domingo, 30 de julho de 2023

A Lista

Osvaldo Montenegro e as coisas dos personagens da vida...


e a esperança 
de mudança em dias melhores - para os amigos e amigas de 10 20 30 40 anos atrás...


Faça uma lista de grandes amigos
Quem você mais via há dez anos atrás
Quantos você ainda vê todo dia
Quantos você já não encontra mais

Faça uma lista dos sonhos que tinha
Quantos você desistiu de sonhar
Quantos amores jurados pra sempre
Quantos você conseguiu preservar

Onde você ainda se reconhece
Na foto passada ou no espelho de agora
Hoje é do jeito que achou que seria
Quantos amigos você jogou fora

Quantos mistérios que você sondava
Quantos você conseguiu entender
Quantos segredos que você guardava
Hoje são bobos ninguém quer saber

Quantas mentiras você condenava
Quantas você teve que cometer
Quantos defeitos sanados com o tempo
Eram o melhor que havia em você

Quantas canções que você não cantava
Hoje assovia pra sobreviver
Quantas pessoas que você amava
Hoje acredita que amam você

Faça uma lista de grandes amigos
Quem você mais via há dez anos atrás
Quantos você ainda vê todo dia
Quantos você já não encontra mais

Quantos segredos que você guardava
Hoje são bobos ninguém quer saber
Quantas pessoas que você amava
Hoje acredita que amam você

Compositores: Oswaldo Montenegro







O Poema de Amor mais antigo da história

Teu encanto é doce  (98)


Recitado por FENETÉ


Namorado do meu coração, amado meu;
teu encanto é doce, doce como mel.
Tu me cativaste, livremente irei a ti,
namorado meu, quero fugir contigo para a cama.
Namorado meu, te farei coisas deliciosas, 
doce tesouro meu, mel te levarei.
No quarto, empapado de mel,
gozemos teu doce encanto.
Querido meu, te farei coisas deliciosas,
doce tesouro meu, mel te levarei...







sexta-feira, 28 de julho de 2023

o violão do Tiago Marques (Naquela Mesa)

Naquela Mesa

Sergio Bittencourt

Naquela mesa ele sentava sempre
E me dizia sempre o que é viver melhor
Naquela mesa ele contava histórias
Que hoje na memória eu guardo e sei de cor
Naquela mesa ele juntava gente
E contava contente o que fez de manhã
E nos seus olhos era tanto brilho
Que mais que seu filho
Eu fiquei seu fã

Eu não sabia que doía tanto
Uma mesa num canto, uma casa e um jardim
Se eu soubesse o quanto dói a vida
Essa dor tão doída não doía assim
Agora resta uma mesa na sala
E hoje ninguém mais fala do seu bandolim

Naquela mesa 'tá faltando ele
E a saudade dele 'tá doendo em mim
Naquela mesa 'tá faltando ele
E a saudade dele tá doendo em mim

Agora resta uma mesa na sala
E hoje ninguém mais fala do seu bandolim

Naquela mesa 'tá faltando ele
E a saudade dele 'tá doendo em mim
Naquela mesa 'tá faltando ele
E a saudade dele 'tá doendo em mim

Eu não sabia que doía tanto
Uma mesa num canto, uma casa e um jardim
Se eu soubesse o quanto dói a vida
Essa dor tão doída não doía assim
Agora resta uma mesa na sala
E hoje ninguém mais fala do seu bandolim

Naquela mesa 'tá faltando ele
E a saudade dele 'tá doendo em mim
Naquela mesa 'tá faltando ele
E a saudade dele 'tá doendo em mim

Compositor: Sergio Bittencourt

Violão: Tiago Marques
Cavaquinho: Michel Padão






Naquela Mesa // 
Sergio Bittencourt e Elizeth Cardoso





História da canção NAQUELA MESA





Nelson Gonçalves 
- Naquela Mesa (Legendado)




continua doendo em mim...

Makarenko - Poema Pedagógico Livro 1(a): Característica das necessidades primordiais

Poema Pedagógico


Antón S. Makarenko


Livro Um

Capítulo 3

Característica das necessidades primordiais

No dia seguinte eu disse aos educandos:

- O dormitório tem que estar limpo! vocês precisam ter monitores de plantão no dormitório. e quanto a ir para a cidade, só com a minha licença. E quem sair sem ordem minha não precisa voltar, porque não o receberei.

- Oh oh! disse Vólokhov. Quem sabe dá pra ser menos severo?

- Escolham, rapazes, o que mais lhes convier. Não pode ser de outro jeito. Na colônia deve haver disciplina. Se não lhes agrada, cada um de vocês vai para onde quiser. Mas quem continuar vivendo na colônia, terá de manter a disciplina. Como quiserem. Não haverá covil de ladrões aqui.

Zadórov estendeu-me a mão:

- Toque aqui. Tem razão! Você, Vólokhov, cale a boca. Nessas coisas você ainda é bobo. É melhor estarmos aqui. Ou você quer ir para a prisão preventiva?

- Mas como, vamos ser obrigados a ir pra escola também? - perguntou Vólokhov.

- Sim.

- E se eu não quiser estudar? Pra que eu preciso disso?

- A escola é indispensável, obrigatória. Quer você queira ou não, tanto faz. Está vendo, o Zadórov acabou de dizer que você é bobo. Isso significa que você precisa estudar, ficar esperto.

Vólokhov balançou a cabeça zombeteiramente, e disse, repetindo as palavras de uma piada ucraniana:

- Quem dançou, dançou mesmo!

No terreno da disciplina, o incidente com Zadórov marcou uma virada. E, com toda a honestidade, eu não fui atormentado por nenhuma dor de consciência. Sim, eu havia surrado um educando. Vivi toda a incoerência pedagógica, toda a ilegalidade jurídica daquele incidente, mas ao mesmo tempo entendi que a limpeza de minhas mãos pedagógicas era uma questão secundária em comparação com a tarefa colocada diante de mim. E decidi determinado a ser um ditador, se não conseguisse avançar com qualquer outro método. Depois de um tempo, tive um sério conflito com Vólokhov, que, estando de plantão, não havia arrumado o dormitório e se recusou a fazê-lo após minha advertência. Olhei para ele com ar zangado e disse:

- Não me faça perder a paciência! Arrume, senão....

- Senão, o quê? Vai fazer o quê, me quebrar a cara? O senhor não tem direito!

Agarrei-o pelo colarinho e, puxando-o para perto de mim, sibilei bem perto de seu rosto com absoluta sinceridade:

- Escute! É meu último aviso; não vou te quebrar a cara, mas vou deixá-lo aleijado! Pode fazer queixa de mim depois, vou para a cadeia e não é da sua conta!

Vólokhov se livrou de minhas mãos e me disse com lágrimas nos olhos:

- Não vale a pena ir para a cadeia por uma bobagem dessas. Eu arrumo o quarto, com os diabos!

Eu trovejei para ele:

- Que jeito de falar é esse?

- Como você quer que eu fale com o senhor?... Vá para o...!

- Como é? Vamos, xingue-me!

Vólokhov riu e fez um gesto evasivo com a mão.

- Está bem, homem, tudo bem... Vou arrumar o dormitório, vou arrumar, não grite!

No entanto, deve-se ressaltar que não pensei por um minuto que tivesse encontrado na violência um meio poderoso de pedagogia. O incidente com Zádorov me custou mais caro do que ao próprio Zadórov. Eu estava com medo de seguir o caminho do menor esforço. Lídia Pietróvna foi quem me condenou com mais franqueza e insistência entre os educadores. Na noite desse mesmo dia, com o rosto apoiado em seus pequenos punhos fechados, ela me disse persistentemente:

- Então, você já encontrou o método? Como no seminário, não é?

- Deixe-me em paz, Lídochka!

- Não, o senhor me diga: vamos quebrar caras? E eu também posso? Ou só o senhor?

- Lídochka, eu te respondo mais tarde. Por enquanto não nem eu mesmo sei. Espere um pouquinho.

- Muito bem, vou esperar.

Iekaterína Grigórievna andou passou vários dias com a testa franzida e, ao falar comigo, assumiu uma postura educadamente oficial. Apenas cinco dias depois, ele me perguntou com um sorriso sério:

- Então, como se sente?

- Igual. Eu me sinto muito bem.

- Mas o senhor sabe qual é a parte mais triste de toda essa história?

- O mais triste?

