sexta-feira, 26 de abril de 2024

O Sol é para todos: 1ª Parte (10c)

Harper Lee

O Sol é para todos


Para o sr. Lee e Alice, em retribuição ao amor e afeto


Os advogados, suponho, um dia foram crianças.
CHARLES LAMB



PRIMEIRA PARTE

10

continuando...

   Tim Johnson apareceu, andando sem rumo pela rua, no lado da curva paralelo à casa dos Radley.

— Olha só para ele — cochichou Jem para mim. — O sr. Heck disse que cachorro louco anda em linha reta, mas ele mal consegue permanecer na rua. 

— Ele parece muito doente — constatei.

— Se alguma coisa passar na frente, ele ataca.

   O sr. Tate pôs a mão na testa e se inclinou para a frente. 

— Ele está louco mesmo, Sr. Finch.

   Tim Johnson vinha desnorteado, sem brincar nem cheirar as plantas, parecia que tinha uma meta e era controlado por uma força invisível que o mandava na nossa direção. Podíamos vê-lo estremecer como um cavalo espantando moscas; abria e fechava a boca, mas vinha na nossa direção. 

— Ele está procurando um lugar para morrer — disse Jem. 

   O sr. Tate virou-se para nós: 

— Ele não vai morrer, Jem, longe disso.

   Tim Johnson chegou à rua lateral que passava em frente à casa dos Radley e, com o que lhe restava de discernimento, pareceu decidir que direção ia tomar. Deu alguns passos hesitantes e parou diante do portão dos Radley. Então tentou dar meia-volta, mas não conseguiu.
   Atticus disse:

— Ele está na linha de tiro, Heck. É melhor abatê-lo logo, antes que entre na rua lateral, sabe Deus quem pode estar lá agora. Entre em casa, Cal. 

   Calpúrnia abriu a porta telada, trancou-a, abriu de novo e ficou com a mão no trinco. Tentou colocar o corpo na frente de Jem e eu, mas nós olhamos por baixo dos braços dela. 

— Atire nele, sr. Finch.

   O sr. Tate entregou o rifle para Atticus. Jem e eu quase desmaiamos.

— Não perca tempo, Heck. Atire — disse Atticus. 

— Sr. Finch, tem que ser um tiro certeiro.

   Atticus balançou a cabeça, firme: 

— Não fique aí parado, Heck! O cachorro não vai esperar o dia todo... 

— Pelo amor de Deus, sr. Finch, olhe onde ele está! Se eu errar o tiro, ele vai entrar direto na casa dos Radley! Você sabe que não sou bom atirador. 

— Há trinta anos não pego numa arma…

   O sr. Tate quase jogou o rifle em cima de Atticus: 

— Confio mais na sua pontaria — ele disse. 

   Atordoados, Jem e eu vimos nosso pai pegar o rifle e ir para o meio da rua. Ele andava rápido, mas para mim parecia alguém nadando embaixo d’água: o tempo transcorria com uma lentidão torturante. 
   Quando Atticus tirou os óculos, Calpúrnia murmurou: 

— Meu bom Jesus, ajude esse homem — e pôs as mãos no rosto. 

   Atticus colocou os óculos na testa, mas eles escorregaram e caíram na rua. No silêncio, ouvi as lentes se quebrarem. Atticus coçou os olhos e o queixo, aguçou a vista. 
   Tim Johnson estava no portão dos Radley e, com o que lhe restava das ideias, decidiu o que fazer. Ia finalmente retomar a rota original e subir a nossa rua. Deu dois passos para a frente, então parou e levantou a cabeça. Seu corpo se enrijeceu.
   Com movimentos tão rápidos que pareceram simultâneos, Atticus apoiou o rifle no ombro e atirou.
   O rifle rangeu. O corpo de Tim Johnson deu um solavanco, se revirou e caiu na calçada, um monte de carne marrom e branca. Ele nem viu o que o atingiu. 
   O sr. Tate pulou da varanda e correu para a casa dos Radley. Parou na frente do cachorro, agachou-se, virou para trás e bateu com o dedo na testa sobre o olho esquerdo. 

— Seu tiro acertou um pouco à direita, sr. Finch. 

— Minha pontaria sempre foi assim — concordou Atticus. — Eu preferia usar uma espingarda. 

   Ele se abaixou para pegar os óculos no chão, triturou a lente quebrada com a sola do sapato, foi até o sr. Tate e ficou observando o corpo de Tim Johnson. 
   As portas das casas foram se abrindo uma por uma e, aos poucos, tudo voltou à vida. A srta. Maudie desceu a escada com a srta. Stephanie Crawford. 
   Jem estava paralisado. Belisquei-o para que ele se mexesse, mas, quando Atticus nos viu saindo de casa, ordenou: 

— Fiquem onde estão.

   Quando o sr. Tate e Atticus voltaram para o nosso jardim, o sr. Tate estava sorrindo. 

— Vou mandar Zeebo recolher o corpo — disse ele. — Ainda está com boa pontaria, sr. Finch. Dizem que isso a pessoa nunca perde.

   Atticus ficou calado. 

— Atticus — chamou Jem.

— Sim?

— Nada. 

— Eu vi, Finch-tiro-certeiro! 

   Atticus virou-se e deu de cara com a srta. Maudie. Os dois se olharam sem dizer nada e Atticus entrou no carro do xerife.

— Venha cá — disse para Jem. — Não quero que cheguem perto do cachorro, entendeu? Ele é tão perigoso morto quanto vivo. 

— Está bem. Atticus… — Jem começou a dizer.

— O que é, filho? 

— Nada. 

— O que houve com você, menino, perdeu a fala? — perguntou o sr. Tate, sorrindo para Jem. — Você não sabia que o seu pai…

— Não diga nada, Heck. Vamos voltar para a cidade — disse Atticus. 

   Quando foram embora, Jem e eu fomos para a escada da srta. Stephanie e ficamos esperando Zeebo aparecer com o caminhão de lixo. 
   Jem estava confuso e a srta. Stephanie perguntou: 

— Ai, ai, ai, quem ia pensar que um cachorro louco ia aparecer em fevereiro? Vai ver que não estava louco, só parecia louco. Não quero nem ver a cara de Harry Johnson quando chegar de Mobile e souber que Atticus Finch matou o cachorro dele. Vai ver que o cão só estava cheio de pulgas…

   A srta. Maudie disse que a srta. Stephanie não ia dizer isso se Tim Johnson ainda estivesse andando pela rua, que descobririam logo o que o cachorro tinha, porque mandariam a cabeça dele para ser examinada em Montgomery. 
   Jem conseguiu se manifestar, meio desconexo. 

— Você viu, Scout? Viu ele parado lá? De repente, ele ficou calmo, parecia que a arma era uma extensão do corpo dele… Foi tão rápido… Eu preciso fazer dez minutos de pontaria para acertar alguma coisa…

   A srta. Maudie deu um sorriso malicioso. 

— Então, srta. Jean Louise, ainda acha que seu pai não sabe fazer nada? Ainda tem vergonha dele? — perguntou.

— Não — respondi, envergonhada. 

— Esqueci de dizer no outro dia que, além de tocar harpa de boca, Atticus Finch era o tiro mais certeiro do condado de Maycomb. 

— Tiro certeiro... — repetiu Jem.

— Isso mesmo, Jem Finch. Acho que agora você vai mudar de opinião. Aliás, sabia que, quando era jovem, o apelido dele era Tiro Certeiro? Lá em Finch’s Landing, quando ele era garoto, se desse quinze tiros e acertasse catorze pombos, reclamava que tinha desperdiçado munição.

— Ele nunca falou sobre isso — resmungou Jem.

— Nunca, não é? 

— Não, senhora. 

— Não sei por que ele não caça mais — eu disse. 

— Acho que eu sei — disse a srta. Maudie. — Se o pai de vocês tem alguma qualidade, é o bom coração. Atirar bem é um dom divino, um talento, precisa praticar para se aperfeiçoar, mas atirar é diferente de tocar piano ou coisas assim. Acho que ele deixou a espingarda de lado quando viu que Deus tinha lhe dado uma vantagem injusta em relação às outras coisas vivas e resolveu só atirar quando fosse necessário, como hoje. 

— Acho que ele devia se orgulhar — eu disse. 

— As pessoas sensatas nunca se orgulham dos próprios talentos — avaliou a srta. Maudie. 

   Vimos Zeebo chegar com o caminhão. Pegou um forcado na carroceria, tirou o corpo de Tim Johnson da rua e jogou-o no caminhão, depois despejou um líquido onde o corpo tinha ficado na rua. 

— Não se aproximem daqui por um tempo — Zeebo gritou para nós. 

