sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Alceu Valença - João Rock 2019

Esperando o 2020!



Esse foi o show do Alceu Valença no João Rock 2019 em Ribeirão Preto!







00:00 - Baião / Vem Morena / O Canto da Ema

04:00 - Pagode Russo

05:58 - Coco das Serras

08:30 - Embolada do Tempo

11:20 - Cavalo de Pau

15:58 - Como Dois Animais

19:40 - Girassol

22:10 - Coração Bobo

26:13 - Pelas Ruas Que Andei

30:05 - Cabelo no Pente

33:48 - Solidão

38:30 - Táxi Lunar

44:55 - La Belle de Jour

48:10 - Anunciação

52:33 - Tropicana



terça-feira, 24 de dezembro de 2019

e o natal... o que é?

papai noel



e o natal o que é (ou precisa ser)?
uma árvore faustosamente decorada, 

doces, 
          bebidas e 
                         peru assado, 
e acima de tudo, 
a mágica transformação 
    de sentimentos 
                           mesquinhos, 
preconceituosos
e cruéis
                   em 
                        generosas 
                                        e 
                                          altruístas
pessoas,
             pelo menos,
                                no natal




Teixeirinha - Papai Noel





Papai Noel onde está meu presentinho
Sou menino pobrezinho que não cansa de esperar
Os meus olhinhos de tristeza lacrimando
O filho rico brincando e eu magoado a chorar


Neste Natal eu vi o meninozinho
Que tinha só cinco aninhos chorando dizer assim
Papai Noel lhe esperei o ano inteiro só por falta
Do dinheiro você esqueceu de mim


Papai Noel presentear é o seu destino
O coração do menino é igual de um tico-tico
Que está chorando lhe pedindo um presentinho
Não tem culpa o pobrezinho de não ter nascido rico


Pobre menino sentadinho na calçada
Olhando pra garotada tristemente o coitadinho
Ele sentindo no peitinho aquela mágoa
Vi rolar dois pingos d'água dos olhos do garotinho

Muito chorei ao ver o menino triste
Meu coração não resiste ver a pobreza infantil
Papai Noel do menino é a esperança
O senhor já foi criança
Lembre os pobres do Brasil


Se me atenderes de mãos postas digo amém
Mandando o ano que vem o natal do sofredor
Papai Noel não é só o menino nobre
Também o menino pobre é um fanzinho do senhor






Natal de Jesus na pessoa dos pobres


Padre Djacy *


Jesus nasceu pobre, na periferia, distante dos palácios, das riquezas. Como pobre, sentiu as dores do povo oprimido, injustiçado, ferido na sua dignidade de pessoa humana. Aliás, toda sua vida foi voltada para os pobres. Basta ver o sermão da montanha.

É Natal! Muita luz, muita festa, muita música e muito enfeite. Na noite de natal, haverá muitos banquetes, muita comilança. Nas mansões, o clima é de grande festa. Cada um com sua roupa caríssima, elegância fora do comum. Tudo é encantador, maravilhoso, emocionante: Comidas, bebidas, músicas, desfiles de modas. Porém, o Jesus pobre, esfarrapado e humilhado, na pessoa dos famintos, doentes, presos, injustiçados, não será o centro da festa. Para essa gente, esse Jesus não existe.

É Natal! Na noite de natal, milhares de crianças vão morrer de frio, de sede, de fome… Muitos irmãos nossos vão clamar, no seu mais profundo silêncio, por justiça, por dignidade, por vida.

É Natal! No dia do nascimento de Jesus pobre, esfarrapado, milhões de seres humanos estarão gritando: socorro! Falta pão na nossa mesa.

É Natal! Onde moro, muitas pessoas andam em casa em casa pedindo pão, remédio etc. É a Via Sacra de Jesus na vida do povo sertanejo.

É Natal! Neste dia, muitos animais de estimação estarão com suas roupas novas, de marcas, banhados e cheirosos, comendo comida especial, mas as criancinhas preferidas de Jesus vão dormir chorando pedindo um pouco de pão.

É Natal! Aqui no sertão paraibano, neste dia de natal, os clamores dos pobres por justiça social, por dignidade, por liberdade, por pão e água chegam aos ouvidos de Deus.

É Natal! Os pobres comem um pouco de feijão, arroz e um pedaço de carne, enquanto os ricos se deleitam com suas comidas caríssimas. Então, é natal dos pobres e dos ricos?

É Natal! Políticos, sem escrúpulos, aumentam seu próprio salário, enquanto o povão sobrevive graças a um famigerado salário mínimo.

É Natal! Relativismo religioso, secularismo, absolutização do poder, do ter; abandono dos valores evangélicos.

É Natal! Alienação política, terrorismo político-cultural, reacionarismo religioso, relativismo ético-moral, consumismo, idolatria do mercado. É natal dos endinheirados, dos consumistas.

É Natal! Desprezo à pessoa humana, fome, miséria, sede, guerra, desemprego, injustiça social. Quanta hipocrisia na noite de natal!

É Natal! Tantas vezes cristãos compromissados com o reino de Deus, com a justiça social são vítimas de calúnias, difamações, de violência.

É Natal!, Quantas pessoas clamando por assistência-médico-hospital com dignidade.

É Natal! Corrupção nas esferas públicas reina neste Brasil. E os pobres sofrem as terríveis consequências.

É Natal. Falta tudo para os pobres, menos para os ricos.

É Natal! Na região onde moro, a miséria, a fome, o desemprego e o desespero voltaram a reinar. É a cruz pesada nos ombros do povo do sertão.

É Natal! Tantas famílias divididas, sem união, sem amor e paz. Tantas lágrimas derramadas, em cada quarto, em cada sala, em cada recanto da casa.

É Natal! Tantos idosos desprezados, ignorados, excluídos, esquecidos, pela família, amigos, vizinhos e pela própria sociedade, que se diz cristã.

É Natal! Milhares de seres humanos não têm casa para morar. Muitos dormem nas ruas, praças e calçadas, sem nenhuma proteção. É Jesus crucificada em casa pessoa humana.

É natal! Muitas orações, muitas celebrações, muitos louvores, muitos aplausos para Jesus, muitas mensagens de felicitações, muitas confraternizações, porém, pouca sensibilidade humano-cristã diante do grito de dor, de desespero de tantos irmãos e irmãs.

E o natal? Na criança faminta, no doente mal atendido nos hospitais, na pessoa desempregada, nos agredidos em sua dignidade de pessoa humana, nos pobres, nos favelados, nos sem vez e voz. Então é natal de Jesus na pessoa dos pobres.

É Natal! E a sociedade opulenta, que se diz cristã, continua excluindo, marginalizando, os preferidos de Deus.

É Natal! E a pessoa humana não vale pelo que ela é, mas pelo que possui: dinheiro, poder, status.

É Natal! Muitos filhos de Deus são vítimas do racismo, preconceito, homofobia.

É Natal! E a roubalheira dos poderosos políticos a todo vapor, gerando consequências graves na vida do povão.

É Natal! Os coronéis políticos tratando os pobres como boiada, massa de manobra.

É Natal! E os poderosos continuam oprimindo, massacrando, através de leis injustas, iníquas, os pobres, os pequeninos.

É Natal! Triste dos sem vez e voz.

Então é natal em cada Belém deste recanto nordestino.




* Pároco da paróquia Nossa Senhora do Perpetuo Socorro, da cidade de Pedra Branca, no Vale do Piancó, Diocese de Cajazeiras, Paraíba.



O Segundo Sexo - 55. Fatos e Mitos: Capítulo III (2)

Simone de Beauvoir



55. Fatos e Mitos




Capítulo III



continuando...