- Sim. O mais desagradável é que os rapazes se referem à sua façanha com admiração e entusiasmo. Estão até dispostos a ficar apaixonados pelo senhor, com o Zadórov o primeiro de todos. Como explicar? Não compreendo. Será que é o hábito da escravidão?

Depois de refletir um pouco, respondi a Iekaterína Grigórievna:

- Não, aqui não se trata de escravidão. Aqui é uma coisa diferente. Analise com cuidado: o Zadórov, mais mais forte do que eu, ele poderia ter me aleijado com um só golpe, mas não reagiu. Considere também que ele não tem medo de nada, Tampouco Burún e os outros têm medo. Em toda essa história eles não veem uma surra, estão vendo tão-somente a ira, uma explosão humana. Eles entendem muito bem que ele poderia muito bem não ter batido nele, que poderia tê-lo devolvido como incorrigível à comissão (1), o que poderia causar-lhes muitos problemas sérios. Mas eu não fiz isso, preferindo tomar uma atitude, procedendo de uma forma que foi perigosa para mim, embora humana e não formal. E ao que parece a colônia lhes é necessária, apesar de tudo. A coisa aqui é bem complexa. Além disso, eles veem que nós trabalhamos muito duro por eles. Apesar de tudo, eles também são gente. E isso é um fato de suma importância.

"Talvez", Iekaterna Grigórievna me respondeu pensativamente.


continua na página 17...
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(1) - Refere-se à comissão que estava a cargo dos delinquentes juvenis.
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Leia também:

Livro Um
Capítulo 2
Capítulo 3
Característica das necessidades primordiais (a)

quarta-feira, 26 de julho de 2023

Marcel Proust - O Tempo Recuperado (Vamos para a mesa)

em busca do tempo perdido

volume VII
O Tempo Recuperado



continuando...

Vamos para a mesa e dá-se então um extraordinário prato que certamente são obras-primas da arte da porcelana, aquelas do reinado artístico, numa refeição delicada, mais deleita a atenção complacente e amador pratos dos Yung-Tsching, onde, nos bordos de cor de fogo de matiz azulado, no desfolhar túrgido de seus íris aquáticos, na travessia verdades decorativa, pela aurora, de um voo de martins-pescadores e de grous, que possui exatamente os tons entrevistos todos os dias, quando acordo, no Montmorency pratos de Saxe, mais delicados na sua feitura graciosa, sonolência, da anemia das rosas violáceas, aos recortes borra-de-vinho de tulipa, ao rococó de um cravo ou de um miosótis pratos de Sevres, pelas finas estrias de suas caneluras brancas, verticilados de ouro, ou até cremosa camada de massa, pelo relevo galante de uma faixa dourada- enfim uma prataria onde correm muitos de Luciennes, que a Dubarry haveria de crer. E, o que é talvez ainda mais raro, a qualidade verdadeiramente notável das coisas que em tais pratos se servem, manjares finamente preparados, repasto que os parisienses, é preciso declará-lo bem alto, nunca têm nos jantares, e que me recorda certos cozinheiros de Jean d'Heurs. Mesmo o não possui qualquer relação com o creme insípido que habitualmente merecem esse nome, e não sei de muitos locais em que a simples salada de batatas assim com batatas que têm a resistência dos botões de marfim japoneses, a dessas colherzinhas de marfim com que as chinesas derramam água sobre peixes que acabam de pescar. No copo de Veneza que tenho à minha frente extraordinário léoville, [Léoville tipo de vinho Bordeaux, de 1855, classificado na, categoria dos Médoc. (N. do T)], comprado na loja do Sr. de Montalivet, põe uma rica tolha vermelha. E é um regalo para a imaginação do que antigamente bem diverso dos linguados pouco frequentes e cujas espinhas, nas demoras do transporte de um linguado que é servido, preparam tantos mestres-cuca o molho branco feito com manteiga linguado numa travessa maravilhosa de um pôr-do-sol, sobre um mar onde as lagostas, de pontilhado grumoso ter sido moldada em carapaças vê-se um chinesinho que pesca à vara, graças ao prateamento de um prazer delicado que devem ser como nenhum príncipe possui ou conhece, observa melancolia como de um maníaco origina-se assim; absolutamente isto, uma cidra, bebida em meio de uma tal encantadora senhora, verdadeiramente fala-nos com transbordar da Normandia que se constassem altas matas à Lawrence hortênsias cor-de-rosa, refrão cuja queda sobre as entrelaçadas simulam Gouthiere cujos da Normandia com casas de campo; eles nunca deixam de ver todas as cores.

Uma casa na Normandia que seria absolutamente insuspeitadas pelos parisienses e que está protegida pela barreira de cada uma de suas porteiras, barreiras que os Verdurin me confessam não serem recatados de levantarem. Ao cair da tarde, numa extinção sonolenta, de todas as cores, já sem mais luz, aquela que dá o mar quase coalhada de cor azulada como o soro do leite (Não é nada desse mar que você conhece – protesto freneticamente minha vizinha, replicando à meu comentário de que Flaubert nos levou, meu irmão e eu, à Troueville; nada, absolutamente nada dará uma ideia sem vir comigo.) 

No verão seguinte estavam eles de novo, alojando toda uma colônia de artistas numa mansão medieval que lhes formava um antigo claustro alugado para eles por nada. E, por minha fé, ao ouvir esta mulher que, tendo passado pelas jardineiras ficavam completamente enjoados, que dava ao marido uns terríveis acessos de asma - “sim, isso mesmo – insistia a dama – verdadeiros acessos de asmas” - no entanto, em suas frases um pouco depois de passar por tantos lugares, verdadeiramente ilustres, não passavam de frases de uma mulher do povo; uma palavra que nos mostra as coisas de costume, com as cores que nossa imaginação as vê, veio-me água à boca pela vida que ela me confessou ter levado lá; cada qual trabalhando em sua cela, e onde, todos se reuniam no salão tão vasto, que possuía duas lareiras; onde comiam todos e compareciam para conversas de alto nível, misturando com jogos de prendas, fazendo-me pensar nesta mansão a vida que me recorda a obra-prima de Diderot, as Cartas à senhora VoIland. A seguir, após o almoço, todos saíam, mesmo nos dias de agitados pela chuva; quando, um raio de sol saía, luminosas bátegas riscavam, com seu traço bril troncos nodosos de um magnífico desfile de faias centenárias, que pendiam defronte à grade, o belo vegetal apreciado no século XVIII, e os arbustos, ramos se suspendiam, em vez de botões florescentes, gotas de chuva; para ouvir o delicado borrifo, enamorado de frescor, de um pisco a banhar a graciosa banheira minúscula de porcelana de Nymphenburg que é acoplada à rosa branca.

[Pisco: ave passeriforme européia, da família dos pardais. Não existe no Brasil. (N. do T)] 

[Elstir era chamado de "Sr. Biche" em No Caminho de Swann. (N. Do T.) 

E como falo à Sra. Verdurin das paisagens e das flores nos delicadamente pintados por Elstir: 'Mas fui eu quem o fez conhecer tudo - gritou ela, erguendo a cabeça num assomo de cólera; 'tudo, compreende tudo: os recantos curiosos, todos os motivos, disse-lhe tudo isso na cara dele e ele nos abandonou, não é verdade Auguste? Todos os motivos que ele pintou dos objetos, ele sempre os conheceu, tenho de ser justa, não o nego. Mas nunca tinha visto as flores, não sabia distinguir a malva do malvaísco. Fui eu quem o fez reconhecer - vai achar incrível o jasmim. 'Força-me confessar ser curiosa, que o pintor de flores, considerado hoje o melhor pelos entendidos, e sua Fantin-Latour, talvez nunca tivesse feito, sem a mulher a meu lado podido jardim.' Sim, palavra de honra, o jasmim; todas as rosas que ele fez, viu-as em casa; ou então lhe foram entregues por mim. Nós o chamávamos de Senhor pergunte à Cottard, ao Brichot, à todos os outros, se era tratado aqui feito um homem. Ele próprio teria achado graça, se o fosse. Ensinei-o a arrumar as flores desde o começo, não conseguia de modo nenhum. Nunca soube fazer um buquê, tinha gosto natural para escolher, era preciso que lhe dissesse:

'- Não, não não vale a pena, pinte aquilo. - Ah, se nos tivesse dado ouvidos para arrumar sua vida, como para o arranjo de suas flores, se não tivesse feito aquele casamento!'

