sexta-feira, 30 de julho de 2021

Hilda Hilst - Diálogos com o amor

Hilda Hilst


comecemos pela poesia...


“Me fizeram de pedra/ quando eu queria/ ser feita de amor”





Para poder morrer
Guardo insultos e agulhas
Entre as sedas do luto.
Para poder morrer
Desarmo as armadilhas
Me estendo entre as paredes
Derruídas.
Para poder morrer
Visto as cambraias
E apascento os olhos
Para novas vidas.
Para poder morrer apetecida
Me cubro de promessas
Da memória.
Porque assim é preciso
Para que tu vivas.





Gostaria de encontrar-te.

Falar das cousas
que já estão perdidas.

Tuas mãos trementes
se desmanchariam
na sonoridade
dos meus ditos.

Faria de teus olhos
luz,
de tua boca
um eco.

Nos teus ouvidos
eu falaria de amigos.

Quem sabe se amarias escutar-me.


[III, Presságio]





Nós, poetas e amantes
o que sabemos do amor?
Temos o espanto na retina
diante da morte e da beleza.
Somos humanos e frágeis
mas antes de tudo, sós.
Somos inimigos.
Inimigos com muralhas
de sombra sobre os ombros.
E sonhamos. Às vezes
damos as mãos àqueles
que estão chorando.
(os que nunca choraram por nós)
Ah, meus irmãos e irmãs…
Ai daqueles que nos amam
e que por amor de nós se perdem.
Ah, pudéssemos amar um homem
ou uma mulher ou uma coisa…
Mas diante de nós, o tempo
se consome, desaparece e não para.
Ouvi: que vossos olhos se inundem
de pranto e água de todo o mundo!
Somos humanos e frágeis
mas antes de tudo, sós.

[XX, Balada do festival]






Convém amar
O amor e a rosa
E a mim que sou
Moça e formosa
Aos vossos olhos
E poderosa
Porque vos amo
Mais do que a mim.

Convém amar
Ainda que seja
Por um momento:
Brisa leve a
Princípio e seu
Breve momento
Também é jeito
De ser, do tempo.

Porque ai senhor
A vida é pouca:
Um bater de asa
Um só caminho
Da minha à vossa
Casa…

E depois, nada.


[IV, Trovas de muito amor para um amado senhor]






Hilda Hilst TV Cultura





Tu não te moves de ti + Por que ler Hilda Hilst
 | Tatiana Feltrin

Julio Verne - A Volta ao Mundo em 80 Dias, Capítulo XXIX

 Júlio Verne



A Volta ao Mundo em 80 Dias





CAPÍTULO XXIX

ONDE SE FARÁ A NARRAÇÃO DE DIVERSOS INCIDENTES, QUE SÓ 
ACONTECEM NAS ESTRADAS DE FERRO DA UNIÃO



Naquela mesma noite, o trem prosseguindo sua rota sem obstáculos, ultrapassava o Fort Saunders, transpunha o desfiladeiro do Cheyenne, e chegava ao de Evans. Neste lugar, a rail-road atingiu o ponto mais alto do dia, ou seja oito mil noventa e um pés acima do nível do mar. Os viajantes só tinham agora que descer até o Atlântico sobre essas planícies sem limites, niveladas pela natureza.

Lá se encontrava sobre o “grande trunk”, o entroncamento de Denver City , a principal cidade do Colorado. Este território é rico em minas de ouro e prata, e mais de cinquenta mil habitantes aí já fixaram moradia.

Neste momento, mil trezentas oitenta e duas milhas tinham sido feitas desde São Francisco, em três dias e três noites. Quatro dias e quatro noites, de acordo com todas as previsões, deveriam bastar para o trem alcançar Nova York. Phileas Fogg se mantinha pois dentro dos intervalos regulamentares.

Durante a noite, deixaram à esquerda Camp Walbach. O Lodge Pole Creek corria paralelamente à via, seguindo a fronteira retilínea comum aos Estados de Wyoming e do Colorado. Às onze horas entraram no Nebraska, passaram perto de Sedgwick, e chegaram a Julesburg, situado na margem sul do Platte River.

Foi neste ponto que se fez a inauguração da Union Pacific Road, em 23 de outubro de 1887, da qual o engenheiro responsável foi o general J. M. Dodge. Ali pararam as duas potentes locomotivas, rebocando os nove vagões dos convidados, entre os quais figurava o vice-presidente, Mr. Thomas C. Durant; ali reboaram as aclamações; ali os Sioux e os Pawnies deram o espetáculo de uma pequena guerra indígena; ali, os fogos de artifício arderam; ali, finalmente, se publicou, em uma gráfica portátil, o primeiro número do Railway Pioneer. Assim foi celebrada a inauguração desta grande estrada de ferro, instrumento de progresso e de civilização, lançado através do deserto, e destinado a ligar entre si vilas e cidades que não existiam ainda. O apito da locomotiva, mais potente que a lira de Amphion, iria logo fazê-las brotar no solo americano.

Às oito horas da manhã, o forte McPherson tinha sido deixado para trás. Trezentas e cinquenta e sete milhas separam este ponto de Omaha. A via férrea seguia, sobre sua margem esquerda, as caprichosas sinuosidades do braço sul do Platte River. Às nove horas, chegaram à importante cidade de North Platte, edificada entre o dois braços do grande curso de água, que se reúnem em torno dela para formar uma só artéria — afluente importante cujas águas se confundem com as do Missouri, um pouco acima de Omaha. O centésimo primeiro meridiano estava franqueado.

Mr. Fogg e seus parceiros tinham recomeçado o jogo. Nenhum deles se queixava da demora da viagem — nem mesmo o morto. Fix tinha começado ganhando alguns guinéus, que estava em vias de perder, mas nem por isso se mostrava menos entusiasmado que Mr. Fogg. Durante esta manhã, a sorte favoreceu bastante este gentleman. Os trunfos e as cartas de maior valor choviam em suas mãos. Em certo momento, depois de ter combinado um lance audacioso, preparava-se para jogar espadas, quando atrás do banco ouviu uma voz que dizia:

— Se fosse eu, jogava ouros...

Mr. Fogg, Mrs. Aouda, Fix levantaram a cabeça. O coronel Proctor estava perto deles.

Stamp W. Proctor e Phileas Fogg reconheceram-se no ato.

— Ah! por aqui, senhor inglês, exclamou o coronel, é o senhor que queria jogar espadas!

— E jogo, respondeu friamente Phileas Fogg, deitando à mesa um dez deste naipe.

— Pois bem, eu quero que sejam ouros, replicou o coronel Proctor com voz irritada.

E fez um gesto para levantar a carta jogada, acrescentando:

— Não entende nada deste jogo.

— Talvez seja mais hábil em outro, disse Phileas Fogg, que se levantou.

— Só depende de si, filho de John Bull! replicou o grosseiro personagem.

Mrs. Aouda tinha ficado pálida. Todo seu sangue refluiu para o coração. Tinha agarrado o braço de Phileas Fogg, que a repeliu docemente. Passepartout estava prestes a se lançar sobre o americano, que olhava seu adversário com o mais insultante dos olhares. Mas Fix tinha se levantado, e, indo ao coronel Proctor, lhe disse:

— Esquece-se de que é comigo a questão, senhor, comigo a quem o senhor, não só injuriou, mas agrediu!

— Senhor Fix, disse Phileas Fogg, peço-lhe perdão, mas isto só diz respeito a mim. Alegando que eu estava errado jogando espadas, o coronel me fez uma nova injúria, e há de dar-me uma satisfação.

— Quando e onde quiser, respondeu o americano, e com a arma que lhe agradar!

Mrs. Aouda em vão procurou reter Mr. Fogg. O inspetor tentou inutilmente retomar a querela para si. Passepartout queria atirar o coronel pela porta, mas um gesto do patrão o conteve. Phileas Fogg deixou o vagão, e o americano seguiu-o pelo passadiço.

— Senhor, disse Mr. Fogg ao seu adversário, tenho muita pressa em voltar para a Europa, e qualquer atraso prejudicaria muito meus interesses.

— E daí? O que é que eu tenho com isso? respondeu o coronel Proctor.

— Senhor, retomou muito polidamente Mr. Fogg, depois do nosso encontro em São Francisco, eu tinha feito planos de vir reencontrá-lo na América, assim que tivesse concluído os negócios que me chamam ao velho continente.

— Verdade?

— Quer marcar o encontro para daqui a seis meses?

— Porque não daqui a seis anos?

— Disse seis meses, respondeu Mr. Fogg, e serei pontual.

— Desculpas! Só desculpas! exclamou Stamp W. Proctor. Agora ou nunca.

— Pois que seja, respondeu Mr. Fogg. Vai para Nova York?

— Não.

— Chicago?

— Não.

— Omaha?

— Pouco importa! Conhece Plum Creek?

— Não, respondeu Mr. Fogg.

— É a próxima estação. O trem estará lá em uma hora. Estacionará por dez minutos. Em dez minutos, podemos trocar alguns tiros de revólver.

— Que seja, respondeu Mr. Fogg. Deter-me-ei em Plum Creek.

— E creio que vai ficar por lá! acrescentou o americano com uma insolência sem igual.

— Quem sabe, senhor? exclamou Mr. Fogg, e voltou ao seu vagão, tão frio como de costume.

Lá, o gentleman começou por sossegar Mrs. Aouda, dizendo-lhe que os fanfarrões não eram nunca para recear. Depois pediu a Fix que lhe servisse de testemunha no duelo que iria travar. Fix não podia recusar, e Phileas Fogg recomeçou tranquilamente o jogo interrompido, jogando espadas com a maior calma.

Às onze horas, o apito da locomotiva anunciou a chegada à estação de Plum Creek. Mr. Fogg se levantou, e, seguido de Fix, colocou-se sobre o passadiço. Passepartout o acompanhava, levando um par de revólveres. Mrs. Aouda tinha ficado no vagão, pálida como uma morta.

Neste momento, a porta do outro vagão se abriu, e o coronel Proctor apareceu igualmente sobre o passadiço, seguido da sua testemunha, um yankee da sua têmpera. Mas no instante em que os dois adversários iam descer para a via, o condutor apareceu e gritou-lhes:

— Não pode descer, senhores.

— E por quê? perguntou o coronel.

— Estamos com de vinte minutos de atraso, e o trem não para.

— Mas eu tenho de me bater com este senhor.

— Lamento, respondeu o empregado; mas partimos imediatamente. O sino já está tocando!

Efetivamente tocava, e o trem voltou a se pôr a caminho.