   Quando fomos para casa, eu disse a Jem que na segunda-feira teríamos uma novidade para contar na escola. Jem virou-se para mim e avisou: 

— Não diga nada sobre isso, Scout. 

— O quê? Claro que vou falar sobre isso. Nem todo mundo tem um pai que é o tiro mais certeiro do condado de Maycomb. 

   Jem disse:

— Se ele quisesse que soubéssemos, teria contado. Se tivesse orgulho disso, teria dito alguma coisa. 

— Vai ver que esqueceu — sugeri. 

— Não, Scout, você não ia entender. Atticus é velho mesmo, mas não me importo se ele não consegue fazer algumas coisas… Não dou a mínima se ele não souber fazer nada…

   Jem pegou uma pedra e jogou-a, exultante, na garagem. Correu para buscá-la e gritou para mim: 

— Atticus é um cavalheiro, exatamente como eu! 

continua página 075...
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Leia também:

O Sol é para todos: 1ª Parte (10c)
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Copyright © 1960 by Harper Lee, renovado em 1988 
Copyright da tradução © José Olympio
Título do original em inglês 
TO KILL A MOCKINGBIRD 
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Um dos romances mais adorados de todos os tempos, O sol é para todos conta a história de duas crianças no árido terreno sulista norte-americano da Grande Depressão no início dos anos 1930. 

quinta-feira, 25 de abril de 2024

Massa e Poder - A Massa (Massas de Fuga)

Elias Canetti


MASSAS DE ACOSSAMENTO


   A massa de fuga constitui-se a partir da ameaça. É próprio dela que todos fujam, que todos sejam arrastados por ela. O perigo de que se sente ameaçada é o mesmo para todos. Ele se concentra num determinado lugar e não faz distinções: pode ameaçar os habitantes de uma cidade, todos os que professam uma mesma crença ou todos os falantes de uma única e mesma língua.
   As pessoas fogem juntas porque assim fogem melhor. A excitação é a mesma: a energia de um intensifica a dos outros, e as pessoas compelem-se todas adiante, na mesma direção. Enquanto estão juntas, sentem o perigo distribuído por todos. Uma noção antiquíssima crê que o perigo atacará em um único ponto. Enquanto o inimigo se apodera de um, os outros todos poderão escapar. Os flancos da fuga apresentam-se abertos, mas alongados como são é inconcebível que o perigo ataque todos ao mesmo tempo. Em meio a tantas pessoas, ninguém supõe que venha a ser ele a vítima. Uma vez que todos se movem rumo à salvação, cada um sente-se inteiramente impregnado da possibilidade de obtê-la.
   O que mais chama a atenção na fuga em massa é precisamente a força de sua direção. A própria massa transformou-se inteiramente em direção, por assim dizer — uma direção que significa longe do perigo. Uma vez que importa apenas a meta, na qual se está salvo — isto é, o percurso específico até lá, e nada mais —, as distâncias anteriormente existentes entre os homens são irrelevantes. Criaturas bastante singulares e opostas, que jamais se aproximaram uma da outra, podem aí subitamente reunir-se. É certo que, na fuga, não se anulam as suas diferenças, mas anulam-se nela todas as distâncias que as separavam. De todas as formas da massa, a de fuga é a mais abrangente. Contudo, o quadro desigual que ela oferece não é produzido apenas pela participação de absolutamente todos, mas faz-se ainda mais confuso pelas velocidades bastante diversas de que os homens são capazes em sua fuga. Dentre eles há jovens e velhos, fortes e fracos, pessoas levando consigo cargas maiores ou menores. A variedade desse quadro pode confundir um observador externo. Ela é casual e — comparada à força avassaladora da direção — absolutamente insignificante.
   A energia da fuga multiplica-se na medida em que cada participante reconheça os demais: ele pode impeli-los adiante, mas não empurrá-los para o lado. No momento em que passa a preocupar-se apenas consigo próprio e a sentir os que o circundam tão somente como um obstáculo, o caráter da fuga em massa altera-se completamente, transformando-se em seu oposto: ela se transforma em pânico, uma luta de cada um contra todos os demais que lhe barram o caminho. Na maioria das vezes, uma tal reviravolta ocorre quando a direção da fuga é reiteradamente perturbada. Basta que se obstrua o caminho da massa para que ela irrompa em outra direção. Obstruindo-se lhe seguidamente o caminho, ela logo não saberá mais que rumo tomar. Confundir-se-á em sua direção, o que fará com que sua consistência se modifique. O perigo, que até então produzira um efeito acelerador e unificador, coloca uns como inimigos dos outros, de modo que cada um tentará salvar-se por si só.
   Contrariamente ao pânico, porém, a fuga em massa extrai sua energia de sua coesão. Enquanto ela não se deixar dispersar por coisa alguma, enquanto persistir em seu caráter irrompível, qual uma portentosa torrente que não se subdivide, também o medo que a impele permanecerá suportável. Tão logo ela se põe em marcha, uma espécie de exaltação caracteriza a fuga em massa: a exaltação do movimento conjunto. Ninguém se encontra menos em perigo do que o outro, e embora cada um corra ou cavalgue a não mais poder, a fim de  pôr-se em segurança, cada um tem o seu lugar no todo — um lugar que reconhece e ao qual, em meio à agitação geral, se aferra.
   No decorrer da fuga, que pode estender-se por dias ou semanas, muitos ficam para trás — seja porque sua força os abandonou ou porque o inimigo os atingiu. Cada um que cai constitui um estímulo para que os outros prossigam. A sorte que o vitimou excetuou os demais. O atingido é um sacrifício oferecido ao perigo. Por mais importante que tenha sido para alguém em particular, como companheiro de fuga, na condição daquele que caiu ele se faz importante para todos. Sua visão dá nova força aos exaustos. Ele era mais fraco que eles; era a ele que o perigo visava. O isolamento desse seu ficar para trás, o isolamento no qual os demais ainda o veem por um breve instante, aumenta para estes o valor de sua coesão. Nunca é demais enfatizar o significado para a consistência da fuga daquele que tombou.
   O término natural da fuga é o alcance de sua meta. Em segurança, a massa volta a dissolver-se. O perigo, porém, pode também ser aniquilado em sua fonte. Decreta-se uma trégua, e a cidade da qual se fugiu já não está mais em perigo. Se antes haviam fugido em conjunto, agora as pessoas retornam separadamente; apresentam-se novamente tão apartadas quanto antes. Contudo, há ainda uma terceira possibilidade, a que se pode chamar o escoar-se da fuga na areia. A meta encontra-se demasiado distante; o meio é hostil; os homens têm fome, tornam-se fracos e exaustos. Em vez de um único, centenas, milhares jazem no chão. Essa desintegração física estabelece-se paulatinamente, e o movimento inicial mantém-se por um tempo infinitamente longo. Os homens arrastam-se adiante, tendo já desaparecido qualquer perspectiva de salvação. De todas as formas da massa, a de fuga é a mais tenaz; seus últimos integrantes permanecem juntos até o instante derradeiro.
   Exemplos de fuga em massa efetivamente não faltam. Nossa época fez-se novamente bastante farta nesse fenômeno. Até os acontecimentos da última guerra, ter-se-ia pensado primeiramente no destino da Grande Armada de Napoleão, por ocasião de sua retirada da Rússia. Trata-se do exemplo mais grandioso: a composição desse exército de homens de tantas e tão diversas línguas e países, o inverno terrível, a distância gigantesca, que tinha de ser percorrida a pé pela maioria — conhece-se em todos os seus detalhes essa retirada que tinha, necessariamente, de degenerar numa fuga em massa. — A fuga de uma metrópole foi provavelmente vivenciada pela primeira vez, nas proporções em que se deu, em 1940, quando os alemães se aproximavam de Paris. O famoso “êxodo” não durou muito tempo, uma vez que logo se estabeleceu a trégua. Contudo, a intensidade e a amplitude desse movimento foram tais que ele se converteu para os franceses na principal lembrança relacionada à massa da última guerra.
   Não cabe enumerar aqui os exemplos de tempos mais recentes. Sua lembrança apresenta-se fresca ainda na mente de todos. Importante afigura-se, porém, destacar que a fuga em massa era já, desde sempre, conhecida dos homens, mesmo quando estes viviam ainda em grupos bastante reduzidos. Ela desempenhou um papel em sua imaginação antes mesmo de ser-lhes numericamente possível. Basta lembrar aquela visão de um xamã esquimó: “O espaço celeste está repleto de seres nus que vagam pelo ar. Seres humanos, homens nus, mulheres nuas que voam, atiçando a tempestade e a nevasca. Ouvis o zunido? O vento lá em cima zune feito o bater de asas de pássaros enormes. Esse é o medo dos seres humanos nus, a fuga dos seres nus!”.
   