E, bruscamente, os olhos ao passado, amassando nervosamente as mangas do vestido, lembra, um quadro admirável que julgo nus contida, toda a raivosa suscetibilidade das belezas, em seu pudor de mulher. A pintura havia feito para ela, o retrato logo depois de sua briga com o pintor; a ideia de representar o homem de roupa branca, e a mulher nua o borboletear dos claros matiz das meninas, semelhante ideia desse penteado, pelo consistia em que pintara mulheres; a intimidade de sua vida cotidiana; enxuga o rosto, como que uma porção de movimentos leonardesca! 

Mas a um sinal que seria no fundo era falsidade do presente ao admirar o colar de pérolas, perfeito; todas brancas, no lindo detalhe, de que já não recordava onde estavam; insiste no retrato autêntico todo o mundo, ao famoso duque de Beausergen. Possuía um cofrezinho; conheço o retrato pessoalmente, herdado pela sua tia a Sra. de Villeparisis e de antigamente, sob os nomes de batismo do que nele denuncia, ou nos revela que semelhante neologismo típico de Edmond de semelhantes catástrofes produzem no cérebro das pessoas alterações bem parecidas; que se observam na matéria inanimada, e cita, de um modo verdadeiramente filosófico como fariam os médicos, o criado de quarto da Sra. Verdurin, apavorado com aquele incêndio onde quase havia morrido, tornou-se o homem, com uma caligrafia de tal forma mudada, que, à primeira carta que fez demonstrações, então na Normandia, dele receberam anunciando o sucedido, julgar que fosse a mistificação de um farsante. E, segundo Cottard, não só mudou a caligrafia, mas também, de sóbrio que era, o rapaz se transformou num ébrio tão louco que a Sra. Verdurin fora obrigada a despedi-lo. E a dissertação sugestiva - um gracioso sinal da dona da casa, da sala de jantar ao fumoir veneziano, no qual Cottard nos diz ter assistido à verdadeiros desdobramentos de personalidade; citando-nos o caso de um seu doente, que se oferece amavelmente para ter em minha casa, e a quem bastava que ele o tocasse as têmporas para despertá-lo uma segunda vida; vida na qual não lembraria nada da anterior, tanto que, fosse honesto numa vida, fora preso várias vezes na outra, por causa de seus roubos, porque era simplesmente um tremendo velhaco. Ao que a Sra. Verdurin comenta com detalhe que a medicina poderia fornecer assuntos mais autênticos a uma peça de teatro - em que a graça do imprevisto se assentaria nos equívocos patológicos, o que, aos poucos, leva a Sra. Cottard a aludir a uma obra desse gênero, escrita por um autor que é o predileto de seus filhos, o escocês Stevenson, um nome que põe na boca de Swann esta afirmação peremptória: 

'Mas Stevenson é absolutamente um escritor, eu lhe garanto, Sr. de Goncourt, muito grande mesmo - E, como manifesto meu encantamento com o teto de painéis armoriados, proveniente do antigo palazzo Barberini, da sala onde fumamos, deixando transparecer minha pena ante o enegrecimento progressivo da concha da fonte devido à falta de cuidados nossos de Londres; e tendo Swann afirmado que manchas semelhantes, em que possuídos por Napoleão I, pertencentes agora ao duque de Guermantes, apenas suas opiniões anti-bonapartistas, atestam que o imperador mascava. Cottard se revela um espírito verdadeiramente penetrante em todos os assuntos, que tais manchas de modo algum provêm disso -'mas de modo algum', informa com autoridade e sim do hábito que ele possuía de ter sempre na mão, até nos campos de batalha, pastilhas de alcaçuz a fim de acalmar as dores do fígado, que ele sofria de uma doença do fígado, e foi disso que morreu', -concluiu. 

Interrompi a leitura neste ponto, já que partiria no dia seguinte; e, disso chegara a hora em que me reclamava outro patrão, a cujo serviço todos os dias a metade do nosso tempo. A tarefa que nos impõe, cumprimo-la de olhos fechados. Todas as manhãs ele nos devolve ao nosso patrão anterior, do que sem isso não o serviríamos bem. Curioso, quando o nosso espírito os olhos, os mais espertos de nós, ansiosos de saber o que poderíamos sob as ordens de um patrão que faz deitar seus escravos antes de os forçar a um trabalho precipitado, buscam sub-repticiamente contemplar a tarefa inconclusa. Porém o sono luta velozmente com eles a fim de fazer desaparecer os traços daquilo que gostariam de ver. E, passados tantos séculos, ainda não sabemos grande coisa a respeito. 

continua na página 025...
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Leia também:

Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
A Prisioneira (Prefácio)
Volume 6
Volume 7
O Tempo Recuperado (Vamos para a mesa)

Marcel Proust - A Fugitiva (Mágoa e Esquecimento - e)

em busca do tempo perdido

volume VI
A Fugitiva



Capítulo I
Mágoa e Esquecimento


continuando...


Ao entrar no meu quarto Françoise me dizia bastante depressa:

"Não há cartas", para abreviar a angústia.

Mas, de tempos em tempos, eu conseguia, fazendo passar esta ou aquela idéia, através do meu desgosto, renovar, purificar um pouco a atmosfera do meu coração. Porém à noite, se conseguia adormecer, então era como se a lembrança de Albertine fosse o medicamento que me trouxesse o sono, e a influência, ao cessar, me despertaria. Pensava o tempo todo em Albertine. Era um sono especial seu, que ela me dava e onde, aliás, eu não teria espaço mais livre para pensar em outra coisa, como durante a vigília. O sono e sua lembrança eram essas duas substâncias misturadas que nos dão a tomar ao mesmo tempo para dormir. De resto, acordado, minha mágoa ia aumentando a cada dia em vez de diminuir. Não que o esquecimento não cumprisse a sua tarefa, mas porque; isso mesmo, favorecia a idealização da imagem saudosa e, desse modo, a assimilação de meu sofrimento inicial a outros sofrimentos análogos, que o reforçava. Todavia, essa imagem era suportável. Mas se, de repente, eu pensava no quarto dela; no quarto onde a cama permanecia desocupada; no seu piano, seu automóvel; perdia todas as forças, fechava os olhos, inclinava a cabeça sobre o ombro esquerdo como as pessoas que vão desmaiar. O ruído das portas me fazia tanto mal, porque não era Albertine quem as abria.

Quando foi possível a chegada de um telegrama de Saint-Loup, não tive coragem de perguntar: "Chegou um telegrama?" Por fim veio um, mas adiando tudo, pois dizia: SENHORAS PARTIRAM POR TRÊS DIAS. Sem dúvida, se eu havia suportado os quatro dias já transcorridos desde que Albertine se fora, era porque dizia comigo mesmo: "É só uma questão de tempo, antes do fim da semana ela estará aqui." Mas essa razão não impedia que para o meu coração, para o meu corpo, o ato a ser cumprido fosse o mesmo: viver sem ela, chegar em casa sem encontrá-la, passar diante da porta do seu quarto - ainda não tinha coragem de abri-lo - sabendo que ela não se achava ali, deitar-me sem lhe haver dito boa-noite, eis as coisas que meu coração devia cumprir em sua terrível integralidade e como se eu não devesse voltar a ver Albertine. Ora, que ele as tenha cumprido já quatro vezes provava que agora seria capaz de continuar a cumpri-las. E dentro em breve, talvez, essa razão que me ajudava a continuar a viver assim o próximo regresso de Albertine-, essa razão, eu deixaria de precisar dela e poderia dizer comigo mesmo: "Ela não voltará nunca mais", e ainda assim viver como já o fizera durante quatro dias.- 

Como um ferido que retomou o hábito de caminhar e pode andar sem muletas. Sem dúvida, à noite, voltando para casa, eu ainda encontrava, tirando-me a respiração, sufocando-me com o vazio da solitude; as lembranças, justapostas numa série interminável, de todas as noites em que Albertine me esperava; mas já encontrava igualmente a lembrança da véspera, da antevéspera e das duas noites precedentes, ou seja, a lembrança das quatro noites transcorridas desde a fuga de Albertine, durante as quais eu ficara sem ela, sozinho, e onde contudo vivera, quatro noites que já formavam uma faixa de lembranças, bem delgada ao lado da outra, mas que a cada dia transcorrido ia talvez se encorpando. Não direi coisa alguma sobre a carta, recebida por essa época, em que se declarava a mim uma sobrinha da Sra. de Guermantes que era tida como a mais bonita moça de Paris, nem das diligências que junto a mim fez o duque de Guermantes por parte dos pais, resignados, pela felicidade da filha, à desigualdade social do partido e a uma aliança imprópria. Tais incidentes, que poderiam ser sensíveis ao amor-próprio, são dolorosos demais quando amamos. Gostaríamos, mas não cometeríamos essa indelicadeza, de os revelar àquela que tem a nosso respeito um juízo menos favorável, que aliás não se modificaria se soubesse que podemos ser objeto de outro juízo bem diverso. O que me escreveu a sobrinha do duque só poderia impacientar Albertine. 