— Estou realmente desolado, senhores, disse então o condutor. Em qualquer outra circunstância, eu poderia ter concedido. Mas, afinal, já que não têm tempo de se baterem aqui, quem os impede de se baterem no caminho?

— Isso talvez não convenha a este senhor! disse o coronel Proctor com ar gozador.

— Convém-me perfeitamente, respondeu Phileas Fogg.

— Pois é, decididamente, estamos na América! pensou Passepartout, e o condutor do trem é um gentleman de primeira!

E dizendo isto seguiu seu patrão.

Os dois adversários, suas testemunhas, precedidos pelo condutor, dirigiram-se, passando de um vagão para outro, à traseira do trem. O último vagão só estava ocupado por uma dezena de viajantes. O condutor perguntou-lhes se poderiam deixar o lugar livre para os dois que tinham uma questão de honra a resolver.

— Como! Mas os viajantes estavam muito felizes em serem agradáveis aos dois gentlemen e se retiraram sobre os passadiços.

Este vagão, de uns cinquenta pés de comprimento, prestava-se muito convenientemente à circunstância. Os dois adversários podiam caminhar um para o outro entre os bancos e dispararem à vontade. Nunca houve duelo mais fácil de regrar. Mr. Fugg e o coronel Proctor, munido cada um com dois revólver de seis tiros, entraram no vagão. Suas testemunhas, que ficaram do lado de fora, os fecharam lá dentro. Ao primeiro apito da locomotiva deviam começar o fogo... Depois, passados dez minutos, retirar-se-ia do vagão o que tivesse sobrado dos dois gentlemen.

Nada mais simples na verdade. Era mesmo tão simples, que Fíx e Passepartout sentiam o coração bater fortemente.

Esperava-se, pois, o apito convencionado, quando subitamente gritos selvagens ressoaram. Detonações os acompanharam, mas não vinham do vagão destinado aos duelistas. Estas detonações se prolongavam, ao contrário, até a frente e pelas laterais do trem. Gritos de terror se faziam ouvir no interior do comboio.

O coronel Proctor e Mr. Fogg, revólver em punho, saíram logo do vagão e precipitaram-se para a frente, onde soavam mais estrondosamente as detonações e os gritos.

Tinham compreendido que o trem estava sendo atacado por um bando de Siouxs. Estes ferozes índios não estavam fazendo sua estreia, e mais de uma vez já tinham detido comboios. Segundo seu costume, sem esperar a parada do trem, saltando sobre os estribos em número de uma centena, tinham escalado os vagões como faz um clown de um cavalo a galope.

Os Sioux estavam munidos de rifles. Daí as detonações a que os viajantes, quase todos armados, respondiam com tiros de revólver. Logo no começo, os índios tinham se precipitado para a máquina. O maquinista e o fogueiro tinham sido quase prostrados a golpes de macete. Um chefe sioux, querendo parar o trem, mas não sabendo manejar a manivela do regulador, tinha aberto mais a entrada do vapor em lugar de fechar e a locomotiva, impelida, corria com uma velocidade assustadora.

Ao mesmo tempo, os Sioux tinham invadido os vagões, corriam como macacos em fúria por cima da capota do trem, arrombavam as portinholas e lutavam corpo a corpo com os viajantes. Para fora do vagão das bagagens, arrombado e saqueado, os fardos eram arremessados para a via. Gritos e disparos não cessavam.

Entretanto os viajantes defendiam-se corajosamente. Alguns vagões, barricados, enfrentavam um cerco, como verdadeiros fortes ambulantes, levados a cem milhas por hora.

Desde o começo do ataque, Mrs. Aouda tinha se comportado corajosamente. Revólver em punho, defendia-se heroicamente, atirando através dos vidros quebrados, quando um selvagem passava por sua mira. Uns vinte Sioux, mortalmente feridos, tinham tombado na via, e as rodas dos vagões esmagavam como vermes os que deslizavam sobre os rails do alto dos passadiços. Diversos viajantes, gravemente atingidos pelas balas ou pelas clavas, jaziam sobre os bancos.

Entretanto era preciso parar. Esta luta já durava dez minutos, e terminaria em favor dos Sioux certamente se o trem não parasse. Com efeito, a estação do forte Kearney não estava a duas milhas de distância. Lá havia um posto americano; mas passado este posto, entre o forte Kearney e a estação seguinte, os Sioux seriam senhores do trem.

O condutor lutava ao lado de Mr. Fogg, quando uma bala o derrubou. Ao cair, gritou:

— Estamos perdidos, se o trem não parar antes de cinco minutos!

— Vai parar! disse Mr. Phileas Fogg, que queria se lançar para fora do vagão.

— Fique, senhor! lhe gritou Passepartout. Deixe comigo!

Phileas Fogg não teve tempo de deter o corajoso rapaz, que, abrindo a portinhola sem ser visto pelos índios, conseguiu deslizar para baixo do vagão. E então, enquanto a luta continuava, enquanto as balas se cruzavam sobre sua cabeça, reencontrando sua agilidade de clown, metendo-se sob os vagões, agarrando-se às correntes, valendo-se das alavancas dos freios de cabos da carroceria, pulando de um carro para o outro com uma facilidade maravilhosa, chegou à parte dianteira do trem. Não tinha sido visto, não poderia ter sido visto.

Ali, suspenso por uma mão entre o vagão de bagagem e o tender, com a outra desenganchou as correntes de segurança; mas em virtude da tração desenvolvida, nunca poderia ter desaparafusado a barra de atrelagem, se um abalo da máquina não tivesse feito saltar esta barra, e o trem, solto, foi ficando pouco a pouco para trás, enquanto a locomotiva fugia com velocidade crescente.

Levado pela força adquirida, o trem ainda rolou por alguns minutos, mas os freios foram acionados no interior dos vagões, e o comboio finalmente parou, a menos de cem passos da estação de Kearney .

Os soldados do forte, atraídos pelos tiros, acudiram logo. Os Sioux não os esperavam, e, antes que o trem parasse completamente, todo o bando tinha se posto em fuga.

Mas quando os viajantes se contaram na plataforma da estação, perceberam que faltavam muitos à chamada, e entre eles o corajoso francês, cuja dedicação acabara de os salvar.



continua pag 186...


_______________________



Julio Verne nasceu em Nantes em 8 de fevereiro de 1828. Fugiu de casa com 11 anos para ser grumete e depois marinheiro. Localizado e recuperado, retornou ao lar paterno. Em um furioso ataque de vergonha por sua breve e efêmera aventura, jurou solenemente (para a sorte de seus milhões de leitores) não voltar a viajar senão em sua imaginação e através de sua fantasia.

Promessa que manteve em mais de oitenta livros.

Sua adolescência transcorreu entre contínuos choques com o pai, para quem as veleidades exploratórias e literárias de Júlio pareciam totalmente ridículas.

Finalmente conseguiu mudar-se para Paris onde entrou em contato com os mais prestigiados literatos da época. Em 1850 concluiu seus estudos jurídicos e, apesar insistência do pai para que voltasse a Nantes, resistiu, firme na decisão de tornar-se um profissional das letras.

Foi por esta época que Verne, influenciado pelas conquistas científicas e técnicas da época, decide criar uma literatura adaptada à idade científica, vertendo todos estes conhecimentos em relatos épicos, enaltecendo o gênio e a fortaleza do homem em sua luta por dominar e transformar a natureza.

Em 1856 conheceu Honorine de Vyane, com quem casou em 1857.

Por essa época, era um insatisfeito corretor na Bolsa, e resolveu seguir o conselho de um amigo, o editor P. J. Hetzel, que será seu editor in eternum, e converteu um relato descritivo da África no Cinco Semanas em Balão (1863). Obteve êxito imediato. Firmou um contrato de vinte anos com Hetzel, no qual, por 20.000 francos anuais, teria de escrever duas novelas de novo estilo por ano. O contrato foi renovado por Hetzel e, mais tarde, por seu filho. E assim, por mais de quarenta anos, as Voyages Extraordinaires apareceram em capítulos mensais na revista Magasin D'éducation et de Récréation.

Em A Volta ao Mundo em 80 Dias, encontramos, ao mesmo tempo, muito da breve experiência de Verne como marinheiro e como corretor de Bolsa. Nada mais justo, também, que o novo estilo literário inaugurado por Júlio Verne, fosse utilizado por uma nova arte que surgia: o cinema. Da Terra à Lua (Georges Mélies, 1902), La Voyage a travers l'impossible (Georges Mélies, 1904), 20.000 lieus sous les mers (Georges Mélies, 1907), Michael Strogof (J. Searle Dawley, 1910), La Conquête du pôle (Georges Mélies, 1912) foram alguns dos primeiros filmes baseados em suas obras. Foram inúmeros.

A Volta ao Mundo em 80 dias foi filmado em 1956, com enredo milionário, dirigido por Michael Anderson, música de Victor Young, direção de fotografia de Lionel Lindon. David Niven fez Phileas Fogg, Cantinflas, Passepartout, Shirley MacLaine, Aouda. Em 1989, foi aproveitado para uma série de TV, com a participação da BBC, dirigida por Roger Mills. No mesmo ano, outra série de TV, agora nos EE.UU., dirigida por Buzz Kulik, com Pierce Brosnan (Phileas Fogg), Eric Idle (Passepartout), Julia Nickson-Soul (Aouda), Peter Ustinov (Fix).

Apesar de tudo, a vida de Verne não foi fácil. Por um lado sua dedicação ao trabalho minou a tal ponto sua saúde que durante toda a vida sofreu ataques de paralisia. Como se fosse pouco, era diabético e acabou por perder vista e ouvido. Seu filho Michael lhe deu os mesmos problemas que dera ao pai e, desgraça das desgraças, um de seus sobrinhos lhe disparou um tiro à queima-roupa deixando-o coxo. Sua vida efetiva também não foi das mais tranquilas e todos os seus biógrafos admitem ter tido uma amante, um relacionamento que só terminou com a morte da misteriosa dama.

Verne também se interessou pela política, tendo sido eleito para o Conselho de Amiens em 1888 na chapa radical, reeleito em 1892, 1896 e 1900.

Morreu em 24 de Março de 1905


_____________________


Leia também:

Julio Verne - A Volta ao Mundo em 80 Dias, Capítulo XXIX


_________________________


A Volta ao Mundo em 80 Dias é um romance de aventura escrito pelo francês Júlio Verne e lançado em 1873. A obra retrata a tentativa do cavalheiro inglês Phileas Fogg e seu valete, Passepartout, de circum-navegar o mundo em 80 dias.