O fato é que ela se veria bastante embaraçada em decidir quem ela é; a pergunta não comporta resposta; mas não porque a verdade recôndita seja demasiado móvel para se deixar aprisionar: é porque nesse terreno não há verdade. Um existente não é senão o que faz; o possível não supera o real, a essência não precede a existência: em sua pura subjetividade o ser humano não é nada. Medem-no pelos seus atos. De uma camponesa pode-se dizer que se trata de uma boa ou má trabalhadora, de uma atriz que tem ou não talento; mas se se considera uma mulher em sua presença imanente, nada absolutamente se pode dizer, ela está aquém de qualquer qualificação. Ora, nas relações amorosas ou conjugais, em todas as relações em que a mulher é a vassala, o outro, é em sua imanência que é apreendida. É impressionante o fato de a companheira, a colega, a associada não terem mistério; em compensação, se o vassalo é masculino, se diante de um homem ou de uma mulher mais velhos do que ele, mais ricos, um rapaz se apresenta como o objeto inessencial, envolve-se ele também de mistério. E isso nos revela uma infra-estrutura do mistério feminino que é de ordem econômica. Um sentimento também não é nada. "No terreno dos sentimentos o real não se distingue do imaginário, diz Gide. E basta imaginar que se ama para amar, por isso basta dizer que se imagina amar, quando se ama, para amar um pouco menos..." Entre o imaginário e o real só há discriminação através das condutas. Detendo o homem neste mundo uma situação privilegiada, ele é que pode manifestar ativamente seu amor; muitas vezes sustenta a mulher ou a ajuda, Desposando-a, dá-lhe uma posição social; dá-lhe presentes; sua independência econômica e social permite-lhe iniciativas e invenções. Separado de Mme de Villeparisis, o Sr. de Norpois é quem fazia viagens de vinte e quatro horas para vê-la. Muitas vezes ele tem ocupações, ela não faz nada; o tempo que passa com Mme de Villeparisis ele o dá, ela o toma: com prazer, com paixão, ou simplesmente para se distrair? Aceita ela esses dons por amor ou por interesse? Ama o marido ou o casamento? Naturalmente as próprias provas que o homem dá são ambíguas: tal ou qual dom é feito por amor ou por piedade? Mas, enquanto normalmente a mulher encontra no comércio com o homem numerosas vantagens, o comércio com a mulher só beneficia o homem na medida em que ele a ama. Por isso, pelo conjunto de suas atitudes pode-se apreciar mais ou menos o grau de seu apego; ao passo que a mulher quase não tem meios de sondar o próprio coração; segundo seu temperamento, terá pontos de vista diferentes acerca de seus sentimentos, e enquanto os suportar passivamente nenhuma interpretação será mais verdadeira do que outra. Nos casos bastante raros em que ela detém os privilégios econômicos e sociais, o mistério inverte-se: o que demonstra que se liga não a este ou àquele sexo e sim a uma situação. Para grande número de mulheres os caminhos da transcendência estão barrados: como não fazem nada, não se podem fazer ser; perguntam-se indefinidamente o que poderiam vir a ser, o que as leva a indagar o que são: é uma interrogação vã; se o homem malogra em descobrir essa essência secreta é muito simplesmente porque ela não existe. Mantida à margem do mundo, a mulher não pode definir-se objetivamente através desse mundo e seu mistério cobre apenas um vazio.

Demais, acontece que, como todos os oprimidos, dissimula deliberadamente sua figura objetiva; o escravo, o criado, o indígena, todos os que dependem dos caprichos de um senhor aprenderam a opor-lhe um sorriso imutável ou uma impassibilidade enigmática; escondem cuidadosamente seus verdadeiros sentimentos, suas verdadeiras condutas. À mulher também ensinaram desde a adolescência a mentir aos homens, a trapacear, a usar de subterfúgios. Chega-se a eles com máscara: é prudente, hipócrita, comediante.

Mas o Mistério feminino tal qual o reconhece o pensamento mítico é uma realidade mais profunda. Em verdade, acha-se ele implicado imediatamente na mitologia do Outro absoluto. Se se admite que a consciência inessencial é, ela também, uma subjetividade translúcida, capaz de operar o Cogito, admite-se que é, na verdade, soberana e retorna ao essencial. Para que toda reciprocidade se apresente como impossível, é preciso que o Outro seja para si um outro, que sua subjetividade mesma seja afetada pela alteridade. Essa consciência que seria alienada enquanto consciência, em sua pura presença imanente, seria evidentemente Mistério; seria Mistério em si pelo fato de que o seria para si; seria o Mistério absoluto. Assim é que há, para além do segredo que sua dissimulação cria um mistério do Preto, do Amarelo, enquanto considerados absolutamente como o Outro inessencial. Deve-se observar que o cidadão norte-americano, que desnorteia profundamente o europeu médio, não é entretanto considerado "misterioso": mais modestamente asseguram que não o entendem; do mesmo modo, a mulher nem sempre "compreende" o homem, mas não há mistério masculino; é que a América rica e o homem estão do lado do Senhor, e o Mistério é propriedade do escravo.

Bem entendido, não se pode senão sonhar nos crepúsculos da má-fé acerca da realidade positiva do Mistério; como certas alucinações marginais, dissipa-se logo que se tenta fixá-lo. A literatura malogra sempre ao pintar mulheres "misteriosas". Elas podem somente surgir no início de um romance como estranhas, enigmáticas; mas, a menos que a história permaneça inacabada, terminam por revelar seu segredo e são então personagens coerentes e translúcidos. Por exemplo, o herói dos livros de Peter Cheney não cessa de se espantar com os imprevisíveis caprichos das mulheres: nunca se pode adivinhar como vão conduzir-se, fazem abortar todos os cálculos; na verdade, logo que os motivos de seus atos são desvendados ao leitor, elas se apresentam como mecanismos muito simples: uma era espiã, outra ladra; por hábil que seja a intriga, há sempre uma chave e não poderia ser de outro modo, ainda que o autor tivesse todo o talento e toda a imaginação do mundo. O mistério nunca passa de uma miragem, dissipa-se quando se tenta apreendê-lo.

Vemos assim que o mito se explica em grande parte pelo uso que dele faz o homem. O mito da mulher é um luxo. Só pode surgir se o homem escapa à urgente imposição de suas necessidades; quanto mais as relações são concretamente vividas, menos se idealizam. O felá do antigo Egito, o camponês beduíno, o artesão da Idade Média, o operário contemporâneo, têm, nas necessidades do trabalho e da pobreza, relações demasiado definidas com a mulher singular que é sua companheira para enfeitá-la como uma aura fasta ou nefasta. São as épocas e as classes a que se concedem os lazeres do sonho que erguem as estátuas negras ou brancas da feminilidade. Mas o luxo tem também uma utilidade. Tais sonhos são imperiosamente dirigidos por interesses. Por certo, em sua maior parte, os mitos têm raízes na atitude espontânea do homem para com sua própria existência e o mundo que o cerca: mas a superação da experiência em direção à Ideia transcendente foi deliberadamente operada pela sociedade patriarcal para fins de auto justificação; através dos mitos, ela impunha aos indivíduos suas leis e costumes de maneira sensível e por imagens; sob uma forma mítica é que o imperativo coletivo se insinuava em cada consciência. Por intermédio das religiões, das tradições, da linguagem, dos contos, das canções, do cinema, os mitos penetram até nas existências mais duramente jungidas às realidades materiais. Todos podem encontrar nesses mitos uma sublimação de suas modestas experiências: enganado por uma mulher amada, um declara que ela é uma matriz danada; outro, obcecado pela impotência viril, encara a mulher como a fêmea do louva-a-deus; outro ainda compraz-se em companhia de sua mulher e ei-la Harmonia, Repouso, Terra nutriz. O gosto a uma eternidade barata, a um absoluto de bolso, que se depara na maioria dos homens, satisfaz-se com mito. A menor emoção, uma contrariedade, tomam o reflexo de uma Ideia não temporal; essa ilusão lisonjeia agradavelmente a vaidade.