Desde o momento em que despertava e que retomava a minha mágoa no ponto em que me encontrava ao adormecer, como um livro por um instante fechado e que não me abandonaria mais até a noite, eu nunca podia ter senão um pensamento relativo à Albertine, e a esse pensamento é que podia ligar-se para mim - da sensação, viesse de fora ou de dentro. Tocavam a campainha: é uma carta dela, talvez seja ela própria! Se me achava bem disposto, não infeliz demais, não estava mais ciumento, não tinha mais queixas dela, gostaria de revê-la depressa, beijá-la, morar alegremente o resto da vida em sua companhia. Telegrafar-lhe: VENHA DEPRESSA - parecia-me tornar-se uma coisa muito simples, como se o meu novo ânimo tivesse não apenas mudado as minhas disposições, mas tornados fáceis as coisas fora de mim. Se o meu ânimo era sombrio, todas as minhas mágoas contra ela renasciam, já não tinha vontade de beijála, sentia a impossibilidade a ser feliz por meio dela, só queria lhe fazer mal, impedi-la de pertencer a outro desses dois estados de espírito opostos era idêntico o resultado: era preferível que Albertine voltasse o mais cedo possível. E no entanto, apesar de uma certeza que pudesse ter no momento mesmo desse regresso, sentia eu que em breve apresentariam as mesmas dificuldades e que a busca da felicidade nascia do desejo moral que era algo tão ingênuo como a tentativa de alcançar o horizonte alinhando para a frente. Quanto mais aumenta o desejo, mais se afasta verdadeira realidade. De modo que, se a felicidade ou, pelo menos, a ausência de sofrimento, pode ser encontrada; não é a satisfação, mas a redução progressiva e a extinção do desejo o que se deve buscar. Procura-se ver a pessoa amada, deveria-se não vê-la, só o esquecimento consegue nos dar a extinção do desejo. E que, se um escritor proferisse verdades desse gênero, dedicaria o livro, que contivesse a uma mulher, da qual se comprazeria em aproximar-se desse dizendo-lhe:

- Este é o teu livro. - 

E assim, dizendo verdades em seu livro, na dedicatória, pois só lhe importa que o livro seja dessa mulher como lhe importa uma pedra preciosa que dela recebeu e que só lhe será preciosa enquanto amar tal mulher. Só em nosso pensamento é que existem os liames a unir uma criatura à nós. A memória, enfraquecendo, afrouxa-os; apesar da ilusão com que gostamos de nos enganar, e com a qual, por amor, por amizade, por delicadeza e respeito humano; por dever, enganamos os outros, e existimos sozinhos. O pior é o ser que não pode sair de si mesmo, que só conhece os outros dentro de nós afirmando o contrário, na mente. E eu teria tido tanto medo, se houvesse ali algo capaz de fazê-lo, que me tirassem essa necessidade dela, esse amor por Albertine que me persuadia ser ele precioso para a minha vida. Poder ouvir pronunciar o fascínio e sem sofrimento os nomes das estações por onde o trem passava. Touraine me teria parecido uma diminuição de mim mesmo (simplesmente no fundo, porque isso provaria que Albertine se tornava indiferente para mim) estaria bem, dizia comigo, se, ao me perguntar incessantemente o que ela estaria fazendo, pensando, desejando a cada instante, se ela esperava e se ia voltar; mantivesse aberta essa porta de comunicação que o amor abrira em mim e se a vida de outra pessoa inundar, pelas represas abertas, o reservatório que desejaria ficar de novo estagnado. Em breve, prolongando-se o silêncio de Loup, uma ansiedade secundária - a espera por um telegrama ou um telefonema de Saint-Loup - mascarou a primeira, a inquietação quanto ao resultado, que Albertine voltaria. Vigiar cada ruído, à espera do telegrama, tornou-se tão intolerante que, segundo me parecia, a chegada do telegrama, fosse qual fosse, pois a única coisa em que eu pensava agora, poria fim às minhas mágoas. Mas, que recebi finalmente um telegrama de Robert, em que ele me dizia que estivera em tempo integral observando Bontemps; mas, apesar de todas as precauções, fora visto por Albertine, e que estragara tudo, tive um acesso de fúria e desespero, pois acima de tudo era aquilo o que eu desejara evitar. Conhecida de Albertine, a viagem de Saint-Loup parecia mostrar-me submisso a ela, o que a levaria a não voltar; aliás, o horror a essa submissão era tudo o que eu conservara da altivez do meu amor no tempo de Gilberte, e que havia perdido. Amaldiçoei Robert, mas depois pensei que, se aquele meio fracassara, arrumaria outro. Visto que o homem pode agir sobre o mundo exterior, como é que, empregando a astúcia, a inteligência, o interesse, a afeição, não chegaria eu a suprimir essa coisa atroz: a ausência de Albertine? Julgamos que, segundo o nosso desejo, podemos mudar as coisas que nos rodeiam; julgamo-lo porque, fora daí, não vemos nenhuma solução favorável. Não pensamos no que ocorre muitas vezes e que também é favorável: não chegamos a mudar as coisas conforme o nosso desejo, mas aos poucos o nosso desejo muda. A situação que esperávamos mudar por ser-nos insuportável, se nos torna indiferentes. Não pudemos superar o obstáculo, como o queríamos de qualquer maneira, porém a vida nos fez contorná-lo e transpô-lo, e então, se nos virarmos para o passado longínquo, mal podemos avistá-lo, de tal modo se tornou imperceptível. No andar acima do nosso, ouvi árias da Manon, tocadas por uma vizinha. Apliquei seus versos, que conhecia, a Albertine e a mim, e fui penetrado de uma sensação tão profunda que me pus a chorar. Era:

Hé/as, poiseau qui fuit ce qu'il croit l'esclavage, 
Le plus souvent, la nuit d'un vos désespéré revient battre au vitrage


[Ai de mim, o pássaro que foge ao que julga ser prisão, / Muitas vezes, à noite, em desespero, volta a chocar-se - a vidraça." (Manou, ópera de Massenet, ato III, quadro II). (N. do T)] 

e a morte de Manors: 

Manon, réponds-moi donc/ - Seu/ amour de mon âme, Je n'ai su qu áujourd'hui la bonfé de ton coeui 

[Responde, pois, Manou! Único amor da minha alma, / Só hoje conheci a bondade do teu coração." (Manou, final do ato V.) (N. do T)] 

Já que Manon voltava a Des Grieux, parecia-me que eu era para Albertine o único amor de sua vida. Ai de mim! É provável que, se ouvisse naquele momento a mesma ária, não fosse a mim que ela teria agraciado sob o nome de Des Grieux e, ainda que pensasse nisso, a minha lembrança a teria impedido de se enternecer ao escutar essa música, que todavia era exatamente do gênero das que ela apreciava. 

Quanto a mim, não tive coragem de me entregar à doçura de imaginar que Albertine me chamasse "único amor da minha alma", reconhecendo que se equivocara sobre o que "julgara ser prisão". Eu sabia ser possível ler um romance sem se dar à heroína as feições da mulher amada. Mas, ao terminar o livro, é inútil que o desfecho seja feliz, pois o nosso amor não progrediu em nada e, quando fechei o livro, aquela a quem amamos e que finalmente nos veio no romance, nem por isso gosta mais de nós na vida. 

Furioso, telegrafei a Saint-Loup que regressasse o mais rápido possível à Paris, para ao menos evitar o aspecto de uma insistência agravante na missão que eu tanto quisera ocultar. Mas antes mesmo que ele se conforme as minhas instruções, foi da própria Albertine que recebi este telegrama: MEU CARO, VOCÊ ENVIOU SEU AMIGO SAINT-LOUP À MINHA TIA, FOI INSENSATO. MEU CARO AMIGO, SE TEM NECESSIDADE DE MIM, POR QUE NÃO ME ESCREVEU DIRETAMENTE? TERIA FICADO MUITO FELIZ POR VOLTAR; NÃO RECOMECE OUTRA VEZ ESSAS MEDIDAS ABSURDAS. 