Data da primeira publicação: 30 de janeiro de 1873
Autor: Júlio Verne
Editora: Pierre-Jules Hetzel
País: França
Personagens: Phileas Fogg, Passepartout, Princesa Aouda, Inspetor Fix, James Forster

quinta-feira, 29 de julho de 2021

Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 4 (b) ... Ninguém manifestou a menor suspeita

  Capítulo 4



continuando...


Ninguém manifestou a menor suspeita de que Orlando não fosse o Orlando que tinham conhecido. Se houvesse alguma dúvida na mente humana, a atitude dos veados e dos cachorros seria suficiente para dissipá-la, pois, como se sabe, os animais são melhores juízes de identidade e caráter do que nós. Além disso — disse a sra. Grimsditch ao sr. Dupper aquela noite, diante de sua xícara de chá —, se seu senhor era agora uma senhora, ela nunca via uma tão encantadora e não havia como escolher entre eles; um era tão favorecido quanto a outra; eram tão semelhantes como dois pêssegos em um galho; e quanto a si — disse a sra. Grimsditch tornando-se confidencial — sempre tivera suas suspeitas (aqui balançou a cabeça misteriosamente), e não era surpresa para ela (aqui balançou a cabeça astutamente) e de sua parte isso era um grande alívio; pois, com as toalhas precisando remendar e as cortinas da sala do capelão comidas por traças nas franjas, era tempo de terem uma senhora entre eles.

“E que alguns pequenos senhores e senhoras a sucedam”, acrescentou o sr. Dupper, cuja sagrada missão lhe conferia o privilégio de dar opinião em assunto delicados como esses.

Assim, enquanto os velhos criados mexericavam na sua sala, Orlando pegou um castiçal de prata e vagou mais uma vez através dos salões, galerias, pátios, quartos; viu inclinar-se diante dela, de novo, a face escura deste Lorde chanceler, daquele camareiro-mor, dentre seus antepassados; ora sentava-se naquele trono, ora reclinava-se naquele delicioso dossel; observava as tapeçarias, e como balançavam; olhava os caçadores cavalgando e Dafne voando; banhava a mão, como gostava de fazer em criança, na poça de luz amarela que o luar fazia atravessando o leopardo heráldico da janela; deslizava ao longo das tábuas polidas da galeria, que do outro lado eram madeira áspera; tocava esta seda, aquele cetim; imaginava que os golfinhos esculpidos nadavam; escovava o cabelo com a escova de prata do rei Jaime; mergulhava o rosto no pot-pourri, [1] como o Conquistador havia ensinado muitos séculos antes, e que era feito das mesmas rosas; olhava para o jardim e imaginava os açafrões dormindo e as dálias entorpecidas; via as frágeis ninfas brilhando brancas na neve, e, atrás delas, negras e espessas como uma casa, as grandes cercas de teixos; via os laranjais e as nespereiras gigantes; — tudo isso viu, e cada visão ou som, apesar da rudeza com que descrevemos, enchia o seu coração com tal prazer e com um tal bálsamo de alegria que finalmente, exausta, entrou na capela e afundou na velha poltrona vermelha onde seus antepassados costumavam acompanhar o ofício religioso. Lá acendeu um charuto (era um hábito que trouxera do Oriente) e abriu o Livro de Orações.


[1] Em francês no original: mistura, miscelânea. (N.E.)

Era um livrinho encadernado em veludo, costurado com fio de ouro, que Maria rainha da Escócia segurara no cadafalso, e o olho piedoso podia detectar uma mancha pardacenta que se dizia ter sido feita por uma gota do sangue real. Mas quem ousaria dizer que piedosos pensamentos isso despertou em Orlando, que paixões malévolas adormeceu, visto que, de todas as comunhões, a mais inescrutável é com a divindade? Novelista, poeta, historiador, todos vacilam ao tocar nessa porta; nem o próprio crente nos esclarece, pois estará ele mais preparado para morrer do que as outras pessoas, ou mais ansioso em partilhar seus bens? Ele não mantém tantas empregadas e parelhas de cavalos, como o resto? E, com tudo isso, sustenta uma fé — diz ele — que torna os bens vaidade e a morte desejável. No livro de orações da rainha, juntamente com a mancha de sangue, havia uma mecha de cabelos e uma migalha; Orlando agora acrescentava a essas relíquias uma lasca de tabaco, e assim, lendo e fumando, foi levada pela mistura humana de tudo isso — cabelo, migalha, mancha de sangue e tabaco — a uma tal forma de contemplação que lhe deu um ar reverente, adequado às circunstâncias, embora se dissesse que ela não tinha trânsito com o Deus habitual. Nada, porém, pode ser mais arrogante, embora mais comum, do que assumir que de Deuses só existe um, e de religiões nenhuma além da de quem fala. Orlando, parece, tinha uma fé própria. Com todo o ardor religioso do mundo, agora refletia sobre seus pecados e imperfeições, que tinham se insinuado em seu estado de espírito. A letra S, refletiu, é a serpente do Éden do poeta. Fizesse o que quisesse, ainda havia muitos desses répteis pecaminosos nas primeiras estrofes de “O Carvalho”. Mas o “S” não era nada, em sua opinião, se comparado com a terminação “ndo”. O particípio presente é o próprio demônio, pensou (agora que estamos num lugar para crer em demônios). Evitar tais tentações é o primeiro dever do poeta, concluiu, pois, como o ouvido é a antecâmara da alma, a poesia pode adulterar e destruir com mais segurança do que a luxúria ou a pólvora. O ofício do poeta é, então, o mais elevado de todos — continuou. Suas palavras alcançam onde os outros falham. Uma simples canção de Shakespeare tem feito mais pelos pobres e pelos desgraçados do que todos os pregadores e filantropos do mundo. Nem tempo nem devoção podem ser tão grandes, portanto, para tornar o veículo de nossa mensagem menos distorcido. Devemos modelar nossas palavras até que sejam o mais fino invólucro de nossos pensamentos. Os pensamentos são divinos etc. Assim, é óbvio que ela estava de volta aos limites de sua própria religião, que o tempo tinha fortalecido em sua ausência, e ia adquirindo rapidamente a intolerância da crença.

“Estou crescendo”, pensou, pegando finalmente a vela. “Estou perdendo algumas ilusões”, disse, fechando o livro da rainha Maria, “talvez para adquirir outras”, e desceu por entre as tumbas onde jaziam os ossos de seus antepassados.

Mas, mesmo os ossos de seus antepassados, Sir Miles, Sir Gervase e os outros, tinham perdido algo de sua santidade desde que Rustum el Sadi abanara a mão, naquela noite, nas montanhas da Ásia. De alguma forma encheu-a de remorso o fato de que havia apenas três ou quatro séculos esses esqueletos tivessem sido homens, com o seu caminho a percorrer no mundo, como qualquer arrivista moderno, e que tivessem feito isso adquirindo casas e cargos, jarreteiras e condecorações, como qualquer outro arrivista faz, enquanto poetas, talvez, e homens de grande talento e educação tivessem preferido a quietude do campo e por essa escolha tivesse pago a pena de uma extrema pobreza e agora apregoassem boletins no Strand, ou pastoreassem carneiros nos campos. Enquanto permaneceu de pé, na cripta, pensou nas pirâmides do Egito e nos ossos que jazem debaixo delas; e as vastas e desertas colinas que dominam o meio de Mármara pareceram-lhe, naquele momento, uma habitação mais bela do que essa mansão de muitos quartos, na qual não faltava colcha a nenhuma cama nem tampa de prata a nenhuma terrina de prata.

“Estou crescendo”, pensou, pegando a sua vela. “Estou perdendo minhas ilusões, talvez para adquirir outra novas”, e foi caminhando pela longa galeria para o seu quarto. Era um processo desagradável e incômodo. Mas surpreendentemente interessante, pensou, esticando as pernas para a lareira (pois não havia nenhum marinheiro presente), e reviu, como se fosse uma avenida de grandes edifícios, o progresso do seu eu, ao longo de seu próprio passado.

Como amara o som quando menino e como pensara que a torrente de sílabas tumultuosas vindas dos lábios fosse a mais bela de toda a poesia. Depois — talvez por efeito de Sasha e de sua desilusão — deixou cair nesse grande frenesi uma gota negra, que transformou em morosidade a sua rapsódia. Lentamente abria-se dentro dela alguma coisa intrincada e de muitos compartimentos, que se precisa ter uma tocha para explorar, em prosa e não em verso; e recordou quão apaixonadamente estudara aquele doutor Browne, de Norwich, cujo livro estava ali ao seu alcance. Construíra aqui, em solidão, depois de seu caso com Greene, ou tentara construir — pois Deus sabe como essas construções são demoradas — um espírito capaz de resistência. “Escreverei”, disse, “o que eu gostar de escrever”; e então rascunhou 26 volumes. Mesmo assim, apesar de todas as suas viagens e aventuras, suas profundas meditações e suas voltas para um lado e para outro, estava apenas no processo de criar. O que o futuro traria, somente os céus sabiam. A mudança era incessante, a mudança talvez não cessasse nunca. Altas muralhas de pensamentos, hábitos que tinham parecido duráveis como pedra, caíam como sombras ao toque de um outro espírito e deixavam o céu desnudo, com estrelas brilhando. Aqui dirigiu-se à janela e, apesar do frio, não pôde deixar de abri- la. Inclinou-se no ar úmido da noite. Ouviu uma raposa uivar no bosque e o ruído de um faisão passando por entre os ramos. Ouviu a neve escorregar e cair do telhado ao chão. “Por minha vida”, exclamou, “isto é mil vezes melhor do que a Turquia. Rustum”, gritou, como se estivesse discutindo com o cigano (e, com este novo poder de criar e manter uma discussão com alguém que não estava ali para contradizê-la, mostrava novamente o desenvolvimento de seu espírito), “estavas enganado. Isto é melhor do que a Turquia. Cabelo, migalha, tabaco — e toda a miscelânea de que somos compostos”, disse (pensando no livro de orações da rainha Maria). “Que fantasmagoria é o espírito, e que ponto de encontro de dessemelhanças! Em dado momento deploramos nosso berço e nossa riqueza e aspiramos a uma exaltação ascética; no seguinte somos dominados pelo cheiro de alguma alameda de um velho jardim e choramos ao ouvir o canto dos tordos.” E assim, perplexa como de costume pela multiplicidade de coisas que exigem explicação e que imprimem sua mensagem sem deixar qualquer indício do significado, atirou o charuto pela janela e foi para a cama.

Na manhã seguinte, em consequência desses pensamentos, pegou pena e papel e recomeçou “O Carvalho”, pois ter tinta e papel em quantidade, quando se teve que recorrer a sementes e margens, é um prazer inimaginável. Assim, estava agora esboçando uma frase nas profundezas do desespero, escrevendo outra nos cumes do êxtase, quando uma sombra escureceu a página. Apressadamente escondeu o manuscrito.