continua página 82...
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Leia também:

Massa e Poder - A Massa (Massa Aberta e Massa Fechada)
Massa e Poder - A Massa (Massas de Fuga)
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

Memórias do Cárcere - Viagens 17

Memórias do Cárcere

Graciliano Ramos


Volume I 
 Editora Record 
PRIMEIRA PARTE 

VIAGENS 

17


       CHAMARAM-NOS, ingressamos na confusão dos corredores, subimos, descemos, viramos esquinas, chegamos ao portão do quartel, juntamo-nos aos nossos vizinhos da prisão dos sargentos. Apenas reconheci dois: Sebastião Hora, bastante apreensivo, e Manuel Leal, empregado no balcão de d. Maroca Prado no meu tempo de colégio, depois caixeiro-viajante, um rapaz moreno, de olhos vivos, arrasado em poucos anos. Essa criatura tivera negócio comigo em época de prosperidade; sumira-se e, ao cabo de longa ausência, reaparecia, com rugas e cabelos brancos, em medonha decadência, transportando a bagagem pesada. Examinei o resto do grupo, notei a falta do advogado Nunes Leite. Bem, certamente haviam percebido que a dureza do regime carcerária não convinha a natureza tão sensível. Chamou-me a atenção um negro coberto de calombos, que se espalhavam nas mãos, no rosto luzidio, davam ao sujeito a aparência de um pé de jabuticaba As outras figuras passaram despercebidas: com certeza me achava preocupado, incapaz de observar direito.
   A saída fizeram-nos entrar num caminhão, onde se arrumavam caixotes, as nossas maletas, numerosos troços miúdos. Os oficiais, os automóveis de luxo, as conversas amáveis tinham-se evaporado Dávamos um salto para baixo, sem dúvida, mas por muito que sondasse o terreno, não me era possível adivinhar onde iríamos cair. A nossa escolta se compunha de tipos silenciosos, mal-encarados. Não vi as divisas do comandante; devia ser cabo: naquela mistura de homens, trouxas e caixões, aos solavancos, espremidos como galinhas em jacás, não seríamos confiados a sargento. Alguns presos bazofiavam, riam, procurando ambientar-se; os risos e as bazófias esmoreciam, sem ressonância, dominados pelo barulho do motor. as pilhérias tinham estridências lúgubres.
   Partimos. Ignoro se chegamos logo ao destino, se nos demoramos a rolar nas ruas estreitas, que não nos despertavam curiosidade. Certamente ninguém se lembrava de observar o trajeto e consultar relógio. Tínhamos vivido num quartel do exército, separados: talvez nos houvessem oferecido tratamento diverso para semear discórdia. Reuniam-nos agora, transferiam-nos à polícia – e os ressentimentos iam explodir. Devia ser essa a razão do afastamento, embora só a tenhamos percebido muito depois. Naquela hora, sacolejados no carro de molas duras, entre fuzis ameaçadores e carrancas, éramos um pequeno rebanho apático. A vontade e o entendimento murchavam; ditos espaçados, vestígios da ruidosa despreocupação do começo. soavam falso como rachar de vidros.
   Alcançamos o porto, descemos, segurando maletas e pacotes, alinhamo-nos e, entre filas de guardas, invadimos um navio atracado, percorremos o convés, chegamos ao escotilhão da popa, mergulhamos numa escadinha. Tinha-me atarantado e era o último da fila. Ao pisar o primeiro degrau, senti um objeto roçar-me as costas: voltei-me, dei de cara com um negro fornido que me dirigia uma pistola para-bellum. Busquei evitar o contato, desviei-me; o tipo avançou a arma, encostou-me ao peito o cano longo, o dedo no gatilho. Certamente não dispararia à toa: a exposição besta de força tinha por fim causar medo, radicalmente não diferia das ameaças do general. Ridículo e vergonhoso. Um instante duvidei dos meus olhos, julguei-me vítima de alucinação. O ferro tocava-me as costelas, impelia-me, os bugalhos vermelhos do miserável endureciam-se, estúpidos. Em casos semelhantes a surpresa nem nos deixa conhecer o perigo: experimentamos raiva fria e impotente, desejamos fugir à humilhação e nenhuma saída nos aparece. Temos de morder os beiços e baixar a cabeça, engolir a afronta. Nunca nos vimos assim entalados, ainda na véspera estávamos longe de supor que tal fato ocorresse. O absurdo se realiza e não vamos discuti-lo. Irrisório, na verdade. No atordoamento, no assombro imenso, temos a impressão de que não nos toca a roupa um tubo de aço, mas um pouco de lama. Exatamente: lama. Aquilo decorreu num ápice: o tempo necessário para voltar-me, enxergar o instrumento, a cara tisnada e obtusa, procurar afugentar a intimidação, verificar a inutilidade do gesto, virar-me de novo. Alguns segundos.
   Avancei, um bolo na garganta, o coração a estalar, venci a pequena distância que me separava dos companheiros. Chegamos ao fim da escada, paramos à entrada de um porão, mas durante minutos não compreendi onde me achava. Espaço vago, de limites imprecisos, envolto em sombra leitosa. Lá fora anoitecera; ali duvidaríamos se era dia ou noite. Havia luzes toldadas por espesso nevoeiro: uma escuridão branca. Detive-me, piscando os olhos, tentando habituar a vista. Erguendo a cabeça, via-me no fundo de um poço, enxergava estrelas altas, rostos curiosos, um plano inclinado, próximo, onde se aglomeravam polícias e um negro continuava a dirigir-me a pistola. Era como se fôssemos gado e nos empurrassem para dentro de um banheiro carrapaticida. Resvaláramos até ali, não podíamos recuar, obrigavam-nos ao mergulho. Simples rebanho, apenas, rebanho gafento, na opinião dos nossos proprietários, necessitando creolina. Os vaqueiros, armados e fardados, se impacientavam.
   Desviando-me deles, tentei sondar a bruma cheia de trevas luminosas. Ideia absurda, que ainda hoje persiste e me parece razoável: trevas luminosas. Havia muitas lâmpadas penduradas no teto baixo, ali ao alcance da mão, aparentemente, mas eram como luas de inverno, boiando na grossa neblina.
   Arrisquei alguns passos, maquinalmente, parei meio sufocado por um cheiro acre, forte, desagradável, começando a perceber em redor um indeciso fervilhar. Antes que isto se precisasse, confuso burburinho anunciou a multidão que ali se achava. Agora já não éramos pequeno rebanho a escorregar num declive: constituíamos boiada numerosa; à ideia do banheiro carrapaticida sucedeu a de um vasto curral. Certamente a perturbação visual durou um instante, mas ali de pé, sobraçando a valise, a abanar-me com o chapéu de palha, tentando reduzir o calor, afastar o cheiro horrível, mistura de suor e amoníaco, um pensamento me assaltou, fez-me perder a noção do tempo. Que homens eram aqueles que se arrumavam encaixados, tábuas em cima, embaixo, à frente, à retaguarda, à esquerda, à direita? Imaginei-os criminosos e vagabundos. Os contornos das pessoas e das coisas lentamente se precisavam. Aglomeração incalculável, aglomeração desordeira Uma figura amável vista de relance não abalou esta certeza O homem louro, tranquilo, gordinho, se levantou da rede, acolhedor, fumando cachimbo, disse-nos palavras que não entendi. Impossível fixar a atenção em qualquer ponto, a memória se embotava, observações imperfeitas se atabalhoavam desconexas, deixando largos espaços obscuros. Outras pessoas me falaram, inutilmente. O cachimbo do homem louro trouxe-me ao espírito uma relação – e contentou-me verificar que não me havia tornado completamente imbecil. A fumaça dos cachimbos e dos cigarros enchia o ar, produzia a garoa em que os focos luminosos nadavam. De repente ouvi gritos. Um rapaz veio lá do fundo, acercou-se dos policiais, gesticulando, esgoelando-se:

 – Companheiros, vão separar-nos. Desembarco. Se não nos tornarmos a ver, ficam vocês sabendo o lugar da minha morte. Adeus.

– Adeus, Valadares, responderam algumas vozes.

