quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Memórias Póstumas de Brás Cubas: Uma carta extraordinária

Machado de Assis






CAPÍTULO XCI / Uma carta extraordinária




Por esse tempo recebi uma carta extraordinária, acompanhada de um objeto não menos extraordinário. Eis o que a carta dizia:

“Meu caro Brás Cubas,
“Há tempos, no Passeio Público, tomei-lhe de empréstimo um relógio. Tenho a satisfação de restituir-lho com esta carta. A diferença é que não é o mesmo, porém outro, não digo superior, mas igual ao primeiro. Que voulez-vous, monseigneur — como dizia Figaro, — c’est la misère. Muitas coisas se deram depois do nosso encontro; irei contá-las pelo miúdo, se me não fechar a porta. Saiba que já não trago aquelas botas caducas, nem envergo uma famosa sobrecasaca cujas abas se perdiam na noite dos tempos. Cedi o meu degrau da escada de São Francisco; finalmente, almoço.
“Dito isto, peço licença para ir um dia destes expor-lhe um trabalho, fruto de longo estudo, um novo sistema de filosofia, que não só explica e descreve a origem e a consumação das coisas, como faz dar um grande passo adiante de Zenon e Sêneca, cujo estoicismo era um verdadeiro brinco de crianças ao pé da minha receita moral. E singularmente espantoso este meu sistema; retifica o espírito humano, suprime a dor, assegura a felicidade, enche de imensa glória o nosso país. Chamo-lhe Humanitismo, de Humanitas, princípio das coisas. Minha primeira ideia revelava uma grande enfatuação; era chamar-lhe borbismo, de Borba; denominação vaidosa, além de rude e molesta. E com certeza exprimia menos. Verá, meu caro Brás Cubas, verá que é deveras um monumento; e se alguma coisa há que possa fazer-me esquecer as amarguras da vida, é o gosto de haver enfim apanhado a verdade e a felicidade. Ei-las na minha mão, essas duas esquivas; após tantos séculos de lutas, pesquisas, descobertas, sistemas e quedas, ei-las nas mãos do homem. Até breve, meu caro Brás Cubas. Saudades do
                                                               Velho amigo
                                                                          Joaquim Borba dos Santos.”

Li esta carta sem entendê-la. Vinha com ela uma boceta contendo um bonito relógio com as minhas iniciais gravadas, e esta frase: Lembrança do velho Quincas . Voltei à carta, reli-a com pausa, com atenção. A restituição do relógio excluía toda a ideia de burla; a lucidez, a serenidade, a convicção, — um pouco jactanciosa, é certo, — pareciam excluir a suspeita de insensatez. Naturalmente o Quincas Borba herdara de algum dos seus parentes de Minas, e a abastança devolvera-lhe a primitiva dignidade. Não digo tanto; há coisas que se não podem reaver integralmente; mas enfim a regeneração não era impossível. Guardei a carta e o relógio, e esperei a filosofia.



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Leia também:


Capítulo LXII / O travesseiro
Capítulo LXIII / Fujamos!
Capítulo: LXIV / A transação
Capítulo LXV / Olheiros e Escutas
Capítulo LXVI / As pernas
Capítulo LXVII / A casinha
Capítulo LXVIII / O vergalho
Capítulo LXIX / Um grão de sandice
Capítulo LXX / Dona Plácida
Capítulo LXXI / O senão do livro
Capítulo LXXII / O bibliômano
Capítulo LXXIII / O luncheon
Capítulo LXXIV / História de Dona Plácida
Capítulo LXXV / Comigo
Capítulo LXXVI / O estrume
Capítulo LXXVII / Entrevista
Capítulo LXXVIII / A presidência
Capítulo LXXIX / Compromisso
Capítulo LXXX / De secretário
Capítulo LXXXI / A reconciliação
Capítulo LXXXII / Questão de botânica
Capítulo LXXXIII / 13
Capítulo LXXXIV / O conflito
Capítulo LXXXV / O cimo da montanha
Capítulo LXXXVI / O mistério
Capítulo LXXXVII / Geologia
Capítulo LXXXVIII / O enfermo
Capítulo LXXXIX / In extremis
Capítulo XC / O velho colóquio de Adão e Caim
Capítulo XCI / Uma carta extraordinária
Capítulo XCII / Um homem extraordinário


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