Como sua janela dava para a parte mais central dos pátios, e como dera ordens que não queria ver ninguém, como sabia que não conhecia ninguém e era legalmente desconhecida, ficou primeiro surpresa com a sombra, depois indignada com ela. Então (quando olhou para cima e viu o que a causava) foi dominada pela alegria, pois era uma sombra familiar, uma sombra grotesca, a sombra de nada menos que a arquiduquesa Harriet Griselda de Finster- Aarhorn e Scand-op-Boom, do território romeno. Ela atravessava o pátio, como antes, com o seu velho traje negro de montaria e sua capa. Nenhum cabelo de sua cabeça havia mudado. Esta, então, era a mulher que a expulsara da Inglaterra! Este era o ninho daquele abutre obsceno — este era o próprio pássaro fatal! Ao pensar que fugira para a Turquia para evitar sua sedução (que agora tinha se tornado excessivamente insípida), Orlando riu alto. Havia algo inexprimivelmente cômico naquela visão. Ela parecia — como Orlando pensara antes — nada mais do que uma lebre monstruosa. Tinha os olhos arregalados, as bochechas flácidas, o topete alto daquele animal. Parara agora, com uma lebre, sentada ereta no trigo, julgando não ser observada, e fitou Orlando, que por sua vez fitou-a da janela. Depois de terem se fitado dessa forma por algum tempo, não havia outra coisa a fazer senão convidá-la a entrar, e logo as duas damas estavam trocando cumprimentos, enquanto a arquiduquesa sacudia a neve de sua capa.

“O diabo carregue as mulheres!”, disse Orlando para si mesma, indo até o armário pegar um copo de vinho, “nunca deixam a ninguém um momento de paz. Não existe gente mais bisbilhoteira, curiosa e intrometida do que elas. Foi para fugir deste mastro enfeitado que eu parti da Inglaterra, e agora” — aqui virou-se para oferecer a bandeja à arquiduquesa e espantou-se: em seu lugar surgiu um cavalheiro alto, de negro. Um monte de roupas jazia no guarda-fogo. Ela estava sozinha com um homem.

Chamada bruscamente à consciência de seu sexo — que ela esquecera completamente — e à dele, que era agora bastante remota para ser igualmente inquietante, Orlando sentiu que ia desmaiar.

“Ah!”, gritou, pondo a mão no quadril, “que susto!”

“Gentil criatura”, exclamou a arquiduquesa, caindo de joelhos e ao mesmo tempo aproximando dos lábios de Orlando um licor cordial, “perdoe-me a peça que lhe preguei!”

Orlando sorveu o vinho, e o arquiduque ajoelhou-se e beijou-lhe a mão.

Em suma, eles representaram papéis de homem e mulher por dez minutos, com grande vigor, e depois retornaram às maneiras habituais. A arquiduquesa (mas que de agora em diante deve ser conhecida como o arquiduque) contou sua história — que era um homem, e sempre tinha sido; que vira um retrato de Orlando e se apaixonara por ele desesperadamente; que para atingir seus fins se vestira como mulher e se hospedara na casa do padeiro; que ficara desconsolado quando ele fugira para a Turquia; que soubera de sua transformação e se apressara a oferecer seus préstimos (aqui representava, de um modo intolerável). Pois para ele, disse o arquiduque Harry, ela era e sempre fora o Pináculo, a Pérola, a Perfeição do seu sexo. Os três “P” teriam sido mais convincentes se não tivessem sido entremeados com muxoxos e exclamações das mais estranhas. “Se isto é amor”, disse Orlando para si mesma, olhando para o arquiduque do outro lado do guarda-fogo, e agora do ponto de vista feminino, “há nele alguma coisa profundamente ridícula.”

Caindo de joelhos, o arquiduque Harry fez-lhe a mais apaixonada das declarações. Disse-lhe que tinha cerca de vinte milhões de ducados num cofre-forte em seu castelo. Possuía mais acres do que qualquer nobre na Inglaterra. A caça era excelente: podia prometer-lhe uma bolsa sortida de lagópodes e de galos silvestres, como nenhum pântano inglês ou escocês poderia oferecer. Na verdade, os faisões tinham sido atacados de gosma durante sua ausência e os antílopes perdido suas crias, mas isso poderia ser remediado e seria, com a sua ajuda, quando vivessem juntos na Romênia.

Enquanto falava, lágrimas enormes formavam-se nos olhos bastante proeminentes e escorriam pelos sulcos arenosos de suas longas e flácidas bochechas.

Que os homens choram tão frequentemente e tão sem razão quanto as mulheres, Orlando sabia por experiência própria como homem; mas estava começando a perceber que as mulheres devem ficar chocadas quando os homens demonstram emoção diante delas, e assim ficou chocada.

O arquiduque desculpou-se. Controlou-se o suficiente para dizer-lhe que a deixaria agora, mas voltaria no dia seguinte para saber a sua resposta.

Era terça-feira. Ele veio na quarta; veio na quinta; veio na sexta; veio no sábado. É certo que cada visita começava, continuava ou concluía com uma declaração de amor, mas nos intervalos havia bastante espaço para o silêncio. Sentavam-se um de cada lado da lareira, e às vezes o arquiduque derrubava as tenazes e Orlando arrumava-as de novo. Então o arquiduque lembrava que caçara um alce na Suécia e Orlando lhe perguntava se era um alce muito grande, o arquiduque dizia que não era tão grande quanto a rena que caçara na Noruega; Orlando lhe perguntava se alguma vez tinha caçado um tigre, o arquiduque dizia que caçara um albatroz, e Orlando perguntava (meio escondendo um bocejo) se um albatroz era tão grande quanto um elefante e o arquiduque respondia algo bastante sensato, sem dúvida, mas Orlando não escutava, pois estava olhando para sua escrivaninha, ou pela janela, ou para a porta. Depois disso, o arquiduque dizia: “Adoro-a!”, ao mesmo tempo que Orlando dizia: “Olhe, está começando a chover”, e ficavam ambos muito embaraçados e coravam, e nenhum deles sabia o que dizer depois. Na verdade, Orlando estava no limite de seu conhecimento sobre o que conversar e, se não tivesse se lembrado de um jogo chamado fly loo — no qual se pode perder grandes somas de dinheiro com pouco dispêndio de espírito —, teria tido que casar, supunha, pois não sabia como se livrar dele. Mas com este artifício, aliás bem simples — e que precisava apenas de três torrões de açúcar e de um número suficiente de moscas —, o embaraço da conversa era vencido e a necessidade de casamento evitada. Pois agora o arquiduque queria apostar com ela quinhentas libras que uma mosca pousaria neste torrão e não naquele. Assim, tinham ocupação para a manhã inteira, observando as moscas (que estavam naturalmente vagarosas naquelas estação e quase sempre levavam uma hora ou mais rodando pelo teto) até que alguma varejeira azul fazia a sua escolha e o jogo estava ganho. Muitas centenas de libras passaram das mãos de um para outro durante esse jogo, o qual o arquiduque — que se dizia um jogador nato — declarava ser tão bom quanto corrida de cavalos e jurava que poderia jogar a vida inteira. Mas Orlando logo começou a se cansar.

“Que vale ser uma linda mulher, na flor da idade”, perguntava, “se tenho que passar todas as minhas manhãs observando varejeiras azuis com um arquiduque?”

Começou a detestar o aspecto do açúcar; as moscas deixavam-na tonta. Devia haver alguma saída da dificuldade, supunha, mas ela era ainda inábil nas artes do seu sexo e, como já não podia dar uma pancada na cabeça de um homem nem atravessar-lhe o corpo com um florete, não pôde pensar em melhor método do que este: apanhou uma varejeira azul, amassou-a delicadamente até que morresse (já estava meio morta, do contrário sua bondade com os animais não lhe teria permitido isso) e colou-a com uma gota de goma arábica num torrão de açúcar. Enquanto o arquiduque olhava para o teto, ela habilidosamente substituía este torrão por aquele onde pusera o dinheiro e gritava “Ganhei! Ganhei!’’ e declarava que tinha vencido a aposta. Seu cálculo era que o arquiduque, com todo o seu conhecimento de esportes e corridas de cavalos, detectaria a fraude e, como trapacear no jogo da mosca é o mais infame dos crimes — e por causa disso homens têm sido banidos definitivamente da sociedade humana para a dos macacos nos trópicos —, imaginou que ele seria homem bastante para recusar-se daí em diante a ter algum interesse por ela. Mas julgou mal a simplicidade desse amável nobre. Ele não era um bom juiz de moscas. Uma mosca morta parecia-lhe o mesmo que uma viva. Ela fez trapaça vinte vezes e ele pagou mais de 17.250 libras (o que equivale a cerca de 40.885 libras, seis xelins e oito pence em nossa moeda), até que Orlando enganou tão grosseiramente que nem mesmo ele podia ser logrado por mais tempo. Quando afinal percebeu a verdade, aconteceu uma cena penosa. O arquiduque pôs-se de pé. Ficou escarlate. Lágrimas lhe rolavam pela face, uma por uma. Que tivesse ganhado uma fortuna à sua custa não era nada, de bom grado aceitava; que ela o tivesse enganado era alguma coisa — feria-o pensar que ela fosse capaz disso; mas que tivesse feito trapaça no jogo da mosca era tudo. Era impossível amar uma mulher que trapaceava no jogo, dizia. Aí, rompeu em definitivo. Felizmente, dizia, recuperando-se um pouco — não havia testemunhas. Afinal de contas, dizia, ela era apenas uma mulher. Em resumo, estava se preparando para perdoá-la, com a nobreza de seu coração, e se inclinava para pedir-lhe perdão pela violência de sua linguagem, quando ela abreviou o assunto, pondo-lhe um sapinho entre a pele e a camisa, no momento em que ele inclinava a orgulhosa cabeça.





continua pag 75...