   O rapaz subiu a escada e sumiu-se. No calor horrível, senti um arrepio. Apesar da firmeza espetacular daquela despedida fúnebre, continuei a julgar que me haviam reunido a criminosos e instintivamente me achegava ao grupo escasso de alagoanos. Só havia ali duas pessoas conhecidas, as outras se diluíam no fumaceiro, mas o transporte no caminhão e o arremesso à furna medonha ligavam-nos em destino comum. Vivêramos uma quinzena próximos e impossibilitados de comunicar; até a saudação à passagem deles no alpendre ficava sem resposta. Impossível identificá-los. Talvez me houvessem deixado no espírito sinais fisionômicos. Não me capacitava disto, e apenas as jabuticabas esquisitas, as excrescências vistas uma hora antes tornavam reconhecível a cara inexpressiva do negro. Avançamos à toa, evitando corpos úmidos. No zunzum de feira nenhuma frase perceptível; os meus pés machucavam coisas moles, davam-me a impressão de pisar em lesmas. O terrível fedor sufocava-me, a quentura de fornalha punha-me brasas na pele, e a certeza de encontrar-me cercado de imundícies levava-me a proteger a valise, resguardá-la debaixo do braço. Aguentar-me-ia em semelhante lugar? Conseguiria resistir?

– Já se viu numa situação como esta? – Nunca, respondeu Mata furioso.

   Sempre manifestara despreocupação, afirmara que estávamos bem e era tolice esperar coisa melhor, referira-se com minúcias a prisões anteriores: nenhuma lhe havia deixado mossa. Vira-se em dificuldades sérias, nada ignorava; nos momentos de aperto sabia tirar vantagem de insignificâncias, mudava os obstáculos em . utilidades. Consultando-o, desejava certificar-me de que não havia motivo para alarme e o porão ignóbil estava previsto. A negativa indignada acabava de aniquilar-me. Evidentemente eu não suportaria a temperatura de caldeira; sentia-me num banho a vapor, o colarinho empapava-se, a camisa aderia ao peito e às costelas, as meias afundavam num charco ardente, do rosto caíam gotas sem descontinuar. Abanava-me com o chapéu e arfava. Não era a degradação moral que me oprimia. Tinha capitão Mata alcançado bem a minha pergunta? A cólera dele desalentava-me a nova interrogação. Nem me sentia humilhado, no atordoamento; não buscava saber se me restariam forças na alma dentro da realidade inconcebível. A alma fugia-me, na verdade, e inquietava-me adivinhar que a resistência física ia abandonar-me também, de um momento para outro: jogar-me-ia sobre as tábuas sujas, acabar-me-ia aos poucos, respirando amoníaco, envolto em pestilências. Algumas horas depois atirar-me-iam na água o cadáver. Inquirindo o oficial, pretendia insinuar-me coragem, supor, baseando-me na experiência alheia, que a vida ali era possível. Experimentei com a resposta verdadeira decepção, realmente insensata. Pois não via muitos indivíduos, talvez centenas de indivíduos, no curral flutuante? Escapou-me a observação e lá fui ziguezagueando num labirinto de redes, altas, baixas, do solo ao teto, a emaranhar-se, a balançar com o movimento do navio.
   Alguém cochichou-me, atraiu-me a um canto; ouvi o nome de Miguel Bezerra, um moço de casquete, moreno e magro, que se pôs a falar com abundância. No começo não entendi o que ele dizia, recordo somente uma declaração repetida: 

– Não somos comunistas. 

   Bem, eu os supunha vagabundos; surgiam-me dúvidas agora.

– Donde vêm os senhores?

   Tinham embarcado no Rio Grande do Norte. – Mas não somos comunistas.

– Perfeitamente.

   Porque a insistência? Entrei a conversar – e logo duas surpresas me assaltaram Miguel parecia alegre, as minhas palavras soavam-me aos ouvidos como se fossem pronuncia das por outra pessoa. Doidice rir em semelhante inferno. Ou então me sensibilizara em demasia, os horrores que estivera a desenvolver tinham existência fictícia. Possivelmente o meu enjoo e a raiva do capitão Mata provinham da mudança repentina: se nos houvessem feito percorrer escalas, não nos abalaríamos tanto. Lembro-me de ter afirmado isto mentalmente. De qualquer modo nos arranjaríamos, chegaríamos a um porto. Assim falava no interior e dizia coisas diferentes,: pausadas, maquinais; pareciam gravadas num disco de vitrola. Deviam ter significação, pois o diálogo se prolongou, mas não me seria possível reproduzi-lo. A declaração inicial voltava com frequência:

– Não somos comunistas.

   Porque inocentar-se? A certeza de que estavam ali os revoltosos de Natal acirrou-me a curiosidade, embora não me arriscasse a pedir informações ao desconhecido cauteloso.
   Duas mulheres achegaram-se, uma branca, nova, bonita, uma pequena cafuza de olhos espertos. Fiquei sabendo que a primeira se chamava Leonila e era casada com Epifânio Guilhermino.
   
– Esta é a nossa amiga Maria Joana. Se o senhor tiver negócio com ela, pode procurá-la no camarote lá do fim. 

   Maria Joana desdenhou a pilhéria, sem se escandalizar, mostrou os dentes alvos, contraiu num sorriso infantil as pálpebras oblíquas E afastaram-se em silencio. Em frente a uns beliches toscos haviam estendido cobertas, e ali as infelizes criaturas se torravam, no mormaço invariável. Coitadas. Envergonhei-me do desânimo que me invadira. Notaria alguém vestígios dele?
   Uma dualidade, talvez efeito da cadeia, principiava a assustar-me: a voz e os gestos a divergir de sentimentos e ideias cá dentro, uma confusão, borbulhar de água a ferver Por fora, um sossego involuntário, frieza, quase indiferença. A fala estranha me saía da garganta seca.

continua página 80....
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Leia também:

Memórias do Cárcere - Viagens 17
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Graciliano Ramos de Oliveira (Quebrangulo, 27 de outubro de 1892 – Rio de Janeiro, 20 de março de 1953) foi um romancista, cronista, contista, jornalista, político e memorialista brasileiro do século XX, mais conhecido por sua obra Vidas Secas (1938).
Em setembro de 1915, motivado pela morte dos irmãos Otacília, Leonor e Clodoaldo e do sobrinho Heleno, vitimados pela epidemia de peste bubônica, volta para o Nordeste, fixando-se junto ao pai, que era comerciante em Palmeira dos Índios, Alagoas. Neste mesmo ano casou-se com Maria Augusta de Barros, que morreu em 1920, deixando-lhe quatro filhos.
Foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios em 1927, tomando posse no ano seguinte. Apoiado pelo governador do estado e impulsionado por ser um nome de fora da política, foi eleito em um pleito de uma candidatura só. Ficou no cargo por dois anos, renunciando a 10 de abril de 1930. Segundo uma das autodescrições, "Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas." Os relatórios da prefeitura que escreveu nesse período chamaram a atenção de Augusto Frederico Schmidt, editor carioca que o animou a publicar Caetés (1933).
Entre 1930 e 1936. viveu em Maceió, trabalhando como diretor da Imprensa Oficial, professor e diretor da Instrução Pública do estado. Em 1934, havia publicado São Bernardo, e quando se preparava para publicar o próximo livro, foi preso após a Intentona Comunista de 1935. Foi levado para o Rio de Janeiro e ficou preso por onze meses, sendo liberado sem ter sido acusado de nada ou julgado. Em Memórias do Cárcere recorda a prisão que sofrera seis anos antes.

quarta-feira, 24 de abril de 2024

Makarenko - Poema Pedagógico Livro 1(b): Operações de caráter interno

Poema Pedagógico


Antón S. Makarenko


Livro Um

Capítulo 4

Operações de caráter interno

    Eu até fiquei contente com essa circunstância. Esperava que pronto, agora começará a falar o interesse geral, coletivo, e obrigará a todos a se interessarem pelo caso dos roubos com zelo maior. Com efeito, todos os rapazes ficaram tristes, mas zelo não apareceu nenhum, e quando passou a impressão, o interesse esportivo tomou conta novamente de todos: quem seria esse que trabalhava tão agilmente?
   Mais alguns dias, sumiu da cavalariça o arreio do Malích, e nós não podíamos sequer ir até a cidade. Tivemos de andar pela aldeia vizinha e pedir uma emprestada para os primeiros dias.
   Os furtos já aconteciam todos os dias. De manhã se descobria que neste ou naquele lugar faltava alguma coisa: machados, serrotes, vasilhames, lençóis, arreios, gêneros. Tentei não dormir à noite, andava pelo pátio com o revólver, mas mais do que duas, três noites, é claro, não consegui aguentar. Pedi a Óssipov que ficasse de plantão por uma noite, Mas ele ficou tão apavorado que não falei mais nisso.
   Entre os rapazes, eu suspeitava de muitos, incluindo também Gud e Taranêts. Prova, entretanto, eu não tinha nenhuma, e tive de conservar minhas suspeitas em segredo.
   Zadoróv ria às gargalhadas e brincava:

- O que é que o senhor pensava, Anton Semiónovitch: isto aqui é uma colônia de trabalho – trabalhe, trabalhe, e nada de divertimento? Espere só, isto ainda vai piorar bem! E o que o senhor vai fazer com aquele que for apanhado?