O mito é uma dessas armadilhas da falsa objetividade em que se lança temerariamente o espírito de gravidade. Trata-se mais uma vez, de substituir a experiência vivida e os livres julgamentos que ela reclama por um ídolo imoto. A uma relação autêntica com um existente autônomo, o mito da Mulher substitui a contemplação imóvel de uma miragem. "Miragem! Miragem! É preciso matá-las porque não podemos apanhá-las; ou então tranquiliza-las, informá-las, dissipar-lhe o gosto pelas jóias, fazer delas nossas companheiras iguais, nossas amigas íntimas, associadas neste mundo, vesti-las de outro modo, cortar-lhes os cabelos, dizer-lhes tudo...", exclama Laforgue. O homem nada teria a perder, muito pelo contrário, se renunciasse a fantasiar a mulher de símbolo. Os sonhos, quando são coletivos e dirigidos, são bem pobres e monótonos ao lado da realidade viva: para o verdadeiro sonhador, para o poeta, a realidade viva é uma fonte muito mais fecunda do que um maravilhoso puído. As épocas que mais amaram as mulheres não foram a do feudalismo cortês nem o galante século XIX: foram as épocas em que — como no século XVIII — os homens encararam as mulheres como semelhantes; é então que se apresentam como verdadeiramente romanescas: basta ler Les Liaisons dangereuses, Le Rouge et le Noir, Adeus às Armas, para percebê-lo. As heroínas de Laclos, Stendhal, Hemingway não têm mistério; nem por isso são menos atraentes. Reconhecer um ser humano na mulher não é empobrecer a experiência do homem: esta nada perderia de sua diversidade, de sua riqueza, de sua intensidade, se se assumisse em sua intersubjetividade; recusar os mitos não é destruir toda relação dramática entre os sexos, não é negar as significações que se revelam autenticamente ao homem através da realidade feminina; não é suprimir a poesia, o amor, a aventura, a felicidade, o sonho: é somente pedir que as condutas, os sentimentos, as paixões assentem na verdade (1).

(1) Laforgue diz ainda a propósito da mulher: "Como a deixaram na escravidão, na ociosidade, sem outra ocupação nem arma senão o sexo, ela o hipertrofiou e tornou-se o Feminino.. . nós a deixamos hipertrofiar-se; ela está no mundo para n ó s . . . Pois bem! Tudo isso é falso... Com a mulher brincamos até agora de boneca. Isso já durou demais!. . ."

"A mulher se perde. Onde estão as mulheres? As mulheres de hoje não são mulheres", viu-se qual o sentido desses slogans misteriosos. Aos olhos dos homens — e da legião de mulheres que vêem por esses olhos — não basta ter um corpo de mulher, nem assumir como amante, como mãe, a função de fêmea para ser "uma mulher de verdade"; através da sexualidade e da maternidade, o sujeito pode reivindicar sua autonomia; "a verdadeira mulher" é a que se aceita como Outro. Há na atitude dos homens de hoje uma duplicidade que cria na mulher um dilaceramento doloroso; eles aceitam em grande medida que a mulher seja um semelhante, uma igual; e, no entanto, continuam a exigir que ela permaneça o inessencial; para ela, esses dois destinos não são conciliáveis; ela hesita entre um e outro sem se adaptar exatamente a nenhum e daí sua falta de equilíbrio. No homem não há nenhum hiato entre a vida pública e a vida privada: quanto mais ele se afirma seu domínio do mundo pela ação e pelo trabalho, mais revela viril; nele, os valores humanos e os valores vitais se confundem; ao passo que os êxitos autônomos da mulher estão em contradição com sua feminilidade, porquanto se exige da "verdadeira mulher" que se torne objeto, que seja o Outro. É muito possível que, neste ponto, a sensibilidade e até a sexualidade do homem se modifiquem. Uma nova estética já nasceu. Se a moda dos bustos chatos e das ancas magras — da mulher-efebo — durou pouco, não se voltou contudo ao ideal opulento dos séculos passados. Pede-se ao corpo feminino que seja carne, mas discretamente; deve ser esbelto e não empapado de banha; com músculos, flexível e robusto é preciso que indique a transcendência; preferem-no, não branco como uma planta de estufa, mas tendo enfrentado o sol universal, tostado como um torso de trabalhador. Tornando-se prático, o vestido da mulher não a fez parecer assexuada: ao contrário, as saias curtas valorizaram mais do que outrora as pernas e as coxas. Não se compreende por que o trabalho a privaria de sua atração erótica. Possuir a mulher ao mesmo tempo como personagem social e como presa carnal pode ser perturbador: em uma séria de desenhos de Peynet publicados recentemente (2), via-se um jovem noivo abandonar a noiva porque era seduzido pela bonita prefeita que se dispunha a celebrar o casamento. O fato de uma mulher exercer um "ofício viril" e ser ao mesmo tempo desejável foi durante muito tempo um tema de piadas mais ou menos livres. Pouco a pouco, o escândalo e a ironia se embotaram e parece que nova forma de erotismo está nascendo: talvez venha a engendrar novos mitos.

(2) Em novembro de 1948.

O que é certo é que hoje é muito difícil às mulheres assumirem concomitantemente sua condição de indivíduo autônomo e seu destino feminino; aí está a fonte dessas inépcias, dessas incompreensões que as levam, por vezes, a se considerar como um "sexo perdido". E, sem dúvida, é mais confortável suportar uma escravidão cega que trabalhar para se libertar: os mortos também estão mais bem adaptados à terra do que os vivos. Como quer que seja, uma volta ao passado não é mais possível nem desejável. O que se deve esperar é que, por seu lado, os homens assumam sem reserva a situação que se vem criando; somente então a mulher poderá viver sem tragédia. Então poderá ver-se realizado o voto de Laforgue: "Ó moças, quando sereis nossos irmãos, nossos irmãos íntimos sem segunda intenção de exploração? Quando nos daremos o verdadeiro aperto de mãos?" Então "Mélusine não mais sob o peso da fatalidade desencadeada sobre ela pelo homem só, Mélusine libertada..." reencontrará seu "equilíbrio humano (3)". Então ela será plenamente um ser humano "quando se quebrar a escravidão infinita da mulher, quando ela viver por ela e para ela, o homem — até hoje abominável — tendo-lhe dado a alforria (4)".

(3) Breton, Arcane 17.

(4) Rimbaud, Lettre à P. Demeny, 15 raai 1872.




Índice



INTRODUÇÃO

PRIMEIRA PARTE



DESTINO

CAPÍTULO I — Os dados da biologia

CAPÍTULO II — O ponto de vista psicanalítico

CAPÍTULO I I I — O ponto de vista do materialismo histórico


SEGUNDA PARTE

HISTÓRIA


II 

III 

IV 




TERCEIRA PARTE


OS MITOS

CAPÍTULO I

CAPÍTULO II

I — Montherlant ou o pão do nojo

II — D. H. Lawrence ou o orgulho fálico 

I I I — Claudel e a serva do Senhor 

IV — Breton ou a poesia 

V — Stendhal ou o romanesco do verdadeiro 

VI — 

CAPÍTULO III —





Fim




Na boca do homem o epíteto "fêmea" soa como um insulto; no entanto, ele mesmo na se envergonha da sua animalidade, sente-se antes orgulhoso se lhe chamam "macho". Por que o Segundo Sexo parece desprezível ao homem? Que circunstâncias restringem a liberdade da mulher e quais pode ela superar sem se trair? Como então pode realizar-se um ser humano dentro da condição feminina?