__________________


Virginia Woolf, escritora inglesa, nasceu em 1882, no seio de uma família da alta sociedade londrina. Após a morte de seus pais, ela e os irmãos se mudaram para uma casa no bairro de Bloomsbury, onde realizavam encontros com personalidades e poetas da época, como como T. S. Elliot e Clive Bell. Virginia começou a escrever em 1905, inicialmente para jornais. Dez anos depois, ela lançou seu primeiro livro “A Viagem”.
No período entre a 1ª e 2ª Guerra Mundial, Virginia Woolf se tornou uma figura conhecida na sociedade inglesa. Em 1941, ela cometeu suicídio se jogando no rio Ouse, perto da residência onde morava com seu marido, o crítico literário Leonardo Woolf, em Sussex. Mas, a obra de Virginia se imortalizou. Usando com excelência a técnica do fluxo de consciência, a escritora criou livros inovadores, que lhe fizeram ser conhecida como a maior romancista lírica do idioma inglês.
A Universidade de Adelaide, uma das instituições de ensino mais antigas da Austrália, disponibilizou online toda a obra de Virginia Woolf para download gratuito. Ao todo, são dez romances e dois livros de contos que podem ser baixados em três formatos: Zip, ePub e Kindle (para dispositivos Amazon). Entre os arquivos, estão algumas das obras mais famosas da escritora inglesa, como “Mrs. Dalloway” (1925), “Rumo ao Farol” (1927), “Os Anos” (1937) e “A Marca na Parede” (1944).
As obras estão em inglês. Para fazer o download, basta clicar sobre o título e escolher a opção “download. Também estão disponíveis ensaios de Virginia Woolf, como “O Leitor Comum” (1925), no qual ela reflete sobre a arte literária com base em obras-primas de outros autores renomados.


___________________________

Leia também:

Virgínia Woolf - Orlando : Apresentação e Prefácio
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1(b) - Talvez fosse culpa de Orlando...
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1(c) ... A princesa prosseguiu
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1(d) ... Toda a cor, salvo o vermelho
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 2 (a) ... O biógrafo agora se depara
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 2 (b) ... Como esta pausa era...
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 2 (c) ... No mesmo momento
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 2 (d) ... Nunca a casa
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 3 (a) ... É realmente uma grande infelicidade
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 4 (b) ... Ninguém manifestou a menor suspeita


segunda-feira, 26 de julho de 2021

Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 4. (1)

  Diante da Dor dos Outros


para David

… aux vaincus!
Baudelaire

A sórdida mentora, a Experiência...
Tennyson


4..



Captar uma morte no momento em que ocorre e embalsamá-la para sempre é algo que só as câmeras podem fazer, e fotos tiradas em campanha no momento (ou imediatamente antes) da morte estão entre as fotos de guerra mais festejadas e mais frequentemente reproduzidas. Não pode existir a menor suspeita acerca da autenticidade do que mostra a foto tirada por Eddie Adams, em fevereiro de 1968, do chefe da polícia nacional sul-vietnamita, general-de-brigada Nguyen Ngoc Loan, dando um tiro em um homem suspeito de ser vietcongue, numa rua de Saigon. Contudo, a foto foi encenada — pelo general Loan, que levou o prisioneiro, de mãos amarradas nas costas, até a rua onde os jornalistas haviam se reunido; Loan não teria cumprido a execução sumária ali, se eles não estivessem dispostos a testemunhá-la. Postado ao lado do prisioneiro, de modo que seu perfil e o rosto do prisioneiro ficassem visíveis para as câmeras atrás dele, Loan mirou à queima-roupa. A foto de Adam mostra o momento em que a bala foi disparada; o homem morto, fazendo uma careta, ainda não começou a cair. Para o espectador — para esta espectadora —, mesmo muitos anos depois de a foto ter sido tirada... bem, pode-se fitar esses rostos por um longo tempo sem que se chegue ao fim do mistério, e da indecência, dessa situação de coo-espectador.

Mais perturbadora é a oportunidade de olhar pessoas que sabem ter sido condenadas à morte: o arquivo de 6 mil fotos tiradas entre 1975 e 1979, numa prisão secreta em uma antiga escola secundária em Tuol Sleng, subúrbio de Pnhom Penh, o local de execução de mais de 14 mil cambojanos acusados de ser ou “intelectuais” ou “contrarrevolucionários” — e toda a documentação dessa atrocidade representa uma cortesia dos funcionários encarregados dos registros do Khmer Vermelho, que fizeram todos eles se sentar um instante para tirar uma foto antes de serem executados.(1) Uma seleção dessas fotos num livro intitulado Os campos de morte permite, décadas depois, olhar de frente para os rostos que olham para a câmera — portanto, que olham para nós. O soldado republicano espanhol acabou de morrer, se acreditarmos no que declara aquela foto, tirada por Capa a certa distância do seu tema: tudo o que vemos é uma figura granulada, um corpo e uma cabeça, uma energia, que dá uma guinada para longe da câmera na hora em que cai. Aqueles homens e mulheres cambojanos de todas as idades, entre os quais muitas crianças, fotografados a poucos centímetros de distância, em geral da cintura para cima, estão para sempre — como na pintura O esfolamento de Mársias, feita por Ticiano, na qual a faca de Apolo está eternamente prestes a descer — olhando para a morte, para sempre prestes a ser assassinados, para sempre injustiçados. E o espectador se encontra na mesma posição que o funcionário atrás da câmera; a experiência é de dar náuseas. Conhece-se o nome do fotógrafo da prisão — Nhem Ein — e ele pode ser citado. As pessoas que ele fotografou, com seus rostos aturdidos, com seus torsos macilentos e a etiqueta com o número de registro presa por um alfinete no alto da camisa, permanecem como uma massa: vítimas anônimas.


(1) Fotografar presos políticos e supostos contrarrevolucionários pouco antes de sua execução também foi uma rotina na União Soviética, durante as décadas de 1930 e 1940, como revelou uma pesquisa recente nos arquivos da nkvd na região do Báltico e na Ucrânia, bem como nos arquivos centrais da Lubianka.

E, mesmo quando têm um nome, é improvável que sejam conhecidas para “nós”. Quando Woolf observa que uma das fotos que recebeu mostra um cadáver de um homem ou de uma mulher, tão mutilado que poderia muito bem ser o cadáver de um porco, sua ideia é que a escala do morticínio na guerra destrói aquilo que identifica as pessoas como indivíduos, e mesmo como seres humanos. Isso, está claro, é como a guerra parece, quando vista à distância, como uma imagem.

Vítimas, parentes angustiados, consumidores de notícias — todos possuem sua própria proximidade ou distância da guerra. As representações mais francas da guerra, e de corpos feridos por calamidades, são de pessoas que aparentam ser mais estrangeiras e, por conseguinte, pessoas que têm menos possibilidade de ser conhecidas. Quando se trata de pessoas mais próximas da sua terra, cabe ao fotógrafo mostrar-se mais discreto.


continua pág 166...


_________________________



Leia também:


Susan Sontag - Na Caverna de Platão (01)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (3)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (3)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (4)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (5)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 3. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 3. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 3. (3)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 3. (4)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 4. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 4. (2)

_________________________




"Quando o mundo estiver unido
na busca do conhecimento, e
não mais lutando por dinheiro e
poder, então nossa sociedade
poderá enfim evoluir a um novo
nível."



________________________



"... conversar me dá a chance de saber o que penso...,
mas se não escutar continuo conversando comigo mesmo."



Luiz Melodia - Pérola Negra

Pérola Negra

Luiz Melodia



Tente usar a roupa que estou usando
Tente esquecer em que ano estamos
Arranje algum sangue, escreva num pano
Pérola Negra, te amo, te amo










Tente passar pelo que estou passando
Tente apagar este teu novo engano
Tente me amar pois estou te amando
Baby, te amo, nem sei se te amo

Tente usar a roupa que estou usando
Tente esquecer em que ano estamos
Arranje algum sangue, escreva num pano
Pérola Negra, te amo, te amo

Rasgue a camisa, enxugue meu pranto
Como prova de amor mostre teu novo canto
Escreva num quadro em palavras gigantes
Pérola Negra, te amo, te amo

Tente entender tudo mais sobre o sexo
Peça meu livro querendo eu te empresto
Se inteire da coisa sem haver engano
Baby te amo, nem sei se te amo

Baby te amo, nem sei se te amo
Baby te amo, nem sei se te amo






Luiz Melodia - Pérola Negra







Gal Costa - Pérola Negra
fagulhas e faíscas... maravilha!







ESTREIA FILME SOBRE LUIZ MELODIA NO CURTA!


Um aperitivo curto do curta...



Na segunda-feira, dia 19 de julho 2021, estreou o filme “Todas as Melodias” no Curta!. O filme proposto tem o ritmo e força de sua poesia urbana. Através de shows memoráveis, entrevistas com pessoas importantes na vida do músico, Luiz Melodia, e contando com a participação do biografado de forma espontânea, é apresentada a trajetória deste artista que carrega um estilo inquieto, elegante, sofisticado e carismático.


quarta-feira, 21 de julho de 2021

Susan Sontag - Evangelhos Fotográficos (04)

Sobre fotografia


Ensaios


Susan Sontag



EVANGELHOS FOTOGRÁFICOS (04)


continuando...


A linguagem em que, em geral, se avaliam fotos é extremamente pobre. Às vezes, é parasitária em relação ao vocabulário da pintura: composição, luz etc. Mais frequentemente, consiste nos tipos mais vagos de julgamento, como quando se elogiam fotos por serem sutis, interessantes, fortes, complexas, simples, ou — uma das favoritas — enganosamente simples.

O motivo por que a linguagem é pobre não é acidental: trata-se da ausência de uma rica tradição de crítica fotográfica. Isso é algo inerente à fotografia, sempre que é vista como arte. A fotografia propõe um processo de imaginação e um apelo ao gosto totalmente distintos daqueles que a pintura propõe (ao menos como é concebida tradicionalmente). De fato, a diferença entre uma foto boa e uma ruim não é, em absoluto, igual à diferença entre uma pintura boa e uma ruim. As normas de avaliação estética elaboradas para a pintura dependem de critérios de autenticidade (e de falsidade), e de perícia técnica — critérios que, para a fotografia, são mais permissivos até ou inexistentes. E enquanto as tarefas de um especialista em pintura invariavelmente supõem a relação orgânica de um quadro com o corpo de uma obra individual, dotado de integridade própria, e com escolas e tradições iconográficas, na fotografia, o vasto corpo de uma obra individual não tem necessariamente uma coerência estilística interna, e a relação de um fotógrafo individual com escolas de fotografia é uma questão muito mais superficial.

