sábado, 25 de fevereiro de 2023

Edgar Allan Poe - Contos: Os Crimes da Rua Morgue (02)

Edgar Allan Poe - Contos


Os Crimes da Rua Morgue
Título original: The Murders in the Rue Morgue 
Publicado em 1841


continuando...

Uma noite em que passávamos numa rua longa e suja, na vizinhança do Palais Roy al, mergulhados nos nossos próprios pensamentos, pelo menos aparentemente, e depois de estarmos quase um quarto de hora sem pronunciar uma palavra, de repente Dupin proferiu estas palavras:

— É um rapaz bem pequeno, na verdade, e onde ele estaria melhor era no teatro de Variedades.

— Sem dúvida alguma — repliquei sem pensar, tão absorvido estava, na singular maneira como as palavras do observador se adaptavam ao meu próprio sonho.

Um instante depois, ao cair em mim, o meu espanto foi profundo.

— Dupin — disse eu muito gravemente — isso ultrapassa o meu raciocínio. Confesso-lhe sem rodeios que estou estupefato e acredito dificilmente nas minhas faculdades. Como conseguiu adivinhar o que eu pensava a...?

Mas parei, para me assegurar de que ele tinha adivinhado o meu pensamento.

— A respeito de Chantilly? — disse. — Para que havia de se interromper? Vi que refletia nesse momento que a estatura dele não era a indicada para a tragédia.

Era precisamente o assunto das minhas reflexões. Chantilly era o ex-sapateiro da Rua de Saint-Denis que tinha a paixão pelo teatro e havia tentado o papel de Xerxes na tragédia de Crebillon. As suas pretensões eram irrisórias e todos troçavam dele.

— Diga-me, pelo amor de Deus, o método — se existe método — pelo qual foi ajudado e pôde penetrar na minha mente!

Na realidade, eu estava ainda mais espantado do que queria confessar.

— Foi o vendedor de fruta — respondeu o meu amigo — que o levou à conclusão de que o sapateiro não tinha estatura para representar Xerxes e todos os papéis deste género.

— O vendedor de fruta? Desconcerta-me! Eu não conheço nenhum vendedor de fruta.

— O homem que foi de encontro a nós quando entrámos na rua, há talvez um quarto de hora.

Recordei então que, efetivamente, um vendedor de fruta, que trazia à cabeça um grande cesto de maçãs, um desastrado, tinha-me deitado quase ao chão quando nós passávamos na Rua C..., na artéria principal onde estávamos então. Mas que relação tinha com Chantilly? Era-me impossível compreender. Não havia uma parcela mínima de imposturice no meu amigo Dupin.

— Vou explicar isso — disse — e, para que possa compreender nitidamente, vamos primeiro retomar a série das suas reflexões desde o momento de que falo até ao do encontro com o vendedor de fruta em questão. Os elos principais da corrente seguem assim: Chantilly, Órion, o doutor Nichols, Epicuro, a estereotomia, os pavimentos, o vendedor de fruta.

Há poucas pessoas que se não tenham divertido, num dado momento da sua vida, a reavivar o curso das suas ideias e a procurar por alguma via que o seu espírito chegue a certas conclusões. Muitas vezes esta ocupação é cheia de interesse e aquele que a experimenta pela primeira vez fica admirado com a incoerência e a distância entre o ponto de partida e o de chegada.
Imaginem, pois, o meu espanto, quando ouvi o meu francês falar como o tinha feito, pelo que fui constrangido a reconhecer que tinha dito a pura verdade.
Ele prosseguiu:

— Falávamos nós de cavalos — se a minha memória me não atraiçoa — precisamente antes de sairmos da Rua C... Fora o nosso último assunto de conversa. Quando passávamos nesta rua, um vendedor de fruta, com um cesto enorme à cabeça, passou precipitadamente à nossa frente, e atirou-o para cima do cascalho amontoado num sítio em que a rua estava em reparação. Você pôs o pé em cima de uma pedra oscilante; escorregou e esfolou ligeiramente o tornozelo: pareceu-me um pouco vexado, resmungão. Murmurou algumas palavras; virou-se para observar o monte de pedras e continuou a caminhar calado, para eu não reparar em tudo que fazia, mas para mim a observação tornou-se, de há muito, quase uma necessidade.

« Os seus olhos fixaram-se no chão, vigiando com uma espécie de irritação os buracos e os sulcos da calçada (de forma que eu via bem que pensava sempre nas pedras) até que atingimos a pequena passagem que se chama a passagem Lamartine, onde se acabou de experimentar a calçada de madeira, um sistema de blocos unidos e solidamente ligados. Aqui a sua fisionomia alegrou-se, e vi os seus lábios mexerem-se e adivinhei, sem ficar com dúvidas, a palavra estereotomia, um termo aplicado muito pretensiosamente a este género de calcetamento.
« Eu sabia que não podia dizer esta palavra sem ser induzido a pensar nos átomos e nas teorias de Epicuro. E, como na discussão que nós tivemos a esse respeito, ainda não há muito tempo, fiz notar que as vagas conjeturas do ilustre grego tinham sido confirmadas singularmente, sem que ninguém prestasse atenção às últimas teorias sobre as nebulosas e as recentes descobertas cosmogónicas, senti que não poderia impedir os seus olhos de se virarem para a grande nebulosa de Órion, o que certamente esperava. Você não falhou e fiquei então certo de ter seguido rigorosamente o curso do seu pensamento. Ora neste amargo dito espirituoso sobre Chantilly, que apareceu ontem no le Musée, o redator, ao fazer alusões incivis na modificação do nome do sapateiro quando calçou o coturno, citava um verso latino do qual nós temos falado muitas vezes. Quero falar do verso: Perdidit anliquum littera prima sonum. Dissera eu já que tinha traído Órion, que se escrevia primitivamente Urion, e por causa de uma certa mordacidade misturada nesta discussão estava certo de que a não tinha esquecido. Era evidente que daí em diante não pudesse deixar de associar as duas ideias de Órion e de Chantilly. Esta associação via-se pelo style do sorriso que se desenhava nos seus lábios. Você pensava na imolação do pobre sapateiro. Até aí caminhara curvado, mais então vi-o endireitar-se a toda a sua altura. Estava bem certo de que pensava na pequena estatura de Chantilly. Foi nesse momento que interrompi as suas reflexões para lhe fazer notar que esse Chantilly era um pobre aborto e que ele estaria melhor no teatro de Variedades.»
Algum tempo depois deste “assunto de conversa”, ao percorrermos a edição da noite da Gazette des Tribunaux, eis que os parágrafos seguintes despertaram a nossa atenção:


DUPLO ASSASSÍNIO DOS MAIS SINGULARES. — Esta manhã, pelas três horas, os habitantes do bairro Saint-Roch foram despertados por uma série de gritos assustadores que pareciam vir do quarto andar de uma casa da Rua Morgue ocupada apenas pela senhora L’Espanaye e sua filha Camila L’Espanay e. Depois de alguma demora causada pelos esforços infrutíferos para se abrir a bem, a enorme porta foi forçada com uma alavanca e oito ou dez vizinhos entraram acompanhados por dois polícias.
Entretanto, os gritos cessaram. Mas, no momento em que toda a gente chegava ao primeiro andar, distinguiram-se duas vozes fortes, talvez mais, que pareciam discutir violentamente e que vinham da parte superior da casa. Quando chegaram ao segundo patamar, o barulho tinha terminado e tudo estava perfeitamente calmo. Os vizinhos passaram de um quarto para o outro. Ao chegarem à vasta divisão situada nas traseiras do quarto andar, e da qual se forçou a porta que estava fechada à chave por dentro, eles encontraram um espetáculo que emocionou todos os assistentes com um terror não menor do que o seu espanto.
O quarto estava na mais estranha desordem, os móveis quebrados e espalhados em todos os sentidos. Não havia senão uma cama, os colchões tinham sido arrancados e lançados para o meio da casa. Numa cadeira, encontrou-se uma navalha cheia de sangue; na lareira, três grandes molhos de cabelos grisalhos que pareciam ter sido arrancados violentamente pela raiz. No soalho estavam caídos quatro napoleões, um brinco com um topázio cravado, três grandes colheres de prata, e dois sacos contendo cerca de quatro mil francos de ouro. Num canto, as gavetas da cómoda estavam abertas e deviam ter sido pilhadas, sem dúvida, se bem que se encontrassem nelas vários artigos intactos. Um cofrezinho de ferro foi encontrado sobre as roupas da cama (não em cima da cama); estava também aberto, com a chave na fechadura. Continha apenas algumas cartas antigas e outros papéis sem importância.
Não se encontrou nenhum vestígio da senhora L’Espanaye, mas havia uma grande quantidade de fuligem na casa. Fez-se uma busca na chaminé e — horrível coisa para descrever! — tiraram de lá o corpo da menina, com a cabeça para baixo: tinha sido introduzido à força e empurrado pela estreita abertura, até a uma distância bastante considerável. O corpo estava ainda quente. Ao examiná-lo, descobriram-se numerosas escoriações ocasionadas, sem dúvida, pela violência com que fora introduzido e que fora preciso empregar para o retirar. A cara tinha alguns arranhões grandes, e a garganta estava marcada com equimoses negras e profundas marcas de unhas, como se a morte tivesse sido provocada por estrangulamento.
Depois de um exame minucioso a cada divisão da casa, que não trouxe nenhuma nova descoberta, os vizinhos passaram para um patiozinho calcetado situado nas traseiras da casa. Jazia ali o cadáver da senhora idosa, com a garganta tão perfeitamente cortada que, ao tentar erguê-la, a cabeça soltou-se do tronco. O corpo, bem como a cabeça, estavam terrivelmente mutilados e esta a tal ponto que lhe restava apenas uma aparência humana. Todo este caso permanece num mistério e até agora não se descobriu, que se saiba, o menor pormenor elucidativo.


