sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Didática Freiriana: Reinventando Paulo Freire (01 - Pedagogia da Acolhida)

Educare et Educare



Revista de Educação

Programa de Pós-Graduação em Educação
– Universidade Estadual do Oeste do Paraná


Dr. Ivo Dickmann
Ivanio Dickmann




Assumindo a difícil tarefa de reinventar a metodologia de Paulo Freire como um pedido do próprio Patrono da Educação no Brasil, busca-se nesse texto organizar de uma maneira didática como utilizar as diversas contribuições freirianas para a educação formal, informal e não-formal, partindo do pressuposto que a criatividade dos educadores, em seus mais diversos lugares pedagógicos que ocupam – escola, universidade, sindicatos, movimentos sociais, ONGs, entre outros – é o que mantém vivo o legado de Paulo Freire. A Didática Freiriana é uma provocação epistêmico-metodológica para que os educadores assumam uma postura pedagógica libertadora e dinamizadora dos ambientes educativos, tomando essa metodologia como referência para sua práxis. Como um texto inacabado, projeta-se a reinvenção dele mesmo, para ser ainda mais fiel ao pedido de Paulo Freire: não me sigam, me reinventem.





Introdução


Construir uma reinvenção do Método Paulo Freire é um grande desafio, mas é exatamente aí que se instaura o respeito ao seu legado, já que mais de uma vez ele afirmou que desejava ser reinventado, não seguido (FREIRE, 2009; FREIRE; FAUNDEZ, 2002). O que construímos nesse texto é uma tentativa de reunir e reorganizar um conjunto de aspectos centrais da pedagogia de Paulo Freire de uma forma que os educadores e educadoras possam utilizá-lo no seu cotidiano pedagógico (escola, universidade, ONG, movimentos sociais, sindicatos, entre outros), adequando às suas realidades e construindo conhecimento numa relação dialógico-dialética. Aqui você encontrará um roteiro que pode ser recriado de acordo com a realidade a ser trabalhada, criando uma infinidade de possibilidades do quefazer, tendo Freire como a referência epistêmico-metodológica central. A criatividade e a criticidade com que essa didática freiriana será aplicada nos diversos espaços pedagógicos não está ao alcance de nós autores, mas está entregue a comunidade freiriana, de modo que se incorpora ao legado de Freire – do qual somos continuadores.




1. PEDAGOGIA DA ACOLHIDA


Todos nós gostamos de ser acolhidos ao chegar à sala de aula, queremos sentir e vivenciar a aceitação e o reconhecimento dos outros. Como integrantes do grupo, como companheiros de caminhada na comunidade, como partes importantes do processo de convivência que nos torna mais humanos – a acolhida é o primeiro momento da humanização. Acolher o outro é um gesto de amor e alteridade, de tolerância com o diferente e de respeito à diversidade – que, de alguma forma, se traduz também como uma pedagogia da amorosidade. A acolhida é a dialetização das duas grandes dimensões humanas: a afetividade e a racionalidade.

Do ponto de vista pedagógico, acolher é respeitar o conhecimento dos outros – popular, acadêmico-científico, místico-religioso –, é promover o encontro dos diferentes, é proporcionar o diálogo de saberes. Na acolhida se recepciona a pessoa, mas também as suas ideias; é um acolhimento na sua integralidade de ser humano. A pedagogia da acolhida é o gesto simbólico que antecede a pedagogia da pergunta, assim como a pergunta é o que gesta a resposta grávida de mundo, confirmando a inexistência de analfabetismo oral, possibilitando a tematização da realidade concreta, a leitura do mundo e a conscientização crítica, aprendendo a dizer a palavra, rompendo a cultura do silêncio. A palavra rompe o verbalismo-ativismo e se faz ato epistêmico-metodológico.




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Dr. Ivo Dickmann
Universidade Comunitária da Região de Chapecó - Unochapecó

Ivanio Dickmann
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP




Revista Educere Et Educare, Vol. 13, N. 28, maio/agos. 2018. Ahead of Print. DOI: 10.17648/educare.v13i28.18076


histórias davóinha: becos sem saída (I) 09bs - e adianta saber?

becos sem saída


(I) o descolocado
09bs – e adianta saber?

baitasar



E onde fica isso?

Uma terra muito longe...

Quanto é esse muito longe?

Além-mar...

Onde é isso?

Chega! A guria faz muita pergunta, pensa no mais importante.

a miúda pensa em levantar, o mais importante por certo não é conversar com o velho perneta

Chega de pergunta boba. A guria não sabe pensar?

a miúda me aperta nas mão, brinca de me jogar para o alto e me pegar antes do chão, virei um brinquedo nas mão ignorante, mais um pouco e me solto em pedaços

Eu tenho um irmão...

Isso!

resignado ao meu destino só me resta aguardar, meus gritos são mudos para ouvidos surdos

Eu tenho pai, tenho mãe... onde estão?

Desaparecidos.

Ah! Isso é ruim, né?

Muito ruim.

Conta mais, não sei mais o que perguntar.

Seu avô tinha licença para trabalhar na ferrovia, ele também também fazia biscates com tijolo e cimento. Mas a gente vivia mesmo era da garrafa vazia, osso, ferro-velho, vidro quebrado.

Hum, continuo no ramo da família... mas isso tanto se me dá, tanto se me deu, só lembro que apareci de lugar nenhum.

os panos estavam abertos, mas nada estava descoberto para a guria. ela continua presa sem culpa formada e incomunicável. andava nas ruas como uma ninguém sem história – como se pudesse não ter uma história – e que as pessoas têm medo, nojo ou são indiferentes. os seus parecidos do sangue foram torturados até apontarem entre si um ao outro. sumiram entre socos, choques, violações e óbitos inventados

O que eu faço, velho?

Meu irmão contou pra mim... eu conto pra você...

E depois?

A guria conta pra alguém...

E daí?

Alguém sempre vai saber...

E adianta saber?

 

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becos sem saída (I) 09bs - e adianta saber?
becos sem saída (I) 10bs - sem emprego, sem utilidade

Cine Amazônia - Festival de Cinema Ambiental

Cineamazônia 2020 será on line e gratuito



Beto Bertagna a 24 quadros
























O Cineamazônia – Festival de Cinema Ambiental, um dos mais tradicionais eventos de cinema da região Amazônica, realiza, de 01 a 05 de dezembro de 2020, a sua 17ª Edição, que, este ano, em função das medidas impostas pela pandemia, será totalmente online e com acesso gratuito aos filmes selecionados para as mostras e demais atividades.

Os filmes concorrem ao Troféu Mapinguari nas categorias curta e média metragem nos gêneros de animação, experimental, ficção e documentário, além do Prêmio Thiago de Mello: Júri Popular – Troféu Esperança, escolhido pelo público através de votação pela internet durante o festival além documentários de longa metragem que concorrem ao Prêmio Silvino Santos.

Na competição de curtas e médias, várias premiações recebem o Troféu Mapinguari, que além dos melhores em cada gênero, concorrem a prêmios de direção, fotografia e montagem, entre outros, e ao prêmio para a Melhor Produção Amazônica, um incentivo à produção audiovisual da região. A escolha dos filmes que concorrem na mostra competitiva é feita por um júri de profissionais que atuam no setor audiovisual e do meio ambiente. Toda a programação está sendo preparada para atender ao novo formato do Cineamazônia, exibido em plataforma pela internet, a exemplo de diversos outros festivais e atividades culturais durante este ano.