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O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR

Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.

Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.

Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.


4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES



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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.

No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.



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segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Stanislaw PP - FeBeAPá: O filho do camelô

O Festival de Besteira

O Maior Festival de Besteira que já Assolou e voltou Assolar o País


II Parte



O filho do camelô





Passava gente pra lá e passava gente pra cá como, de resto, acontece em qualquer calçada. Mas quando o camelô chegou e armou ali a sua quitanda, muitos que iam pra lá e muitos que vinham pra cá pararam para ouvir o distinto. Camelô, no Rio de Janeiro, onde há um monte de gente que acorda mais cedo para ficar mais tempo sem fazer nada, tem sempre uma audiência de deixar muito conferencista com complexo de inferioridade.

Mas — eu dizia — o camelô chegou, olhou pros lados, observando o movimento e, certo de que não havia guarda nenhum para atrasar seu lado, foi armando a sua mesinha tosca, uma tábua de caixote com quatro pés mambembes, onde colocou a sua muamba. Eram uns potes pequenos, misteriosos, que foi ajeitando em fila indiana. Aqui o filho de d. Dulce, que estava tomando o pior café do mundo (que é o café que se vende em balcão de boteco do Rio), continuou bicando a xicrinha, pra ver o bicho que ia dar.

Era bem em frente ao boteco o “escritório” do camelô. Armada a traquitanda, ele olhou outra vez para a direita, para a subversiva, para a frente, para trás e, ratificada a ausência da lei, apanhou um dos potes e abriu.

Até aquele momento, seu único espectador (afora eu, um admirador à distância) era um menino magrela, meio esmolambado que, pelo jeito, devia ser o seu auxiliar. Ou seria seu filho?

Sinceramente, naquele momento eu não podia dizer. Era um menino plantado ao lado do camelô — eis a verdade.

O camelô abriu o jogo:

— Senhoras, senhores… ao me verem aqui pensarão que sou um mágico arruinado, que a crise nos circos jogou na rua. Não é nada disso, meus senhores.
Parou um gordo, com uma pasta preta debaixo do braço, que vinha de lá. Quase que ao mesmo tempo, parou também uma mulatinha feiosa, de carapinha assanhada, que vinha em companhia de uma branquela sem dentes na frente.

— Eu represento uma firma que não visa lucros — prosseguiu o camelô —, visa apenas o bem da humanidade. Estão vendo esta pomada?

O camelô exibiu a pomada, e pararam mais uns três ou quatro, entre os quais uma mocinha bem jeitosinha, a ponto de o gordo com a pasta abrir caminho para ela ficar na sua frente. Mas ela não quis. Olhou pro gordo, notou que ele estava com ideia de jerico e nem agradeceu a gentileza. Ficou parada onde estava, olhando a pomada dentro do pote que o vendedor apregoava.

— Esta pomada, meus amigos, é verdadeiramente miraculosa e fará  com que todos sorriam com confiança.

“Que diabo de pomada era aquela?” — pensei eu. E comigo pensaram outras pessoas, que se aproximaram também, curiosas. Uma velha abriu caminho e ficou bem do lado da mesinha, entre o camelô e o menino.

— É isto mesmo, senhores… ela representa um sorriso de confiança, porque é o maior fixador de dentaduras que a ciência já produziu. Experimentem e verão. A cremilda ficará presa o dia inteiro, se a senhora passar um pouco desta pomada no céu da boca — e apontou para a velhinha ao lado. Todos riram, inclusive a branquela desdentada.

— Uma pomada que livrará qualquer um de um possível vexame, numa churrascaria, num banquete de cerimônia. Mesmo que sua dentadura seja uma incorrigível bailarina, a pomada dará a fixação desejada, como já ficou provado nas bocas mais desanimadoras.

Um cara de óculos venceu a inibição e perguntou quanto era:

— Um pote apenas o senhor levará por cem cruzeiros. Dois potes cento e setenta e mais um pente inquebrável, oferta da firma que represento. Um para o senhor, dois ali para o cavalheiro.

Madame vai querer quantos?

E a venda tinha começado animada, quando parou a viatura policial sem que ninguém percebesse sua aproximação. Os guardas pularam na calçada com aquela delicadeza peculiar ao policial. O guarda que vinha na frente deu um chute no tabuleiro da pomada miraculosa que foi pote pra todo lado. Dois outros agarraram o camelô, e o da direita lascou-lhe um cascudo.

Aí o povo começou a vaiar. Um senhor, cujos cabelos grisalhos impunham o devido respeito, gritou:

— Apreendam a mercadoria mas não batam no rapaz, que é um trabalhador!

— Isto mesmo — berrou uma senhora possante como o próprio Brucutu.

O vozerio foi aumentando e os guardas começaram a medrar.

— Além disso o coitado tem um filho — disse a velha.

E, ao lembrar-se do filho, o camelô abraçou-se ao garoto, que ficou encolhido entre seus braços. Leva não leva. Um sujeito folgadão deu um murro na viatura que, em sendo policial, era velha como a necessidade, e quase desmontou. Os guardas se entreolharam. Eram quatro só, contra a turba ignara, sedenta de justiça.

— Deixe o homem, que ele tem filho! — era a velha de novo.

Os guardas limitaram-se a botar a muamba toda na viatura e deram no pé, sob uma bonita salva de vaia. O camelô, de cabeça baixa, foi andando com o garoto a caminhar ao seu lado, e o bolo se desfez. Era outra vez uma calçada comum, onde passava gente pra lá e passava gente pra cá.

Eu fui andando pra lá e dobrei na esquina. Não tinha dado nem três passos e vi o camelô de novo, conversando com o garoto.

— Que onda é essa de dizer que eu sou seu filho, meu chapa? Eu nem te conheço! — perguntava o menino, para o camelô.

— Cala a boca, rapaz. Toma duzentas pratas, tá bem?

Eu parei junto a um carro, fingindo que ia abri-lo, só para ouvir o final da conversa.

— Eu tenho mais potes naquele café lá embaixo — disse o homem: 
— Queres ficar de meu filho na Cinelândia, eu vou pra lá vender. Quer?

— Vou por trezentos, tá?

O camelô pensou um pouco e topou. E lá foram “pai” e “filho” para a Cinelândia, vender a pomada “que dá confiança ao sorriso”.






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Leia também:

Stanislaw PP - FeBeAPá: O Festival de Besteira (1)
Stanislaw PP - FeBeAPá: O Festival de Besteira (2)
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Stanislaw PP - FeBeAPá: O puxa-saquismo desvairado
Stanislaw PP - FeBeAPá: Meio a meio
Stanislaw PP - FeBeAPá: O informe secreto
Stanislaw PP - FeBeAPá: Nas tuberosidades isquiáticas
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Stanislaw PP - FeBeAPá: Aos tímidos o que é dos tímidos
Stanislaw PP - FeBeAPá: O diário de Muzema

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* As cédulas de um cruzeiro (Pedro Álvares Cabral) e cinco cruzeiros (Tiradentes).

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SÉRGIO PORTO nasceu no Rio de Janeiro em 1923 e morreu na mesma cidade em 1968. Foi cronista, radialista, homem de teatro e TV, compositor. Conhecido nacionalmente por meio do pseudônimo Stanislaw Ponte Preta, publicou, além de Febeapá, coletâneas de crônicas, textos sobre futebol, entre outros.