O número seguinte trazia estes pormenores complementares:


O DRAMA DA RUA MORGUE. — Um bom número de indivíduos foram interrogados a respeito deste terrível e extraordinário acontecimento, mas nada transpirou que possa esclarecer um pouco o caso. Transcrevemos as seguintes declarações obtidas:
Pauline Dubourg, lavadeira, depôs que conhecia as vítimas e que lhes lavava a roupa há já três anos. A senhora de idade e a filha pareciam dar-se bem — muito afetuosas uma para a outra. Eram de boas pagas. Ela não pôde dizer nada relativo ao seu género de vida e aos seus meios de existência. Ela crê que a senhora L’Espanaye devia viver com bem-estar. Esta senhora passava por ter dinheiro amealhado. Ela nunca encontrara qualquer pessoa na casa, quando ia entregar ou buscar a roupa. Era certo que essas senhoras não tinham nenhuma criada ao seu serviço. Parecia-lhe que não havia móveis em nenhuma parte de casa exceto no quarto andar
Pierre Moreau, vendedor de tabaco, depôs que fornecia a senhora L’Espanaye e vendia-lhe pequenas quantidades de tabaco, algumas vezes em pó. Ele nasceu no bairro e morou sempre lá. A defunta e a filha ocupavam há mais de seis anos a casa onde encontraram os cadáveres. De início, fora habitada por um joalheiro que subalugou os apartamentos superiores a diferentes pessoas. A casa pertencia à senhora L’Espanay e. Ela mostrou-se muito descontente com o seu locatário, que estragava a casa, motivo por que ela foi habitar a sua própria casa, recusando alugar uma única parte. A bondosa senhora era ainda nova. A testemunha viu a filha cinco ou seis vezes no decorrer desses seis anos. As duas levavam uma vida excessivamente retirada e tinham fama de ter alguma coisa de seu. Ele ouviu dizer aos vizinhos que a senhora L’Espanay e levava vida livre, mas não acreditou. Ele nunca vira alguém transpor a porta, exceto a senhora idosa e a filha, um moço de recados uma ou duas vezes, e o médico oito ou dez.
Outras pessoas diferentes da vizinhança depuseram no mesmo sentido. Não se citou ninguém como frequentador da casa. Não sabiam se a senhora e a filha tinham parentes vivos.
As persianas das janelas da frente abriam-se raramente. As de trás estavam sempre fechadas, exceto as da divisão grande das traseiras do quarto andar. A casa era bastante boa e não muito velha.
Isidore Muset, policia, depôs que fora chamado, por volta das três horas da manhã, e que encontrara na porta da entrada vinte ou trinta pessoas, que se esforçaram por penetrar na casa. Que forçaram a porta com uma baioneta e não com uma alavanca e não tiveram grande dificuldade em abri-la, porque ela era de dois batentes e não estava fechada nem em cima, nem em baixo. Os gritos continuaram até que a porta foi metida dentro, depois acabaram de repente. Dir-seiam os gritos de uma ou de várias pessoas tomadas pelas mais intensas dores; gritos altos e muito prolongados — nada de gritos fracos nem precipitados. A testemunha subiu a escada. Quando chegou ao primeiro patamar ouviu duas vozes: uma era aguda, a outra, muito mais aguda, uma voz muito estranha. Distinguiu algumas palavras da primeira, era a de um francês. Estava convencido que não era uma voz de mulher. Pôde distinguir as palavras “sagrado” e “diabo”. A voz aguda era a de um estrangeiro. Ele não sabe precisamente se era voz de homem ou de mulher. Não pôde adivinhar o que ela dizia mas presume que falava espanhol. Esta testemunha reparou no estado do quarto e dos cadáveres nos mesmos termos que referimos ontem.
Henrique Duval, um vizinho, e ourives de profissão, declarou que fazia parte do grupo dos que entraram primeiro na casa. Confirma totalmente o testemunho de Muset. Assim que se introduziram na casa, fecharam a porta para impedir a passagem à gente que se comprimia consideravelmente apesar de ser de madrugada. A voz aguda, a acreditar na testemunha, era a de um italiano. De certeza absoluta que não era uma voz francesa. Ele não sabia bem ao certo se era voz de mulher; no entanto poderia bem sê-lo. A testemunha não está familiarizada com a língua italiana: não pôde distinguir as palavras, mas está convencida, pelo sotaque, que o indivíduo que falava era um italiano. A testemunha conhecia a senhora L’Espanaye e a sua filha. Frequentemente conversara com elas. Era certo que a voz aguda não era de nenhuma das vítimas.
Odenheimer, dono de um restaurante, ofereceu-se para testemunhar. Não fala francês e interrogaram-no por meio de um intérprete. É natural de Amsterdão. Passava em frente da casa no momento dos gritos. Estes eram prolongados, muito agudos e muito aterrorizantes — gritos aflitivos, que duraram alguns minutos. Odenheimer é um dos que penetraram na casa. Confirma o testemunho precedente, com exceção de um só ponto. Está convencido de que a voz aguda era a de um homem — de um francês — e não pôde distinguir as palavras pronunciadas. Falava alto e num tom desigual — e exprimia o medo e a cólera. A voz era áspera, mais áspera do que aguda. Não se lhe pode chamar precisamente aguda. A voz grossa disse várias vezes: “Maldito”, “diabo” — e uma vez: “Meu Deus!”
Jules Mignaud, banqueiro, da casa Mignaud e filho, rua Deloraine. É o filho mais velho dos Mignaud. A senhora L’Espanaye tinha uma pequena fortuna. Ele abrira-lhe uma conta no seu banco oito anos antes, na primavera. Ela depositou muitas vezes, no banco, pequenas quantias. Nunca lhe entregara nenhum dinheiro até ao terceiro dia anterior à sua morte, em que ela foi pedir-lhe pessoalmente uma quantia de quatro mil francos. Esta soma foi-lhe paga em luíses de ouro e um empregado encarregou-se de lha levar a casa.
Adolphe Lebon, empregado dos Mignaud e filho, depôs que, no dia em questão, perto do meio-dia, acompanhou a senhora L’Espanaye a sua casa, com quatro mil francos em dois sacos. Quando a porta se abriu, a menina L’Espanaye apareceu e tirou-lhe das mãos um dos sacos enquanto que a senhora idosa o aliviava do outro. Ele cumprimentou-as e foi-se embora. Não viu ninguém nesse momento na rua. É uma rua suspeita, muito solitária.
William Bird, alfaiate, informou que é um dos que se introduziram na casa. É inglês. Viveu dois anos em Paris. Ouviu as vozes que discutiam. A voz rude era a de um francês. Pôde distinguir algumas palavras mas não se recorda delas. Ouviu distintamente “maldito” e “meu Deus”. Ouvia-se nesse momento um barulho como de várias pessoas que lutavam — o ruído de uma luta e de objetos que se partem. A voz aguda era forte, mais forte do que rude. Ele estava convencido de que a voz não era de um inglês. Parecia-lhe a de um alemão; talvez mesmo uma voz de mulher. A testemunha não sabe alemão.
Quatro das testemunhas acima mencionadas foram ouvidas de novo e afirmaram que a porta do quarto onde foi encontrado o corpo da menina L’Espanay e achava-se fechada por dentro quando chegaram lá. Estava tudo em perfeito silêncio; nem gemidos, nem barulho de nenhuma espécie. Depois de se ter forçado a porta não viram ninguém. As janelas do quarto das traseiras e da frente estavam fechadas por dentro. A porta que ligava o quarto da frente ao corredor estava fechada à chave e esta por dentro; uma pequena divisão para a frente da casa, no quarto andar, à entrada do corredor, encontrava-se aberta. Esta divisão estava cheia de madeira velha, uma cama, malas, etc. Desarrumaram-na cuidadosamente e inspecionaram esses objetos. Inspecionaram a chaminé. A casa é de quatro andares, com sótão. Um alçapão, que dá para o telhado, estava pregado e não parecia ter sido aberto há já uns anos. As testemunhas variam sobre a duração do tempo decorrido entre o momento em que se ouviram as vozes que discutiam e o de forçar a porta do quarto. Alguns avaliam-no demasiado breve, dois ou três minutos — outros, cinco minutos. A porta não se abriu senão com grande custo.
Alfonso Garcia, empregado da agência funerária, que mora na Rua Morgue. Nasceu em Espanha. É um dos que entraram na casa. Não subiu a escada. Tem os nervos muito delicados e teme as consequências de um violento choque nervoso. Ouviu as vozes que discutiam. A voz grossa era a de um francês. Ele não pôde distinguir o que dizia. A voz aguda era a de um inglês, está bem certo disso. A testemunha não sabe inglês, mas depreende pelo sotaque.
Alberto Montani, doceiro, declarou que foi também dos primeiros que subiram a escada. Ouviu a voz em questão. Ela era rouca e de um francês. O indivíduo que falava parecia fazer repreensões. Ele não pôde adivinhar o que dizia a voz aguda. Falava depressa e às sacudidelas, e assemelhava-se à voz de um russo. Confirma em absoluto os testemunhos precedentes. É italiano; confessa que nunca conversou com um russo.
Algumas testemunhas, de novo instadas, confirmam que as chaminés de todas as casas no quarto andar são muito estreitas para dar passagem a um ser humano. Quando falaram da limpeza das chaminés, referiam-se às escovas de forma cilíndrica de que se servem para limpá-las. Fizeram-nas passar de cima para baixo, em todos os tubos da chaminé. Não há nas traseiras nenhuma passagem que tenha podido facilitar a fuga de um assassino enquanto as testemunhas subiam a escada. O corpo da menina L’Espanaye estava solidamente entalado na chaminé, pois que foi preciso, para a retirar, que quatro ou cinco das testemunhas empregassem as suas forças.
Paul Dumas, médico, depôs que foi chamado de manhãzinha para examinar os cadáveres. Permaneciam ambos sobre poças de sangue, na cama do quarto onde tinha sido encontrada a menina L’Espanay e. O corpo da jovem estava muitíssimo pisado e escoriado. Estas particularidades explicam-se pelo facto de a terem introduzido na chaminé. A garganta estava singularmente esfolada. Havia precisamente por baixo do queixo, várias arranhadelas profundas, com uma série de manchas lívidas, resultante evidente da pressão dos dedos. A cara estava terrivelmente pálida e os globos dos olhos saíam das órbitas. A língua achava-se cortada pelo meio. Tinha uma grande pisadura na cavidade do estômago produzida pela pressão de um joelho. Na opinião de M. Dumas a menina L’Espanay e fora estrangulada por um ou por vários indivíduos desconhecidos. O corpo da mãe estava horrivelmente mutilado. Todos os ossos da perna e do braço esquerdo mais ou menos despedaçados; a tíbia esquerda partida em esquírolas, assim como as costelas do mesmo lado. Todo o corpo pisado e descorado. Era impossível explicar-se como semelhantes pancadas tivessem sido dadas. Uma pesada maça de madeira ou uma larga pinça de ferro, uma arma grossa e contundente não teria produzido semelhante resultado, se manejada pelas mãos de um homem excessivamente robusto. Fosse qual fosse a arma, nenhuma mulher poderia ter dado tais pancadas. A cabeça da defunta, quando a testemunha a viu, estava completamente separada do tronco e, como o resto — estranhamente maltratada. A garganta fora, evidentemente, cortada por um instrumento muito afiado, provavelmente por uma navalha.
Alexandre Étienne, cirurgião, foi chamado ao mesmo tempo que M. Dumas para observar os cadáveres; confirma o testemunho e a opinião de M. Dumas.
Ainda que várias pessoas tenham sido interrogadas, não se pôde obter nenhuma outra informação de qualquer valor. Jamais um assassínio tão misterioso, tão intrincado, fora cometido em Paris, se na verdade houve assassínio.
A Polícia está absolutamente desorientada, caso bastante corrente em assuntos desta natureza. E verdadeiramente impossível encontrar um indício deste caso.