Em um ano marcado pela pandemia e o isolamento social, além da grave crise no setor cultural e na indústria de conteúdo nacional, que se arrasta desde o início de 2019, que fragilizou a produção audiovisual, represando recursos e sem uma clara definição de políticas públicas, o que afetou a realização da 17ª Edição na data inicialmente prevista. Estes fatores afetaram também a realização da 16ª Edição, prevista para agosto de 2018, executada apenas através da Itinerância no Vale do Guaporé em dezembro de 2018 e meados de 2019.

Para o diretor da Acapulco Filmes, produtora do Cineamazônia, o cineasta José Jurandir da Costa, o “Cineamazônia teve a sua primeira exibição em 2003, e nestes 16 anos sempre procuramos oferecer ao público muito mais que a simples exibição de filmes, mas também fazer com que o cinema e a temática ambiental fossem levadas e discutidas nas escolas, nas comunidades e se tornassem ferramentas de educação e conscientização, a exemplo das diversas oficinas que oferecemos”. O cineasta destaca ainda a importância do Cineamazônia para a região amazônica, pois “sempre lutamos para o crescimento da produção audiovisual da Amazônia e a integração latino americana e de países de língua portuguesa através do cinema”.

A produtora executiva do Cineamazônia, a Fernanda Kopanakis, é enfática ao afirmar que “mesmo sem patrocínio, vamos realizar a 17ª Edição, já que o Cineamazonia não para”, e lembra que “mesmo diante de todas as dificuldades pelas quais passa o setor cultural no país, e em especial o cinema, não poderíamos deixar de contemplar os produtores que se inscreveram em 2018 com os seus filmes, nem mesmo o público que sempre nos acompanhou nestes anos”.

Toda a programação com os filmes selecionado e atividades que acontecem na 17ª Edição do Cineamazônia – Festival de Cinema Ambiental, entre 01 à 05 de dezembro, que este ano tem como tema “A Natureza não pode sair de cena”, será em breve divulgada à imprensa e espectadores e que, segundo os seus realizadores, será um marco para a Amazônia e uma nova fase da produção audiovisual.






quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Sarau... Mulheres: O Amor (Eduardo Galeano)

Mulheres



Eduardo Galeano


01.

O AMOR



Na selva amazônica, a primeira mulher e o primeiro homem se olharam com curiosidade. Era estranho o que tinham entre as pernas.

– Te cortaram? – perguntou o homem.

– Não – disse ela. – Sempre fui assim.

Ele examinou-a de perto. Coçou a cabeça. Ali havia uma chaga aberta.

Disse:

– Não comas mandioca, nem bananas, e nenhuma fruta que se abra ao amadurecer. Eu te curarei. Deita na rede, e descansa.

Ela obedeceu. Com paciência bebeu os mingaus de ervas e se deixou aplicar as pomadas e os unguentos. Tinha de apertar os dentes para não rir, quando ele dizia:

– Não te preocupes.

Ela gostava da brincadeira, embora começasse a se cansar de viver em jejum, estendida em uma rede. A memória das frutas enchia sua boca de água.

Uma tarde, o homem chegou correndo através da floresta. Dava saltos de euforia e gritava:

– Encontrei! Encontrei!

Acabava de ver o macaco curando a macaca na copa de uma árvore.

– É assim – disse o homem, aproximando-se da mulher.

Quando acabou o longo abraço, um aroma espesso, de flores e frutas, invadiu o ar. Dos corpos, que jaziam juntos, se desprendiam vapores e fulgores jamais vistos, e era tanta formosura que os sóis e os deuses morriam de vergonha.



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Galeano, Eduardo, 1940-
Mulheres / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno.
1. Ficção uruguaia- Crônicas. I. Título. II. Série.


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Sarau... Mulheres: O Amor (Eduardo Galeano)


Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 19 — Klock - Klock

 Edgar Allan Poe - Contos





Aventuras de Arthur Gordon Pym 
Título original: Narrative of A. G. Pym 
Publicado em 1837





19 — Klock - Klock




Demoramos cerca de três horas a chegar à aldeia, situada três milhas para o interior, através de uma região arborizada. Ao longo de caminho, o destacamento de Too-wit (os cento e dez selvagens das canoas) era reforçado de vez em quando por pequenos grupos de dez ou sete indivíduos, que desembocavam no caminho e se juntavam a nós como por acaso. Havia ali qualquer coisa muito estranha e não pude deixar de sentir desconfiança, acabando por transmitir as minhas apreensões ao capitão Guy. 

Mas era demasiado tarde para voltar para trás e decidimos que a melhor maneira de velar pela nossa segurança era mostrar a maior confiança na lealdade de Too-wit. Assim, prosseguimos, sempre atentos às manobras dos selvagens e não lhes permitindo que rompessem as nossas alas com empurrões súbitos. Depois de atravessarmos uma ravina escarpada, deparámos com um grupo de habitações, que nos disseram ser as únicas existentes na ilha. Quando avistámos a aldeia, o chefe soltou um grito e repetiu várias vezes a palavra Klock-Klock, que pensamos ser o nome da aldeia ou talvez o nome genérico aplicado a todas as aldeias.

As habitações tinham o aspecto mais miserável que se possa imaginar, diferindo das cabanas das raças mais atrasadas conhecidas da humanidade, por não estarem construídas sobre um plano uniforme. Algumas (pertencentes aos Wampoos ou Yampoos, os grandes dignitários da ilha) consistiam numa árvore cortada e cerca de quatro pés de raiz, com uma grande pele negra estendida em cima, caindo em pregas soltas até ao chão. Outras eram feitas de ramos de árvores, não desbastados e conservando ainda a sua folhagem ressequida, apoiadas de forma a fazerem um ângulo de quarenta e cinco graus, sobre uma base de argila, amontoada, sem qualquer preocupação de forma regular, a uma altura de cinco ou seis pés. Outras ainda eram simples buracos abertos perpendicularmente no solo e cobertos de ramagens, que o habitante era obrigado a afastar para entrar e que tinha novamente de repor no lugar. Algumas eram feitas de ramos de árvores, tal qual tinham sido encontrados, meio enterrados no solo, apoiados os superiores nos inferiores, de maneira a formarem um abrigo contra o mau tempo. As mais numerosas consistiam em pequenas cavernas, pouco profundas, que eram, por assim dizer, escavadas na superfície de uma parede de pedra negra, caindo a pique, muito parecida com a terra calcada que envolvia os três lados da aldeia. À entrada de cada uma destas cavernas grosseiras, havia um pequeno bloco de pedra, que o respetivo habitante colocava cuidadosamente à entrada, cada vez que saía do seu nicho; nunca soube para que servia, porque a pedra nunca era de tamanho suficiente para tapar mais do que um terço da passagem.

Esta aldeia, se na verdade lhe podemos chamar assim, estava situada num vale bastante profundo e só era acessível pelo lado sul, pois o barranco escarpado de que falei fechava o acesso pelos outros lados.

No meio do vale corria um riacho com a mesma aparência mágica que já referi. Notamos à volta das habitações alguns estranhos animais que pareciam completamente domesticados. Os maiores assemelhavam-se ao nosso porco vulgar, tanto pela forma do corpo como pelo focinho, mas a cauda era peluda e as patas esguias como as do antílope. O andar do animal era indeciso e trôpego, e nunca o vimos tentar correr.

Vimos ainda alguns animais de fisionomia análoga, mas com o corpo mais comprido e coberto de lã negra. Havia uma grande variedade de aves domésticas, que andavam pelas vizinhanças e que pareciam constituir a alimentação principal dos indígenas.

Para nossa grande surpresa, vimos entre as aves albatrozes negros, completamente domesticados que iam ao mar procurar o seu alimento e voltavam sempre à aldeia, como se fosse o seu poiso, servindo-se apenas da costa sul como local de incubação.