"Teria muito feliz por voltar!" Se ela dizia isto, era portanto por lamentar o ter ido. É que só procurava um pretexto para regressar. Assim, bastava-me fazer o que pedia, escrever-lhe que tinha necessidade dela, e ela voltaria. Portanto, retornaria a Albertine de Balbec (pois desde a sua partida, voltara a sê-lo para mim um caramujo do mar, ao qual não prestamos atenção quando o temos sobre nossa cômoda, e no qual, uma vez que nos separamos dele porque o perdemos, ficamos pensando, o que antes já não fazíamos, ela me recordava toda a jovial beleza das montanhas azuis do mar). E não era apenas ela que se tornara um ser de imaginação, isto é, desejável, mas a vida com ela é que passara a ser uma vida imaginária, ou seja, livre de todas as dificuldades, de modo que dizia comigo: 

"Como vamos ser felizes!"

Porém, no momento em que eu estava seguro desse regresso, não era preciso dar a impressão de apressá-lo, mas, ao contrário, apagar o mau efeito causado pela missão de SaintLoup, que mais eu ainda poderia renegar, dizendo que ele agira por conta própria, pois sempre mostrara favorável ao nosso casamento. 

Entretanto, eu relia a sua carta e, apesar de tudo, sentia-me desapontado com o pouco que, numa carta, existe de pessoal. Sem dúvida, os caracteres escritos exprimem o nosso pensamento, o mesmo acontece com as nossas emoções; é sempre em presença de um pensamento que nós nos encontramos ainda assim, na pessoa, o pensamento só nos aparece após ter se difundido corola da fisionomia desabrochada como um nenúfar. Isso, afinal, o modifica muito. E talvez uma das causas de nossas permanentes decepções no amor esses permanentes desvios que fazem que, à espera da criatura ideal a quem amamos, todo encontro nos traga uma pessoa de carne que já existe bem pouco em nosso sonho. E depois, quando reclamamos alguma coisa dessa pessoa, recebemos uma carta em que da própria pessoa fica muito pouco, como nas da álgebra já não existe a determinação das cifras da aritmética, que, possua; não contêm as qualidades dos frutos ou das flores adicionados. Todavia a criatura amada, suas cartas, são talvez, enfim, traduções por menos satisfatório que seja, passar de uma a outra da mesma realidade, visto que a carta só nos parece insuficiente quando a lemos, pois suamos frio enquanto não chega, bastando para acalmar a nossa angústia quando não para encher, como seus sinaizinhos negros, o nosso desejo, que sente que ali afinal só existe o equivalente de uma palavra, de um sorriso, de um beijo, e não essas mesmas coisas. 

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Leia também:

Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
A Prisioneira (Prefácio)
Volume 6
A Fugitiva (Mágoa e Esquecimento - e)

terça-feira, 25 de julho de 2023

Ballet Nacional de España - Eritaña (40 aniversario)

Eritaña

cantar
dançar 

tocar 
           a sua melhor versão
mais humilde
mais humana
esvoaçando o colorido dos movimentos
uma escola escutando o corpo
                a música
                  o chão de su tierra
escutar-se
                              conectar-se
          às emoções
ao romance
                               enrolando
desenrolando
o espaço
por dentro
e
por fora
de su propia tierra 

 Sevilla









Nas comemorações dos 40 anos do Balé Nacional da Espanha, realizado no Teatro de la Zarzuela em 2018, a primeira obra que abriu o espetáculo foi Eritaña. Antonio Ruiz Soler a criou em 1960. É um balé baseado na Suíte Iberia de Isaac Albéniz. Duas décadas depois, o Ballet Nacional a incorporou ao seu repertório. Eritana desenha uma coreografia de escola de bolero, de muito exigente virtuosismo técnico, uma encantadora e preciosa miniatura que evoca a luminosa Sevilha.


Eritaña.
Coreografía: Antonio Ruíz Soler
Música: Isaac Albéniz / Álvaro Albiach
Dirección musical: Manuel Coves (8 y 9 diciembre) y Álvaro Albiach (resto de funciones)
Orquesta: Orquesta de la Comunidad de Madrid (ORCAM)
Figurines: Vicente Viudes
Adaptación escenográfica: Jesús Acevedo
Realización de escenografía: Sfumato
Diseño de iluminación: Ginés Caballero (AAI)
Vestuario segunda producción: Sastrería González, Milagros González e Iñaki Cobos
Calzado: Sansha

ELENCO
Pareja principal: Débora Martínez y Sergio Bernal
Solistas primera y tercera variación: Irene Tena
Solistas segunda variación: Patricia Fernández y María Martín
Solistas última variación: Estela Alonso
Cuerpo de baile: Alba Expósito, Alba Dusmet, Carla Prado, Mercedes
Burgos, Adrián Maqueda, Daniel Ramos, Victor Martín, Álvaro Marbán Vídeo: María Salgado. 
8 de diciembre de 2018, Teatro de la Zarzuela.

Estreno absoluto el 28 de abril de 1960 por Antonio y su Ballet Español, en el Teatro del Liceo de Barcelona. Estreno el 28 de octubre de 1981 por el Ballet Nacional de España, en el Teatro de la Zarzuela de Madrid.

Marcel Proust - A Prisioneira (Toda a seiva local)

em busca do tempo perdido

volume V
A Prisioneira


continuando...


Toda a seiva local que existe nas velhas famílias aristocráticas não é o suficiente; é preciso que nelas nasça uma criatura inteligente o bastante para não desdenhá-la, para não apagá-la sob o verniz mundano. A Sra. de Guermantes, infelizmente espirituosa e parisiense, e que, quando a conheci, só conservava de seu torrão o sotaque, ao menos, quando queria pintar sua vida de mocinha, achara para a sua linguagem (entre o que teria parecido involuntariamente provinciano demais ou, pelo contrário, artificialmente letrado) um desses compromissos que fazem o encanto de La Petite fadette de George Sand ou de certas lendas relatadas por Chateaubriand nas Memórias d'outre-tombe. Meu prazer era, sobretudo, ouvi-la contar alguma história acerca de camponeses com ela. Os nomes antigos, os velhos costumes, davam algo de muito saboroso a essa aproximação entre o castelo e a aldeia. Uma certa aristocracia permanece regional por ter mantido contato com as terras onde é soberana, de modo que a frase mais simples faz desenrolar-se diante de nossos olhos todo um mapa histórico e geográfico da História da França. Se não havia naquilo afetação, nenhum desejo de fabricar uma linguagem para seu próprio uso, então essa forma de pronunciar era um verdadeiro museu de História da França através da conversação.

- Meu tio-avô Fitt-jam- nada tinha que espantasse, pois sabia-se que os Fitz-James proclamam de bom grado serem grãos senhores franceses e não querem que pronunciem seu nome à maneira inglesa. Aliás, é preciso admirar a tocante docilidade das pessoas que, até então, tinham julgado dever esforçar-se por pronunciar gramaticalmente certos nomes e que, de súbito, após ter ouvido a duquesa de Guermantes pronunciá-los diversamente, aplicavam-se à pronúncia que nem sequer haviam suposto. Assim, a duquesa, que tivera um bisavô que assessorava o conde Chambord, para implicar com o marido que se tornara orleanista, gostava de proclamar:

- Nós, os velhos de Frochedorf. - O visitante que até então julgara correto dizer "Frohsdorf" mudava de opinião o mais depressa possível e passava a dizer sem parar "Frochedorf".

Certa vez em que perguntava à Sra. de Guermantes quem era um jovem requintado que ela me apresentara como seu sobrinho e de quem mal ouvira o nome, tal nome não o distingui melhor quando, do fundo da garganta, a duquesa emitiu com força mas sem articular:

- É o é leonês, cunhado de Robert. Ele pretende ter a forma do crânio dos velhos galeses. -

Então compreendi que ela dissera: é o pequeno Léon (o príncipe de Léon, de fato cunhado de Robert de Saint-Loup).

- Em todo caso, não sei se ele tem o crânio - acrescentou ela -, mas o seu modo de se vestir, que aliás é bem chique, não tem muito o jeito daquele país. 

Um dia em que, de Josselin, onde eu estava em casa dos Rohan, tínhamos saído em peregrinação, vieram camponeses, um pouco de todas as partes da Bretanha. Um grandalhão leonês olhava assombrado para as calças beges do cunhado de Robert. 

- Que tem você que tanto me olha? Aposto que não sabe quem sou eu -, disse Léon. E, como o camponês dissesse que não: - Pois bem, sou o teu príncipe. 