A edição da noite fazia saber que reinava uma agitação permanente no bairro de Saint-Roch, que os lugares tinham sido objeto de um segundo exame, que as testemunhas tinham sido de novo interrogadas, mas tudo isso sem resultado. No entanto, um post scriptum anunciava que Adolphe Lebon, o empregado do banco, fora preso e encarcerado, se bem que nada nos fatos já conhecidos parecesse suficiente para o incriminar.



continua na página 342...

__________________

Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.
Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).
Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.
Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.


____________________

Edgar Allan Poe
CONTOS
Originalmente publicados entre 1831 e 1849
_____________________

Leia também:

Edgar Allan Poe - Contos: MetzengersteinEdgar Allan Poe - Contos: Silêncio
Edgar Allan Poe - Contos: Um Manuscrito encontrado numa Garrafa
Edgar Allan Poe - Contos: A Entrevista
Edgar Allan Poe - Contos: Berenice (começo)
Edgar Allan Poe - Contos: Morella
Edgar Allan Poe - Contos: O Rei Peste
Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (01)
Edgar Allan Poe - Contos: A Sombra
Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym (Prefácio)
Edgar Allan Poe - Contos: Ligeia (1)
Edgar Allan Poe - Contos: Os Crimes da Rua Morgue (02)


O Segundo Sexo - 02. Situação: Capítulo I - A Mulher Casada (3)

Simone de Beauvoir


02. A Experiência Vivida




O SEGUNDO SEXO
SlMONE DE BEAUVOIR




SEGUNDA PARTE

SITUAÇÃO
                              ______________________________________________________



CAPÍTULO I
A   MULHER CASADA


O homem, pelo fato de ser quem "toma" a mulher — sobretudo em sendo numerosas as solicitações femininas — tem maior possibilidade de escolha. Mas como o ato sexual é considerado um serviço imposto à mulher e no qual assentam as vantagens que lhe são concedidas, é lógico que não se dê importância a suas preferências singulares. O casamento é destinado a defendê-la contra a liberdade do homem: mas como não há nem amor nem individualidade fora da liberdade, a fim de se assegurar para sempre a proteção de um macho, ela deve renunciar ao amor de um indivíduo singular. Ouvi uma mãe devota ensinar às filhas que o "amor é um sentimento grosseiro reservado aos homens e que as mulheres decentes não devem conhecer". Era, numa forma ingênua, a própria doutrina que Hegel enuncia na Fenomenologia do Espírito (t. II, pág. 25) :


Mas as relações de mãe e esposa têm a singularidade, em parte como alguma coisa de natural que pertence ao prazer, em parte como alguma coisa de negativo que nelas contempla simplesmente seu próprio desaparecimento; é exatamente por isso que em parte também essa singularidade é alguma coisa de contingente que pode sempre ser substituída por outra singularidade. No fundo do reinado erótico, não se trata deste marido e sim de um marido em geral, de filhos em geral. Não é na sensibilidade mas sim no universal que assentam essas relações da mulher. A distinção entre a vida ética da mulher e a vida ética do homem consiste exatamente no fato de que a mulher, em sua distinção pela singularidade e em seu prazer, permanece imediatamente universal e estranha à singularidade do desejo. Ao contrário, no homem, esses dois lados separam-se um do outro e como o homem possui como cidadão a força consciente de si e a universalidade, adquire o direito do desejo preservando ao mesmo tempo sua liberdade em relação a esse desejo. Assim, se a essa relação da mulher se mistura a singularidade, seu caráter ético não é puro; mas na medida em que esse caráter ético assim é, a singularidade é indiferente e a mulher é privada do reconhecimento de si, como este si em um outro.


Equivale isso a dizer que não se trata absolutamente para a mulher de basear em sua singularidade relações com um esposo de eleição, mas sim de justificar em sua generalidade o exercício de suas funções femininas; ela só deve conhecer o prazer de uma forma específica e não individualizada; disso resultam duas consequências essenciais tocantes a seu destino erótico: primeiramente não tem ela direito a nenhuma atividade sexual fora do casamento; o comércio carnal tornando-se uma instituição para ambos os esposos, desejo e prazer são ultrapassados no sentido do interesse social; mas o homem, transcendendo-se para o universal como trabalhador e cidadão, pode gozar antes das núpcias e à margem da vida conjugai prazeres contingentes: encontra em todo caso sua salvação por outros caminhos; ao passo que, num mundo em que a mulher é essencialmente definida como fêmea, é necessário que seja integralmente justificada enquanto fêmea. Por outro lado, vimos que a ligação do geral e do singular é biologicamente diferente no macho e na fêmea: cumprindo sua tarefa específica de esposo e reprodutor, o primeiro encontra certamente seu prazer [1] ; ao contrário, há muitas vezes na mulher distinção entre a função genital e a volúpia. Embora pretendendo dar à vida erótica uma dignidade ética, o casamento, em verdade, propõe-se suprimi-la.


[1] Naturalmente o adágio "um buraco é sempre um buraco" é grosseiramente humorístico; o homem procura alguma coisa mais do que o prazer bruto; entretanto, a prosperidade de certas casas de tolerância basta para provar que o homem pode encontrar satisfação com qualquer mulher.


Essa frustração sexual da mulher foi deliberadamente aceita pelos homens; vimos que eles se apoiavam num naturalismo otimista para resignar-se aos sofrimentos dela: é seu quinhão; a maldição bíblica confirma-os nessa opinião cômoda. As dores da gravidez — esse pesado sacrifício exigido da mulher em troca de um rápido e incerto prazer — chegaram a ser o tema de muitas chalaças. "Cinco minutos de prazer, nove meses de desgraça.. . Entra mais facilmente do que sai." Esse contraste divertiu-os amiúde. Entra nessa filosofia algo de sádico: muitos homens se alegram com a miséria feminina e não aceitam a ideia de que se queira atenuá-la [2] . Compreende-se, portanto, que os homens não tenham tido nenhum escrúpulo em denegar a sua companheira a felicidade sexual; pareceu-lhes até vantajoso recusar-lhe, com a autonomia do prazer, as tentações do desejo [3].


[2] Há quem sustente, por exemplo, que as dores do parto são necessárias ao desabrochar do instinto materno: cervas que pariram sob o efeito de um anestésico ter-se-iam desinteressado dos filhotes. Os fatos alegados permanecem muito vagos; e a mulher não é, em todo caso, uma cerva. A verdade é que certos homens se escandalizam com que se aleguem os encargos da maternidade.