Um critério de avaliação que a pintura e a fotografia de fato compartilham é a inovação; tanto pintores como fotógrafos são muitas vezes valorizados porque impõem novos esquemas formais ou mudanças na linguagem visual. Outro critério que podem compartilhar é a faculdade da presença, que Walter Benjamin considerava a característica decisiva da obra de arte. Benjamin pensava que uma foto, por ser um objeto mecanicamente reproduzido, não podia ter uma presença genuína. Contudo, pode-se argumentar que a própria situação que é agora determinante do gosto na fotografia, sua exposição em museus e galerias, revelou que as fotos têm, de fato, uma espécie de autenticidade. Além disso, embora nenhuma foto seja um original no sentido em que sempre é original uma pintura, existe uma grande diferença qualitativa entre o que poderia ser chamado de originais — cópias feitas do negativo original, na época (ou seja, no mesmo momento da evolução tecnológica da fotografia) em que foi tirada a foto — e gerações subsequentes da mesma foto. (O que a maioria das pessoas conhece das fotos famosas — em livros, jornais, revistas etc. — são fotos de fotos; os originais, que só será possível ver em museus ou galerias, proporcionam prazeres visuais que não são reproduzíveis.) O resultado da reprodução mecânica, diz Benjamin, é “pôr a cópia do original em situações fora do alcance do original propriamente dito”. Mas, na medida em que se pode dizer que, por exemplo, um Giotto tem uma aura em situação de exposição num museu, onde também foi deslocado de seu contexto original e, como a foto, “faz concessões ao espectador” (no sentido mais estrito da ideia de aura de Benjamin, não o faz), nessa mesma medida também se pode dizer que possui uma aura uma foto de Atget copiada por ele num papel que hoje não se pode mais obter.

A verdadeira diferença entre a aura que pode ter uma foto e a aura de uma pintura repousa na relação diferente com o tempo. A devastação do tempo tende a agir contra as pinturas. Mas parte do interesse incorporado às fotos, e uma fonte importante de seu valor estético, são precisamente as transformações que o tempo opera sobre elas, o modo como as fotos escapam das intenções de seus criadores. Após o tempo necessário, as fotos adquirem de fato uma aura. (A circunstância de as fotos coloridas não envelhecerem como as fotos em preto e branco pode explicar, em parte, o status marginal da cor até muito recentemente, no gosto fotográfico sério. A intimidade fria da cor parece imunizar a foto contra a pátina.) Pois, enquanto pinturas ou poemas não se tornam melhores, mais atraentes, apenas por envelhecer, todas as fotos são interessantes, além de comoventes, se forem velhas o bastante. Não está completamente errado dizer que não existem fotos ruins — apenas fotos menos interessantes, menos relevantes, menos misteriosas. A adoção da fotografia pelo museu só acelera um processo que o tempo trará, de um modo ou de outro: tornar toda obra valiosa.

Nunca é demais destacar o papel do museu na formação do gosto fotográfico contemporâneo. Mais do que arbitrar que fotos são boas e que fotos são ruins, os museus proporcionam condições novas para ver todas elas. Esse processo, que parece criar padrões de avaliação, a rigor abole tais padrões. Não se pode dizer que o museu criou um cânone seguro para a obra fotográfica do passado, como fez no caso da pintura. Mesmo quando parece patrocinar um tipo específico de gosto fotográfico, o museu solapa a própria ideia de gosto normativo. Seu papel consiste em mostrar que não existem padrões fixos de avaliação, que não existe tradição de obra canônica. Sob os cuidados do museu, a própria ideia de tradição canônica é desmascarada como redundante.

O que mantém a Grande Tradição da fotografia sempre em fluxo, em constante reordenação, não é o fato de ser a fotografia uma arte nova e, portanto, algo insegura — isso faz parte do que é o gosto fotográfico. Existe na fotografia uma sequência mais rápida de redescoberta do que em qualquer outra arte. Ilustrando aquela lei do gosto que recebeu de T. S. Eliot sua formulação definitiva, segundo a qual toda nova obra importante altera necessariamente nossa percepção da herança do passado, fotos novas modificam a maneira como vemos as fotos do passado. (Por exemplo, a obra de Arbus tornou mais fácil apreciar a grandeza da obra de Hine, outro fotógrafo dedicado a retratar a opaca dignidade das vítimas.) Mas as oscilações do gosto fotográfico contemporâneo não refletem apenas esses processos coerentes e sequenciais de reavaliação, em que o semelhante realça o semelhante. O que expressam, mais comumente, é o valor complementar e equivalente de estilos e temas antitéticos.

Durante várias décadas, a fotografia americana foi dominada por uma reação contra o “westonismo” — ou seja, contra a fotografia contemplativa, a fotografia considerada como uma independente exploração visual do mundo, sem nenhum apelo social flagrante. A perfeição técnica das fotos de Weston, as belezas calculadas de White e Siskind, as construções poéticas de Fredrick Sommer, as ironias presunçosas de Cartier-Bresson — tudo isso foi contestado pela fotografia que, ao menos em termos programáticos, é mais ingênua, mais direta; ou seja, hesitante e mesmo canhestra. Mas o gosto na fotografia não é tão linear assim. Sem qualquer enfraquecimento dos compromissos atuais com a fotografia informal e com a fotografia como documento social, ocorre agora uma perceptível recuperação de Weston — como se, após a passagem de um tempo suficiente, a obra de Weston não mais parecesse atemporal; como se, em virtude da definição bem mais ampla de ingenuidade com que opera o gosto fotográfico, a obra de Weston também parecesse ingênua.

Por fim, não existe razão para excluir nenhum fotógrafo do cânone. Neste exato momento, há minirrecuperações de pictóricos por muito tempo desprezados, de uma outra era, como Oscar Gustav Rejlander, Henry Peach Robinson e Robert Demachy. Uma vez que a fotografia toma o mundo inteiro como seu tema, existe espaço para todo tipo de gosto. O gosto literário exclui: o sucesso do movimento modernista na poesia elevou Donne e rebaixou Dryden. Na literatura, pode-se ser eclético até certo ponto, mas não se pode gostar de tudo. Na fotografia, o ecletismo não tem limite. As fotos corriqueiras tiradas na década de 1870 de crianças abandonadas acolhidas em uma instituição de caridade em Londres chamada Doctor Barnardo’s Home (tiradas como “registros”) são tão comoventes quanto os complexos retratos tirados por David Octavius Hill, de pessoas ilustres da Escócia na década de 1840 (tidos como “arte”). O olhar limpo do estilo moderno clássico de Weston não é refutado, digamos, pela recente e engenhosa recuperação do embaçamento pictórico por Benno Friedman.

Não se deve negar que cada espectador gosta da obra de certos fotógrafos mais que da obra de outros: por exemplo, a maioria dos espectadores experientes, hoje, prefere Atget a Weston. Na verdade, isso significa que, pela natureza da fotografia, a pessoa não é de fato obrigada a escolher; e que preferências desse tipo são, em sua maioria, meramente reativas. O gosto na fotografia tende a ser, talvez necessariamente, global, eclético, permissivo, o que significa que, no fim, deve negar a diferença entre bom gosto e mau gosto. É isso o que faz parecer ingênua ou ignorante toda tentativa dos polemistas da fotografia de erigir um cânone. Pois existe algo falso em todas as controvérsias fotográficas — e as atenções do museu desempenharam um papel crucial em tornar isso claro. O museu nivela por cima todas as escolas de fotografia. A rigor, faz pouco sentido até falar em escolas. Na história da pintura, os movimentos têm vida e função genuínas: os pintores, não raro, são muito mais bem compreendidos em termos da escola ou do movimento a que pertenceram. Mas os movimentos na história da fotografia são efêmeros, adventícios, por vezes meramente perfunctórios, e nenhum fotógrafo de primeira classe é mais bem compreendido como membro de um grupo. (Pensemos em Stieglitz e a Photo-Secession, Weston e a f64, Renger-Patzsch e a Nova Objetividade, Walker Evans e o projeto da Secretaria de Segurança no Trabalho Rural, Cartier-Bresson e a Magnum.) Agrupar fotógrafos em escolas ou em movimentos parece um tipo de mal-entendido, que (mais uma vez) tem por base a irreprimível, mas invariável, analogia enganosa entre fotografia e pintura.

O papel predominante hoje desempenhado pelos museus na formação e no esclarecimento da natureza do gosto fotográfico parece assinalar um novo estágio, do qual a fotografia não pode retornar. De par com seu respeito tendencioso pelo profundamente banal está a difusão de uma visão historicista gerada pelo museu, visão que promove inexoravelmente toda a história da fotografia. Não admira que os críticos fotográficos e os fotógrafos se mostrem preocupados. Subjacente a muitas defesas recentes da fotografia, encontra-se o temor de que ela já seja uma arte senil, desagregada em movimentos espúrios ou mortos; que as únicas tarefas que restam seja curadoria e historiografia. (Enquanto os preços de fotos velhas e novas chegam à estratosfera.) Não surpreende que essa desmoralização seja sentida no momento da máxima aceitação da fotografia, pois a verdadeira amplitude do triunfo da fotografia como arte, e de seu triunfo sobre a arte, não foi de fato compreendida.


continua página 81...

_________________




Susan Sontag (16 de janeiro de 1933, Nova Iorque — 28 de dezembro de 2004) foi uma escritora, crítica de arte e ativista dos Estados Unidos.

Graduou-se na Universidade de Harvard e destacou-se por sua defesa dos direitos humanos. Publicou vários livros, entre eles Styles of Radical Will, The Way We Live Now, Against Interpretation e In America, pelo qual recebeu em 2000 um dos mais importantes prémios do seu país, o National Book Award.

Publicou artigos em revistas como The New Yorker e The New York Review of Books e no jornal The New York Times.

Num de seus últimos artigos, publicado em maio de 2004 no jornal The New York Times, Sontag afirmou que "a história recordará a Guerra do Iraque pelas fotografias e vídeos das torturas cometidas pelos soldados americanos na prisão de Abu Ghraib. Ela faleceu aos 71 anos de idade de síndrome mielodisplásica seguida de uma leucemia mielóide aguda em 28 de Dezembro de 2004.



_____________________


Nota de esclarecimento da LêLivros


Sobre a obra: A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo
Sobre nós: O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de domínio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa.
Você pode encontrar mais obras em nosso site: LeLivros.link ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link.
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."


________________________

Leia também

Susan Sontag - Na Caverna de Platão (01)
Susan Sontag - Na Caverna de Platão (02)
Susan Sontag - Na Caverna de Platão (03)
Susan Sontag - Estados Unidos, visto em fotos, de um ângulo sombrio (01)
Susan Sontag - Estados Unidos, visto em fotos, de um ângulo sombrio (02)
Susan Sontag - Estados Unidos, visto em fotos, de um ângulo sombrio (03)
Susan Sontag - Objetos de Melancolia (01)
Susan Sontag - Objetos de Melancolia (02)
Susan Sontag - Objetos de Melancolia (03)
Susan Sontag - Objetos de Melancolia (04)
Susan Sontag - O Heroísmo da Visão (01)
Susan Sontag - O Heroísmo da Visão (02)
Susan Sontag - O Heroísmo da Visão (03)
Susan Sontag - Evangelhos Fotográficos (04)

__________________________


Copyright © 1973, 1974, 1977 by Susan Sontag
Este livro foi publicado originalmente em 1977, nos Estados Unidos,
pela Farrar, Straus & Giroux

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,
que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Título original
On photography

Capa
Angelo Venosa

Foto de capa
Fotógrafo americano anônimo (c. 1850). /
Coleção Virginia Cuthbert Elliot, Buffalo, Nova York

Preparação
Otacílio Nunes Jr.