- Ah! - respondeu o camponês se descobrindo e pedindo desculpas -, pensei que o senhor fosse um englische. -

E, se, aproveitando esse ponto de partida, eu estimulava a Sra. de Guermantes a falar dos Rohan (a quem sua família muitas vezes se aliara), sua conversação se impregnava um pouco do encanto melancólico das romarias bretãs e, como diria aquele verdadeiro poeta que é Pampille, "do acre sabor dos crepes de trigo preto cozidos num fogo de juncos"'.

[Pampille era pseudônimo da Sra. Léon Daudet, autora de um livro de receitas. (N. do T)] 

Do marquês de Lau (de quem se conhece o triste fim, quando, surdo, fazia-se levar à casa da Sra. H***, cega), ela contava os anos menos trágicos, quando, depois da caça, em Guermantes, punha chinelos para tomar o chá com o rei da Inglaterra, ao qual não se considerava inferior e com quem, como se vê, não fazia cerimônia. Ela assinalava este fato com tanta graciosidade que lhe acrescentava o penacho à mosqueteiro dos fidalgos um tanto gloriosos do Périgord.

Além disso, mesmo na simples qualificação de pessoas, ter o cuidado de diferenciar as províncias era na Sra. de Guermantes, fiel a si própria, um grande encanto que uma parisiense de origem nunca saberia possuir; e aqueles simples nomes de Anjou, de Poitou e do Périgord refaziam paisagens em sua conversação. Para voltar à pronúncia e ao vocabulário da Sra. de Guermantes, é por esse aspecto que a nobreza se mostra verdadeiramente conservadora, com tudo o que esse termo carreia, ao mesmo tempo, de um tanto pueril, um tanto perigoso, de refratário ao progresso, mas igualmente de divertido para o artista. Eu queria saber como se escrevia antigamente o nome Jean. Fiquei sabendo ao receber uma carta do sobrinho da Sra. de Villeparisis, que se assina-conforme foi batizado e figura no Gotha-Jehan de Villeparisis, com o mesmo e belo h inútil, heráldico, tal como é admirado, colorido de vermelhão ou de ultramar, num livro de horas ou num vitral. 

Infelizmente, não dispunha de tempo para prolongar indefinidamente essas visitas, pois desejava na medida do possível não voltar para casa depois de minha amiga. 

Ora, era sempre a conta-gotas que podia obter da Sra. de Guermantes as informações sobre suas toaletes, informações que eram úteis para mandar fazer toaletes do mesmo gênero para Albertine, na medida em que uma moça possa usá-las. 

- Por exemplo, senhora, no dia em que devia jantar na casa da Sra. de Saint-Euverte antes de ir à casa da princesa de Guermantes, estava usando um vestido todo vermelho, com sapatos vermelhos; estava extraordinária, parecia uma grande flor de sangue, um rubi em chamas; como se chamaria isso? E uma moça pode usar um vestido assim?

A duquesa, dando ao rosto fatigado a radiosa expressão que possuía a princesa des Laumes quando Swann lhe fazia cumprimentos outrora, olhou, rindo até as lágrimas, com ar zombeteiro, interrogativo e deslumbrado, para o Sr. de Bréauté, sempre presente àquela hora, e que fazia amornar sob o monóculo um sorriso indulgente para esse figura de intelectual por causa da exaltação física de rapaz que ele parecia ocultar. A duquesa dava a impressão de dizer: "Que terá ele, estará louco?" Depois, virando-se para mim com ar carinhoso: 

- Eu não sabia que parecia um rubi em chamas ou uma flor de sangue, mas lembro-me de fato que usei um vestido vermelho: era de cetim rubro como então costumava usar-se. Sim, uma moça pode, a rigor, usar isso, mas você me disse que ela não saía à noite. É um vestido de festa de gala, não pode ser usado apenas para fazer visitas. 

O extraordinário é que daquele sarau, enfim não tão antigo, a Sra. de Guermantes só se lembrasse de sua toalete e tivesse esquecido uma coisa que no entanto, conforme veremos, deveria ter grande importância para ela. Parece que nas pessoas de ação, e os mundanos são pessoas de ação (minúsculas, microscópicas, mas enfim pessoas de ação), o espírito esgotado pela atenção naquilo que há de ocorrer dentro de uma hora, só confia muito pouco à memória. Muitas vezes, por exemplo, não era para despistar e parecer não ter se enganado, que o Sr. de Norpois, quando lhe falavam de prognósticos que ele havia emitido a respeito de uma aliança alemã que nem sequer fora concluída, dizia: 

- Devem estar enganados, não me recordo absolutamente, isto não parece coisa minha, pois nesse tipo de conversa sou sempre muito lacônico e jamais teria predito o sucesso de golpes espetaculares, que em geral não passam de cabeçadas e habitualmente degeneram em atos de violência. É inegável que, num futuro remoto, poderia efetuar-se uma aproximação franco-alemã, a qual seria muito vantajosa para os dois países, e dela a França não tiraria só desvantagens, creio; mas jamais falei sobre tal assunto, porque o fruto ainda não está maduro e, se querem a minha opinião, penso que, ao pedirmos a nossos velhos inimigos que convolem conosco em justas bodas, correríamos o risco de um tremendo fracasso e só receberíamos bordoadas. - 

Dizendo isto, o Sr. de Norpois não mentia, simplesmente se esquecera. De resto, a gente se esquece depressa daquilo que não pensou com profundidade, do que nos foi ditado pela imitação e pelas paixões circundantes. Elas mudam, e com elas modifica-se a nossa recordação. Ainda mais que os diplomatas, os políticos não se lembram do ponto de vista que adotaram em certa ocasião, e algumas de suas palinódias se referem menos a um excesso de ambição do que a uma falta de memória. Quanto às pessoas mundanas, estas lembram-se de pouca coisa.

A Sra. de Guermantes afirmou-me que, no sarau ao qual comparecera de vestido vermelho, já não se lembrava que ali estivera a Sra. de Chaussepierre, que certamente eu me enganava. Ora, sabe Deus no entanto se, desde então, os Chaussepierre não ocuparam o espírito do duque e até da duquesa! Eis o motivo. O Sr. de Guermantes era o mais antigo vice-presidente do Jockey quando o presidente faleceu. Certos membros do clube que não têm relações e cujo único prazer é dar bolas pretas às pessoas que não os convidam, fizeram campanha contra o duque de Guermantes, o qual, certo de ser eleito e bem negligente quanto a essa presidência que valia muito pouco relativamente à sua posição mundana, não cuidou de nada. Ressaltaram que a duquesa era dreyfusista (no entanto, o Caso Dreyfus já se encerrara há muito tempo, mas vinte anos depois ainda se falava nele, e ela só o era havia dois anos), recebia os Rothschild, que se favoreciam demais desde algum tempo dos grandes potentados internacionais, como o duque de Guermantes, que era meio alemão. A campanha encontrou um terreno bastante propício, pois os clubes invejam muito as pessoas em destaque e detestam as grandes fortunas. A de Chaussepierre não era pequena, mas não dava para ofuscar ninguém; ele não gastava um tostão, o apartamento do casal era modesto, a mulher andava vestida de lã preta. Louca por música, dava muitas reuniões pequenas para as quais eram convidadas muito mais cantoras do que à casa dos Guermantes. Mas ninguém falava nelas, tudo isso se passava sem refrescos, até o marido estava ausente, na obscuridade da rua de Ia Chaise. Na ópera, a Sra. de Chaussepierre passava despercebida, sempre na companhia de pessoas cujo nome evocava o meio mais "ultra" da intimidade de Carlos X, mas pessoas apagadas, pouco mundanas. No dia da eleição, para surpresa geral, a obscuridade triunfou sobre o esplendor: Chaussepierre, segundo vice-presidente, foi eleito presidente do Jockey, e o duque de Guermantes levou carona, isto é, permaneceu como primeiro vice-presidente. Claro que ser presidente do Jockey não representa muita coisa para os príncipes da mais alta estirpe como eram os Guermantes. Mas não sê-lo quando chegou a vez, ver-se preterido por um Chaussepierre cuja mulher Oriane não só não cumprimentava dois anos antes, como chegava a se mostrar ofendida de ser cumprimentada por aquele morcego desconhecido era duro para o duque. Ele pretendia estar acima desse fracasso, assegurando aliás que era à sua velha amizade a Swann que o devia. Na realidade, sua cólera era interminável. Muito curioso era o fato de jamais terem ouvido o duque de Guermantes servir-se da expressão bel et bien, bastante trivial, no sentido de "inteiramente". Mas desde a eleição do Jockey, quando lhe falavam do Caso Dreyfus, bel et bien surgia logo:

- Caso Dreyfus, Caso Dreyfus, é fácil de dizer e o termo é impróprio; não se trata de uma questão de religião, mas bel et bien de uma questão política.- 


continua na página 16...
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Leia também:

Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
A Prisioneira (Prefácio)
A Prisioneira (Toda a seiva local)

Marcel Proust - Sodoma e Gomorra (Cap I - O Sr. de Charlus em sociedade)

em busca do tempo perdido

volume IV
Sodoma e Gomorra



Capítulo Primeiro
Segunda Parte


continuando...