[3] Ainda em nossos dias a pretensão da mulher ao prazer suscita cóleras masculinas; a este propósito o opúsculo do Dr. Grémillon, La Verité sur l'Orgasme vénérien de la Femme é um documento espantoso. O prefácio nos previne de que o autor, herói da guerra 14-18, que salvou a vida de cinquenta e quatro prisioneiros alemães, é um homem da mais alta moralidade. Atacando violentamente a obra de Stekel sobre a mulher fria, declara entre outras coisas: "A mulher normal, a boa poedeira não tem orgasmo venéreo. Numerosas são as mães (e as melhores) que nunca experimentaram o espasmo mirífico... As zonas erógenas, o mais das vezes latentes, não são naturais e sim artificiais. Orgulham-se com sua aquisição mas são estigmas de decadência . . . Diga-se tudo isso ao homem do prazer, ele não o levará em consideração. Ele quer que sua companheira de turpitude tenha um orgasmo venéreo e ela o terá. Se não existe, será criado. A mulher moderna quer que a façam vibrar. Nós lhe respondemos: Senhora, não temos tempo e isso nos é proibido pela higiene!. . . O criador das zonas erógenas trabalha contra si próprio: cria insaciáveis. A meretriz pode, sem cansaço, esgotar numerosos maridos... a "zoneada" torna-se uma nova mulher com um novo estado de espírito, por vezes uma mulher terrível capaz de ir até o crime. . . Não haveria neurose nem psicose se se estivesse persuadido de que fazer amor é um ato tão indiferente como o de comer, urinar, defecar, dormir..."


É o que exprime Montaigne com um cinismo delicioso:


"É por isso uma espécie de incesto empregar nesse parentesco venerável e sagrado os esforços e as extravagâncias da licença amorosa; é preciso, diz Aristóteles, "tocar prudente e austeramente na mulher, de medo de que, excitando-a demasiado lascivamente, o prazer a faça perder a cabeça... " Não sei de casamentos que malogram mais depressa e se perturbem do que os que são ditados pela beleza e os desejos amorosos: exigem bases mais sólidas e constantes, e cuidados; uma brilhante alegria não dá certo. . . Um bom casamento, se é que os há, recusa a companhia e a condição do amor" (L. III, cap. V) E diz também (L. I, cap. XXX): "Os próprios prazeres que têm com suas mulheres são reprovados se não observam neles alguma moderação; e que há razão para cair em licença e dissolução como em coisa ilegítima. Esses entusiasmos desavergonhados que a chama primeira nos sugere nesse ato, são não apenas indecentes como também prejudicialmente empregados com nossas mulheres. Que pelo menos aprendam a impudência de outra maneira. Para nossas necessidades já se acham bastante despertadas.. . O casamento é uma ligação religiosa e piedosa; eis por que o prazer que dele se tira deve ser um prazer contido, sério e acrescido de alguma austeridade; deve ser uma volúpia absolutamente prudente e conscienciosa".


Efetivamente, se o marido desperta a sensualidade feminina, ele a desperta em sua generalidade posto que não foi escolhido particularmente; ele predispõe a esposa a procurar o prazer em outros braços; acariciar demasiado bem uma mulher, diz ainda Montaigne, é "cagar no cesto para colocá-lo sobre a própria cabeça". Ele reconhece de resto com boa-fé, que a prudência masculina coloca a mulher numa situação bastante ingrata.


As mulheres não estão inteiramente erradas quando recusam as regras de vida introduzidas no mundo; tanto mais quanto são os homens que as fizeram sem elas. Há naturalmente dissensões e disputas entre elas e nós. Tratamo-nas inconsideradamente porque depois de sabermos que são de longe mais capazes e mais ardentes no amor do que nós . . . fomos dar-lhes a continência como quinhão peculiar e sob penas terríveis e extremas. . . Queremo-las sadias, vigorosas, bem tratadas e nutridas e castas ao mesmo tempo, isto é, quentes e frias; pois o casamento que dizemos ter por fim impedi-las de se consumirem em chamas, traz-lhes bem pouco alívio, de acordo com nossos costumes.


Proudhon tem menos escrúpulos: afastar o amor do casamento é, a seu ver, conforme à "justiça":


O amor deve ser afogado na justiça . . . toda conversação amorosa, mesmo entre noivos, ou entre esposos, é inconveniente, destruidora do respeito doméstico, do amor ao trabalho e da prática do dever social. . . (uma vez realizado o ato do amor) devemos afastá-lo como o pastor que, depois de ter feito coalhar o leite, retira-lhe o soro.


Entretanto, durante o século XIX, as concepções da burguesia modificaram-se um pouco; ela esforçava-se ardentemente por defender e sustentar o casamento; por outro lado, os progressos do individualismo impediam que se pudesse abafar muito simplesmente as reivindicações femininistas; Saint-Simon, Fourier, George Sand e todos os românticos tinham proclamado demasiado violentamente o direito ao amor. Admitiu-se o problema de integrar no casamento os sentimentos individuais que até então tinham sido tranquilamente excluídos dele. Foi quando se inventou a noção equívoca de "amor conjugai", fruto milagroso do casamento de conveniência tradicional. Balzac exprime em todas as suas inconsequências as ideias da burguesia conservadora. Ele reconhece que, em princípio, casamento e amor nada têm a ver um com outro, mas repugna-lhe assimilar uma instituição respeitável a um simples negócio em que a mulher é tratada como coisa; e chega assim às incoerências desconcertantes da Physiologie du Mariage, em que lemos:


O casamento pode ser considerado política, civil e moralmente como uma lei, como um contrato, como uma instituição... O casamento deve pois ser o objeto do respeito geral. A sociedade não pode considerar senão essas sumidades que para ela dominam a questão conjugal.
Em sua maioria, os homens só têm em vista, no seu casamento, a reprodução, a propriedade do filho; mas nem a reprodução nem a propriedade, nem o filho constituem a felicidade. O crescite et multiplicamini não implica amor. Pedir a uma moça, que vimos quatorze vezes em quinze dias, amor por determinação da lei, do rei e da justiça e um absurdo digno da maioria dos predestinados.



Isso é tão preciso quanto a teoria hegeliana. Mas Balzac acrescenta sem nenhuma transição:


O amor é a concordância da necessidade com o sentimento e a felicidade no casamento resulta de um entendimento perfeito das almas entre os esposos. Disso decorre que, para ser feliz, um homem é obrigado a se ater a certas regras de honra e de delicadeza. Depois de se ter valido da lei social que consagra a necessidade, deve obedecer às leis secretas da natureza que fazem eclodir os sentimentos. Se põe sua felicidade em ser amado, é preciso que ame sinceramente: nada resiste a uma paixão verdadeira. Mas ser apaixonado é desejar sempre. Pode-se desejar sempre a própria mulher?
— Sim.




continua página 180...

_____________________

Leia também:

O Segundo Sexo - 01. Fatos e Mitos: que é uma mulher?

O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (9)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (8)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (7)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (6)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (5)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (4)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (3)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (2)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (2)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (3)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (4)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (5)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (6)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (7)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo III - A Iniciação Sexual (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo III - A Iniciação Sexual (2)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo III - A Iniciação Sexual (3)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo III - A Iniciação Sexual (4)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo III - A Iniciação Sexual (5)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo III - A Iniciação Sexual (6)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo IV - A Lésbica (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo IV - A Lésbica (2)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo IV - A Lésbica (3)
O Segundo Sexo - 02. Situação: Capítulo I - A Mulher Casada (1)
O Segundo Sexo - 02. Situação: Capítulo I - A Mulher Casada (3)

As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.
Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.


"O que é uma mulher?"


sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 6 (f) ... Habilmente

Capítulo 6


continuando para o fim...