Revisão
Denise Pessoa
Ana Maria Barbosa

Atualização ortográfica
Página Viva

ISBN 978-85-8086-579-0

Todos os direitos desta edição reservados à
editora schwarcz ltda.
Rua Bandeira Paulista 702 cj. 32
04532-002 — São Paulo — sp
Telefone: (11) 3707 3500
Fax: (11) 3707 3501
www.companhiadasletras.com.br
www.blogdacompanhia.com.br


Las poetisas del amor... Alejandra Pizarnik (Argentina)

Las Poetisas del Amor (21)




Senhor
A gaiola se tornou um pássaro
e voou
e meu coração está louco
porque ele uiva até a morte
e sorri por atrás do vento
para meus delírios

Senhor
Tenho vinte anos
Também meus olhos têm vinte anos
e ainda assim eles não dizem nada

Senhor
Eu consumi minha vida em um instante
A última inocência estourou
Agora é nunca ou nunca
ou foi apenas

os dias te incomodam
eles te culpam pelas noites
sua vida dói muito
desesperada, aonde vais?
desesperada, nada mais!

Eu sei gritar até o amanhecer
quando a morte fica nua
na minha sombra.

Há sol lá fora.
Eu me visto de cinzas.






A LA ESPERA DE LA OSCURIDAD


Ese instante que no se olvida
Tan vacío devuelto por las sombras
Tan vacío rechazado por los relojes
Ese pobre instante adoptado por mi ternura
Desnudo desnudo de sangre de alas
Sin ojos para recordar angustias de antaño
Sin labios para recoger el zumo de las violencias
perdidas en el canto de los helados campanarios.

Ampáralo niña ciega de alma
Ponle tus cabellos escarchados por el fuego
Abrázalo pequeña estatua de terror.
Señálale el mundo convulsionado a tus pies
A tus pies donde mueren las golondrinas
Tiritantes de pavor frente al futuro
Dile que los suspiros del mar
Humedecen las únicas palabras
Por las que vale vivir.

Pero ese instante sudoroso de nada
Acurrucado en la cueva del destino
Sin manos para decir nunca
Sin manos para regalar mariposas
A los niños muertos






LA ENAMORADA


esta lúgubre manía de vivir
esta recóndita humorada de vivir
te arrastra alejandra no lo niegues.

hoy te miraste en el espejo
y te fue triste estabas sola
la luz rugía el aire cantaba
pero tu amado no volvió

enviarás mensajes sonreirás
tremolarás tus manos así volverá
tu amado tan amado

oyes la demente sirena que lo robó
el barco con barbas de espuma
donde murieron las risas
recuerdas el último abrazo
oh nada de angustias
ríe en el pañuelo llora a carcajadas
pero cierra las puertas de tu rostro
para que no digan luego
que aquella mujer enamorada fuiste tú

te remuerden los días
te culpan las noches
te duele la vida tanto tanto
desesperada ¿adónde vas?
desesperada ¡nada más!

(Alejandra Pizarnik, de La última inocencia, 1956)





SALVACIÓN


Se fuga la isla
Y la muchacha vuelve a escalar el viento
y a descubrir la muerte del pájaro profeta
Ahora
es el fuego sometido
Ahora
es la carne
la hoja
la piedra
perdidos en la fuente del tormento
como el navegante en el horror de la civilación
que purifica la caída de la noche
Ahora
la muchacha halla la máscara del infinito
y rompe el muro de la poesía.






LA JAULA


Afuera hay sol.
No es más que un sol
pero los hombres lo miran
y después cantan.

Yo no sé del sol.
Yo sé la melodía del ángel
y el sermón caliente
del último viento.
Sé gritar hasta el alba
cuando la muerte se posa desnuda
en mi sombra.

Yo lloro debajo de mi nombre.
Yo agito pañuelos en la noche y barcos sedientos de realidad
bailan conmigo.
Yo oculto clavos
para escarnecer a mis sueños enfermos.

Afuera hay sol.
Yo me visto de cenizas.






EL DESPERTAR

a León Ostrov


Señor
La jaula se ha vuelto pájaro
y se ha volado
y mi corazón está loco
porque aúlla a la muerte
y sonríe detrás del viento
a mis delirios

Qué haré con el miedo
Qué haré con el miedo

Ya no baila la luz en mi sonrisa
ni las estaciones queman palomas en mis ideas
Mis manos se han desnudado
y se han ido donde la muerte
enseña a vivir a los muertos

Señor
El aire me castiga el ser
Detrás del aire hay mounstros
que beben de mi sangre

Es el desastre
Es la hora del vacío no vacío
Es el instante de poner cerrojo a los labios
oír a los condenados gritar
contemplar a cada uno de mis nombres
ahorcados en la nada.

Señor
Tengo veinte años
También mis ojos tienen veinte años
y sin embargo no dicen nada

Señor
He consumado mi vida en un instante
La última inocencia estalló
Ahora es nunca o jamás
o simplemente fue

¿Còmo no me suicido frente a un espejo
y desaparezco para reaparecer en el mar
donde un gran barco me esperaría
con las luces encendidas?

¿Cómo no me extraigo las venas
y hago con ellas una escala
para huir al otro lado de la noche?

El principio ha dado a luz el final
Todo continuará igual
Las sonrisas gastadas
El interés interesado
Las preguntas de piedra en piedra
Las gesticulaciones que remedan amor
Todo continuará igual

Pero mis brazos insisten en abrazar al mundo
porque aún no les enseñaron
que ya es demasiado tarde

Señor
Arroja los féretros de mi sangre

Recuerdo mi niñez
cuando yo era una anciana
Las flores morían en mis manos
porque la danza salvaje de la alegría
les destruía el corazón

Recuerdo las negras mañanas de sol
cuando era niña
es decir ayer
es decir hace siglos

Señor
La jaula se ha vuelto pájaro
y ha devorado mis esperanzas

Señor
La jaula se ha vuelto pájaro
Qué haré con el miedo






 "Yo te quiero Viva"
Últimas Cartas de Alejandra Pizarnik y Julio Cortázar.



________________________


Alejandra Pizarnik nasceu em Buenos Aires, em 29 de abril de 1936, em uma família de imigrantes do Leste Europeu. Estudou filosofia e letras na Universidade de Buenos Aires e, posteriormente, pintura com Juan Batlle Planas. Entre 1960 e 1964, Pizarnik viveu em Paris, onde trabalhou para a revista "Cuadernos" e algumas editoras francesas, publicou poemas e críticas em vários jornais, traduziu Antonin Artaud, Henri Michaux, Aimé Cesairé e Yves Bonnefoy, e estudou história da a religião e a literatura francesa na Sorbonne. Após seu retorno a Buenos Aires, Pizarnik publicou três de seus volumes principais, "As obras e as noites", "Extração da pedra da loucura" e "O inferno musical", bem como sua obra em prosa "A condessa sangrenta". Em 1969 ele recebeu uma bolsa Guggenheim, e em 1971 um Fullbright. Em 25 de setembro de 1972, enquanto passava um fim de semana longe da clínica psiquiátrica onde estava internada, Pizarnik morreu de uma overdose intencional de seconal.


terça-feira, 20 de julho de 2021

Lima Barreto - O Triste fim de Policarpo Quaresma: 2ª Parte I(b) - No "Sossego"

O triste fim de Policarpo Quaresma 



Lima Barreto




A João Luiz Ferreira 
Engenheiro Civil 

Le grand inconvénient de la vie réelle et ce qui la rend insupportable à l’homme supérieur, c’est que, si l’on y transporte les principes de l’idéal, les qualités deviennent des défauts, si bien que fort souvent l’homme accompli y réussit moins bien que celui qui a pour mobiles l’égoïsme ou la routine vulgaire. 

Renan, Marc-Auréle 





SEGUNDA PARTE


I - No "Sossego"
  
continuando...


Era de vê-lo, coberto com um chapéu de palha de coco, atracado a um grande enxadão de cabo nodoso, ele, muito pequeno, míope, a dar golpes sobre golpes para arrancar um teimoso pé de guaximba. A sua enxada mais parecia uma draga, um escavador, que um pequeno instrumento agrícola. Anastácio, junto ao patrão, olhava-o com piedade e espanto. Por gosto andar naquele sol a capinar sem saber?... Há cada cousa neste mundo!

E os dous iam continuando. O velho preto, ligeiro, rápido, raspando o mato rasteiro, com a mão habituada, a cujo impulso a enxada resvalava sem obstáculo pelo solo, destruindo a erva má; Quaresma, furioso, a arrancar torrões de terra daqui, dali, demorando-se muito em cada arbusto e, às vezes, quando o golpe falhava e a lâmina do instrumento roçava a terra, a força era tanta que se erguia uma poeira infernal, fazendo supor que por aquelas paragens passara um pelotão de cavalaria. Anastácio, então, intervinha humildemente, mas em tom professoral:

- Não é assim, “seu majó”. Não se mete a enxada pela terra adentro. É de leve, assim.

E ensinava ao Cincinato inexperiente o jeito de servir-se do velho instrumento de trabalho.

Quaresma agarrava-o, punha-se em posição e procurava com toda a boa vontade usá-lo da maneira ensinada. Era em vão. O flange batia na erva, a enxada saltava e ouvia-se um pássaro ao alto soltar uma piada irônica: bem-te-vi! O major enfurecia-se, tentava outra vez, fatigava-se, suava, enchia-se de raiva e batia com toda a força; e houve várias vezes que a enxada, batendo em falso, escapando ao chão, fê-lo perder o equilíbrio, cair, a beijar a terra, mãe dos frutos e dos homens. O pince-nez saltava, partia-se de encontro a um seixo.

O major ficava todo enfurecido e voltava com mais rigor e energia à tarefa que se impusera; mas, tanto é em nossos músculos firme a memória ancestral desse sagrado trabalho de tirar o sustento de nossa vida, que não foi impossível a Quaresma acordar nos seus o jeito, a maneira de empregar a enxada vetusta.

Ao fim de um mês, ele capinava razoavelmente, não seguido, de sol a sol, mas com grandes repousos de hora em hora que a sua idade e falta de hábito requeriam.