O Sr. de Charlus em sociedade. - Um médico. - Face característica da Sra. de Vaugoubert. - A Sra. d'Arpajon, o repuxo de Hubert Robert e a alegria do grão-duque Wladimir. - A Sra. d Amoncourt, a Sra. de Citri, a Sra. de Saint-Euverte, etc. - Curiosa palestra entre Swann e o príncipe de Guermantes. - Albertine ao telefone. - Visitas enquanto espero minha segunda e última viagem a Balbec. - Chegada a Balbec. - Ciúme em relação a Albertine. - As intermitências do coração.

Como não tinha pressa em chegar àquele sarau dos Guermantes a que não estava certo de que fora convidado, fiquei à toa na rua; porém, o dia de verão não parecia ter mais pressa do que eu em se mover. Embora já fossem mais de nove horas, era ainda esse dia que, sobre a Praça da Concórdia, dava ao obelisco de Luxor um aspecto de nougat cor-de-rosa. Depois, modificou-lhe o matiz e mudou-o em matéria metálica, de modo que o obelisco tornou-se não só mais precioso, mas também pareceu adelgaçado e quase flexível. Imaginava-se que poderiam torcê-lo, que talvez já houvessem falseado ligeiramente aquela joia. A lua estava agora no céu como um quarto de laranja delicadamente descascada, conquanto meio amassada. Porém, mais tarde devia ser feita do ouro mais resistente. Encolhida sozinha atrás dela, uma pobre estrelinha ia servir de companhia única à lua solitária, ao passo que esta, sempre a proteger a sua amiga, porém mais ousada e indo na dianteira, brandiria como uma arma irresistível, como um símbolo oriental, o seu amplo e maravilhoso crescente de ouro.

Diante do palácio da princesa de Guermantes, encontrei o duque de Châtellerault; já não me lembrava que meia hora antes ainda me perseguia o receio que em breve iria dominar-me de novo de comparecer sem ter sido convidado. Inquietamo-nos, e é por vezes muito depois da hora do perigo esquecida graças à distração, que nos lembramos de nosso desassossego. Cumprimentei o jovem duque e entrei no palácio. Mas aqui, faz-se antes necessário que eu aponte uma circunstância mínima, que permitirá se compreenda um fato que se seguirá em breve. Existia alguém que, nesta noite como nas noites precedentes, pensava muito no duque de Châtellerault, aliás sem suspeitar de quem se tratava: era o porteiro da Sra. de Guermantes, a quem por esse tempo chamava-se "o ladrador". O Sr. de Châtellerault, bem longe de ser um dos íntimos da princesa visto ser um de seus primos-, era recebido em seu salão pela primeira vez. Seus pais, brigados com ela por dez anos, tinham-se se reconciliado há duas semanas e, forçados a se ausentarem de Paris, haviam encarregado o filho de representá-los. Ora, alguns dias antes, o porteiro da princesa encontrara nos Champs-Élysées um jovem a quem achara encantador, mas que não lhe fora possível identificar. Não que o jovem não se mostrasse tão amável como generoso. Todos os favores que o porteiro imaginara ter de ceder a um senhor tão moço, ele, ao contrário, os havia recebido. Mas o Sr. de Châtellerault era tão medroso quanto imprudente; e tanto mais decidido estava a guardar o incógnito por ignorar de quem se tratava; teria medo bem maior, embora sem fundamento, se o tivesse conhecido. Limitara-se a se fazer passar por um inglês, e a todas as perguntas apaixonadas do porteiro, desejoso de reencontrar uma pessoa a quem tanto devia em prazer e liberalidades, o duque se restringira a responder, ao longo da avenida Gabriel: "l do not speak french."

Se bem que, apesar de tudo devido à origem materna de seu primo-, o duque de Guermantes afetasse achar um nadinha de CourvoisicK no salão da princesa de Guermantes-Baviera, em geral julgava-se o espírito de iniciativa e a superioridade intelectual dessa dama conforme uma inovação que não se encontrava em nenhuma outra parte naquele meio. Após o jantar, e qualquer que fosse a importância da reunião que deveria seguir-se os assentos, na casa da princesa de Guermantes, achavam-se dispostos de tal maneira a formar pequenos grupos que, se necessário, davam-se as costas. A princesa então evidenciava o seu sentido social indo sentar-se como por preferência sua, em um deles. De resto, ela não temia eleger atrair um membro de outro grupo. Se, por exemplo, ela fizera notar ao Sr. Detaille, que naturalmente concordara, como a Sra. de Villemur, cuja posição em outro grupo a fazia ser vista de costas, possuía uma bela nuca, a princesa não hesitava em erguer a voz: 

- Sra. de Villemur, o Sr. Detaille, como grande pintor que é, está admirando o seu pescoço. A Sra. de Villemur sentia naquilo um convite direto à conversação; com a destreza que dá o hábito da equitação, fazia sua cadeira girar lentamente num arco de três quartos de círculo e, sem incomodar em nada os vizinhos, ficava quase de frente para a princesa. 

- Não conhece o Sr. Detaille? - perguntava a dona da casa, a quem não bastava a hábil e recatada conversão de sua conviva. 

- Não o conheço, mas conheço as suas obras. - respondia a Sra. de Villemur com o ar de respeito, insinuante e oportuno, que muitos lhe invejavam, enquanto dirigia ao famoso pintor, que a interpelação não lhe bastara para apresentá-lo de maneira formal, um cumprimento imperceptível. 

- Venha, Sr. Detaille - dizia a princesa; vou apresentá-lo à Sra. de Villemur. -

Esta, então, empregava tanto engenho para abrir espaço ao autor do Sonho como há pouco em se virar para ele. E a princesa avançou uma cadeira para si própria; de fato, só interpelara a Sra. de Villemur para ter um pretexto de largar o primeiro grupo, onde passara os dez minutos regulamentares, e conceder ao segundo igual duração de presença. Em três quartos de hora, todos os grupos tinham recebido a sua visita, que parecia ter sido guiada, de cada vez, somente pelo imprevisto e pelas predileções, mas tivera por objetivo sobretudo pôr em relevo com que naturalidade "uma grande dama sabia receber". Mas agora os convidados do sarau começavam a chegar, e a dona da casa se havia sentado não longe da porta altiva e empertigada, em sua majestade quase régia, os olhos flamejantes de incandescência própria entre duas Altezas sem beleza e a embaixatriz da Espanha. 

Eu era o último da fila, atrás de uns convidados que tinham chegado um pouco antes de mim. À minha frente estava a princesa, cuja formosura, entre tantas outras, não é só o que me faz recordar essa festa. Mas o rosto da dona da casa era tão perfeito, cinzelado como uma tão linda medalha, que conservou para mim uma virtude comemorativa. A princesa tinha o hábito de dizer aos convidados, ao encontra-los alguns dias antes de seus saraus:

- O senhor virá, não é mesmo? - como se estivesse grandemente desejosa de conversar com eles. Mas como, pelo contrário, não tinha nada para lhes falar quando chegavam junto dela, contentava-se, sem se erguer, em interromper por um instante a sua vã conversação com as duas Altezas e a embaixatriz e agradecer, dizendo:

- Foi gentil em ter vindo -, não que achasse que o convidado dera provas de gentileza ao comparecer, mas para aumentar ainda a sua; e logo, devolvendo-o à correnteza, acrescentava: - Encontrará o Sr. de Guermantes à entrada dos jardins de modo que o convidado saía e a deixava tranquila. Para alguns até, ela nem dizia nada, contentando-se em lhes mostrar seus admiráveis olhos de ônix, como se tivessem vindo exclusivamente para uma exposição de pedras preciosas.