Habilmente, rapidamente, dirigiu pela alameda curva entre álamos e carvalhos, pela grama do parque, cujo declive era tão suave que se fosse água teria se espalhado pela praia como uma lisa maré verde. Plantados aqui e ali havia grupos solenes de faias e carvalhos. Os veados caminhavam entre as árvores, um branco como a neve, outro com a cabeça de lado, pois alguma cerca de arame tinha prendido os seus chifres. Tudo isso, as árvores, os veados, a grama, ela observava com a maior satisfação, como se sua mente tivesse se tornado um líquido que fluísse ao redor das coisas e as envolvesse completamente. No minuto seguinte parou no pátio, onde por tantas centenas de anos chegara a cavalo ou de carruagem de três parelhas, com homens cavalgando à frente, ou vindo atrás; onde plumas tinham balançado, tochas brilhado, e as mesmas árvores floridas que agora deixam as folhas caírem tinham sacudido suas flores. Ela agora estava sozinha. As folhas de outono estavam caindo. O porteiro abriu os grandes portões. “Bom dia, Jaime”, disse ela, “há coisas no carro. Pode trazê-las?”, palavras sem beleza, interesse ou significado em si mesmas, é certo, mas agora tão repletas de significado que caíam como nozes maduras de uma árvore e provavam que, quando a pele enrugada do comum é recheada de significado, satisfaz surpreendentemente os sentidos. Isto era verdadeiro agora em relação a cada movimento e ação, por mais costumeiros que fossem; de modo que ver Orlando trocar a saia por um par de calças de bombazina e uma jaqueta de couro — o que fez em menos de três minutos — era ficar encantado com a beleza do movimento, como se Madame Lopokova estivesse demonstrando sua melhor arte. Então dirigiu-se para a sala de jantar, onde os velhos amigos Dryden, Pope, Swift, Addison olharam-na a princípio gravemente, como que dizendo: “Eis quem ganhou o prêmio!” Mas, quando refletiram que se tratava de duzentos guinéus, balançaram a cabeça aprovando. Duzentos guinéus, pareciam dizer; duzentos guinéus não são para se desprezar. Ela cortou uma fatia de pão e de presunto, juntou-as e começou a comer passeando pela sala para lá e para cá, e assim abandonou as boas maneiras em um segundo, sem perceber. Depois de cinco ou seis voltas, esvaziou um copo de vinho tinto espanhol e, enchendo outro que levava na mão, atravessou o longo corredor e uma dúzia de salas e assim começou a perambular pela casa, escoltada por galgos e spaniels que escolheu para acompanhá-la. 
Isso também era parte de sua rotina diária. Chegar em casa e deixar sua avó sem um beijo era como voltar e deixar a casa sem percorrê-la. Imaginava que os quartos se iluminavam quando ela entrava; que se agitavam abriam os olhos, como se tivessem dormido durante a sua ausência. Imaginava também que centenas e milhares de vezes ela os tinha visto e que nunca pareciam duas vezes os mesmos, como se uma vida tão longa quanto a deles tivesse acumulado milhares de modos que mudavam com inverno e verão, com tempo claro e sombrio, com a sua própria sorte e com os temperamentos das pessoas que os visitavam. Eram sempre polidos com estranhos, mas um pouco enfastiados; com ela eram inteiramente francos e à vontade. E por que não? Eles se conheciam por quase quatro séculos, agora. Não tinham nada a esconder. Ela conhecia suas tristezas e alegrias. Conhecia a idade de cada parte deles e seus pequenos segredos — uma gaveta secreta, um armário disfarçado ou algum defeito talvez, como um pedaço remendado ou acrescentado depois. Eles também a conheciam em todos os seus modos e transformações. Ela não tinha nada a esconder deles; estivera lá como menino e como mulher, chorando e dançando, pensativa e alegre. No banco desta janela escrevera os primeiros versos; naquela capela casara. Seria enterrada ali, refletiu, ajoelhando-se no parapeito da janela, no longo corredor, e bebericando o vinho espanhol. Embora não pudesse imaginar, o corpo de leopardo heráldico estaria formando poças amarelas no chão, no dia em que a enterrassem entre os seus antepassados. Ela, que não acreditava em nenhuma imortalidade, não podia deixar de sentir que sua alma estaria indo e vindo para sempre com os vermelhos dos painéis e os verdes dos sofás. Pois o aposento — acabava de entrar no quarto de dormir do embaixador — brilhava como uma concha que, tendo ficado séculos no fundo do mar, fora recoberta e pintada pela água, com um milhão de cores; era rosa e amarela, verde e cor de areia. Era frágil como uma concha, tão iridescente e tão vazio. Nenhum embaixador dormiria ali outra vez. Ah!, mas ela sabia onde o coração da casa ainda batia. Gentilmente abrindo a porta, permaneceu na soleira de modo que (imaginava) o aposento não pudesse vê-la e contemplou a tapeçaria que se levantava e caía com a eterna e suave brisa que nunca deixava de agitá-la. O caçador ainda cavalgava; Dafne ainda voava. O coração ainda batia, pensou, embora muito fraco, embora muito distante, o frágil, indomável coração do imenso edifício. 
Agora, chamando os cachorros, passou pela galeria cujo chão era coberto com troncos de carvalhos serrados. Filas de cadeiras, com os veludos desbotados, estavam encostadas à parede, com braços abertos para Elizabeth, para Jaime, para Shakespeare, talvez, para Cecil, que nunca vinham. Essa visão entristeceu-a. Desamarrou a corda que as cercava. Sentou na cadeira da rainha; abriu um livro manuscrito que estava sobre a mesa de Lady Betty; revolveu com os dedos as velhas pétalas de rosas; escovou o cabelo curto com a escova de prata do rei Jaime, sacudiu-se para cima e para baixo na cama dele (mas nenhum rei dormiria lá novamente, apesar dos lençóis novos de Luísa) e comprimiu o rosto contra a gasta colcha prateada que a cobria. Mas por toda parte havia pequenos sacos de alfazema para afastar as traças e avisos impressos “favor não tocar”, que, embora ela mesma tivesse colocado, pareciam censurá-la, A casa não era mais inteiramente sua, suspirou. Pertencia agora ao tempo; à história; estava fora do contato e do controle dos vivos. Ali nunca mais se derramaria cerveja, pensou (estava no quarto onde ficara o velho Nick Greene), nem se fariam buracos de queimadura no carpete. Nunca mais duzentos criados viriam correndo e gritando pelos corredores, com panelas quentes e com grandes galhos para as grandes lareiras. Nunca mais se prepararia cerveja preta, nem se fariam velas, nem se moldariam selas, nem se talhariam pedras nas oficinas do lado de fora da casa. Martelos e malhos estavam agora silenciosos. Cadeiras e camas estavam vazias; jarros de ouro e prata trancados em vitrines. As grandes asas do silêncio abanavam para cima e para baixo na casa vazia. 
Assim sentou-se na extremidade da galeria com os cachorros deitados à sua volta, na poltrona dura da rainha Elizabeth. A galeria se estendia ao longe, até um ponto onde a luz quase falhava. Era como um túnel enterrado profundamente no passado. Enquanto passeava os olhos, podia ver gente rindo e conversando; grandes homens que conhecera; Dryden, Swift e Pope; e estadistas em colóquio; e amantes flertando nos bancos das janelas; e gente comendo e bebendo em longas mesas; e a fumaça da lenha volteando sobre suas cabeças e fazendo-os espirrar e tossir. Ainda mais longe viu grupos de esplêndidos dançarinos formados para a quadrilha. Uma música aflautada, frágil, mas apesar de tudo imponente, começou a tocar. Um órgão retumbou. Um caixão foi trazido para a capela. Um cortejo de casamento saía dali. Homens armados com capacetes partiam para a guerra. Traziam estandartes de Floddene Poitiers, e penduravam-nos na parede. Assim a extensa galeria ficou repleta; e ainda perscrutando adiante, pensou distinguir bem no fundo, além dos elisabetanos, dos Tudors, alguém mais velho, mais distante, mais sombrio, uma figura encapotada, monástica, austera, um monge, segurando um livro entre as mãos, murmurando... 
Como um trovão, o relógio de pé bateu quatro horas. Nunca um terremoto demoliu assim uma cidade inteira. A galeria e todos os seus ocupantes foram reduzidos a pó. Seu próprio rosto, que estivera escuro e sombrio enquanto olhava, iluminou-se com uma explosão de pólvora. Nessa mesma luz tudo que a cercava mostrava-se com extrema nitidez. Viu duas moscas girando e observou o brilho azul de seus corpos; viu um nó na madeira onde estava o seu pé e o tremor da orelha de um de seus cachorros. Ao mesmo tempo ouviu um galho quebrando no jardim, uma ovelha balindo no parque, um grito agudo pela janela. Seu próprio corpo tremeu e vibrou como se tivesse ficado despida de repente, numa forte geada. No entanto, ao contrário do que fizera quando o relógio batera dez horas em Londres, permaneceu completamente serena (porque agora ela era una e íntegra e apresentava, talvez, uma superfície maior para o choque do tempo). Levantou-se, mas sem precipitação, chamou os cachorros e desceu a escada com firmeza mas com grande agilidade de movimentos e foi para o jardim. Aqui as sombras das plantas eram miraculosamente diversificadas. Observou grão por grão da terra dos canteiros, como se tivesse um microscópio nos olhos. Viu o emaranhado dos ramos de cada árvore. Cada folha de grama era diferente, e cada nervura, e cada pétala. Viu Stubbs, o jardineiro, vindo pela alameda, e era visível cada botão de suas polainas; viu Betty e Prince, os cavalos da charrete, e nunca notara tão claramente a estrela