- Vou pô-lo na cadeia.

- Bem, Isso ainda não é nada. Pensei que o senhor IA bater nele.

Certa vez, alguém saiu para o pátio de noite, todo vestido:

- Vou andar um pouco com o senhor.

- Cuidado para que os ladrões não se encarnicem contra você.

- Não, eles bem sabem que o senhor está de guarda, hoje eles não vão roubar, de qualquer jeito. E daí, o que é que tem isso?

- Mas confesse, Zadórov, Que você tem medo deles.

- De quem? Dos ladrões? Claro que tenho medo. Mas não se trata de eu ter medo, o senhor tem de concordar, Anton Semiónovitch: o caso é que de certa forma não fica bem delatar.

- Mas se é de vocês mesmos que eles roubam.

- De mim, o quê? Não há nada de meu por aqui.

- Mas vocês todos vivem aqui.

- Que vida é essa, Anton Simiónovitch? Isso então é vida? Não vai dar em nada esta sua colônia. O senhor se debate à toa. Vai ver só, eles vão roubar tudo e se mandar. O senhor faria melhor se contratasse alguns guardas e lhes desse alguns fuzis.

- Isso não, não vou contratar guardas nem lhes darei fuzis.

- Mas por quê? - espantou-se Zadórov.

- Os guardas têm de ser pagos, e nós já somos pobres demais. E o mais importante é que vocês mesmos têm de ser os donos.

   A ideia de que era preciso contratar guardas era compartilhada por muitos colunistas. No dormitório teve lugar um autêntico debate sobre o assunto.
   Anton Brátchenko, o melhor representante do segundo grupo de colunistas, argumentava:

- Quando há um guarda de plantão, ninguém vai sair para roubar. E se sair, apesar de tudo, é caso de aplicar lhe uma descarga de sal naquela parte. Quando ele andar salgadinho durante um mês, vai perder a vontade de roubar.

   Respondia lhe Kóstia Vietkóvski, um garoto bonito cuja especialidade “em liberdade” era realizar buscas e apreensões com ordens falsificadas. Durante essas buscas, desempenhava papéis secundários, os papéis principais pertenciam aos adultos. O próprio Kóstia - isso ficou registrado no seu dossiê - nunca roubou nada, ele se empolgava exclusivamente com o lado estético da operação. E sempre se referia aos ladrões com desprezo. Fazia bastante tempo que eu já reparava na índole sutil desse menino. O que mais me espantava era facilidade com que ele se relacionava com os rapazes mais truculentos e era autoridade amplamente reconhecida em questões políticas. Kóstia argumentava:

- Anton Semiónovitch tem razão. Nada de guardas! Por enquanto ainda não compreendemos, mas logo compreenderemos todos que não se pode roubar dentro da colônia. Mesmo agora, muitos já estão compreendendo. Nós vamos logo montar guarda nós mesmos. Certo, Burún? – dirigiu-se inesperadamente a Burún.

   Em fevereiro, a nossa despenseira deixou o seu emprego na colônia - eu conseguir a sua transferência para um hospital qualquer. Num certo domingo, o Malích foi levada até sua porta e todos os seus amiguinhos e participantes de chás filosóficos puseram-se ativamente a colocar dentro do trenó as suas numerosas sacolas e valises. A boa velhinha, balançando-se pacificamente no alto das suas riquezas, partiu ao encontro da sua nova vida à mesma velocidade de dois km por hora.
   Malích voltou tarde, mas junto com ele voltou a velhinha e se precipitou aos gritos e soluços no meu quarto: fora roubada até o último filme. Seus amigos e ajudantes carregaram todas as suas sacolas, valises e maletas não só para o trenó, mas também para outros lugares - foi um assalto declarado. Acordei imediatamente Kaliná Ivánovitch, Zadórov e Taranêts, e realizamos uma busca geral em toda a colônia. Foi roubada tanta coisa, que não deu tempo de esconder bem tudo. Entre os arbustos, no sótãos dos armazéns, sob os degraus da porta de entrada, e mesmo debaixo das camas e atrás dos armários foram encontrados todos os tesouros da despenseira. A velhinha era rica de verdade: encontramos cerca de uma dúzia de toalhas de mesa novas, muitos lençóis e toalhas de rosto, colheres de prata, vasinhos, uma pulseira, brincos e muitas miudezas de toda espécie.
   A velhinha chorava no meu quarto, e o quarto ai aos poucos se enchendo de detidos - seus ex-amigos e simpatizantes.
   No começo, eles negaram tudo, nossa eu dei uns berros com eles e os horizontes clarearam. Verificou-se que os principais assaltantes não eram os amigos da velhinha. Estes se limitaram algumas lembranças, como um guardanapo de chá ou um açucareiro. Ficou esclarecido que o ativista principal em todo esse episódio fora Burún. Essa descoberta espantou a muitos, e a mim principalmente. Burún, desde o primeiro dia, parecia o mais equilibrado de todos, estava sempre sério, era contidamente social, e na escola era o que estudava melhor, com a mais tensa atenção e interesse. O que me deixou estupefato foi o ímpeto e a competência das suas ações: ele escondera fardos inteiros dos bens da velha. Não restava dúvida de que todos os roubos anteriores na colônia foram obras das suas mãos. 
  Finalmente eu chegar à fonte do mal! Coloquei Burún diante do tribunal popular, o primeiro julgamento na história da nossa colônia.


Operações de caráter interno (b)

terça-feira, 23 de abril de 2024

Quando alguém te ama

Não tem fim


Cauby Peixoto & Emílio Santiago 
- Não Tem Fim (All The Way)



Música de Jimmy Van Heusen e Sammy Cahn. Versão de Ronaldo Bastos. 
Faixa extraída do disco "Cauby Canta Sinatra" - 1995


quando alguém te ama
só é bom se alguém te ama
sem ter fim
não serás sozinho
se alguém tiver carinho
sem ter fim
além de qualquer limite
é o que vais sentir
melhor que o melhor convite
esse é que não vais resistir

quando alguém te chama
só é bom se arde a chama
sem ter fim
o frescor dos dias
o calor das noites frias
são a dois

até onde vai a estrada
quem poderá dizer
mas se o ser amado
vai seguir sempre ao teu lado

não tem fim



Cauby Peixoto e Emilio Santiago 
- Meu Sonho é Você 
(Altamiro Carrilho / Atila Nunes)





Entrevista com Cauby Peixoto no programa do  
- Parte 02





Conceição 
(Ao Vivo 60 Anos de Música)

Cauby Peixoto Emilio Santiago
Agnaldo Rayol Agnaldo Timóteo





Ronda
Cauby Peixoto
(Especial Vida de Artista, 1980)



Cauby Peixoto Barros (Niterói, 10 de fevereiro de 1931 — São Paulo, 15 de maio de 2016) foi um cantor brasileiro, considerado um dos maiores e mais versáteis intérpretes da música brasileira.

Iniciou sua carreira artística no final da década de 1940. Estudou em um Colégio de Padres Salesianos em Niterói, onde chegou a cantar no coro da escola e também no coro da igreja que frequentava. Também trabalhou em um comércio até resolver participar de programas de calouros no rádio, no final da década de 40, no Rio de Janeiro.

