sábado, 12 de outubro de 2024

A Hora da Estrela - Ninguém pode entrar no coração de ninguém

Clarice Lispector

A Hora da Estrela


continuando...

     Ninguém pode entrar no coração de ninguém. Macabéa até que falava com Glória — mas nunca de peito aberto.
     Glória tinha um traseiro alegre e fumava cigarro mentolado para manter um hálito bom nos seus beijos internináveis com Olímpico. Ela era muito satisfatona: tinha tudo o que seu pouco anseio lhe dava. E havia nela um desafio que se resumia em “ninguém manda em mim”. Mas lá um dia pôs-se a olhar e a olhar e a olhar Macabéa. De repente não aguentou e com um sotaque levemente português disse:

– Oh mulher, não tens cara?

– Tenho sim. É porque sou achatada de nariz, sou alagoana. 

– Diga-me uma coisa: você pensa no teu futuro? 

     A pergunta ficou por isso mesmo, pois a outra não soube responder
     Muito bem. Voltemos a Olímpico.
     Ele, para impressionar Glória e cantar logo de galo, comprou pimenta-malagueta das brabas na feira dos nordestinos e para mostrar à nova namorada o durão que era mastigou em plena poupa a fruta do diabo. Nem sequer tomou um copo de água para apagar o fogo nas entranhas. O ardor quase intolerável no entanto o enrijeceu, sem contar que Glória assustada passou a obedecê-lo. Ele pensou: pois não é que sou um vencedor? E agarrou-se em Glória com a força de um zangão, ela lhe daria mel de abelhas e carnes fartas. Não se arrependeu um só instante de romper com Macabéa pois seu destino era o de subir para um dia entrar no mundo dos outros. Ele tinha fome de ser outro. No mundo de Glória, por exemplo, ele ia se locupletar, o frágil machinho. Deixaria enfim de ser o que sempre fora e que escondia até de si mesmo por vergonha de tal fraqueza: é que desde menino na verdade não passava de um coração solitário pulsando com dificuldade no espaço. O sertanejo é antes de tudo um paciente. Eu o perdoo.  
     Glória, querendo compensar o roubo do namorado da outra, convidou-a para tomar lanche da tarde, domingo, na sua casa. Soprar depois de morder? (Ah que história banal, mal aguento escrevê-la.)
     E lá (pequena explosão) Macabéa arregalou os olhos. É que na suja desordem de uma terceira classe de burguesia havia no entanto o morno conforto de quem gasta todo o dinheiro em comida, no subúrbio comia-se muito. Glória morava na rua General não-sei-o-quê, muito contente de morar em rua de militar, sentia-se mais garantida. Em sua casa até telefone tinha. Foi talvez essa uma das poucas vezes em que Macabéa viu que não havia lugar no mundo e exatamente porque Glória tanto lhe dava. Isto é, um farto copo de grosso chocolate de verdade misturado com leite e muitas espécies de roscas açucaradas, sem falar num pequeno bolo. Macabéa, enquanto Glória saía da sala — roubou escondido um biscoito. Depois pediu perdão ao Ser abstrato que dava e tirava. Sentiu-se ,perdoada. O Ser a perdoava de tudo.
     No dia seguinte, segunda-feira, não sei se por causa do fígado atingido pelo chocolate ou por causa de nervosismo de beber coisa de rico, passou mal. Mas teimosa não vomitou para não desperdiçar o luxo do chocolate. Dias depois, recebendo o salário, teve a audácia de pela primeira vez na vida (explosão) procurar o médico barato indicado por Glória: Ele a examinou, a examinou e de novo a examinou.

– Você faz regime para emagrecer, menina?

     Macabéa não soube o que responder. 

– O que é que você come? 

– Cachorro-quente. 

– Só? 

– Às vezes como sanduíche de mortadela. 

– Que é que você bebe? Leite?

– Só café e refrigerante.

– Que refrigerante? — perguntou ele sem saber o que falar. A toa indagou: 

– Você às vezes tem crise de vômito? 

– Ah, nunca!, exclamou muito espantada, pois não era doída de desperdiçar comida, como eu disse. 

     O médico olhou-a e bem sabia que ela não fazia regime para emagrecer. Mas era-lhe mais cômodo insistir em dizer que não fizesse dieta de emagrecimento. Sabia que era assim mesmo e que era médico de pobres. Foi o que disse enquanto lhe receitava um tônico que ela depois nem comprou, achava que ir ao médico por si só já curava. Ele acrescentou irritado sem atinar com o porquê de sua súbita irritação e revolta: 

– Essa história de regime de cachorro-quente é pura neurose e o que está precisando é procurar um psicanalista!