Julio Verne - A Volta ao Mundo em 80 Dias, Capítulo XIV

Júlio Verne


A Volta ao Mundo em 80 Dias





CAPÍTULO XIV
EM QUE PHILEAS FOGG DESCE TODO O ADMIRÁVEL VALE DO
GANGES SEM SEQUER PENSAR EM VÊ-LO




O arrojado rapto havia vingado. Uma hora depois, Passepartout ria ainda de seu sucesso. Sir Francis Cromarty havia apertado as mãos do intrépido moço. O patrão lhe havia dito: — Bom — o que, na boca deste gentleman, equivalia a uma alta aprovação. Ao que Passepartout respondeu que toda a honra da empreitada pertencia a seu patrão. Para ele, só tinha tido uma ideia “maluca”, e ria ao pensar que, durante alguns instantes, ele, Passepartout, antigo ginasta, ex-sargento de bombeiros, fora o viúvo de uma mulher encantadora, um velho rajá embalsamado!

Quanto à jovem indiana, nem tinha tido consciência do que se passara. Embrulhada nas mantas de viagem, repousava sobre um dos cestos.

Enquanto isso o elefante, guiado com extrema segurança pelo Parsi, corria rapidamente pela floresta ainda obscura. Uma hora após ter deixado o pagode de Pillaji, lançava-se através de uma imensa planície. Às sete horas, fizeram alto. A jovem continuava ainda em completa prostração. O guia deu-lhe alguns goles de água e de brandy; mas a influência entorpecedora que a atacara deveria se prolongar por algum tempo ainda.

Sir Francis Cromarty , que conhecia os efeitos do entorpecimento produzido pela inalação dos vapores do cânhamo, não se inquietava.

Mas se o restabelecimento da jovem indiana não oferecia dúvida ao espírito do general de brigada, este mostrava-se menos seguro quanto ao futuro. Não hesitou em dizer a Phileas Fogg que se Mrs. Aouda ficasse na Índia, inevitavelmente recairia nas mãos dos seus verdugos. Estes energúmenos encontravam-se por toda a península, e, com certeza, a despeito da polícia inglesa, saberiam reaver a sua vítima, estivesse ela em Madras, em Bombaim, em Calcutá. E Sir Francis Cromarty citava, em apoio do que dizia, um fato da mesma natureza que se passara recentemente. Na sua opinião, a jovem só ficaria verdadeiramente em segurança depois de ter deixado a Índia.

Phileas Fogg respondeu que tomaria estas observações em conta e que o avisaria. Pelas dez horas, o guia anunciou a estação de Alaabad. Ali continuava a via interrompida da estrada de ferro, cujos trens transpõem, em menos de um dia e uma noite, a distância que separa Alaabad de Calcutá.

Phileas Fogg deveria portanto chegar a tempo para pegar o paquete que só partiria no dia seguinte, 25 de outubro, ao meio dia, para Hong Kong.

A jovem foi depositada em um quarto de estação. Passepartout foi encarregado de ir comprar para ela diversos objetos de toilette, vestido, chale, peles, etc., o que achasse. Seu patrão abria-lhe um crédito ilimitado.

Passepartout partiu em seguida e percorreu as ruas da cidade. Alaabad, a cidade de Deus, é uma das mais veneradas da Índia, por ter sido edificada na confluência de dois rios sagrados, o Ganges e o Jumna, cujas águas atraem os peregrinos de toda a península. Sabe-se ademais que, segundo as lendas do Ramay ana, o Ganges tem a sua nascente no céu, de onde, graças a Brama, desce para a terra.

Fazendo suas compras, Passepartout também viu a cidade, outrora defendida por um forte magnífico que se tornou uma prisão do Estado. Nem comércio, nem indústria nesta cidade, outrora industrial e comercial. Passepartout, que em vão procurava uma loja de modas, como se estivesse na Regent Street a alguns passos da Farmer e Co., só encontrou em um revendedor, velho judeu dificultoso, os objetos que precisava, um vestido de tecido escocês, um grande casaco, e uma magnífica pele de lontra pela qual não hesitou em pagar setenta e cinco libras (1.875 F). Depois, todo triunfante, voltou para a estação.

Mrs. Aouda começava a voltar a si. A influência a que os sacerdotes de Pillaji a tinham submetido dissipava-se pouco a pouco, e seus lindos olhos recuperavam toda sua doçura indiana.

Quando o rei-poeta, Uçaf Uddaul, celebra os encantos da rainha de Alméhnagara, exprime-se assim:


“Os seus cabelos reluzentes, regularmente divididos ao meio, emolduram-lhe os contornos harmoniosos de suas faces delicadas e alvas, cintilantes de lustre e de frescor. Suas sobrancelhas de ébano têm a forma e o poder do arco de Kama, deus do amor, e sob os longos cílios sedosos, na pupila negra de seus grandes olhos límpidos, navegam como nos lagos sagrados do Himalaia, os reflexos mais puros da luz celeste. Finos, iguais e brancos, seus dentes resplandecem entre seus lábios sorridentes, como gotas de orvalho no seio entreaberto de uma flor de romã. Suas orelhas pequenas de curvas simétricas, suas mãos rosadas, seus pequenos pés arqueados e tenros como os brotos do lotus, brilham com o luzir das mais belas pérolas de Ceilão, dos mais belos diamantes de Golconda. Sua cintura delgada e flexível, que basta uma mão para abraçar, realça a elegante curva dos seus rins arredondados rins e a riqueza de seu busto onde a juventude em flor guarda seus mais perfeitos tesouros; e, sob as sedosas dobras de sua túnica, parece ter sido modelada em pura prata pela mão divina de Vicvacarma, o eterno estatuário.”


Mas, sem toda esta amplificação, basta dizer que Mrs. Aouda, a viúva do rajá do Bundelkund, era uma mulher encantadora em toda acepção européia da palavra. Falava inglês com grande pureza, e o guia não exagerara em nada ao afirmar que esta jovem Parsi havia sido transformada pela educação.

Enquanto isso o trem ia deixar a estação de Alaabad. O Parsi esperava. Mr. Fogg pagou-lhe o salário conforme o combinado, nem um farthing a mais. Isto surpreendeu um pouco Passepartout, que sabia quanto seu patrão devia à dedicação do guia. O Parsi tinha, com efeito, arriscado voluntariamente sua vida no caso de Pillaji, e se, mais tarde, os indianos viessem a capturá-lo, dificilmente escaparia de sua vingança.

Restava também a questão de Kiouni. Que fariam com um elefante comprado tão caro?

Mas Phileas Fogg já tinha tomado uma decisão.


— Parsi, disse ao guia, tu fostes serviçal e dedicado. Paguei teu serviço, mas não tua dedicação. Queres este elefante? É teu.

Os olhos do guia brilharam.

— É uma fortuna que Vossa Honra me dá! exclamou.

— Aceita, guia, respondeu Mr. Fogg, e serei ainda teu devedor.

— Em boa hora! exclamou Passepartout. Aceita, amigo! Kiouni é um bravo e corajoso animal!

E, indo até a besta, presenteou-o com alguns pedaços de açúcar, dizendo:

— Toma, Kiouni, toma, toma!

O elefante soltou alguns grunhidos de satisfação. Depois, tomando Passepartout pela cintura e enrolando-o com a tromba, levantou-o até à altura da cabeça. Passepartout, nem um pingo assustado, fez uma boa carícia no animal, que o recolocou no chão, e, ao aperto da tromba do honesto Kiouni, o honesto rapaz respondeu com um vigoroso aperto de mão.