Como de costume, estavam associados aos seus amigos pinguins, mas estes últimos nunca seguiam os albatrozes até às habitações dos selvagens. Entre as outras aves domesticadas, havia patos, que não diferiam muito do canvass-back ou anas valisneria do nosso pais, búbias negras e uma grande ave parecida com o abutre, mas que não era carnívora. O peixe parecia ser abundante. Ao longo da nossa excursão, vimos uma quantidade considerável de salmões secos, bacalhaus, golfinhos azuis, cavalas, raias, congros, elefantes-do-mar, tainhas, linguados, escaros ou papagaios-do-mar, leather-jackets, salmonetes, badejos, patruças, paracutas e muitas outras espécies. Reparámos que, na sua maioria, se pareciam com as que se encontram na região do arquipélago de Lord Auckland a 51° de latitude Sul. A tartaruga tipo galápago também era muito abundante. Os animais selvagens eram muito poucos, e nenhum de grandes proporções ou nosso conhecido. Uma ou duas serpentes de aspecto horrível atravessaram-se no nosso caminho, mas como os naturais não lhes prestaram atenção, concluímos que não eram venenosas. Quando nos aproximamos da aldeia com Too-wit e o seu bando, uma imensa populaça precipitou-se ao nosso encontro, soltando gritos estridentes, entre os quais distinguimos os habituais Anamoo-moo! e Lama-Lama! Surpreendeu-nos bastante vermos que os recém chegados estavam, com uma ou outra exceção, totalmente nus, pois só os homens das canoas usavam peles. Todas as armas pareciam igualmente em poder destes últimos, porque não vimos nem uma nas mãos dos habitantes da aldeia. Havia também muitas mulheres e crianças, não faltando às primeiras aquilo a que chamamos beleza pessoal. Eram altas e esguias, bem feitas e dotadas de uma graça e desenvoltura que não encontramos numa sociedade civilizada, mas tinham os lábios grossos, como os dos homens, a ponto de nunca se lhes verem os dentes, mesmo quando riam. A cabeleira era de uma natureza mais fina do que a dos homens.

Entre todos os habitantes da aldeia, nus, viam-se dez ou doze homens envergando peles como o grupo de Too-wit e armados de lanças e pesadas mocas. Pareciam ter grande influência sobre os outros e nunca lhes dirigiam a palavra sem os honrar com a palavra Wampoo. Eram os mesmos homens que habitavam os famosos palácios de peles pretas. A habitação de Too-wit estava situada no centro da aldeia, sendo muito maior e melhor construída do que as outras do mesmo género. A árvore que lhe servia de suporte tinha sido cortada a cerca de doze pés da raiz e, abaixo do corte, tinham sido deixados alguns ramos que serviam para prolongar o teto e o impediam de bater contra o tronco. O teto que consistia em quatro grandes peles ligadas entre si por cavilhas de madeira, estava preso com pequenas estacas que o atravessavam e se enterravam no solo, que estava juncado de folhas secas, com a função de tapete.

Fomos conduzidos a esta cabana com grande solenidade e atrás de nós entraram todos os indígenas que lá conseguiram caber. Too-wit sentou-se sobre as folhas e, por gestos, convidou-nos a seguir-lhe o exemplo. Obedecemos e então encontrámo-nos numa situação estranhamente incomoda, senão crítica, pois éramos doze sentados no chão rodeados por quarenta selvagens acocorados e apertando-nos tanto que, se surgisse alguma desordem, nos seria impossível utilizar as armas ou mesmo levantar-nos.

A confusão não era apenas dentro da tenda mas também fora dela, onde provavelmente toda a população da ilha se tinha concentrado, que só não nos esmagava com os pés, porque os esforços e vociferações de Too-wit o impediam.

A nossa principal segurança residia na presença de Too-wit entre nós e, vendo que era a melhor maneira de sairmos daquele apuro, decidimos apertá-lo o mais possível entre nós, dispostos a matá-lo imediatamente à primeira manifestação hostil.

Depois de alguma algazarra, foi possível obter um pouco de silêncio e o chefe fez-nos uma longa discursata, semelhante à que nos tinha dirigido das canoas, mas desta vez havia menos Anamoo-moo! do que Lama-Lama!

Escutamos o discurso no mais profundo silêncio até ao fim, respondendo-lhe o capitão Guy, que assegurou ao chefe a sua eterna amizade e estima e concluiu a sua réplica oferecendo-lhe alguns rosários ou colares de pedras azuis e uma faca. O monarca, ao receber os colares, franziu a testa numa certa expressão de desdém, mas a faca causou-lhe uma satisfação indescritível e ordenou que servissem imediatamente o jantar.

Os alimentos entraram na tenda, por cima das nossas cabeças e consistiam de vísceras palpitantes de algum animal desconhecido, provavelmente um daqueles porcos de patas esguias que tínhamos visto ao entrar na aldeia. Vendo que não sabíamos como comer aquilo, começou por nos dar o exemplo, devorando pedaço a pedaço aquela apetitosa comida, mas não nos foi possível suportar por muito tempo aquele espetáculo e deixamos transparecer a nossa repugnância, de tal modo que Sua Majestade se mostrou quase tão surpreendido como no caso dos espelhos. Apesar do que isso podia significar, recusámos partilhar as maravilhas culinárias que nos eram oferecidas, esforçando-nos por lhe fazer compreender que não tínhamos apetite, pois tínhamos acabado de tomar uma sólida refeição.

Quando o monarca terminou o seu repasto, começamos a interrogá-lo da maneira mais inteligente possível, com o objetivo de descobrir quais eram os principais produtos da região e se havia alguns que nos pudessem ser úteis.

Ao fim de algum tempo, parecer ter compreendido o que queríamos dizer e ofereceu-se para nos acompanhar até um determinado local da costa, onde existia (e desenhou um esboço do animal) o escombro do mar em grande abundância. Aproveitámos com agrado aquela ocasião para fugir à opressão da multidão, e demonstrámos a nossa impaciência em partir. Assim, saímos da tenda e, acompanhados por toda a população da aldeia, seguimos o chefe até à extremidade Sudeste da ilha, não muito longe da baía onde o nosso navio estava ancorado.

Esperamos ali cerca de uma hora, até que as quatro canoas, conduzidas por alguns selvagens, chegassem ao local onde estávamos. Todo o nosso grupo embarcou numa canoa e fomos conduzidos à pangaia ao longo do recife de que falei, depois até outro, onde vimos o escombro-do-mar numa abundância nunca vista mesmo pelos velhos marinheiros nos arquipélagos de latitude inferiores, tão famosos por este artigo de comércio. Permanecemos naquele lugar o tempo suficiente para nos convencermos que teríamos facilmente carregado uma dúzia de navios se fosse necessário, após o que voltámos a bordo da escuna, e nos despedimos de Too-wit, que nos prometeu levar-nos no prazo de vinte e quatro horas tantos patos canvass-bad e tartarugas galápagos, quantos as suas canoas pudessem transportar.

Durante toda esta aventura, não notamos na conduta dos selvagens nada que pudesse levantar as nossas suspeitas, a não ser a maneira estranha como tinham engrossado o grupo, quando percorremos o caminho da escuna à aldeia.



continua na página 246...


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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.

Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).

Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.

Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.