A primeira pessoa a passar antes de mim era o duque de Châtellerault. Tendo de corresponder a todos os sorrisos, a todos os apertos de mão que lhe vinham do salão, ele não reparara no porteiro. Mas, desde o primeiro instante, o porteiro o reconhecera. Aquela identidade que tanto desejara saber, num momento iria conhecê-la. Perguntando ao seu criado da antevéspera qual o nome que devia anunciar, o porteiro não estava; mas comovido, julgava-se indiscreto, indelicado. Parecia-lhe que ia revelar a todos (que no entanto não desconfiariam de coisa alguma) um segredo que era o culpado de surpreender daquele modo e expor em público: ouvir a resposta do convidado: 

- O duque de Châtellerault -, sentiu perturbado por tamanho orgulho que emudeceu por um instante. O duque o encarou, reconheceu-o, viu-se perdido, ao passo que o criado, que se lembrara e conhecia perfeitamente o seu cerimonial para completar por si mesmo um apelativo tão modesto, gritou com a energia profissional que se aveludam com uma ternura íntima: 

- Sua Alteza Monsenhor o duque de Châtellerault -

Mas agora era a minha vez de ser anunciado. Absorvido na contemplação da dona da casa que ainda não me vira, nem pensara nas funções terríveis para mim, conquanto de modo diverso do que para o Sr. Châtellerault desse porteiro vestido de preto como um carrasco, cercado de uma tropa de lacaios das mais ridentes librés, robustos latagões prontos para agarrarem um intruso e pô-lo porta afora. O porteiro perguntou meu nome; dei-lhe tão maquinalmente como o condenado à morte se deixa prender ao cepo. De imediato ele ergueu majestosamente a cabeça e, antes que eu tivesse podido implorar-lhe que me anunciasse a meia voz a fim de resguardar meu amor-próprio, caso não fosse convidado, e o da princesa de Guermantes, caso o fosse, berrou as sílabas inquietadoras com uma força capaz de abalar a abóbada do palácio.

O ilustre Huxley (aquele cujo sobrinho ocupa atualmente um cume preponderante no universo da literatura inglesa) conta que uma de suas doentes não mais tinha coragem de freqüentar a sociedade, pois muitas vezes, na própria poltrona que lhe indicavam com um gesto cortês, ela via sentado um velho senhor. Estava bem certa de que, ou o gesto convidativo ou a presença do velho senhor, seria uma alucinação, pois não lhe designariam daquele modo uma poltrona ocupada. E, quando Huxley, para curá-la, obrigou-a a voltar a uma festa, ela teve um momento de penosa hesitação perguntando-se se o gesto amável que lhe faziam era a coisa real, ou se para obedecer a uma visão inexistente, ela iria em público sentar-se nos joelhos de um senhor de carne e osso. Sua breve incerteza foi cruel. Mais talvez do que a minha. A partir do momento em que ouvira o ribombar de ouvir meu nome, como o rumor prévio de um possível cataclismo, fui obrigado para em todo caso defender minha boa-fé e como se não estivesse atormentado por nenhuma dúvida, avançar para a princesa com ar resoluto.

Ela me avistou quando eu estava a poucos passos de distância o que não me permitiu mais duvidar de que fora vítima de uma maquinação em vez de permanecer sentada como fazia quanto aos outros convidados, ergueu-se e veio ao meu encontro. Um segundo após, pude soltar o suspiro de alívio da doente de Huxley, quando, tendo resolvido sentar-se na poltrona, encontrou-a desocupada e compreendeu que o velho senhor é que era uma alucinação. A princesa acabava de me estender a mão, sorrindo. Ficou de pé durante alguns momentos, com o tipo de graça particular à estância de Malherbe que termina assim: 

E os Anjos para honrá-los se levantam.

Ela se desculpou pelo fato de a duquesa ainda não ter chegado, como se eu devesse me aborrecer sem a presença dela. Para me fazer esse cumprimento, ela executou a meu redor, segurando-me a mão, um giro cheio de graça, em cujo turbilhão eu me sentia arrastado. Quase esperava que ela me entregasse então, como uma condutora de cotillon (dança), uma bengala de cabo de marfim ou um relógio-pulseira. Na verdade, não me deu nada disso e, como se em lugar de dançar o bóston tivesse antes ouvido um sacrossanto quarteto de Beethoven, cujos sublimes acentos temesse perturbar, parou nesse ponto a conversa, ou melhor, não a principiou e, ainda radiante de me ter visto entrar, limitou-se a indicar o local onde se encontrava o príncipe.

Afastei-me dela e não mais tive coragem de me aproximar, sentindo que ela não tinha absolutamente nada a me dizer e que, em sua imensa boa vontade, aquela mulher maravilhosamente alta e bela, nobre como o eram tantas grandes damas que subiram tão altivamente ao cadafalso, não poderia, sem ousar oferecer-me água de erva-cidreira, senão repetir-me o que já me havia dito duas vezes:

- O senhor encontrará o príncipe no jardim. -

Ora, ir ao encontro do príncipe seria sentir renascer minhas dúvidas sob forma diversa. Em todo caso, precisava encontrar alguém que me apresentasse. Ouvia-se, dominando todas as conversações, o inesgotável falatório do Sr. de Charlus, que estava conversando com Sua Excelência o duque de Sidonia, com quem acabava de travar conhecimento. De profissão para profissão, nós nos adivinhamos, e de vício para vício também. O Sr. de Charlus e o Sr. de Sidonia tinham de imediato farejado cada um o do outro, que, quanto a ambos, era, em sociedade, o de serem monologadores, a ponto de não poderem suportar nenhuma interrupção. Tendo logo percebido que o mal era sem remédio, como diz um célebre soneto, tomaram a resolução não de se calar, mas de falar cada qual sem cuidar do que o outro dizia, o que provocara aquele rumor confuso, produzido nas comédias de Moliere por vários personagens que falam ao mesmo tempo coisas diferentes. O barão, sua voz estrepitosa, estava certo, aliás, de que teria a vantagem, que cobria a voz fraca do Sr. de Sidonia, sem no entanto desencorajar a este, quando o Sr. de Charlus retomava fôlego por um instante, o intervalo era preenchido pelo sussurro do nobre da Espanha, que continuara imperturbavelmente o seu discurso. Bem que eu podia pedir ao Sr. de Charlus que me apresentasse ao príncipe de Guermantes, mas receava (com sobra das razões) que ele se irritasse comigo. Eu agira com ele da maneira mais ingrata, desdenhando pela segunda vez os seus oferecimentos, nem lhe dando sinal de vida desde a noite em que me reconduzira tão afetuosamente à minha casa. E no entanto não dava de modo algum, como desculpa prévia, a cena que acabara de ver, naquela mesma tarde, entre ele e Jupien. Não suspeitava nada de parecido. É verdade que pouco tempo antes, como meus pais me censurassem a preguiça e por ainda não ter escrito um bilhete ao Sr. de Chary eu os censurara violentamente por quererem que aceitasse propostas deste nestas. Mas somente a cólera e o desejo de achar a frase que lhes podia ser mais desagradável é que me haviam ditado aquela resposta mentirosa. Na realidade, eu nada imaginara de sensual, nem sequer de sentimental, sob as ofertas do barão. Dissera aquilo a meus pais como simples besteira. Mas às vezes o futuro nos habita sem que o saibamos, e nossas palavras que crêem mentir estão descrevendo uma realidade que se aproxima. O Sr. de Charlus decerto perdoaria minha ingratidão. Mas o que o deixaria furioso é que a minha presença esta noite na casa da princesa de Guermantes, como fazia algum tempo na casa da prima desta, parecia desprezar a solene declaração:

- Não se entra nesses salões senão por mera intermédio. -

Falta grave, crime por ventura irreparável, eu não seguira a ordem hierárquica. O Sr. de Charlus sabia muito bem que os raios que brandia contra aqueles que não se curvavam às suas ordens, ou a quem criara rancor, começavam a ser tidos, para muita gente, por mais ódio que ele lhes imprimisse, por raios de cartolina, e já não tinham forças de expulsar fosse quem fosse de lugar algum. Mas talvez julgasse que seu poder diminuído grande ainda, permanecia intacto aos olhos dos novatos como eu. Assim não julguei muito apropriado pedir-lhe um favor numa festa em que só a minha presença parecia um irônico desmentido a suas pretensões.


continua na página 18...
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Volume 2
Volume 3
Volume 4
Sodoma e Gomorra (Cap I - O Sr. de Charlus em sociedade) 
Volume 6
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