Sua voz era caracterizada pelo timbre grave e aveludado, mas principalmente pelo estilo próprio de cantar e interpretar, além da extravagância e penteados excêntricos. Proveniente de uma família de músicos, o pai (conhecido como Cadete) tocava violão, a mãe bandolim, os irmãos eram instrumentistas, as irmãs cantoras e o tio pianista. Sobrinho do músico Nonô, pianista que popularizou o samba naquele instrumento, Cauby também era primo do cantor Ciro Monteiro.


sábado, 20 de abril de 2024

Memórias - 15: rainha do lar

No se puede hacer la revolucion sin las mujeres

Livro Dois

baitasar

Memórias

15 – rainha do lar

quando o relógio despertador destruía o encanto do adormecimento com seu canto de galo, não pensava duas vezes, levava a mão ao lado e num só golpe apertava o pescoço do Alvorado até se quebrar, ¡Ya está! ¡Está listo para ser asado y servido en la mesa del almuerzo!

o jogo de perguntas, respostas e estalos estava começando, o casarão acordava e ordenava que dona Manuela retomasse suas funções genéricas, ela é a dona-da-casa

revestir seu corpo com a invariável e monótona vestimenta de esposa mãe dedicada e serva para o uso do ferro de desamassar roupas esfregar o banheiro dos bons costumes varrer casa lavar louças e panelas cozinhar as carnes para as carnes da sua carne, tudo feito, sem ouvir, ¡Gracias, mamá!

assim era, de tal modo, gerações e gerações em sua família, não sentia ser legítimo reclamar deste personagem que faz tudo por amor, suas vontades não tinham boca para reclamar

lhe foi dado o título honorífico de rainha do lar, uma soberana serviçal da trupe de hóspedes, ela sempre esteve lá para eles, uma presença constante em suas vidas, sempre pronta para atender seus pedidos, responder suas perguntas, achar seus perdidos, mas nunca escutou um obrigado real e amoroso em troca de tanto uso casual que faziam dela, recebendo recebendo e recebendo, ela se oferecendo oferecendo oferecendo, não acho que dona Manuela pedia reconhecimento, mas às vezes me perguntava se eles entendiam do esforço e dedicação que colocava de si mesma para cuidar deles

tudo isso, esse amor altruística e visceral, foi ensinado de mãe para filha, sob a vigilância da autoridade que tudo escuta e vê, uma prisão hereditária e vitalícia da sublime tríade: pai, mãe e filha

na verdade, eu acho que dona Manuela sentia um orgulho resignado do seu aprendizado, Se puede aprender a ser feliz, repetia baixinho

esposo, filhos e filhas chegavam aos contornos da dona Manuela em conta-gotas, no meio do dia, simplesmente esperavam que tudo estivesse pronto

os primeiros eram Anadyr e Calssado, os dois eram espantados para o banho, ¡Por favor, quítate esse olor de vaca y leche del pelo, manos y pies!

don Juan chegava abrindo panelas, experimentando os cheiros

¡Don Juan, vaya a lavarse!

os seis filhos saiam no atacado das manhãs e chegavam a granel para o almoço, jeitos de cada um e cada uma, criaturas únicas para quem aquela mulher vivia em devoção e permanente estado de alerta

cuidava e garantia a sobrevida das suas crias, era como esconder nas próprias entranhas a tesoura e o corte do cordão umbilical, entre ela, os filhos e as filhas, as ligações eram como os ventos do ar que não se pode ver, mas se materializam no medo dos ventos fortes, no bem-estar das brisas amenas do refrescamento

¡Niños, el almuerzo está en la mesa!

a primeira chamada, para acertarem os relógios desacertados, reajustava os ponteiros a cada novo chamado à mesa

Anadyr, quase sempre, era a primeira a sentar-se à mesa, depois se aproximavam Aryani e Angélyca

nada dos meninos

!Niños, la comida se esfría!

depois do segundo convite, don Juan fazia sua convocação, Rapazes, desçam já!

sob o comando de quem tem o direito e o poder chegavam em frenesi e colocavam-se em seus lugares

para don Juan e dona Manuela a organização da mesa durante as refeições era muito especial

arrumar os lugares na mesa era como usar determinada louça para certas comidas, seguir um protocolo específico de ordem e disposição das coisas e personagens, Essas tradições ajudam a fortalecer os laços familiares e criar momentos significativos durante nossas vidas, entenderam?

dona Manuela incluía receitas tradicionais da família nas refeições, ensinava as receitas para suas filhas, esperava o tempo de ensinar e encorajar suas filhas no uso do fogão

don Juan usava o tempo à mesa para contar e escutar histórias, memórias, usava seus instintos para fortalecer os laços entre os filhos e filhas

não começavam as refeições até que todos estavam à mesa sempre posta e preparada do mesmo modo

o chefe na cabeceira da mesa, os meninos sentados de um lado, Calssado, Crespo e Chiado, as meninas sentadas do outro lado, Anadyr, Angélyca e Aryani, na cabeceira oposta estava a dona da casa, e do seu jeito, deitada na cesta de vime, estava Maryá, como boa menina, dormia indiferente às conversas e revezamentos da família

eu, em pé, atrás da dona Manuela, em prontidão para retirar ou levar à mesa

tudo pronto, a mesa estava posta, todos nos seus lugares habituais, faltava agradecimento, Senhor Bom Deus, cheio de misericórdia. Queremos agradecer o alimento desta família e pedir que a graça da sua bondade jamais nos abandone. Amém.

Amém!

respondia o coro agradecido e faminto

ninguém contestava, apenas Maryá virava e revirava a cabeça desassossegada, Tem paciência, hija mía... las chicas gruñonas son infelices...

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Memórias - 10: família e vacas
Memórias - 15: rainha do lar

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Marcel Proust - O Tempo Recuperado (Ah, se Albertine tivesse vivido)

em busca do tempo perdido

volume VII
O Tempo Recuperado



continuando...

   Ah, se Albertine tivesse vivido, como seria doce, nas noites em que eu fosse jantar no centro da cidade, marcar um encontro ao ar livre, sob as arcadas! A princípio, eu não distinguiria nada, teria a emoção de crer que ela faltara ao encontro; quando, de repente, veria destacar-se da parede negra um de seus caros vestidos grises, seus olhos risonhos que tinham me avistado, e poderíamos passear abraçados sem que ninguém nos visse ou incomodasse, e a seguir voltar para casa. Ai de mim!, estava sozinho, com a impressão de ir fazer uma visita de vizinho no campo, como as visitas que Swann nos fazia após o jantar, sem dar com transeuntes na escuridão de Tansonville, no pequeno caminho de sirga, até a rua do Saint-Esprit, mais do que eu agora, em ruas transformadas em sinuosos caminhos rústicos, entre Sainte-Clotilde e a rua Bonaparte. Além disso, como nenhuma moldura, tornada invisível, constrangia mais esses fragmentos de paisagem, à noite, quando o vento soprava rajadas glaciais, eu me julgava, bem mais do que em Balbec, à beira do mar revolto dos meus sonhos de antigamente; e mesmo outros elementos da natureza, que até então não existiam em Paris, davam a ilusão de que, ao descer do trem, acabava-se de chegar para as férias no campo. Por exemplo: o contraste de luz e sombra, bem próximo, no chão, nas noites de luar. Este compunha efeitos que as cidades não conhecem, e até em pleno inverno; seus raios estendiam-se na neve, que nenhum trabalhador removia mais, no bulevar Haussmann, tal como nas geleiras dos Alpes. As silhuetas das árvores refletiam-se, nítidas e puras, sobre essa neve de ouro azulado, com a delicadeza que têm em certas pinturas japonesas ou em determinados fundos das telas de Rafael; alongavam-se no chão, ao pé da própria árvore, como as vemos com frequência ao vivo, pelo ocaso, quando o sol poente inunda e torna espelhantes as campinas em que as árvores se erguem a intervalos regulares. Mas, por um requinte de delicadeza deliciosa, a campina em que se desenvolviam essas sombras de árvores, leves como almas, era um prado paradisíaco, não verde, mas de um branco tão brilhante, devido aos raios de luar que incidiam sobre a neve de jade, que dir-se-ia que essa campina era tecida unicamente de pétalas de pereiras em flor. E, nas praças, as divindades das fontes públicas, com o jato gelado a lhes sair das mãos, pareciam estátuas de matéria dupla, para cuja execução o artista quisera juntar, exclusivamente, o bronze ao cristal. Naqueles dias excepcionais, todas as casas estavam às escuras. Mas ao contrário, na primavera, de vez em quando, burlando os regulamentos da polícia, uma residência particular, ou apenas o andar de um prédio, ou até somente um aposento num hotel, sem ter fechado seus postigos, dando a impressão de sustentar-se sozinho sobre as trevas impalpáveis, como projeção puramente luminosa, uma aparição sem consistência. Se a mulher de alguém erguesse bem alto os olhos, se distinguia nessa penumbra dourada, nessa noite em que se perdia o observador e ela própria parecia reclusa num misterioso encanto velado de uma visão oriental. Depois, seguia-se em frente nada mais interrompia a higiênica e monótona passada rústica na escuridão.
   Lembrei-me de que há muito não revia nenhuma das pessoas de que trato nesta obra. Apenas, em 1914, durante os dois meses que passara em Paris tinha avistado o Sr. de Charlus e visto Bloch e Saint-Loup, este último somente por duas vezes. A segunda vez fora com certeza aquela em que se mostrara mais natural, desmanchando todas as impressões pouco agradáveis de insinceridade que me causara na minha estadia em Tansonville, a que me referi, e reconhecera - todas as belas qualidades de outrora. Na primeira vez em que o vi após a declaração de guerra, ou seja, no começo da semana imediata, enquanto Bloch exibia o exaltado nacionalismo, Saint-Loup, assim que Bloch nos deixou, excedera em auto ironias, porque não voltara ao serviço, e eu fiquei meio chocado com a violência do seu tom. Saint-Loup voltava de Balbec. Soube mais tarde, indiretamente, que as tentativas baldadas junto ao gerente do restaurante. Este último devia sua posição ao que herdara do Sr. Nissim Bernard. Com efeito, não era outro senão o anterior jovem empregado que o tio de Bloch "protegia". Mas a riqueza lhe trouxera a virtude. De modo que foi em vão que Saint-Loup tentara seduzi-lo. Assim, em compensação enquanto os jovens se deixam levar, com a idade, pelas paixões; depois, afinal tomaram consciência, os adolescentes fáceis se tornam homens de princípios, contra os quais os Charlus, confiando em antigos relatos, porém demasiadamente tarde, se chocam desagradavelmente. Tudo é uma questão de cronologia.
   A falsidade não faz mais prudentes a quem os acreditou quando surge um novo rumor de bodas, de divórcio, ou um rumor político, para lhe dar crédito e difundi-lo. Não tinham acontecido quarenta e oito horas quando certos feitos me demonstraram que estava absolutamente equivocado na interpretação das palavras de Robert:

- Não! - exclamou ele com força, alegremente. -Todos os que não estão no fronte, seja qual for o motivo que deem, é porque não desejam ser mortos, é porque têm medo! - E, com o mesmo gesto de afirmação, mais enérgico ainda do que com que sublinhara o temor alheio, acrescentou: - E eu, se não me apresento ao serviço, é certamente por medo, e nada mais! -

   Eu já havia reparado, em pessoas, que a afetação de sentimentos louváveis não é a única desculpa, mas que são malvados, sendo que um pretexto mais novo é a exibição destes, de forma que ao menos não pareça ocultá-los. Além do mais, em Saint-Loup tal tendência fortalecida pelo seu hábito, quando cometia uma indiscrição ou fazia uma que lhe poderiam censurar, de proclamá-las dizendo que fora de propósito. Acredito, lhe viera de algum professor da Escola de Guerra em cujo interior vivera, pelo qual professava enorme admiração. Portanto, não senti qualquer constrangimento em interpretar essa tirada como a ratificação verbal de um sentimento que Saint-Loup preferia proclamar abertamente, visto que lhe ditara a conduta e sua abstenção na guerra que principiava.

- Quer dizer que ouviste dizer - perguntou-me ao ir embora que a tia Oriane ia se divorciar? Pessoalmente, não sei de nada. De vez em quando se fala disso, e eu ouvi anunciarem esse divórcio tão amiúde que espero que aconteça, para crer. Acrescento que seria perfeitamente compreensível; meu tio é um homem encantador, não só na sociedade, mas para os amigos, os parentes. E até, sob certos aspectos, tem mais coração que minha tia, que é uma santa, mas fá-lo sentir isso de maneira terrível. Apenas, é um marido péssimo, que nunca deixou de enganar a esposa, insultá-la, tratá-la com brutalidade, privá-la de dinheiro. Seria tão natural que ela o deixasse, que essa é uma razão para que a notícia seja verdadeira, mas também para que o não seja, pois sobram motivos para que a inventem e divulguem. E aliás, já que ela o suportou portanto tempo! Agora sei muito bem que existem coisas que anunciam erradamente, que são desmentidas, e que mais tarde se tornam verdadeiras. -

   Aquilo me fez pensar em perguntar-lhe se alguma vez cogitara casar-se com a Srta. de Guermantes. Teve um sobressalto e afirmou que não, que isso fora apenas um boato da sociedade, desses que nascem de tempos em tempos, ninguém sabe por quê, desaparecem como surgiram, e cuja falsidade não torna mais prudentes os que nele acreditaram; tão logo aparecem novos rumores de noivado ou divórcio, ou um boato político, eles creem e os divulgam.
   Saint-Loup dissera isto para brilhar na conversação, para ostentar originalidade psicológica, enquanto não estava certo de que seu alistamento seria aceito. Mas, nesse meio tempo, fazia o possível para que o fosse, revelando-se assim menos original, no sentido que julgava ser preciso emprestar ao termo, porém mais profundamente francês de Saint-André-des-Champs, mais em conformidade com tudo o que, por essa época, havia de melhor nos franceses de Saint-André-des-Champs, senhores, burgueses e servos submissos aos senhores ou revoltados contra eles, duas divisões igualmente francesas da mesma família, sub-ramificação Françoise e sub-ramificação Morel, de onde partiam duas flechas, para se reunirem de novo numa só direção, que era a fronteira.
   Bloch ficara encantado com a confissão de covardia de um nacionalista (que, aliás, o era bem pouco) e, como Saint-Loup lhe indagasse se iria partir, assumira ares de sumo sacerdote para responder: - Míope.
   Mas Bloch mudara completamente de opinião sobre a guerra alguns dias depois, quando veio me visitar, muito aflito. Apesar de "míope", fora dado como bom para o serviço militar. Acompanhava-o até sua casa quando Saint-Loup, que, para ser apresentado, no Ministério da Guerra, a um coroamento; tinha um encontro marcado com um antigo oficial:

- "O Sr. de Cambremer", disse-me a verdade, é de um velho conhecido de quem te falo. Tu conheces Cancan tão bem quanto eu. -

   Respondi que o conhecia, de fato, e também à sua esposa, e que apreciava muito. Mas estava de tal modo habituado, desde que os vira pela vez, a considerar a mulher como uma pessoa notável, apesar de tudo, conhecedora de Schopenhauer, pertencente, em suma, a um meio intelectual mais do que a seu grosseiro marido, que, a princípio, fiquei assombrado ao ouvir me responder:

- A mulher dele é idiota, abandono-a a ti. Mas ele é um homem excelente, bem dotado, e continua bastante agradável.-

   Pela "idiotice" de Saint-Loup sem dúvida entendia o desejo alucinado de frequentar a alta sociedade, o que esta não perdoa. Pelas qualidades do marido, sem dúvida, algumas lhe reconhecia a mãe ao proclamá-lo o melhor da família. A ele, pelo menos, interessavam as duquesas, mas, na verdade, tratava-se de uma inteligência diferente tanto da que caracteriza os pensadores, como a "inteligência" atribuída em público a um determinado homem rico "por ter sabido fazer sua fortuna". As palavras de Saint-Loup não me desagradavam, visto sugerirem que a presunção, vizinha da tolice e que a simplicidade tem um gosto pouco pronunciado e agradável. Não me fora dado, é verdade, saborear a do Sr. de Cambremer; justamente isto que faz com que uma pessoa seja tantas criaturas diferentes, forme as pessoas que a julgam, mesmo sem se levar em conta as diferenças do julgamento. Do Sr. de Cambremer eu só conhecera o escorço. E o sabor, que fora atestado por outras pessoas, era-me desconhecido.  

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Marcel Proust - A Fugitiva (Mágoa e Esquecimento - j)

em busca do tempo perdido

volume VI
A Fugitiva

Capítulo I
Mágoa e Esquecimento


continuando...

   Mas, depois de ter mandado essa carta, veio-me de súbito a suspeita: que, quando Albertine me escrevera: Eu teria ficado muito feliz por voltar se me tivesse escrito diretamente, só o fizera porque eu não lhe escrevera diretamente e, mesmo que eu o tivesse feito, ainda assim ela não teria voltado; que ficasse contente por saber que Andrée estava em minha casa, e depois seria minha mulher.
   Contanto que ela, Albertine, ficasse livre, pois agora podia, há oito dias já, eliminando as precauções de cada dia que eu havia tomado durante mais de seis meses em Paris, entregar-se a seus vícios e fazer aquilo que, minuto após minuto, eu tinha impedido. Eu dizia comigo que provavelmente, lá longe, ela empregava mal sua liberdade, e é claro que essa ideia que eu formava me parecia triste, mas continuava geral, nada me mostrando de particular e, pelo número indefinido das amantes possíveis que ela me fazia supor, sem me deixar fixar-me em nenhuma, arrastava o meu espírito numa espécie de movimento perpétuo não isento de dor, porém de uma dor que, pela ausência da imagem concreta, tornava-se suportável. Mas deixou de sê-lo e se tornou atroz à chegada de Saint-Loup. Antes de contar por que as suas palavras me fizeram tão infeliz, devo narrar um incidente que se coloca imediatamente antes de sua visita e cuja recordação a seguir me perturbou de tal modo que enfraqueceu, se não a impressão penosa que me causou a conversa com Saint-Loup, ao menos o alcance prático dessa conversa. Tal incidente consistiu no que se segue.
   Ardendo de impaciência por ver Saint-Loup, eu o esperava na escada (o que não teria podido fazer se minha mãe estivesse presente, pois isso era o que ela mais detestava no mundo depois de "falar da janela"), quando ouvi as seguintes palavras:

- Como, não sabe despedir alguém que lhe desagrada? Não é difícil. Por exemplo, não tem mais que esconder os objetos que ele deve levar; então, no momento em que seus patrões o chamam, e estão com pressa, ele não acha nada e perde a cabeça; minha tia dirá a você, furiosa: "Mas o que é que ele está fazendo?" Quando ele chegar atrasado, todos estarão enfurecidos, e ele não trará o que é preciso. Depois de quatro ou cinco vezes, pode ficar certo de que ele será despedido, principalmente se você tiver o cuidado de sujar às escondidas o que ele deve manter limpo; e mil outros ardis desse tipo... - Eu permanecia mudo de espanto, pois essas palavras maquiavélicas e cruéis eram pronunciadas pela voz de Saint-Loup. Ora, eu sempre o considerara como um sujeito tão bom, tão piedoso para com os desgraçados, que aquilo me causava o efeito de que ele estivesse representando o papel de Satanás; mas não podia estar falando no seu próprio nome.