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Edgar Allan Poe

CONTOS

Originalmente publicados entre 1831 e 1849 



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quarta-feira, 28 de outubro de 2020

histórias davóinha: Josino (I08j - assopre as estrela, tumbém)

Josino: I - a aparição da vida


assopre as estrela, tumbém
Ensaio 08j – 2ª edição 1ª reimpressão


baitasar



ele virô as vista pra sua preta acomodada na rede branca da lua, as duas – a muié e a lua – pendurada nas mão da Oxum

ela tava lhe oiando

nua e escondida em cinco lenço claro e luminoso, os pano de vento agarrado na cintura em laço como esvoaçante saia

sabia quioiá é a magia quieta qui acende as vontade sem nome e se solta sem troada, sem mentira ou escarcéu, é quando nada mais parece incomodá ou fazê sofrê 
 e num é preciso escondê nem tê vergonhice duqui é pra sê das vista qui vê ou num vê  e o gosto adoçado do perfume das mão faz perdê o juízo e as crença na razão

sê oiado pela muié milagres fazia continuá acessa suas vontade pra vivê, segurava o mundo intêro nas mão, sedento, quente, um gigante da lua qui se erguia todo vontade, todo vizinhança

virô pra ela e fez uma piscadela com a vista canhota, assoprô com doçura a lua crescente qui foi acomodá mais adiante a sua meiguice, deixô usdois com as liberdade e as vontade das carne do amô

a muié alevantô a voz da pedra e sussurrô com aroma de mel, Venha se desatá.

o hôme se espaiava pela pedra sem tirá as vista da rede, as carne arrepiando, as vontade se derramando, o mundo tava parado 

uqui existia num existia, 

o começo do novo, 

um otro adão, forte sem sê pesado, uma otra eva, sem culpa, tecida dela mesma 

só usdois morando nas estrada, Oxum da dança do amô e do perfume do vento seduzindo Ogum, um mundo sem dono, menos brabo e mais doce, menos casto e mais carnoso, menos lutadô e mais amoroso, menos rápido e mais entranhado

Assopre as estrela, tumbém.

ela pedia no balanço suave da rede 

ele obedecia, num desistia de sê feliz 

usdois num podia deixá de sentí quia vida é mais rara quias palavra, tem tempo pra falá, tempo pra oiá, tempo pra sê um dotro, tempo pra sê lembrança, inté quiu tempo continua sem usdois, A Milagres tem certeza desse seu querê, puruguntô, eu tenho mais querê pra vê a Milagres com as estrela, tava em pé, parado na pedra do banho, pronto pra assoprá as estrela, mais se ocê qué num vô lhe desacatá, 
arrematô ajuntando o sopro forte 

virô as vista pra escuridão estrelada e ergueu a mão

Espera, disse a muié qui oiava da rede useu pretu na pintura estrelada, sentiu otro arrepiu das água adociada lhe descendo, lhe aprontando, sorriu, apreciando a vontade avolumando, josino desceu a mão, deixô as estrela onde tava, Tá bem, as estrela pode ficá o tempo qui durá. Adoro vê as vontade de me querê crescendo no meu hôme, Gosto de me mostrá pra ocê, Tumbém gosto muntu duseu gosto. Vem cá, deixa as estrela lá na escuridão e vem me oiá mais perto, no avizinhamento duso das mão. Vem ajudá na criação do mundo.

a muié e o hôme provocava o amô com a língua, as mão, usóio ajuntava os aroma doce da indecência qui cadum carregava nas carne, o perfume das lembrança do futuro quié só deles, Assim, ele puruguntô depois qui deu mais dois passo, Mais um pouquinho, ela respondeu, os braço aberto e estendido, os lenço esvoaçante, usdois mostrava o sorriso da alegria qui vai dá e tê amô




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é bão lê tumbém...

histórias de avoinha: Josino (I01j - o beijo da terra)
histórias de avoinha: Josino (I02j - a belezura na escuridão estrelada)
histórias de avoinha: Josino (I03j - fada ruim)
histórias de avoinha: Josino (I04j - quando vai mudá?)
histórias de avoinha: Josino (I05j - o fogo nas gota do choro)
histórias de avoinha: Josino (I06j - vai chegá das muié preta)
histórias de avoinha: Josino (I07j - assopra a lua)
histórias de avoinha: Josino (I08j - assopre as estrela, tumbém)


terça-feira, 27 de outubro de 2020

O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (2)

 Simone de Beauvoir




02. A Experiência Vivida




O SEGUNDO SEXO
SlMONE DE BEAUVOIR




PRIMEIRA PARTE

FORMAÇÃO
                              ______________________________________________________




CAPÍTULO II
A   M O Ç A





É igualmente esse complexo que vai pesar sobre suas realizações intelectuais. Observou-se muitas vezes que a partir da puberdade a jovem perde terreno nos domínios intelectuais e artísticos. Há muitas razões para isso. Uma das mais frequentes está em que a adolescente não encontra em volta de si os incentivos que oferecem a seus irmãos; ao contrário: querem que ela seja também uma mulher e é-lhe preciso acumular as tarefas de seu trabalho profissional com as que sua feminilidade implica. A diretora de uma escola profissional faz a propósito as observações seguintes: 


A jovem torna-se repentinamente um ser que ganha a vida trabalhando. Tem novos desejos, que nada têm a ver com a família. Acontece frequentemente que deva fazer um esforço assaz considerável... Ela volta à noite para seu lar tomada de um cansaço colossal e com a cabeça cheia das ocorrências do dia... Como é então recebida? A mãe manda-a logo fazer alguma compra. Há também que terminar as tarefas caseiras deixadas em suspenso e cumpre-lhe ainda cuidar de sua roupa. É-lhe impossível dar atenção a todos os pensamentos íntimos que continuam a preocupá-la. Sente-se infeliz, compara sua situação com a do irmão que não tem deveres a cumprir em casa e revolta-se [1].

[1] Citado por Liepmann, Jeunesse et sexualité.

Os trabalhos caseiros ou as tarefas mundanas que a mãe não hesita em impor à estudante, à aprendiz, acabam de exauri-la. Vi, durante a guerra, alunas que eu preparava para Sèvres esmagadas pelas atividades familiares que se acrescentavam ao trabalho escolar: uma teve o mal de Pott, outra uma meningite. A mãe — vê-lo-emos — mostra-se surdamente hostil à libertação da filha, e mais ou menos deliberadamente esforça-se por freá-la. Respeitam o esforço que faz o adolescente para se tornar homem e desde logo lhe dão uma grande liberdade. Da moça exigem que fique em casa, fiscalizam-lhe as saídas: não a encorajam em absoluto a escolher seus divertimentos, seus prazeres. É raro ver mulheres organizarem sozinhas uma longa viagem, a pé ou de bicicleta, ou dedicar-se a um jogo como o de bilhar, de bolas etc. Além de uma falta de iniciativa que provém de sua educação, os costumes tornam-lhe a independência difícil. Se passeiam pelas ruas, olham-nas, abordam-nas. Conheço moças que, sem serem absolutamente tímidas, não encontram nenhum prazer em passear sozinhas por Paris porque, importunadas sem cessar, precisam andar sempre de atalaia: com isso todo o prazer se esvai. Se as estudantes correrem as ruas em bandos alegres como fazem os estudantes, dão espetáculo; andar a passos largos, cantar, falar alto, rir, comer uma maçã, são provocações, desde logo são insultadas ou seguidas ou abordadas. A despreocupação torna-se de imediato uma falta de compostura; esse controle de si a que a mulher é obrigada, e se torna uma segunda natureza na "moça bem comportada", mata a espontaneidade; a experiência viva é com isso dominada, do que resultam tensão e tédio. Esse tédio é comunicativo: as moças aborrecem-se logo umas das outras; não se prendem mutuamente a sua prisão; e é uma das razões que fazem tão necessária a companhia dos rapazes. Essa incapacidade de se bastar a si mesma engendra uma timidez que se estende por toda a vida e deixa marca em seu próprio trabalho: elas pensam que os triunfos brilhantes são reservados aos homens. Não ousam visar alto demais. Viu-se que, comparando-se com os meninos, as meninas de 14 anos diziam: "Os meninos são melhores". Essa convicção é debilitante. Incita à preguiça e à mediocridade. Uma moça que não tinha nenhuma deferência particular pelo sexo forte criticava a covardia de um homem; observaram-lhe que ela era também muito medrosa: "Ora uma mulher não é a mesma coisa", declarou com complacência.