branca na testa de Betty, e três pelos mais longos que caíam da cauda de Prince. Lá fora no pátio as velhas paredes cinzentas da casa pareciam uma fotografia recente, arranhada; ouviu o alto-falante condensando no terraço uma música de dança que se ouvia em Viena, na grande Casa de Ópera, de veludo vermelho. Estimulada e excitada pelo momento presente, sentia-se também estranhamente amedrontada, como se cada segundo abrisse uma brecha no golfo do tempo e pudesse trazer consigo algum perigo desconhecido. A tensão era implacável e rigorosa demais para ser suportada sem desconforto. Caminhou mais rapidamente do que desejava, como se suas pernas se movessem sozinhas através do jardim, saindo para o parque. Aqui fez um grande esforço para parar na carpintaria e ficou ali parada, observando Joe Stubbs modelar uma roda de charrete. Estava parada, os olhos fixos na mão dele, quando soou um quarto de hora. Aquilo a atingiu como um meteoro, tão quente que dedos não podem segurar. Viu com desagradável nitidez que o polegar da mão direita de Joe estava sem a unha e no lugar dela havia uma rodela de carne cor-de-rosa. A visão era tão repulsiva que por um momento sentiu que ia desmaiar, mas naquele momento de escuridão, quando suas pálpebras estremeceram, ficou aliviada da pressão do presente. Havia algo estranho na sombra que o tremular de seus olhos esboçou, algo que (como qualquer pessoa pode testar olhando agora para o céu) está sempre fora do presente — daí seu terror, seu caráter indefinível —, algo cujo corpo se hesita em atravessar com um alfinete e chamar de beleza, pois não tem corpo, é como uma sombra sem substância ou qualidade próprias, embora tenha o poder de mudar tudo aquilo a que se soma. Agora, enquanto ela pestanejava em seu desmaio diante da carpintaria, essa sombra saiu furtivamente e, apegando-se às inúmeras visões que tinha presenciado, transformou-as em algo tolerável, compreensível. Sua mente começou a balançar como o mar. Sim, pensava, dando um profundo suspiro de alívio, enquanto voltava da carpintaria para subir a colina, posso começar a viver novamente. Estou à margem da Serpentina, pensou, o barquinho está subindo pelo arco branco de mil mortes. Estou prestes a compreender... 
Estas foram suas palavras, ditas bem claramente, mas não se pode ocultar o fato de que ela agora era uma testemunha muito indiferente à verdade daquilo que estava diante de si e podia facilmente ter confundido um carneiro com uma vaca, ou um velho chamado Smith com um que se chamava Jones, e nada tinha a ver com aquele. Pois a sombra do desmaio causado pelo polegar sem unha escavara-lhe um poço na parte posterior do cérebro (que é o ponto mais distante da visão), onde as coisas habitam numa escuridão tão profunda que raramente sabemos o que são. Agora ela olhava para dentro desse poço ou mar no qual tudo é refletido — e, na verdade, alguns dizem que todas as nossas mais violentas paixões, e a arte, e a religião, são reflexos que vemos no vão escuro da parte posterior da cabeça quando o mundo visível fica obscurecido pelo tempo. Olhava para lá, agora, longa e profundamente, e logo a alameda de samambaias que conduzia à colina, por onde ia caminhando, tornou-se não completamente uma alameda, mas parcialmente a Serpentina; os espinheiros eram parcialmente senhoras e cavalheiros sentados, com estojos de cartões de visitas e bengalas de castão de ouro; os carneiros eram parcialmente casas altas de Mayfair; tudo era parcialmente outra coisa, como se sua mente tivesse se tornado uma floresta, com clareiras se ramificando aqui e ali; as coisas se aproximavam e se afastavam, se misturavam e se separavam e faziam estranhas alianças e combinações, num incessante xadrez de luz e sombra. Ela esqueceu o tempo até que Canute, o galgo, caçou um coelho, e isso lembrou-a de que deviam ser quatro e meia — na verdade eram 23 minutos para as seis — ela esquecera do tempo. 
A alameda de samambaias conduzia com muitas voltas e curvas cada vez mais alto até o carvalho, que ficava no topo. A árvore se tornara maior, mais robusta e mais cheia de nós do que quando ela a conhecera, aí pelo ano de 1588, mas ainda estava no vigor da vida. As pequenas folhas angulosamente recortadas ainda tremulavam densamente em seus ramos. Atirando-se ao chão, sentiu os ossos da árvore alongando-se para um lado e para outro, debaixo de si, como costelas de uma espinha dorsal. Gostava de pensar que cavalgava o dorso do mundo. Gostava de se agarrar a algo firme. Quando se atirou ao chão, um pequeno livro quadrado, encadernado em tecido vermelho, caiu do peito de sua jaqueta de couro — seu poema “O Carvalho”. “Eu deveria ter trazido uma pá”, refletiu. A terra era tão rasa sobre as raízes que parecia duvidoso que ela pudesse fazer o que queria — enterrar o livro ali. Além disso, os cachorros o desencavariam. A sorte jamais acompanha essas celebrações simbólicas, pensou. Talvez então fosse melhor dispensá-las. Tinha um pequeno discurso na ponta da língua, que pensava pronunciar sobre o livro quando fosse enterrá-lo (era uma cópia da primeira edição, assinada pelo autor e artista). “Enterro isto como um tributo”, ia dizer, “um retorno à terra daquilo que a terra me deu”, mas Senhor!, quando se começa a dizer palavras em voz alta, como elas soam bobas! Recordou-se do velho Greene, subindo numa plataforma, outro dia, comparando-a com Milton (a não ser pela cegueira) e entregando-lhe um cheque de duzentos guinéus. Pensara então no carvalho, aqui, na colina, e se perguntara o que uma coisa tinha a ver com a outra. O que o elogio e a fama têm a ver com a poesia? O que têm a ver sete edições (já chegara a isso) com o valor do livro? Escrever poesia não era uma transação secreta, uma voz respondendo a outra voz? De modo que todo esse palavrório, e elogio, e censura, e encontrar pessoas que admiram, e pessoas que não admiram, não combinam com a coisa em si — uma voz respondendo a outra voz. Que podia haver de mais secreto, pensou, mais lento e semelhante à conversa dos amantes do que a claudicante resposta que dirigira todos esses anos à velha e sussurrante canção dos bosques, e às fazendas, aos cavalos castanhos parados no portão, pescoço contra pescoço, e à ferraria, e à cozinha, e aos campos que tão laboriosamente produzem trigo, nabos, grama, e ao jardim explodindo de íris e lilases? 
De modo que deixou ali o livro, sem enterrá-lo, em desalinho no chão, e contemplou a ampla vista, variada naquela tarde como o fundo do oceano, com o sol iluminando e as sombras escurecendo. Havia uma aldeia com a torre da igreja entre álamos; a cúpula cinzenta de uma mansão, num parque; um facho de luz brilhando numa vidraça; um quintal com espigas de milho amarelas. Os campos eram marcados por agrupamentos de árvores negras, e para além dos campos se estendiam vastas florestas e havia o brilho de um rio e depois novamente colinas. A distância os penhascos de Snowdon quebravam-se, brancos, entre as nuvens; ela via as longínquas colinas escocesas e as selvagens marés que faziam redemoinhos em torno das Hébridas. Escutou o som do canhão, no mar. Não — apenas o vento soprava. Não havia guerra hoje. Drake se fora; Nelson se fora. “E ali”, pensou, deixando os olhos que tinham ficado olhando essas distâncias caírem uma vez mais sobre a terra a seus pés, “um dia foi a minha terra: aquele castelo entre as colinas era meu; e todo este pântano, que vai quase até o mar, era meu.” Aqui a paisagem (deve ter sido algum jogo da luz que empalidecia) se abalou, se ergueu, e deixou deslizar toda essa aglomeração de casas, castelos e florestas por suas encostas cônicas. As montanhas nuas da Turquia estavam diante dela. Era um ardente meio-dia. Olhou diretamente para a encosta tostada. Cabras ceifavam os tufos de areia a seus pés. Uma águia pairava sobre ela. A voz rascante do velho Rustum, o cigano, corvejou em seus ouvidos: “Que são a tua antiguidade e a tua raça e as tuas propriedades, comparadas com isto? Por que precisas de quatrocentos quartos e tampas de prata em todas as tuas travessas, e empregadas domésticas espanando?” 
Nesse momento algum relógio de igreja soou no vale. A paisagem cônica estremeceu e desmoronou. O presente caiu sobre sua cabeça uma vez mais, mas agora que a luz estava esmaecendo, mais suavemente do que antes, sem destacar nenhum detalhe, nenhuma coisa pequena, apenas campos enevoados, chalés com luzes, a massa adormecida de um bosque e uma luz em forma de leque empurrando a escuridão na sua frente ao longo de uma aleia. Não podia dizer se tinham batido nove, dez ou 11 horas. A noite chegara — a noite que ela sempre amara, a noite que é quando os reflexos no poço escuro da mente brilham mais claros do que de dia. Não era necessário desmaiar agora para olhar profundamente a escuridão onde as coisas se moldam e ver no poço da mente, ora Shakespeare, ora uma jovem de calças russas, ora um barco de brinquedo na Serpentina, e depois o próprio Atlântico onde se elevam grandes vagas em torno do cabo Horn. Olhou para a escuridão. Lá estava o brigue de seu marido subindo no topo da onda! Alto, cada vez mais alto, mais alto. O arco branco de mil mortes elevava-se diante dele. Oh, homem arrojado, ridículo, sempre velejando assim inutilmente em redor do cabo Horn, nas garras de uma ventania! Mas o brigue passou pelo arco para o outro lado; estava salvo, finalmente! 