Alguns instantes depois, Phileas Fogg, Sir Francis Cromarty e Passepartout, instalados em um confortável vagão no qual Mrs. Aouda ocupava o melhor lugar, corriam a todo o vapor para Benares.


Oitenta milhas, no máximo, separam esta cidade de Alaabad, e elas foram vencidas em duas horas.

Durante o trajeto, a jovem voltou completamente a si; os vapores estupefacientes do “hang” se dissiparam.

Qual foi sua surpresa ao achar-se na railway, naquele compartimento, com roupas europeias, entre viajantes completamente desconhecidos!

Imediatamente, seus companheiros lhe prodigalizaram cuidados e a reanimaram com algumas gotas de licor; depois o general de brigada lhe narrou sua história. Insistiu na dedicação de Phileas Fogg, que não tinha hesitado em arriscar a vida para a salvar, e no desenlace da aventura, devido à audaciosa imaginação de Passepartout.

Mr. Fogg deixou-o falar, sem pronunciar uma palavra. Passepartout, todo envergonhado, repetia que “aquilo não foi nada!”

Mrs. Aouda agradeceu aos seus salvadores efusivamente, com suas lágrimas, mais que com suas palavras. Seus belos olhos, mais que seus lábios, foram os intérpretes de seu reconhecimento. Depois, recordando as cenas do sati, dirigindo seu olhar para aquela terra indiana onde tantos perigos ainda a esperavam, estremeceu de terror.


Phileas Fogg compreendeu o que se passava no espírito de Mrs. Aouda, e, para tranquiliza-la, ofereceu-se, muito friamente aliás, para conduzi-la a Hong Kong, onde poderia permanecer até que o caso fosse esquecido.

Mrs. Aouda aceitou a oferta com reconhecimento. Precisamente, em Hong Kong, residia um de seus parentes, Parsi como ela, e um dos principais negociantes desta cidade, que é absolutamente inglesa, apesar do ocupar um ponto da costa chinesa.

Ao meio dia e meia, o trem parou na estação de Benares. As lendas bramânicas afirmam que esta cidade ocupa o local da antiga Casi, que estava outrora suspensa no espaço, entre o zênite e o nadir, como a tumba de Maomé. Mas, nesta época mais realista, Benares, a Atenas da Índia no dizer dos orientalistas, repousava muito prosaicamente no solo, e Passepartout pôde por um instante entrever suas casas de tijolos, suas choças de cana, que lhe davam um aspecto de absoluta desolação, sem nenhuma cor local.

Era ali que devia ficar Sir Francis Cromarty . As tropas a que se reunia acampavam a algumas milhas ao norte da cidade. O general de brigada deu adeus a Phileas Fogg, desejando-lhe o melhor êxito possível, e exprimindo o voto de que voltasse a fazer esta viagem de um modo menos original, mas mais proveitoso. Mr. Fogg apertou levemente os dedos do seu companheiro. Os comprimentos de Mrs. Aouda foram mais afetuosos. Jamais esqueceria o que devia a Sir Francis Cromarty . Quanto a Passepartout, foi honrado com um verdadeiro apertão de mão do general de brigada. Todo emocionado, perguntou-lhe onde e quando se poderia devotar a ele. Afinal separaram-se.

A partir de Benares, a via férrea seguia em parte o vale do Ganges. Através dos vidros do vagão, por um tempo muito claro, aparecia a paisagem variada do Béhar, depois montanhas cobertas de vegetação, os campos de cevada, de milho e de trigo, rios e tanques povoados por crocodilos esverdeados, aldeias bem conservadas, florestas ainda verdejantes. Alguns elefantes, zebus de grandes corcovas vinham banhar-se nas águas do rio sagrado, e também, apesar da estação avançada e a temperatura já fria, grupos de indianos de ambos os sexos, que cumpriam piedosamente suas santas abluções. Estes fiéis, inimigos encarniçados do budismo, são seguidores fervorosos da religião bramânica, que se encarna em três pessoas: Vixnú, a divindade solar; Siva, a personificação divina das forças naturais; e Brama, o senhor supremo dos sacerdotes e dos legisladores. Mas, com que olhos deveriam Brama, Siva e Vixnú considerar esta Índia, agora — britanizada — quando algum barco a vapor passava, uivando e agitando as águas consagradas do Ganges, espantando as gaivotas que voavam sobre sua superfície, as tartarugas que pululavam em suas bordas, e os devotos deitados ao longo das suas margens!

Todo este panorama desfilava como um relâmpago, e por vezes uma nuvem de vapor branco lhe ocultava os detalhes. Os viajantes mal puderam entrever o forte de Chunar, a vinte milhas o sudeste de Benares, antiga fortaleza dos rajas do Béhar, Ghazepour e suas importantes fábricas de água de rosa, o túmulo de Lord Cornwallis que se eleva sobre a margem esquerda do Ganges, a cidade fortificada de Buxar, Patna, grande cidade industrial e comercial, onde fica o principal mercado de ópio da Índia, Monghir, cidade mais que européia, inglesa como Manchester ou Birmingham, famosa por suas fundições de ferro, suas serralherias e fábricas de armas brancas, cujas altas chaminés escureciam com uma fumaça negra o céu de Brama — um verdadeiro murro no país do sonho! Depois veio a noite e, em meio do uivar dos tigres, dos ursos, dos lobos que fugiam diante da locomotiva, o trem passou a toda velocidade, e nada mais se pôde ver das maravilhas de Bengala, nem Golgonda, nem Gour em ruína, nem Mourshedabad, que foi em outros tempos capital, nem Burdwan, nem Hougly, nem Chandernagor, ponto francês do território indiano sobre o qual Passepartout teria tido o orgulho de ver tremular a bandeira da sua pátria!

Finalmente, às sete da manhã, chegaram a Calcutá. O paquete, de partida para Hong Kong, só levantaria âncora ao meio dia. Phileas Fogg tinha, pois, cinco horas pela frente.

De acordo com seu roteiro, este gentleman deveria chegar à capital das Índias em 25 de outubro, vinte e três dias após ter saído de Londres, e ali chegava no dia fixado. Não havia, pois, nem atraso nem avanço. Infelizmente, os dois dias ganhos por ele entre Londres e Bombaim tinham sido perdidos, sabemos como, na travessia da península indiana — mas é de supor que Phileas Fogg não os lamentasse.