A razão profunda desse derrotismo está em que a adolescente não se imagina responsável por seu futuro; julga inútil exigir muito de si mesma, porquanto não é dela finalmente que deve depender seu destino. Longe de se dedicar ao homem porque se sente inferior a ele, é porque a ele se acha destinada que, aceitando a ideia de sua inferioridade, ela a constitui.

Não será com efeito aumentando seu valor humano que ela se valorizará aos olhos dos homens: será moldando-se aos sonhos deles. Quando é ainda inexperiente, ela nem sempre o percebe. Acontece-lhe manifestar a mesma agressividade que os rapazes; tenta conquistá-los com uma autoridade brutal, uma franqueza orgulhosa: essa atitude leva-a quase certamente ao malogro. Da mais servil à mais altiva todas aprendem que para agradar-lhes é preciso abdicar. Suas mães as aconselham a não mais tratar os rapazes como colegas, a não darem os primeiros passos, a assumirem um pape] passivo. Se desejam esboçar uma amizade, um namoro, devem evitar cuidadosamente parecer tomar a iniciativa; os homens não gostam de mulher-homem, nem de mulher culta, nem de mulher que sabe o que quer: ousadia demais, cultura, inteligência, caráter, assustam-nos. Na maioria dos romances, como observa G. Eliot, é a heroína loura e tola que ganha da morena de caráter viril; e no Moinho à Beira do Floss, Maggie tenta em vão inverter os papéis; morre finalmente e é Lucy, a loura, que casa com Stephen; no Último dos Moicanos, é a insossa Alice que conquista o coração do herói e não a corajosa Clara; em Little Women a simpática Joe não passa de uma amiga de infância para Laurie: ele dedica seu amor à insípida Amy de cabelos encaracolados. Ser feminina é mostrar-se impotente, fútil, passiva, dócil. A jovem deverá não somente enfeitar-se, arranjar-se, mas ainda reprimir sua espontaneidade e substituir, a esta, a graça e o encanto estudados que lhe ensinam as mais velhas. Toda afirmação de si própria diminui sua feminilidade e suas probabilidades de sedução. O que torna relativamente fácil o início do rapaz na existência é que sua vocação de ser humano não contraria a de macho: já sua infância anuncia esse destino feliz. É realizando-se como independência e liberdade que ele adquire seu valor social e concomitantemente seu prestígio viril: o ambicioso, como Rastignac, visa ao dinheiro, à glória e às mulheres num mesmo movimento: uma das estereotipias que o estimulam é a do homem poderoso e célebre, que as mulheres adulam. Para a jovem, ao contrário, há divórcio entre sua condição propriamente humana e sua vocação feminina. E é por isso que a adolescência é para a mulher um momento tão difícil e tão decisivo. Até então, ela era um indivíduo autônomo: cumpre-lhe renunciar à sua soberania. Não somente ela é, como seus irmãos e de uma maneira mais aguda, cruelmente atormentada entre o passado e o futuro, mas ainda um conflito se estabelece entre sua reivindicação original, que é de ser indivíduo em atividade, liberdade, e suas tendências eróticas e solicitações sociais que a convidam a se assumir como objeto passivo. Ela se apreende espontaneamente como o essencial, de que maneira, pois, poderá concordar em tornar-se o inessencial? Mas se não posso realizar-me enquanto Outro, como renunciarei a meu Eu? Eis o angustiante dilema em face do qual a mulher em formação se debate. Oscilando do desejo ao nojo, da esperança ao medo, recusando o que almeja, está ainda em suspenso entre o momento da independência infantil e o da submissão feminina: é essa incerteza que lhe dá, ao sair da idade ingrata, um gosto ácido de fruto verde.

A jovem reage de maneira muito diferente segundo suas escolhas anteriores. A mulher comum, a futura matrona pode resignar-se facilmente à sua metamorfose; entretanto, ela pode também ter haurido em sua condição de burguesa, dona da casa, um pendor pela autoridade que a leva a revoltar-se contra o jugo masculino: ei-la disposta a fundar um matriarcado e não a tornar-se objeto erótico e criada. Será esse muitas vezes o caso das irmãs mais velhas que assumiram, muito jovens, importantes' responsabilidades. O "menino falhado", ao descobrir que é mulher, experimenta por vezes uma decepção violenta que a pode conduzir diretamente à homossexualidade; entretanto, o que ela procurava, na independência e na violência, era a posse do mundo, embora possa não querer renunciar ao poder de sua feminilidade, às experiências da maternidade, a toda uma parte de seu destino. Geralmente a jovem consente em sua feminilidade através de certas resistências: já no estádio do coquetismo infantil, em face do pai, em seus devaneios eróticos, ela conheceu o encanto da passividade; descobre-lhe o poder; à vergonha que lhe inspira sua carne, mistura- se muito cedo certa vaidade. Tal mão que a comoveu, tal olhar que a perturbou, era um chamado, uma prece; seu corpo apresenta-se-lhe como dotado de virtudes mágicas; é um tesouro, uma arma; tem orgulho dele. Seu coquetismo, que não raro desaparecera durante os anos de infância autônoma, ressuscita. Ela experimenta arrebiques e penteados; em lugar de esconder os seios, faz-lhes massagens para que cresçam, estuda o sorriso diante dos espelhos. A ligação entre a inquietação e a sedução é tão estreita que, em todos os casos em que a sensibilidade erótica não desperta, não se observa, no sujeito, nenhum desejo de agradar. Experiências mostram que doentes sofrendo de insuficiência tireoidiana, e consequentemente apáticas, tristonhas, podiam ser transformadas mediante injeção de extratos glandulares: põem-se a sorrir, tornam-se alegres e dengosas. Ousadamente, os psicólogos imbuídos de metafísica materialista declararam que o coquetismo era um "instinto" secretado pela glândula tireoidiana; mas essa explicação obscura só é válida aqui para a primeira infância. O fato é que em todos os casos de deficiência orgânica — linfatismo, anemia etc. o corpo é suportado como um fardo. Estranho, hostil, ele não espera nem promete nada; quando recobra seu equilíbrio e sua vitalidade, logo o sujeito o reconhece como seu e através dele transcende para outrem.

Para a jovem, a transcendência erótica consiste em aprender a se tornar presa. Ela torna-se um objeto; e apreende-se como objeto; é com surpresa que descobre esse novo aspecto de seu ser: parece-lhe que se desdobra. Ao invés de coincidir exatamente consigo, ei-la que começa a existir fora. Assim, em L'Invitation à la valse de Rosamond Lehman, vê-se Olivia descobrir num espelho uma imagem desconhecida: é ela-objeto erguido repentinamente em face de si mesma; a emoção que experimenta é transtornante mas dissipa-se depressa:



Desde algum tempo, uma emoção particular acompanhava o minuto em que se olhava assim dos pés a cabeça: de maneira imprevista e rara, acontecia que visse diante de si uma estranha, um novo ser.  