     Ela nada entendeu mas pensou que o médico esperava que ela sorrisse. Então sorriu. 
     O médico muito gordo e suado tinha tique nervoso que o fazia de quando em quando ritmadamente repuxar os lábios. O resultado era parecer que estava fazendo beicinho de bebê quando está prestes a chorar. 
     Esse médico não tinha objetivo nenhum. A medida era apenas para ganhar dinheiro e nunca por amor á profissão nem a doentes. Era desatento e achava a pobreza uma coisa feia. Trabalhava para os pobres detestando lidar com eles. Eles eram para ele o rebotalho de uma sociedade muito alta á qual também ele não pertencia. Sabia que estava desatualizado na medicina e nas novidades clínicas mas para pobre servia. O seu sonho era ter dinheiro para fazer exatamente o que queria: nada.
     Quando ele avisara que ia examiná-la ela disse: 

– Ouvi dizer que no médico se tira a roupa mas eu não tiro coisa nenhuma. 

     Passara-a pelo raio X e dissera: 

– Você está com começo de tuberculose pulmonar. 

     Ela não sabia se isso era coisa boa ou coisa ruim. Bem, como era uma pessoa muito educada, disse: 

– Muito obrigada, sim? 

     O médico simplesmente se negou a ter piedade. E acrescentou: quando você não souber o que comer faça um espaguete bem italiano.
     E acrescentou com um mínimo de bondade a que ele se permitia já que se considerava também injustiçado pela sorte: 

– Não é tão caro assim ... 

– Esse nome de comida que o senhor falou eu nunca comi na vida. É bom?

– Claro que é! Olhe só a minha barriga! Isso é resultado de boas macarronadas e muita cerveja. Dispense a cerveja, é melhor não beber álcool. Ela repetiu cansada: 

– Álcool? 

– Sabe de uma coisa? Vá para os raios que te partam! 

     Sim, estou apaixonado por Macabéa a minha querida Maca, apaixonado pela sua feiura e anonimato total pois ela não é para ninguém. Apaixonado por seus pulmões frágeis, a magricela. Quisera eu tanto que ela abrisse a boca e dissesse:  

– Eu sou sozinha no mundo e não acredito em ninguém; todos mentem, às vezes até na hora do amor, eu não acho que um ser fale com o outro, a verdade só me vem quando estou sozinha.

     Maca, porém, jamais disse frases, em primeiro lugar por ser de parca palavra. E acontece que não tinha consciência de si e não reclamava nada, até pensava que era feliz. Não se tratava de uma idiota mas tinha a felicidade pura dos idiotas. E também não prestava atenção em si mesma: ela não sabia. (Vejo que tentei dar a Maca uma situação minha: eu preciso de algumas horas de solidão por dia senão “me muero”.)
     Quanto a mim, só sou verdadeiro quando estou sozinho. Quando eu era pequeno pensava que de um momento para outro eu cairia para fora do mundo. Por que as nuvens não caem, já que tudo cai? É que a gravidade é menor que a força do ar que as levanta. Inteligente, não é? Sim, mas caem um dia em chuva. É a minha vingança.

continua pág 73...
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"Clarice Lispector deixou vários depoimentos sobre a sua produção literária. Em alguns, parecia se defender do estranhamento que causava em leitores e críticos.
Ela tinha consciência de sua diferença. Desde pequena, ao ver recusadas as histórias que mandava para um jornal de Recife, pressentia que era porque nenhuma “contava os fatos necessários a uma história”, nenhuma relatava um acontecimento. Sabia também, já adulta, que poderia tornar mais “atraente” o seu texto se usasse, “por exemplo, algumas das coisas que emolduram uma vida ou uma coisa ou romance ou um personagem”.
Entretanto, mesmo arriscando-se ao rótulo de escritora difícil, mesmo admitindo ter um público mais reduzido, ela não conseguiria abrir mão de seu traçado: “Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro”. Ela se afastou dos “escritores que por opção e engajamento defendem valores morais, políticos e sociais, outros cuja literatura é dirigida ou planificada a fim de exaltar valores, geralmente impostos por poderes políticos, religiosos etc., muitas vezes alheios ao escritor”, em nome de uma outra forma de questionar a realidade e nela intervir, através da literatura." 
Clarisse Fukelman, Professora de Literatura Brasileira da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

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