- Mas sempre é necessário que todos ganhem a sua vida - disse o seu interlocutor, que então avistei e que era um dos lacaios da duquesa de Guermantes.

- Que lhe importa, desde que você se saia bem? - respondeu maldosamente Saint-Loup. - Você, além disso, terá o prazer de arranjar um bode expiatório. Poderá muito bem derramar-lhe o tinteiro na libré, quando ele estiver servindo um jantar de gala, enfim, não lhe dar um minuto de trégua, de tal modo que ele acabará preferindo ir embora. De resto, vou lhe dar uma mãozinha: direi a minha tia que admiro a paciência de você em servir com um moleirão daqueles e tão mal vestido. -

   Apresentei-me, Saint-Loup veio ao meu encontro, porém minha confiança nele estava abalada do que acabara de ouvir, tão diferente daquele que eu conhecia. E me perguntei se alguém é capaz de agir tão cruelmente com um infeliz não havia representado o papel de traidor a meu respeito, em sua missão junto à Sra. Bontemps. A reflexão serviu, sobretudo, para não me fazer considerar o seu fracasso como o de que eu não podia ter êxito, se ele me deixasse. Mas, enquanto ele estava a meu lado, era todavia no Saint-Loup de outrora e principalmente ao amigo que de deixar a Sra. Bontemps, que eu pensava. Primeiro, ele me disse:  

- Acho que deveria ter te telefonado mais vezes, mas diziam sempre que não estavas.

   Mas onde meu sofrimento se tornou insuportável, foi quando ele me disse:

- Vou começar por onde o meu último despacho te deixou, depois de ter passado uma espécie de galpão, entrei na casa e, no fim de um longo corredor, fizera entrar numa sala. -

   A essas palavras de galpão, corredor e sala, e antes mesmo que acabassem de ser pronunciadas, meu coração foi atravessado com mais rápido do que se estivesse em contato com uma corrente elétrica, pois a força que às vezes dá volta à Terra em um segundo não é a eletricidade, mas a dor. Repeti, renovando com prazer o choque, essas palavras de galpão, corredor depois que Saint-Loup foi embora! Num galpão a gente pode se esconder. E, naquela sala, quem sabe o que Albertine fazia quando a tia se ausentava. Mas como? Eu então me havia representado a casa em que morava Albertine não podendo ter galpão nem sala? Não, eu absolutamente não a representara a mim, a não ser como um lugar vago. Tinha sofrido uma primeira vez quando individualizara geograficamente o lugar em que ela estava, quando soubera em vez de estar em dois ou três locais possíveis, ela se achava na Touraine; palavras da porteira de seu apartamento haviam marcado em meu coração, num mapa, o lugar onde enfim era preciso sofrer. Mas uma vez habituado à idéia que ela se encontrava numa casa da Touraine, eu não tinha visto essa casa; nunca me viera à imaginação esta horrível idéia de sala, de galpão e de corredor; agora pareciam estar à minha frente, na retina de Saint-Loup que os vira; os cômodos em que Albertine passava, andava, vivia, esses cômodos em particular não tinham uma infinidade de cômodos possíveis que se haviam destruído uns aos outros. À essas palavras de galpão, corredor e sala, pareceu-me loucura ter deixado Albertine, oito dias nesse lugar maldito cuja existência (e não a simples possibilidade)estava prestes de me ser revelada. Ai de mim! Quando Saint-Loup me disse, igualmente naquela sala, ouvira cantarem a meia voz num aposento ao lado, e que era Albertine quem cantava, compreendi desesperado que, livre de mim, afinal, ela era livre. Havia reconquistado a sua liberdade. E eu, que pensava que ela viria tomar o lugar de Andrée! Minha dor se transformou em cólera contra Saint-Loup.

- Foi tudo o que pedi que evitasses, que ela soubesse que ias!

- Se achas que era fácil! Tinha assegurado que ela não se achava lá. Oh, sei muito bem que não estás contrariado comigo, senti-o perfeitamente nos teus telegramas. Porém és injusto; fiz o que pude. - 

   Solta de novo, tendo deixado a jaula de onde, em minha casa, eu ficava dias inteiros sem chamá-la ao meu quarto, ela retomara para mim todo o seu brio; tornara-se outra vez aquela que todos seguiam, o pássaro maravilhoso dos primeiros dias.

- Enfim, resumamos. Quanto ao dinheiro, não sei o que te dizer. Falei a uma senhora que me pareceu tão delicada que receei ofendê-la. Ora, ela não exclamou "Oh!" quando falei em dinheiro. E até, um pouco depois, disse-me que estava comovida por ver que nos compreendíamos tão bem. No entanto, tudo o que ela disse a seguir era tão delicado, tão sublime, que me parecia impossível que ela tivesse dito, quanto ao dinheiro que lhe oferecia: "Nós nos compreendemos tão bem", pois no fundo eu agia como um patife. 

- Mas talvez ela não tenha te compreendido, talvez não haja escutado, deverias ter repetido, pois certamente isto é que daria certo. 

- Mas como queres que ela não tenha escutado? Falei-lhe como te falo agora, ela não era surda nem louca.

- E ela não fez nenhuma observação?

- Nenhuma.

- Deverias ter-lhe dito mais uma vez. 

- Como querias que eu lhe dissesse mais uma vez? Logo ao entrar, vendo a fisionomia dela, disse comigo que te havias enganado, que me mandavas fazer uma tremenda gafe, e era extremamente difícil oferecer-lhe dinheiro assim. Fi-lo todavia para te obedecer, convencido de que me poria porta a fora.

- Mas ela não o fez. Portanto, ou não tinha ouvido e seria necessário recomeçar, ou poderias continuar a esse respeito. 

- Dizes: "Ela não tinha ouvido" porque estás aqui, mas, repito, se tivesses assistido à nossa conversa... Não havia nenhum rumor. E eu falei brutalmente. Não é possível que ela não tenha compreendido. 

- Mas afinal, ela está bem persuadida de que sempre quis desposar a sua sobrinha?

- Não; quanto a isso, se queres a minha opinião, ela não acreditava que tivesses em absoluto a intenção de casar. Disse-me que tu mesmo havias confessado à sobrinha que desejavas abandoná-la. Não sei nem mesmo se agora ela esteja bem convencida de que desejas casar. 

   Isto me tranquilizava um pouco, mostrando que eu estava menos humilhado, logo, capaz de ser amado ainda, mais livre para tentar um passo decisivo. Contudo, sentia-me atormentado. 

- Estou aborrecido, pois vejo que não estás satisfeito.

- Sim, estou comovido, reconhecido pela tua gentileza, mas me parece que terias podido...

- Fiz o melhor que pude. Outro qualquer não poderia ter feito mais, nem mesmo o que fiz. Experimenta outra pessoa.

- Não, de jeito nenhum. Mas, se soubesse, não teria te enviado, mas o fracasso de tua providência não me impede de tentar outra.-

   Fazia-lhe censuras: ele tentara prestar-me um serviço e não lograra êxito. Ao sair, Saint-Loup tinha cruzado com algumas moças que entravam. Eu já havia suposto muitas vezes que Albertine conhecia moças naquele lugar, mas era a primeira vez que isso me torturava. É preciso crer de fato que a Natureza concede ao nosso espírito a secreção de um contraveneno natural que aniquila as suposições que fazemos a um tempo sem trégua e sem perigo; porém coisa alguma me imunizava contra aquelas moças que Saint-Loup tinha encontrado.