Isso produziu-se duas ou três vezes. Ela olhava-se num espelho, via-se. Mas que acontecia?... Agora o que via era outra coisa: um rosto misterioso, a um tempo sombrio e radioso; uma cabeleira transbordante de movimentos e de força e como que percorrida por correntes elétricas. Seu corpo — seria por causa do vestido — parecia-lhe juntar-se harmonicamente: centrar-se, desabrochar, flexível e estável ao mesmo tempo: vivo. Tinha diante de si, como um retrato, uma jovem de cor-de-rosa que todos os objetos do quarto, refletidos no espelho, pareciam enquadrar, apresentar, murmurando: é você...


O que deslumbra Olivia são as promessas que acredita ler nessa imagem em que reconhece seus sonhos infantis e que é ela própria; mas a moça ama também, na sua presença carnal, esse corpo que a maravilha como o de uma outra. Ela se acaricia a si própria, beija a curva do ombro, a concavidade do braço, contempla o seio, as pernas; o prazer solitário torna-se pretexto para devaneios, neles busca uma terna posse de si. No adolescente, há uma oposição entre o amor de si mesmo e o impulso erótico que o impele para o objeto a ser possuído: seu narcisismo desaparece geralmente no momento da maturidade sexual. Ao passo que na mulher, sendo ela um objeto passivo para o amante como para si mesma, há em seu erotismo uma indistinção primitiva. Num movimento complexo, ela visa a glorificação de seu corpo através das homenagens dos homens a quem se destina esse corpo; e seria simplificar as coisas dizer que ela quer ser bela para seduzir ou que busca seduzir para se assegurar que é bela: na solidão de seu quarto, nos salões em que tenta atrair os olhares, não separa o desejo do homem do amor a seu próprio eu. Essa confusão é manifesta em Maria Bashkirtseff. Já vimos que uma desmama tardia a predispôs, mais vivamente do que qualquer outra criança, a querer ser encarada e valorizada por outrem; desde a idade de 5 anos até sair da adolescência, ela dedica todo o seu amor à sua imagem; admira loucamente suas mãos, seu rosto, sua graça, escreve: "Sou minha heroína..." Quer ser cantora para ser olhada por um público deslumbrado e em compensação medi-lo altivamente; mas esse "autismo" traduz-se por sonhos romanescos; desde a idade de 12 anos sente-se amorosa: é que espera ser amada e não procura, na adoração que deseja inspirar, senão a confirmação daquela que dedica a si mesma. Sonha que o duque de H., por quem está apaixonada sem nunca lhe ter falado, se prosterna a seus pés: "Serás ofuscado pelo meu esplendor e me amarás... Só és digno de uma mulher como espero ser". É a mesma ambivalência que encontramos em Natacha de Guerra e Paz:


Mamãe tampouco me compreende. Deus meu, como sou espirituosa! Um verdadeiro encanto, essa Natacha! prosseguiu falando a si mesma na terceira pessoa e colocando a exclamação na boca de um personagem masculino que lhe atribuía todas as perfeições de seu sexo. Tem tudo, tudo para ela. É inteligente, gentil e bonita, e hábil. Nada, monta muito bem a cavalo, canta deliciosamente. Sim, pode-se dizer, deliciosamente...  

Tinha voltado naquela manhã àquele amor a si mesma, àquela admiração por sua pessoa, que constituíam seu estado de alma habitual, "Que encanto, essa Natacha! dizia ela; fazendo falar um terceiro personagem coletivo e masculino. É jovem, é bonita, tem uma bela voz, não incomoda ninguém: deixem-na portanto sossegada!"


Katherine Mansfield descreveu também, no personagem de Beryl, um caso em que o narcisismo e o desejo romanesco de um destino de mulher se misturam estreitamente:


Na sala de jantar, à luz piscante do fogo da lareira, Beryl tocava guitarra sentada numa almofada. Tocava para si mesma, cantava a meia voz e observava-se. O brilho das chamas espelhava-se em seu sapato, no ventre rubicundo da guitarra e em seus dedos brancos...  

"Se estivesse lá fora e olhasse para dentro pela janela, espantar-me-ia bastante em me ver assim", pensava. Tocou o acompanhamento em surdina; não cantava mais, escutava.  

"Da primeira vez que te vi, menina, tu te acreditavas muito só! Estavas sentada com teus pezinhos sobre a almofada e tocavas guitarra. Deus meu! Nunca o poderei esquecer..." Beryl ergueu a cabeça e pôs-se a cantar:  

Até a lua está lassa. Mas batiam fortemente à porta. A cara avermelhada da criada surgiu... Não, não suportaria aquela mulher estúpida. Fugiu para o salão escuro e pôs-se a andar de um lado para outro. Oh! estava agitada, agitada. Em cima da lareira havia um espelho. Apoiando-se nos braços contemplou sua pálida imagem. Como era bela! Mas não havia ninguém para percebê-lo, ninguém... Beryl sorriu e realmente seu sorriso era tão adorável que sorriu de riovo.. . (Prelúdio).


continua página 77...

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O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (2)


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As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.
Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.




"O que é uma mulher?"



Julio Verne - A Volta ao Mundo em 80 Dias, Capítulo XXV

 Júlio Verne



A Volta ao Mundo em 80 Dias





CAPÍTULO XXV

EM QUE SE DÁ UMA OLHADA EM SÃO FRANCISCO, EM DIA DE MEETING




Eram sete da manhã quando Mr. Phileas Fogg, Mrs. Aouda e Passepartout puseram o pé no continente americano — se é que se pode dar esse nome ao cais flutuante em que desembarcaram. Estes cais, subindo e descendo com a maré, facilitam a carga e a descarga dos navios. Neles é que atracam os clippers de todas as dimensões, os steamers de todas as nacionalidades, e esses steam-boats de muitos andares, que fazem o serviço do Sacramento e de seus afluentes. É ai também que se amontoam os produtos de um comércio que se estende ao México, Peru, Chile, Brasil, Europa, Ásia, a todas as ilhas do oceano Pacífico.

Passepartout, em sua alegria de tocar afinal a terra americana, tinha entendido dever fazer seu desembarque executando um salto mortal no melhor estilo. Mas quando caiu sobre o cais, cujo tabuado estava carunchado, não conseguiu fazer a volta. Todo desconsolado com a maneira pela qual “tomara pé” sobre o novo continente, o honesto moço soltou um grito formidável, que fez voar um grande número de cormorões e pelicanos, hóspedes habituais dos cais móveis.

Mr. Fogg, assim que desembarcou, informou-se da hora em que partia o primeiro trem para Nova York. Era às seis da tarde. Mr. Fogg tinha pois um dia inteiro para gastar na capital californiana. Fez vir um veículo para Mrs. Aouda e para si. Passepartout subiu para a boléia, e o veículo, a três dólares a corrida, dirigiu-se para o International Hotel.

Do lugar elevado que ocupava, Passepartout observou com curiosidade a grande cidade americana; ruas largas, casas baixas bem alinhadas, igrejas e templos de um gótico anglo-saxão, docas imensas, armazéns como palácios, uns de madeira, outros de tijolo; nas ruas, caruagens numerosas, ônibus, “cars” de tramway s, e sobre as calçadas encobertas, não apenas Americanos e Europeus, mas também Chineses e Indianos — enfim o necessário para compor uma população de mais de duzentos mil habitantes.