Às vezes, o fiel Anastácio seguia-o no descanso e ambos, lado a lado, à sombra de uma fruteira mais copada, ficavam a ver o ar pesado daqueles dias de verão que enrodilhava as folhas das árvores e punha nas cousas um forte acento de resignação mórbida. Então, aí por depois do meio-dia, quando o calor parecia narcotizar tudo e mergulhar em silêncio a vida inteira, é que o velho major percebia bem a alma dos trópicos, feita de desencontros como aquele que se via agora, de um sol alto, claro, olímpico, a brilhar sobre um torpor de morte, que ele mesmo provocava.

Almoçavam mesmo no eito, comidas do dia anterior, aquecidas rapidamente sobre um improvisado fogão de calhaus, e o trabalho ia assim até à hora do jantar. Havia em Quaresma um entusiasmo sincero, entusiasmo de ideólogo que quer pôr em prática a sua ideia. Não se agastou com as primeiras ingratidões da terra, aquele seu mórbido amor pelas ervas daninhas e o incompreensível ódio pela enxada fecundante. Capinava e capinava sempre até vir jantar.

Esta refeição ele fazia mais demorada. Conversava um pouco com a irmã, contava-lhe a tarefa do dia, consistindo sempre em avaliar a área já limpa.

- Sabes, Adelaide, amanhã estarão as laranjeiras limpas, não ficará nem mais uma touceira de mato.

A irmã, mais velha que ele, não partilhava aquele seu entusiasmo pelas cousas da roça.

Considerava-a silenciosa, e, se viera viver com ele, não foi senão pelo hábito de acompanhá-lo.

Decerto, ela o estimava, mas não o compreendia. Não chegava a entender nem os seus gestos nem a sua agitação interna. Por que não seguira ele o caminho dos outros? Não se formara e se fizera deputado? Era tão bonito... Andar com livros, anos e anos, para não ser nada, que doideira!

Seguira-o ao “Sossego” e, para entreter-se, criava galinhas, com grande alegria do irmão cultivador.

- Está direito, dizia ela, quando o irmão lhe contava as cousas do seu trabalho. Não vá ficares doente... Neste sol todo o dia...

- Qual, doente, Adelaide! Não estás vendo como essa gente tem tanta saúde por aí... Se adoecem, é porque não trabalham.

Acabado o jantar, Quaresma chegava à janela que dava para o galinheiro e atirava migalhas de pão às aves.

Ele gostava desse espetáculo, daquela luta encarniçada entre patos, gansos, galinhas, pequenos e grandes. Dava-lhe uma imagem reduzida da vida e dos prêmios que ela comporta. Depois, fazia indagações sobre a vida do galinheiro:

- Já nasceram os patos, Adelaide?

- Ainda não. Faltam oito dias ainda.

E logo a irmã acrescentava:

- Tua afilhada deve casar-se sábado, tu não vais?

- Não. Não posso... Vou incomodar-me, luxo... mando um leitão e um peru.

- Ora, tu! Que presente!

- Que é que tem? É da tradição.

Justamente estavam nesse dia assim a conversar os dous irmãos na sala de jantar da velha casa roceira, quando Anastácio veio avisar-lhe que se achava um cavalheiro na porteira.

Desde que ali se instalara, nenhuma visita batera à porta de Quaresma, a não ser a gente pobre do lugar, a pedir isso ou aquilo, esmolando disfarçadamente. Ele mesmo não travara conhecimento com ninguém, de modo que foi com surpresa que recebeu o aviso do velho preto.

Apressou-se em ir receber o visitante na sala principal. Ele já subia a pequena escada da frente e penetrava pela varanda adentro.

- Boas-tardes, major.

- Boas-tardes. Faça o favor de entrar.

O desconhecido entrou e sentou-se. Era um tipo comum, mas o que havia nele de estranho era a gordura. Não era desmedida ou grotesca, mas tinha um aspecto desonesto. Parecia que a fizera de repente e comia, a mais não poder, com medo de a perder de um dia para outro. Era assim como a de um lagarto que entesoura enxúndia para o inverno ingrato. Através da gordura de suas bochechas, via-se perfeitamente a sua magreza natural, normal, e se devia ser gordo não era naquela idade, com pouco mais de trinta anos, sem dar tempo que todo ele engordasse; porque, se as duas faces eram gordas, as suas mãos continuavam magras com longos dedos fusiformes e ágeis.

O visitante falou:

- Eu sou o Tenente Antonino Dutra, escrivão da coletoria...

- Alguma formalidade? indagou medroso Quaresma.

- Nenhuma, major. Já sabemos quem o senhor é; não há novidade nem nenhuma exigência legal.

O escrivão tossiu, tirou um cigarro, ofereceu outro a Quaresma e continuou:

- Sabendo que o major vem estabelecer-se aqui, tomei a iniciativa de vir incomodá-lo... Não é cousa de importância... Creio que o major...

- Oh! Por Deus, tenente!

- Venho pedir-lhe um pequeno auxílio, um óbulo, para a festa da Conceição, a nossa padroeira, de cuja irmandade sou tesoureiro.

- Perfeitamente. É muito justo. Apesar de não ser religioso, estou...

- Uma cousa nada tem com a outra. É uma tradição do lugar que devemos manter.

- É justo.

- O senhor sabe, continuou o escrivão, a gente daqui é muito pobre e a irmandade também, de forma que somos obrigados a apelar para a boa vontade dos moradores mais remediados. Desde já, portanto, major...

- Não. Espere um pouco...

- Oh! major, não se incomode. Não é para já.

Enxugou o suor, guardou o lenço, olhou um pouco lá fora e acrescentou:

- Que calor! Um verão como este nunca vi aqui. Tem-se dado bem, major?

- Muito bem.

- Pretende dedicar-se à agricultura?

- Pretendo, e foi mesmo por isso que vim para a roça.

- Isto hoje não presta, mas noutro tempo!... Este sítio já foi uma lindeza, major! Quanta fruta! Quanta farinha! As terras estão cansadas e...

- Qual cansadas, Seu Antonino! Não há terras cansadas... A Europa é cultivada há milhares de anos, entretanto...

- Mas lá se trabalha.

- Por que não se há de trabalhar aqui também?

- Lá isso é verdade; mas há tantas contrariedades na nossa terra que...

- Qual, meu caro tenente! Não há nada que não se vença.

- O senhor verá com o tempo, major. Na nossa terra não se vive senão de política, fora disso, babau! Agora mesmo anda tudo brigado por causa da questão da eleição de deputados... Ao dizer isto, o escrivão lançou por baixo das suas pálpebras gordas um olhar pesquisador sobre a ingênua fisionomia de Quaresma.

- Que questão é? indagou Quaresma.

O tenente parecia que esperava a pergunta e logo fez com alegria:

- Então não sabe?

- Não.

- Eu lhe explico: o candidato do governo é o doutor Castrioto, moço honesto, bom orador; mas entenderam aqui certos presidentes de Câmaras Municipais do Distrito que se hão de sobrepor ao governo, só porque o Senador Guariba rompeu com o governador; e - zás - apresentaram um tal Neves que não tem serviço algum ao partido e nenhuma influência... Que pensa o senhor?

- Eu... Nada!

O serventuário do fisco ficou espantado. Havia no mundo um homem que, sabendo e morando no município de Curuzu, não se incomodasse com a briga do Senador Guariba com o governador do Estado! Não era possível! Pensou e sorriu levemente. Com certeza, disse ele consigo, este malandro quer ficar bem com os dous, para depois arranjar-se sem dificuldade. Estava tirando sardinha com mão de gato... Aquilo devia ser um ambicioso matreiro; era preciso cortar as asas daquele “estrangeiro”, que vinha não se sabe donde!

- O major é um filósofo, disse ele com malícia.

- Quem me dera? fez com ingenuidade Quaresma.

Antonino ainda fez rodar um pouco a conversa sobre a grave questão, mas, desanimado de penetrar nas tenções ocultas do major, apagou a fisionomia e disse em ar de despedida:

- Então o major não se recusa a concorrer para a nossa festa, não é?

- Decerto.

Os dous se despediram. Debruçado na varanda, Quaresma ficou a vê-lo montar no seu pequeno castanho, luzidio de suor, gordo e vivo. O escrivão afastou-se, desapareceu na estrada, e o major ficou a pensar no interesse estranho que essa gente punha nas lutas políticas, nessas tricas eleitorais, como se nelas houvesse qualquer cousa de vital e importante. Não atinava por que uma rezinga entre dous figurões importantes vinha pôr desarmonia entre tanta gente, cuja vida estava tão fora da esfera daqueles. Não estava ali a terra boa para cultivar e criar? Não exigia ela uma árdua luta diária? Por que não se empregava o esforço que se punha naqueles barulhos de votos, de atas, no trabalho de fecundá-la, de tirar dela seres, vidas - trabalho igual ao de Deus e dos artistas? Era tolo estar a pensar em governadores e guaribas, quando a nossa vida pede tudo à terra e ela quer carinho, luta, trabalho e amor...

O sufrágio universal pareceu-lhe um flagelo.

O trem apitou e ele demorou-se a vê-lo chegar. É uma emoção especial de quem mora longe, essa de ver chegar os meios de transporte que nos põem em comunicações com o resto do mundo. Há uma mescla de medo e de alegria. Ao mesmo tempo que se pensa em boas novas, pensam-se também más. A alternativa angustia...

O trem ou o vapor como que vem do indeterminado, do Mistério, e traz, além de notícias gerais, boas ou más, também o gesto, um sorriso, a voz das pessoas que amamos e estão longe.

Quaresma esperou o trem. Ele chegou arfando e se estirando como um réptil pela estação afora à luz forte do sol poente. Não se demorou muito. Apitou de novo e saiu a levar notícias, amigos, riquezas, tristezas por outras estações além. O major pensou ainda um pouco como aquilo era bruto e feio, e como as invenções do nosso tempo se afastam tanto da linha imaginária da beleza que os nossos educadores de dous mil anos atrás nos legaram. Olhou a estrada que levava à estação. Vinha um sujeito... Dirigia-se para a sua casa... Quem podia ser? Limpou o pince-nez e assestou-o para o homem que caminhava com pressa... Quem era? Aquele chapéu dobrado, como um morrião... Aquele fraque comprido... Passo miúdo... Um violão! Era ele!

- Adelaide, está aí o Ricardo.


continua página 41...

___________________




Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…

Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.



_________________



MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional 
Departamento Nacional do Livro


_________________

Leia também:

O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte I - A Lição de Violão
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte II(a) - Reformas Radicais
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte II(b) - Reformas Radicais
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte III(a) - Reformas Radicais
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte III(b) - Reformas Radicais
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte IV(a) - Desastrosas consequências...
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 2ª Parte I(b) - No "Sossego"