— Êxtase! — gritou —, êxtase! — E então o vento amainou, as águas se acalmaram; e ela viu as ondas se encrespando calmamente ao luar. 

— Marmaduke Bonthrop Shelmerdine! — gritou encostada no carvalho. 

O belo, cintilante nome caiu do céu como uma pena azul-aço. Ela observou-a cair girando e torcendo-se como uma flecha vagarosa que perfura lindamente o ar profundo. Ele estava chegando, como sempre vinha em momentos de calmaria mortal. Quando a onda se encrespava e as folhas manchadas caíam lentamente sobre seus pés nos bosques de outono; quando o leopardo estava quieto; a lua sobre as águas e nada se movia entre o céu e o mar. Então ele chegava. 
Tudo estava calmo agora. Era quase meia-noite. A lua subia lentamente por sobre as planícies. Sua luz fez surgir um castelo fantasma sobre a terra. Lá estava a grande mansão com todas as janelas vestidas de prata. Não havia paredes nem substância. Tudo era fantasmagórico. Tudo estava quieto. Tudo estava iluminado como se para a chegada de uma rainha morta. Olhando para baixo, Orlando viu plumas balançando no pátio, tochas tremulando e sombras se ajoelhando. Uma rainha mais uma vez saía de sua carruagem. 

— A casa está às suas ordens, senhora — gritou em profunda reverência. — Nada mudou. O falecido senhor, meu pai, a conduzirá para dentro. 

Enquanto falava, soou a primeira badalada da meia-noite. A brisa fria do presente varreu-lhe a face com um breve sopro de medo. Olhou ansiosamente para o céu. Estava escuro com nuvens, agora. O vento rugia em seus ouvidos. Mas no rugido do vento ela ouviu o rugir de um aeroplano que se aproximava mais e mais. 

— Aqui! Shel, aqui! — gritou, desnudando o peito para a lua (que agora brilhava) de modo que suas pérolas cintilavam como ovos de uma enorme aranha lunar. O aeroplano rompeu as nuvens e permaneceu sobre sua cabeça. Pairou sobre ela. Suas pérolas arderam como uma labareda fosforescente na escuridão. 

E quando Shelmerdine, agora um belo capitão de marinha, vigoroso, corado e ágil pulou para o chão, por cima de sua cabeça surgiu um pássaro selvagem solitário. 

— É o ganso! — gritou Orlando. — O ganso selvagem... 

E a décima segunda badalada da meia-noite soou; a décima segunda badalada da meia-noite de quinta-feira, 11 de outubro de Mil Novecentos e Vinte e Oito.


fim

___________________________

Leia também:

Virgínia Woolf - Orlando : Apresentação e Prefácio
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1(b) - Talvez fosse culpa de Orlando...
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1(c) ... A princesa prosseguiu
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 1(d) ... Toda a cor, salvo o vermelho
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 2 (a) ... O biógrafo agora se depara
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 2 (b) ... Como esta pausa era...
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 2 (c) ... No mesmo momento
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 2 (d) ... Nunca a casa
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 3 (a) ... É realmente uma grande infelicidade
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 3 (b) ... Felizmente, a srta. Penelope Hartopp, filha do general
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 3 (c) ... O som das trombetas diminuiu
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 4 (a) ... Com alguns guinéus
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 4 (b) ... Ninguém manifestou a menor suspeita
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 4 (c) ... Para fazer justiça a ela
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 4 (d) ... Orlando atirou a segunda meia
Virgínia Woolf - Orlando : Capítulo 6 (f) ... Habilmente
____________________


Lima Barreto - O Triste fim de Policarpo Quaresma: 3ª Parte III (a) - ...E Tornaram Logo Silenciosos...

 O triste fim de Policarpo Quaresma 



Lima Barreto




A João Luiz Ferreira 
Engenheiro Civil 

Le grand inconvénient de la vie réelle et ce qui la rend insupportable à l’homme supérieur, c’est que, si l’on y transporte les principes de l’idéal, les qualités deviennent des défauts, si bien que fort souvent l’homme accompli y réussit moins bien que celui qui a pour mobiles l’égoïsme ou la routine vulgaire. 

Renan, Marc-Auréle 





TERCEIRA PARTE


III - ...E Tornaram Logo Silenciosos...


- Eu tenho experimentado tudo, Quaresma, mas não sei... não há meio!

- Já a levou a um médico especialista?

- Já. Tenho corrido médicos, espíritas, até feiticeiros, Quaresma!

E os olhos do velho se orvalhavam por baixo do pince-nez. Os dous se haviam encontrado na pagadoria da Guerra e vinham pelo campo de Sant’Anna, a pé, andando a pequenos passos e conversando. O general era mais alto que Quaresma, e enquanto este tinha a cabeça sobre um pescoço alto, aquele a tinha metida entre os ombros proeminentes, como cotos de asas. Albernaz reatou:

- E remédios! Cada médico receita uma cousa; os espíritas são os melhores, dão homeopatia; os feiticeiros tisanas, rezas e defumações... Eu não sei, Quaresma!

E levantou os olhos para o céu, que estava um tanto plúmbeo. Não se demorou, porém, muito nessa postura; o pince-nez não permitia, já começava a cair.
Quaresma abaixou a cabeça e andou assim um pouco olhando as granulações do granito do passeio. Levantou o olhar ao fim de algum tempo, e disse:

- Por que não a recolhe a uma casa de saúde, general?

- Meu médico já me aconselhou isso... A mulher não quer e agora mesmo, no estado em que a menina está, não vale a pena...

Falava da filha, da Ismênia, que, naqueles últimos meses, piorava sensivelmente, não tanto da sua moléstia mental, mas da saúde comum, vivendo de cama, sempre febril, enlanguescendo, definhando, marchando a passos largos para o abraço frio da morte.
Albernaz dizia a verdade; para curá-la tanto de sua loucura como da atual moléstia intercorrente, lançara mão de todos os recursos, de todos os conselhos apontados por quem quer que fosse. Era de fazer refletir ver aquele homem, general, marcado com um curso governamental, procurar médiuns e feiticeiros, para sarar a filha.
Às vezes até levava-os em casa. Os médiuns chegavam perto da moça, davam um estremeção, ficam com uns olhos desvairados, fixos, gritavam: “Sai, irmão!” - e sacudiam as mãos, do peito para a moça, de lá para cá, rapidamente, nervosamente, no intuito de descarregar sobre ela os fluidos milagrosos.
Os feiticeiros tinham outros passes e as cerimônias para entrar no conhecimento das forças ocultas que nos cercam eram demoradas, lentas e acabadas. Em geral, eram pretos africanos. Chegavam, acendiam um fogareiro no quarto, tiravam de um cesto um sapo empalhado ou outra cousa esquisita, batiam com feixes de ervas, ensaiavam passos de dança e pronunciavam palavras ininteligíveis. O ritual era complicado e tinha a sua demora.
Na saída, a pobre Dona Maricota, um tanto já diminuída da sua atividade e diligência, olhando ternamente aquele grande rosto negro do mandingueiro, onde a barba branca punha mais veneração e certa grandeza, perguntava:

- Então, titio?

O preto considerava um instante, como se estivesse recebendo as últimas comunicações do que não se vê nem se percebe, e dizia com a sua majestade de africano:

- Vô vê, nhãnhã... Tô crotando mandinga...

Ela e o general tinham assistido à cerimônia e o amor de pais e também esse fundo de superstição que há em todos nós levavam a olhá-la com respeito, quase com fé

- Então foi feitiço que fizeram à minha filha? perguntava a senhora.

- Foi, sim, nhanhã.

- Quem?

- Santo não qué dizê.

E o preto obscuro, velho escravo, arrancado há um meio século dos confins da África, saía arrastando a sua velhice e deixando naqueles dous corações uma esperança fugaz.
Era uma singular situação, a daquele preto africano, ainda certamente pouco esquecido das dores do seu longo cativeiro, lançando mão dos resíduos de suas ingênuas crenças tribais, resíduos que tão a custo tinham resistido ao seu transplante forçado para terras de outros deuses - e empregando-os na consolação dos seus senhores de outro tempo. Como que os deuses de sua infância e de sua raça, aqueles sanguinários manipansos da África indecifrável, quisessem vingá-lo à legendária maneira do Cristo dos Evangelhos...
A doente assistia a tudo aquilo sem compreender e se interessar por aqueles trejeitos e passes de tão poderosos homens que se comunicavam, que tinham às suas ordens os seres imateriais, as existências fora e acima da nossa.
Andando, ao lado de Quaresma, o general lembrava-se de tudo isso e teve um pensamento amargo contra a ciência, contra os espíritos, contra os feitiços, contra Deus que lhe ia tirando a filha aos poucos sem piedade e comiseração.
O major não sabia o que dizer diante daquela imensa dor de pai e parecia-lhe toda e qualquer palavra de consolo parva e idiota. Afinal disse:

- General, o senhor permite que eu a faça ver por um médico?

- Quem é?

- É o marido de minha afilhada... o senhor conhece... É moço, quem sabe lá! Não acha? Pode ser, não é?

O general consentiu e a esperança de ver curada a filha lhe afagou as faces enrugadas. Cada médico que consultava, cada espírita, cada feiticeiro reanimava-o, pois de todos eles esperava o milagre.
Nesse mesmo dia, Quaresma foi procurar o Doutor Armando.
A revolta já tinha mais de quatro meses de vida e as vantagens do governo eram problemáticas. No Sul, a insurreição chegava às portas de São Paulo, e só a Lapa resistia tenazmente, uma das poucas páginas dignas e limpas de todo aquele enxurro de paixões. A pequena cidade tinha dentro de suas trincheiras o Coronel Gomes Carneiro, uma energia, uma vontade, verdadeiramente isso, porque era sereno, confiante e justo. Não se desmanchou em violências de apavorado e soube tornar verdade a gasta frase grandiloqüente: resistir até à morte.
A ilha do Governador tinha sido ocupada e Magé tomado; os revoltosos, porém, tinham a vasta baía e a barra apertada, por onde saíam e entravam, sem temer o estorvo das fortalezas.
As violências, os crimes que tinham assinalado esses dous marcos de atividade guerreira do governo, chegavam ao ouvido de Quaresma e ele sofria.
Da ilha do Governador fez-se uma verdadeira mudança de móveis, roupas e outros haveres. O que não podia ser transplantado, era destruído pelo fogo e pelo machado.
A ocupação deixou lá a mais execranda memória e até hoje os seus habitantes ainda se recordam dolorosamente de um capitão, patriótico ou da guarda nacional, Ortiz, pela sua ferocidade e insofrido gosto pelo saque e outras vexações. Passava um pescador, com uma tampa de peixe, e o capitão chamava o pobre homem:

- Venha cá!