Passepartout ficou muito surpreso com o que viu. Ele estava ainda na cidade legendária de 1849, na cidade dos bandidos, dos incendiários e dos assassinos, vindos em busca das pepitas, imenso cafarnaum de todos os desclassificados, onde se jogava ouro em pó, um revólver numa mão e um punhal na outra. Mas “esse bom tempo” já tinha passado. São Francisco apresentava o aspecto de uma grande cidade comercial. A alta torre da Municipalidade, onde vigiavam os sentinelas, dominava um conjunto de ruas e de avenidas, que se cruzavam em ângulos retos, entre as quais se abriam praças verdejantes; depois uma cidade chinesa que parecia ter sido importada do Celeste Império em uma caixa de brinquedo. Nada de sombreros, nada de camisas vermelhas, nada de índios emplumados, mas chapéus de seda e roupas pretas, trajadas por um grande número de gentlemen dotados de uma atividade devoradora. Certas ruas, entre outras Montgommery Street — a Regent Street de Londres, o Boulevard des Italiens de Paris, a Broadway de Nova York — eram ladeadas por lojas esplêndidas que ofereciam à sua clientela os produtos do mundo inteiro.

Quando Passepartout chegou ao International Hotel, não lhe parecia ter saído de Londres.

O rés-do-chão do hotel era ocupado por um imenso “bar» , espécie de caférestaurante gratuito, aberto a todos, que poderiam ali consumir carne seca, sopa de ostras, biscoitos e chester, sem terem que abrir a carteira. Só se paga pela bebida, ale, porto ou xerez, se sua fantasia o levar a beber algo. Passepartout achou isso “muito americano”.

O restaurante do hotel era confortável. Mr. Fogg e Mrs. Aouda sentaram-se a uma mesa e foram abundantemente servidos em pratos liliputinianos por Negros do mais belo negro.

Depois de almoçar, Phileas Fogg, acompanhado de Mrs. Aouda, deixou o hotel para ir ao consulado inglês, visar seu passaporte. Na calçada encontrou o criado, que lhe perguntou se, antes de pegar a estrada de ferro do Pacífico, não seria mais prudente comprar algumas dúzias de rifles Enfield ou de revólveres Colt. Passepartout ouvira falar de Sioux e de Pawnies, que param os trens como simples ladrões espanhóis. Mr. Fogg respondeu que era uma precaução inútil, mas deu-lhe liberdade para agir como bem lhe aprouvesse. Depois dirigiu-se para o escritório do agente consular.

Phileas Fogg nem tinha dado duzentos passos quando, “pelo maior dos acasos”, encontrou Fix. O inspetor mostrou-se extremamente surpreso. Como! Mr. Fogg e ele tinham feito juntos a travessia do Pacífico, e não tinham se encontrado no navio! Fosse como fosse, Fix não podia deixar de se sentir honrado em tornar a ver o gentleman a quem devia tanto, e, como os seus negócios o chamavam à Europa, ficaria encantado em prosseguir viagem em tão agradável companhia. Mr. Fogg respondeu que a honra seria sua, e Fix — que insistia em não o perder de vista — pediu permissão para acompanhá-los na visita a esta curiosa cidade de São Francisco. Foi-lhe concedida.

Eis pois Mrs. Aouda, Mr. Fogg e Mr. Fix passeando despreocupadamente pelas ruas. Logo estavam na Montgommery Street, onde a afluência popular era enorme. Nas calçadas, no meio da rua, sobre os trilhos dos tramway s, apesar da passagem incessante dos coaches e dos ônibus, no interior das lojas, nas janelas de todas as casas, e mesmo sobre os telhados, multidão imensa. Homenssanduíches circulavam na multidão. Bandeirinhas e bandeirolas flutuavam ao vento. Gritos eclodiam por toda parte.

— Hurrah para Kamerfield!

— Hurrah para Mandiboy!

Era um meeting. Pelo menos foi o que pensou Fix, e o que disse a Mr. Fogg, acrescentando:

— Faríamos talvez melhor, senhor, em não entrar nesta confusão. Daí só se tira alguns socos.

— Com efeito, respondeu Phileas Fogg, e os socos, por serem políticos, não deixam de ser socos!

Fix achou que devia sorrir ao ouvir esta observação, e, para verem sem se envolverem na bagunça, Mrs. Aouda, Phileas Fogg e ele postaram-se no topo de uma escada que dava para um terraço, situado no fim da Montgommery Street. Diante deles, do outro lado da rua, entre o wharf de um comerciante de carvão e a loja de um negociante de petróleo, localizava-se uma grande plataforma ao ar livre, para a qual a multidão parecia convergir.

E então, por quê era este meeting? Qual seria a ocasião que o motivava? Phileas Fogg o ignorava totalmente. Tratar-se-ia da nomeação de um alto funcionário militar ou civil, de um governador de Estado ou de um membro do Congresso? Poderia imaginar que fosse, pela animação extraordinária que tomava conta da cidade

Neste momento um movimento considerável se produziu na multidão. Todas as mãos estavam levantadas. Algumas, solidamente fechadas, pareciam erguer-se e abaixar-se rapidamente em meio a gritos — maneira enérgica, sem dúvida, de formular um voto. Uma maré agitava a massa que refluía. As bandeiras oscilavam, desapareciam por um instante, reapareciam em farrapos. As ondulações da multidão propagavam-se até a escada, enquanto que todas as cabeças amontoadas se agitavam à superfície como um mar subitamente tocado por uma borrasca. O número de chapéus pretos diminuía a olhos vistos, e a maior parte deles parecia ter perdido sua altura normal.

— É evidentemente um meeting, disse Fix, e a questão que o provocou deve ser palpitante. Não seria nada de admirar que fosse ainda a questão do Alabama, se bem que já esteja resolvida.

— Talvez, respondeu simplesmente Mr. Fogg.

— Em todo o caso, retomou Fix, dois campeões se defrontam, o digno Kamerfield e o digno Mandiboy.

Mrs. Aouda, de braços dados com Phileas Fogg, contemplava com surpresa esta cena tumultuosa, e Fix ia perguntar a um de seus vizinhos a razão de tamanha efervescência popular, quando um movimento mais notável se pronunciou. Os hurrahs, as imprecações, redobraram. Os mastros de bandeira transformaram-se em armas ofensivas. Mais mãos, punhos por todo lado. Do alto dos veículos parados, e dos ônibus enfileirados em seu trajeto, trocavam-se petardos. Tudo servia de projétil. Garrafas e calçados descreviam no ar trajetórias extensas, e pareceu mesmo que alguns revólveres misturaram às vociferações da multidão suas detonações nacionais.

A turba aproximou-se da escada e refluiu dos primeiros degraus. Um dos partidos estava sendo evidentemente repelido, sem que os simples espectadores pudessem reconhecer se a vantagem ficava com Mandiboy ou com Kamerfield.

— Parece-me prudente nos retirarmos, disse Fix, que não desejava que o “seu homem” fosse maltratado ou se metesse em qualquer confusão. Se a questão envolve a Inglaterra, e nos reconhecem, ficaremos envolvidos nesta bagunça.

— Um cidadão inglês... respondeu Phileas Fogg.

Mas o gentleman não pôde terminar a frase. Por detrás dele, do terraço que precedia a escada, partiram uivos espantosos. Bradavam: Hurrah! Hip! Hip! Mandiboy ! Era uma leva de eleitores que chegava de reforço, atacando pelo flanco os partidários de Kamerfield.

Mr. Fogg, Mrs. Aouda e Fix encontraram-se entre dois fogos. Era muito tarde para escapar. Esta torrente de homens, armados com bengalas chumbadas e com porretes, era irresistível. Phileas Fogg e Fix, na defesa da jovem, foram horrivelmente sacudidos. Mr. Fogg, não menos fleumático do que de costume, quis defender-se com as armas naturais que a natureza pôs na extremidade dos braços de todo inglês, mas inutilmente. Um homenzarrão de barba avermelhada, rosto afogueado, ombros largos, que parecia ser o chefe do bando, levantou seu formidável punho sobre Mr. Fogg, e teria gravemente maltratado o gentleman, se Fix, por dedicação, não tivesse recebido o golpe em seu lugar. Um enorme galo se desenvolveu instantaneamente sob o chapéu de seda do detetive, transformado em simples boné.