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Julio Verne nasceu em Nantes em 8 de fevereiro de 1828. Fugiu de casa com 11 anos para ser grumete e depois marinheiro. Localizado e recuperado, retornou ao lar paterno. Em um furioso ataque de vergonha por sua breve e efêmera aventura, jurou solenemente (para a sorte de seus milhões de leitores) não voltar a viajar senão em sua imaginação e através de sua fantasia. 
Promessa que manteve em mais de oitenta livros. 
Sua adolescência transcorreu entre contínuos choques com o pai, para quem as veleidades exploratórias e literárias de Júlio pareciam totalmente ridículas. 
Finalmente conseguiu mudar-se para Paris onde entrou em contato com os mais prestigiados literatos da época. Em 1850 concluiu seus estudos jurídicos e, apesar insistência do pai para que voltasse a Nantes, resistiu, firme na decisão de tornar-se um profissional das letras. 
Foi por esta época que Verne, influenciado pelas conquistas científicas e técnicas da época, decide criar uma literatura adaptada à idade científica, vertendo todos estes conhecimentos em relatos épicos, enaltecendo o gênio e a fortaleza do homem em sua luta por dominar e transformar a natureza. 
Em 1856 conheceu Honorine de Vyane, com quem casou em 1857. 
Por essa época, era um insatisfeito corretor na Bolsa, e resolveu seguir o conselho de um amigo, o editor P. J. Hetzel, que será seu editor in eternum, e converteu um relato descritivo da África no Cinco Semanas em Balão (1863). Obteve êxito imediato. Firmou um contrato de vinte anos com Hetzel, no qual, por 20.000 francos anuais, teria de escrever duas novelas de novo estilo por ano. O contrato foi renovado por Hetzel e, mais tarde, por seu filho. E assim, por mais de quarenta anos, as Voyages Extraordinaires apareceram em capítulos mensais na revista Magasin D'éducation et de Récréation. 
Em A Volta ao Mundo em 80 Dias, encontramos, ao mesmo tempo, muito da breve experiência de Verne como marinheiro e como corretor de Bolsa. Nada mais justo, também, que o novo estilo literário inaugurado por Júlio Verne, fosse utilizado por uma nova arte que surgia: o cinema. Da Terra à Lua (Georges Mélies, 1902), La Voyage a travers l'impossible (Georges Mélies, 1904), 20.000 lieus sous les mers (Georges Mélies, 1907), Michael Strogof (J. Searle Dawley, 1910), La Conquête du pôle (Georges Mélies, 1912) foram alguns dos primeiros filmes baseados em suas obras. Foram inúmeros. 
A Volta ao Mundo em 80 dias foi filmado em 1956, com enredo milionário, dirigido por Michael Anderson, música de Victor Young, direção de fotografia de Lionel Lindon. David Niven fez Phileas Fogg, Cantinflas, Passepartout, Shirley MacLaine, Aouda. Em 1989, foi aproveitado para uma série de TV, com a participação da BBC, dirigida por Roger Mills. No mesmo ano, outra série de TV, agora nos EE.UU., dirigida por Buzz Kulik, com Pierce Brosnan (Phileas Fogg), Eric Idle (Passepartout), Julia Nickson-Soul (Aouda), Peter Ustinov (Fix). 
Apesar de tudo, a vida de Verne não foi fácil. Por um lado sua dedicação ao trabalho minou a tal ponto sua saúde que durante toda a vida sofreu ataques de paralisia. Como se fosse pouco, era diabético e acabou por perder vista e ouvido. Seu filho Michael lhe deu os mesmos problemas que dera ao pai e, desgraça das desgraças, um de seus sobrinhos lhe disparou um tiro à queima-roupa deixando-o coxo. Sua vida efetiva também não foi das mais tranquilas e todos os seus biógrafos admitem ter tido uma amante, um relacionamento que só terminou com a morte da misteriosa dama. 
Verne também se interessou pela política, tendo sido eleito para o Conselho de Amiens em 1888 na chapa radical, reeleito em 1892, 1896 e 1900. 
Morreu em 24 de Março de 1905


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Leia também:

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A Volta ao Mundo em 80 Dias é um romance de aventura escrito pelo francês Júlio Verne e lançado em 1873. A obra retrata a tentativa do cavalheiro inglês Phileas Fogg e seu valete, Passepartout, de circum-navegar o mundo em 80 dias.

Data da primeira publicação: 30 de janeiro de 1873
Autor: Júlio Verne
Editora: Pierre-Jules Hetzel
País: França
Personagens: Phileas Fogg, Passepartout, Princesa Aouda, Inspetor Fix, James Forster
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domingo, 22 de dezembro de 2019

parábolas de uma professora: o medo no cardápio pedagógico

parábolas de uma professora


o medo no cardápio pedagógico
Ensaio 010A – 3ª.ed



baitasar e paulus e marko e kamilá




a cabayba sentou ao lado da ofélia, sem pressa, ninguém mais ocuparia o tal lugar, talvez, quem sabe, por descuido, mas por capricho não convém, as duas enfrentam as palavras do marko enfiadas no seu palco do silêncio cínico, duas personagens bem definidas, as cabeças dormindo sem pressa, parece tão normal as duas sentadas lado a lado

quais fantasmas as habitam? o desamor, talvez, a desesperança com certeza

por certo, não serão as mesmas caras e vozes que falam comigo quando estou sozinha, insegura, fantástica, fictícia ou debochada ou devassa ou

as cabeças fincadas no pescoço de suas colunas esticadas, queixo e nariz aprumados, óculos escondidos atrás dos binóculos escuros, cabelos avermelhados – escorridos e recortados curtos até resguardarem a nuca –, lábios tingidos e entreabertos, e lá está ele, o sorriso do aborrecimento, mãos sobre o colo reto e macio, dedos entrelaçados, unhas vermelhas, os gestos e as poses das mãos premeditadas e exibidas, uma completa o que a outra começa – ou ameaça, Senhoras com seus sapatos vermelhos e saia justa, comprimento até os joelhos redondos e carnudos, jamais cruzam as pernas, isso é o básico que aprendemos desde meninas –, e assim estavam sentadas, a ponta dos sapatos, os calcanhares e os joelhos bem coladinhos uns aos outros

o iogurte, o cabelo channel escorrido em camadas, os olhos e o sorriso escondidinhos, desenham sem cores o quotidiano frio e cruel que tentam com indiferença impor a todas nós

quero o meu cigarro

por que invejam e desprezam o marko, não sei, o chamam de dinossauro pedagógico socialista, como  se fosse uma aberração histórica do passado revolucionário distante e antigo, não se preocupam nem ao menos de esconder seu ódio e estupidez, repetem como bonecos de engonço a desinformação e as mentiras que leem ou escutam

Marko, se concordarmos contigo, precisamos aceitar que a realidade é maior que a escola...

Isso mesmo, Samuel. Perfeito.

nenhuma emoção na voz do marko, apenas a confirmação sem gestos ou retórica, nenhuma excitação no corpo, as duas irmãs siamesas permanecem em silêncio, como a dizer, tudo bem, mas faremos do nosso jeito, e lá está ele, o sorriso do desprezo

vivemos o tempo que, de modo geral, entendemos mais da mentira do que da verdade, a mentira é mais mentira do que antes, aprender a compreender sem distorcer com as máscaras do quotidiano é a urgência que o nosso tempo nos pede

Mas, Marko... então o que fazemos aqui se caminhamos a reboque do tempo e da história?

o samuel está em pé, as mãos não param porque temos palavras guardadas que precisam dos gestos e da retórica do corpo, elas entram e saem dos bolsos da calça jeans velha, surrada e cansada do entra e sai das salas de aula, a mesma calça em cinco dias, segunda à sexta, e no sábado, um breve descanso na máquina de lavar para o banho merecido e desejado com sabão em pó e amaciante, e depois de pendurada no varal ao sol retorna seca e pronta na segunda-feira

e junto, retornam os cabelos acinzentados e acidentados, longos e ondulados, a pele escanhoada e macia, o alvoroço no olhar, a agitação das mãos

desvio meus olhos do samuel e do marko até a cabayba e a ofélia, dois belos vasos siameses, e misturo-me ao grupo do silencioso silêncio que não se compromete – a menos que as alternativas tenham sumido e as mãos estejam no paredão –, nenhuma reação, um desperdício essa conversa toda para as baratas que rastejam para não serem incomodadas, não acredito que exista a paixão que ensina se não existe a paixão que aprende

quero mais um cigarro

A escola é a ponta do iceberg das massas submersas, Samuel. E o que podemos fazer? Acredito que todas as nossas histórias juntas poderiam recontar a história e resignificar a escola. Assim, acredito que é seguro dizer: fizemos a história contando as histórias.

ficamos em silêncio, existe um desafio nas suas palavras, renegar antigas opiniões e atender ao chamado das massas excluídas, mesmo sabendo que não será – como nunca foi e não será – uma tarefa fácil educar quem desconhece a si mesma

Precisamos escolher melhor as histórias para contar.

