não vê nenhum horizonte; o nada é tudo, o olhar é um livro, a
palavra carreia blocos de gelo, e, num mover de lábios, lê-se uma sentença de
morte. Eu esperava uma retribuição, pois tinha me mostrado bastante nobre e
grande. Subi até o alto do chalé e segui-o com os olhos, pela estrada. Ah! Querida
Renata, vi-o desaparecer com uma horrível rapidez.
— Como ele vai correndo para lá!— pensei involuntariamente.
Depois, quando me vi só, tornei a cair no inferno das hipóteses, no tumulto das
suspeitas. Por vezes, a certeza de ser traída parecia-me um bálsamo, comparada
com os horrores da dúvida! A dúvida é o nosso duelo com nós mesmas, e nela nos
fazemos terríveis ferimentos. Caminhava, girava em torno das alamedas, voltava ao
chalé, saía como uma louca. Tendo partido às sete horas, Gastão só voltou às onze;
e, como pelo parque de Saint-Cloud e pelo Bois de Boulogne basta uma meia hora
para ir a Paris, é claro que ele lá passara três horas. Entrou triunfante, trazendo-me
uma chibata de borracha com castão de ouro.
Fazia quinze dias que eu não tinha chicote; o meu, gasto e velho, se partira.
— E foi por isto que me torturaste? — disse-lhe, admirando o trabalho daquela
joia que contém uma caçoila na extremidade.
Depois compreendi que aquele presente ocultava um novo engano; mas saltei-lhe prontamente ao pescoço, não sem lhe fazer ternas recriminações por ter-me
imposto tão grandes tormentos por uma ninharia. Ele se julgou muito esperto. Vi
então na sua atitude, no seu olhar, aquela espécie de alegria interior que se sente
quando impingimos uma mentira; escapa-se de nossa alma como que um clarão,
como um raio de nosso espírito que se reflete nas feições e que se desprende com
os movimentos do corpo. Ao admirar aquele lindo objeto, perguntei-lhe, num
momento em que nos olhávamos:
— Quem fez para ti esta obra de arte?
— Um artista amigo meu.
— Ah! Verdier [1] o armou — acrescentei ao ler o nome do negociante, que
estava impresso na chibata. Gastão ficou como uma criança, corou. Cobri-o de
carícias por ter tido pejo de me enganar. Fiz-me de inocente, e ele pôde julgar tudo
terminado.
Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844. Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).
Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava. De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.
_____________________
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)
Balzac, Honoré de, 1799-1850.
A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac; orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São Paulo: Globo, 2012.
(A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1 0.000 kb; ePUB
1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série.
12-13086 cdd-843
Índices para catálogo sistemático:
1. Romances: Literatura francesa 843
____________________
Leia também:
A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada - Ao "Chat-Qui-Pelote" (1)
A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: O Baile de Sceaux (01)
A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: O Baile de Sceaux (07)
Primeira Parte: Memórias de duas jovens esposas...
A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (1)
Segunda Parte: Memórias de duas jovens esposas...
A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (42a)
A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (48)
A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (49)
A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (50)
A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (51)
A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (52)
continua pág 374...
________________
[1] Verdier: pessoa real, negociante de bengalas estabelecido na rue de Richelieu.
________________
Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844. Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).
Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava. De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.
_____________________
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)
Balzac, Honoré de, 1799-1850.
A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac; orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São Paulo: Globo, 2012.
(A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1 0.000 kb; ePUB
1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série.
12-13086 cdd-843
Índices para catálogo sistemático:
1. Romances: Literatura francesa 843
____________________
Leia também:
A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada - Ao "Chat-Qui-Pelote" (1)
A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: O Baile de Sceaux (01)
A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: O Baile de Sceaux (07)
Primeira Parte: Memórias de duas jovens esposas...
A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (1)
Segunda Parte: Memórias de duas jovens esposas...
A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (42a)
A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (48)
A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (49)
A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (50)
A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (51)
A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (52)
A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (54)
A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (55)
Nenhum comentário:
Postar um comentário