— Yankee! disse Mr. Fogg, lançando ao seu adversário um olhar de profundo desprezo.

— Inglês! respondeu o outro.

— Nós nos reencontraremos!

— Quando quiser. O seu nome?

— Phileas Fogg. O seu?

— Coronel Stamp W. Proctor.

Depois, a maré passou. Fix foi derrubado e se levantou, com a roupa despedaçada, mas sem ferimentos sérios. Seu paletó de viagem tinha sido separado em duas partes desiguais, e as suas calças pareciam-se com estes calções que certos Indianos — questão de moda — só vestem depois de lhes terem tirado os fundilhos. Mas, em suma, Mrs. Aouda tinha sido poupada, e, só, Fix tinha ganho seu murro.

— Obrigado, disse Mr. Fogg ao inspetor, logo que saíram da multidão.

— Não há de que, respondeu Fix, mas vamos...

— Aonde?

— A uma loja de roupas.

Com efeito, esta visita era oportuna. As vestes de Phileas Fogg e de Fix estavam em frangalhos, como se estes dois gentlemen tivessem brigado por causa dos dignos Kamerlield e Mandiboy.

Uma hora depois, estavam convenientemente vestidos e penteados. Em seguida voltaram ao Internacional Hotel.

Passepartout esperava seu patrão, armado com meia dúzia de revólveres de seis tiros e fogo central. Quando viu Fix em companhia de Mr. Fogg, fechou a cara. Mas Aouda, tendo-lhe narrado em poucas palavras o que se passara, sossegou-o. Evidentemente Mr. Fix não era mais um inimigo, era um aliado. Mantinha a sua palavra.

Quando o jantar terminou, foi trazido um coach, que deveria conduzir os viajantes e seus pertences à estação. No momento de subir para o veículo, Mr. Fogg disse a Fix:

— Voltou a ver o coronel Proctor?

— Não, respondeu Fix.

— Voltarei à América para o reencontrar, disse friamente Phileas Fogg. Não seria conveniente que um cidadão inglês se deixasse tratar assim.

O agente sorriu e não respondeu. Mas, como se vê, Mr. Fogg era dessa raça de ingleses que, se não toleram o duelo em seu país, batem-se no estrangeiro, quando se trata de defender a honra.

Às seis menos um quarto, os viajantes chegaram à estação e encontraram o trem prestes a partir. No momento em que Mr. Fogg ía embarcar, avistou um empregado e chegando-se a ele:

— Meu amigo, disse-lhe, não houve hoje alguns tumultos em São Francisco?

— Era um meeting, senhor, respondeu o empregado.

— Contudo, parece-me que notei uma certa animação nas ruas.

— Tratava-se simplesmente de um meeting organizado para uma eleição.

— Eleição para um cargo importantíssimo, sem dúvida? perguntou Mr. Fogg.

— Não, senhor, de um juiz de paz.

Depois desta resposta, Phileas Fogg subiu para o vagão, e o trem partiu a todo vapor.





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Julio Verne nasceu em Nantes em 8 de fevereiro de 1828. Fugiu de casa com 11 anos para ser grumete e depois marinheiro. Localizado e recuperado, retornou ao lar paterno. Em um furioso ataque de vergonha por sua breve e efêmera aventura, jurou solenemente (para a sorte de seus milhões de leitores) não voltar a viajar senão em sua imaginação e através de sua fantasia.

Promessa que manteve em mais de oitenta livros.

Sua adolescência transcorreu entre contínuos choques com o pai, para quem as veleidades exploratórias e literárias de Júlio pareciam totalmente ridículas.

Finalmente conseguiu mudar-se para Paris onde entrou em contato com os mais prestigiados literatos da época. Em 1850 concluiu seus estudos jurídicos e, apesar insistência do pai para que voltasse a Nantes, resistiu, firme na decisão de tornar-se um profissional das letras.

Foi por esta época que Verne, influenciado pelas conquistas científicas e técnicas da época, decide criar uma literatura adaptada à idade científica, vertendo todos estes conhecimentos em relatos épicos, enaltecendo o gênio e a fortaleza do homem em sua luta por dominar e transformar a natureza.

Em 1856 conheceu Honorine de Vyane, com quem casou em 1857.

Por essa época, era um insatisfeito corretor na Bolsa, e resolveu seguir o conselho de um amigo, o editor P. J. Hetzel, que será seu editor in eternum, e converteu um relato descritivo da África no Cinco Semanas em Balão (1863). Obteve êxito imediato. Firmou um contrato de vinte anos com Hetzel, no qual, por 20.000 francos anuais, teria de escrever duas novelas de novo estilo por ano. O contrato foi renovado por Hetzel e, mais tarde, por seu filho. E assim, por mais de quarenta anos, as Voyages Extraordinaires apareceram em capítulos mensais na revista Magasin D'éducation et de Récréation.

Em A Volta ao Mundo em 80 Dias, encontramos, ao mesmo tempo, muito da breve experiência de Verne como marinheiro e como corretor de Bolsa. Nada mais justo, também, que o novo estilo literário inaugurado por Júlio Verne, fosse utilizado por uma nova arte que surgia: o cinema. Da Terra à Lua (Georges Mélies, 1902), La Voyage a travers l'impossible (Georges Mélies, 1904), 20.000 lieus sous les mers (Georges Mélies, 1907), Michael Strogof (J. Searle Dawley, 1910), La Conquête du pôle (Georges Mélies, 1912) foram alguns dos primeiros filmes baseados em suas obras. Foram inúmeros.

A Volta ao Mundo em 80 dias foi filmado em 1956, com enredo milionário, dirigido por Michael Anderson, música de Victor Young, direção de fotografia de Lionel Lindon. David Niven fez Phileas Fogg, Cantinflas, Passepartout, Shirley MacLaine, Aouda. Em 1989, foi aproveitado para uma série de TV, com a participação da BBC, dirigida por Roger Mills. No mesmo ano, outra série de TV, agora nos EE.UU., dirigida por Buzz Kulik, com Pierce Brosnan (Phileas Fogg), Eric Idle (Passepartout), Julia Nickson-Soul (Aouda), Peter Ustinov (Fix).

Apesar de tudo, a vida de Verne não foi fácil. Por um lado sua dedicação ao trabalho minou a tal ponto sua saúde que durante toda a vida sofreu ataques de paralisia. Como se fosse pouco, era diabético e acabou por perder vista e ouvido. Seu filho Michael lhe deu os mesmos problemas que dera ao pai e, desgraça das desgraças, um de seus sobrinhos lhe disparou um tiro à queima-roupa deixando-o coxo. Sua vida efetiva também não foi das mais tranquilas e todos os seus biógrafos admitem ter tido uma amante, um relacionamento que só terminou com a morte da misteriosa dama.

Verne também se interessou pela política, tendo sido eleito para o Conselho de Amiens em 1888 na chapa radical, reeleito em 1892, 1896 e 1900.

Morreu em 24 de Março de 1905


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A Volta ao Mundo em 80 Dias é um romance de aventura escrito pelo francês Júlio Verne e lançado em 1873. A obra retrata a tentativa do cavalheiro inglês Phileas Fogg e seu valete, Passepartout, de circum-navegar o mundo em 80 dias.

Data da primeira publicação: 30 de janeiro de 1873
Autor: Júlio Verne
Editora: Pierre-Jules Hetzel
País: França
Personagens: Phileas Fogg, Passepartout, Princesa Aouda, Inspetor Fix, James Forster