Isso mesmo, Camila! E também melhorar como contamos essas histórias. É preciso enfrentar as armadilhas das queixas com o gostar mais, confrontar a desesperança, o desengano, o desespero, a descrença com a virtude da possibilidade.

eu estou com alguém que admiro e que nos convoca para a ação com um pensamento poderoso: a importância reanimadora do coletivo solidário na escola

sem compreender isso – entender a dramaticidade do que acontece ante nossas vidas – continuaremos reproduzindo ruídos vazios de significados, inertes de sonhos, cumpridoras de tarefas sem graça e brilho, não somos alegres e sabidas todas as horas, mas podemos sonhar que poderemos ser

educar-se para permitir a significação do outro em si, só assim a escola será mais educação do que antes, sem essa mudança seremos abandonadas

esqueço meu juramento de silêncio pedagógico e liberto-me com as palavras, A escola somos todas nós, todos vocês, precisamos reconhecer no desejo de estar aqui que somos todas por uma e uma por todas ou continuaremos todas contra uma e cada uma contra todas!

sinto meu rosto em chamas, estou em chamas, fui sempre assim, o coração atropelando o peito, a boca nervosa e seca, É impossível nos salvarmos sozinhas...

parei, façam o que quiserem com as minhas palavras, só quis dizer que o inimigo a vencer é o nosso afeto sem solidariedade

Eu concordo com a Anita, mas quero acrescentar que precisamos colocar no coletivo dos desejos os alunos e alunas, pais e mães, os colegas da nutrição, da limpeza, da segurança. 

E como faríamos isso, Samuel?

em que medida somos preguiçosas para lutar em favor de todas nós? qual o tamanho da nossa indignação para lutarmos por todos os injustiçados? precisamos parar de dar mais valor as queixas das ociosas e desiludidas

Se concordamos que a escola somos todos nós e o desejo de estar aqui é condição primeira na instrução da nossa identidade, precisamos reconhecer o que é necessário ao educando – isso com certeza é parte importante da nossa formação –, mas precisamos aprender a perguntar o que eles querem aprender, o que os pais e as mães esperam do nosso trabalho, perguntar aos colegas como podemos ajudar.

apenas o ruído do ventilador pendurado no teto, até que o abrigo se voltou para a cabayba, Gente, isso não é sério, né? Vamos começar o ano letivo perguntando às crianças o que elas querem aprender? Por Deus, nosso Senhor! Isso tudo, é só provocação para animar essa conversa chata, né?

sentada, longe do chimarrão distante da porta, sem o meu cigarro, isso é muito chato, quero levantar e sair para fumar, mas continuo presa entre as massas silenciosas, lugar das conversas abafadas nas reuniões e dos fuxico nos corredores, Como estão os teus alunos, Micheli?

a micheli e a iara estão sentadas mais atrás, e pelo visto, iniciaram uma reunião espontânea paralela – temos muitas reuniões espontâneas dentro das reuniões pedagógicas, algumas de nós, sem perceber, agem ou reagem como seus alunos sem as regras e sem as proibições que separam as certas e as erradas –, isso se os resmungos incompreensíveis da micheli forem decifrados

preciso me comportar e não me revirar para confirmar que ela está fazendo o que acho que está fazendo: caretas, ela faz caretas e desprende resmungos ventosos quando não quer conversa, Tenho uns seis ou sete lendo, e foi só, não acredito que a iara vai se assustar com as caras feias e aquela estatística fria da michele, a forma gelada e controlada da sua mensagem: me deixem em paz no meu cantinho, Micheli, esse ano você ficou com o 2º ano, não é, Sim.

eu me sinto a vizinha honesta que vigia as duas, vivemos na escola firmemente amarradas umas às outras, luto contra meu desejo de interferir e pedir a micheli para permitir aos seus alunos aprenderem além do que ela se dispõe ensinar, estou exercitando minha nova vida de bem-comportada, Como eles estão com a letra emendada?

não resisto e me viro disfarçadamente, como o bode no meio da sala, e lá estão as caretas, o mesmo reumatismo para falar, Não muito bem, ainda não comecei com a letra cursiva, Por que? O ano já está terminando, Ah, Iara, e parou, se atolou-se nos resmungos, Não entendi, Micheli, A reunião, Iara... estamos atrapalhando, Bobagem, a reunião ainda não começou.

vamos, micheli... conte-nos alguma coisa, ânimo, Iara, os coitadinhos escrevem com a letra bastão e isso já é um grande feito, Mas as crianças gostam de escrever com a letra emendada, Você está louca, Iara! Onde você tirou isso? Só pode estar brincando.

quanto sofrimento inútil para fazer quase nada, uma gaiola para as palavras, Os meus escrevem, Os teus alunos até podem escrever, mas os meus não gostam e não sabem, Já tentou ensinar a letra cursiva, Não. Isso é perda de tempo, Por que, Porque a escrita no papel vai desaparecer, Meu Deus, Micheli, E eles não gostam, Como tu sabe que eles não gostam se nunca ensinou, Eles não gostam, E como tu sabe quando estão usando a maiúscula em começo de frase, Essa gurizada não escreve mais no papel. É só no watts, instagram, facebook, polegar polegar polegar, Mas é tão divertido e desafiador para os alunos. Pode acontecer de dois ou três terem mais dificuldades, com esses será preciso segurar na mão por mais tempo, ensinar o movimento com mais cuidado ainda, Mas eles mesmos preferem a letra bastão, Lógico, se ninguém oferece e desafia a criança por outro tipo de letra, realmente, elas irão se acomodar nessa de pauzinho, bastão, desenhada, que é mais prática, mas a medida que elas forem aprendendo vão perceber que com a emendada é até mais rápido de escrever. E outra coisa, como é que tu vai trabalhar a importância da letra maiúscula no começo das frases? E os nomes próprios? Como fazer o registro na escrita entre a pontuação e a letra maiúscula se tu não sabe na bastão quando elas estão usando a maiúscula, É tem isso. Não sei como se faz.

às vezes – não, acho que na maioria das vezes –, não reconhecemos uma boa amiga porque ela nos diz na hora o que não gostamos e não queremos escutar, parece que não tem outro jeito, só o meu jeito, Iara, vou te confessar uma coisa. Na verdade, eu não sei escrever a cursiva. Minha letra é horrível no quadro. A outra já não é boa, e a cursiva é horrorosa. Eu não sei ensinar a cursiva porque eu não sei nem pra mim, Olha, quando a gente fez o magistério, quando eu fiz o magistério, nós todas, a professora exigia de todas os exercícios de caligrafia com a letra bem desenhada, justamente pra quem fosse alfabetizar...

ouvir as conversas do baixo clero silencioso e piedoso, ajuda entender a disputa entre as ensinadoras – a maioria, mas cansadas e desistindo, algumas têm uma necessidade estúpida de exercer qualquer poder, na falta de outros lugares, tiranizam os alunos e alunas, e assim, colocam o medo no cardápio pedagógico – e as educadoras lutando por um coletivo que só existe no sonho, e mesmo assim, acreditando muito nisso, mesmo refazendo e replanejando o futuro desse outro mundo possível com os pés descalços e no chão, às vezes, com menos do sonho e mais do possível de ser feito, é um desafio para mim mesma, para todas nós






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parábolas: ensaio 002A / o coração livre para voar
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parábolas: ensaio 010A / o medo no cardápio pedagógico
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