O homem aproximava-se amedrontado e Ortiz perguntava:

- Quanto quer por isso?

- Três mil-réis, capitão

Ele sorria diabolicamente e familiarmente regateava:

- Você não deixa por menos?... Está caro... Isso é peixe ordinário... Carapebas! Ora!

- Bem, capitão vá lá por dous e quinhentos.

- Leve isso lá dentro.

Ele falava na porta de casa. O pescador voltava e ficava um tempo em pé, demonstrando que esperava o dinheiro. Ortiz balançava a cabeça e dizia escarninho:

- Dinheiro! hein? Vá cobrar ao Floriano.

Entretanto, Moreira César deixou boas recordações de si e ainda hoje há lá quem se lembre dele, agradecido por este ou aquele benefício que o famoso coronel lhe prestou.
As forças revoltosas pareciam não ter enfraquecido; tinham, porém, perdido dous navios, sendo um destes o “Javari”, cuja reputação na revolta era das mais altas e consideradas. As forças de terra detestavam-no particularmente. Era um monitor, chato, raso com a água, uma espécie de sáurio ou quelônio de ferro, de construção francesa. A sua artilharia era temida; mas o que sobremodo enraivecia os adversários, era ele não ter quase borda acima d’água, ficar quase ao nível do mar e fugir assim aos tiros incertos de terra. As suas máquinas não funcionavam e a grande tartaruga vinha colocar-se em posição de combate com auxílio de um rebocador.
Um dia em que estava nas proximidades de Villegaignon, foi a pique. Não se soube e até hoje não foi esclarecido por que foi. Os legalistas afirmaram que foi uma bala de Gragoatá; mas os revoltosos asseguraram que foi a abertura de uma válvula ou um outro acidente qualquer.
Como o do seu irmão, o “Solimões”, que desapareceu nas costas de cabo Polônio, o fim do “Javari” ainda está envolvido no mistério.
Quaresma permanecia de guarnição no Caju, e viera receber dinheiro. Deixara lá Polidoro, pois os outros oficiais estavam doentes ou licenciados, e Fontes, que, sendo uma espécie de inspetor-geral, ao contrário de seus hábitos, dormira aquela noite no pequeno pavilhão imperial e ia ficar até à tarde.
Ricardo Coração dos Outros, desde o dia da proibição de tocar violão, andava macambúzio. Tinham-lhe tirado o sangue, o motivo de viver, e passava os dias taciturno, encostado a um tronco de árvore maldizendo no fundo de si a incompreensão dos homens e os caprichos do destino.
Fontes notara a sua tristeza; e, para minorar-lhe o desgosto, obrigara a Bustamante a fazê-lo sargento. Não foi sem custo, porque o antigo veterano do Paraguai encarecia muito essa graduação e só a dava como recompensa excepcional ou quando requerida por pessoas importantes.
A vida do pobre menestrel era assim de um melro engaiolado; e, de quando em quando, ele se afastava um pouco e ensaiava a voz, para ver se ainda a tinha e não fugira com o fumo dos disparos.
Quaresma sabendo que dessa maneira o posto estava bem entregue, resolveu demorar-se mais, e, após despedir-se de Albernaz, encaminhou-se para a casa do seu compadre, a fim de cumprir a promessa que fizera ao general.
Coleoni ainda não decidira a sua viagem à Europa. Hesitava, esperando o fim da rebelião que não parecia estar próximo. Ele nada tinha com ela; até ali, não dissera a ninguém a sua opinião; e, se era muito instado, apelava para a sua condição de estrangeiro e metia-se numa reserva prudente. Mas, aquela exigência de passaporte, tirado na chefatura de polícia, dava-lhe susto. Naqueles tempos, toda a gente tinha medo de tratar com autoridades. Havia tanta má vontade com os estrangeiros, tanta arrogância nos funcionários que ele não se animava a ir obter o documento, temendo que uma palavra, que um olhar, que um gesto, interpretados por qualquer funcionário zeloso e dedicado, não o levassem a sofrer maus quartos de hora.
Verdade é que ele era italiano e a Itália já fizera ver ao ditador que era uma grande potência, mas no caso de que se lembrava, tratava-se de um marinheiro, por cuja vida, extinta por uma descarga das forças legais, Floriano pagara a quantia de cem contos. Ele, Coleoni, porém, não era marinheiro e não sabia, caso fosse preso, se os representantes diplomáticos de seu país tomariam interesse pela sua liberdade.
De resto, não tendo protestado manter a sua nacionalidade, quando o governo provisório expediu o famoso decreto de naturalização, era bem possível que uma ou outra parte se ativessem a isso, para desinteressar-se dele ou mantê-lo na famosa galeria nº 7, da Casa de Correição, transformada, por uma penada mágica, em prisão de Estado.
A época era de susto e temor, e todos esses que ele sentia, só os comunicava à filha, porque o genro cada vez mais se fazia florianista e jacobino, de cuja boca muita vez ouvia duras invectivas aos estrangeiros.
E o doutor tinha razão; já obtivera uma graça governamental. Fora nomeado médico do Hospital de Santa Bárbara, na vaga de um colega, demitido a bem do serviço público como suspeito por ter ido visitar um amigo na prisão. Como o hospital, porém, ficasse no ilhéu do mesmo nome, dentro da baía, em frente à Saúde e a Guanabara ainda estivesse em mão dos revoltosos, ele nada tinha que fazer, pois até agora o governo não aceitara os seus oferecimentos de auxiliar o tratamento dos feridos.
O major foi encontrar pai e filha em casa; o doutor tinha saído, ido dar volta pela cidade, dar arras de sua dedicação à causa legal, conversando com os mais exaltados jacobinos do Café do Rio, não esquecendo também de passear pelos corredores do Itamarati, fazendo-se ver pelos ajudantes-de-ordens, secretários e outras pessoas influentes no ânimo de Floriano.
A moça viu entrar Quaresma com aquele sentimento estranho que o seu padrinho lhe causava ultimamente, e esse sentimento mais agudo se tornava quando o via contar os casos guerreiros do seu destacamento, a passagem de balas, as descargas das lanchas, naturalmente, simplesmente, como se fossem feições de uma festa, de uma justa, de um divertimento qualquer em que a morte não estivesse presente.
Tanto mais que o via apreensivo, deixando perceber numa frase e noutra o desânimo e desesperança.
Na verdade o major tinha um espinho n’alma. Aquela recepção de Floriano às suas lembranças de reformas não esperavam nem o seu entusiasmo e sinceridade nem tampouco a ideia que ele fazia do ditador. Saíra ao encontro de Henrique IV e de Sully e vinha esbarrar com um presidente que o chamava de visionário, que não avaliava o alcance dos seus projetos, que os não examinava sequer, desinteressado daquelas altas cousas de governo como se não o fosse!... Era pois para sustentar tal homem que deixara o sossego de sua casa e se arriscava nas trincheiras? Era, pois, por esse homem que tanta gente morria? Que direito tinha ele de vida e de morte sobre os seus concidadãos, se não se interessava pela sorte deles, pela sua vida feliz e abundante, pelo enriquecimento do país, o progresso de sua lavoura e o bem-estar de sua população rural?
Pensando assim, havia instantes que lhe vinha um mortal desespero, uma raiva de si mesmo; mas em seguida considerava: o homem está atrapalhado, não pode agora; mais tarde com certeza ele fará a cousa...

Vivia nessa alternativa dolorosa e era ela que lhe trazia apreensões, desânimo e desesperança, notados por sua afilhada na sua fisionomia já um pouco acabrunhada.
Não tardou, porém, que, abandonando os episódios da sua vida militar, Quaresma explicasse o motivo de sua visita.

- Mas qual delas? perguntou a afilhada.

- A segunda, a Ismênia.

- Aquela que estava para casar com o dentista?

- Esta mesmo.

- Ahn!...

Ela pronunciou este “ahn” muito longo e profundo, como se pusesse nele tudo que queria dizer sobre o caso. Via bem o que fazia o desespero da moça, mas via melhor a causa, naquela obrigação que incrustam no espírito das meninas, que elas se devem casar a todo o custo, fazendo do casamento o polo e fim da vida, a ponto de parecer uma desonra, uma injúria, ficar solteira.
O casamento já não é mais amor, não é maternidade, não é nada disso: é simplesmente casamento, uma coisa vazia, sem fundamento nem na nossa natureza nem nas nossas necessidades.
Graças à frouxidão, à pobreza intelectual e fraqueza de energia vital de Ismênia, aquela fuga do noivo se transformou em certeza de não casar mais e tudo nela se abismou nessa ideia desesperada. Coleoni enterneceu-se muito e interessou-se. Sendo bom de fundo, quando lutava pela fortuna se fez duro e áspero, mas logo que se viu rico, perdeu a dureza de que se revestira, pois percebia bem que só se pode ser bom quando se é forte de algum modo.
Ultimamente o major tinha diminuído um pouco o interesse pela moça; andava atormentado com o seu caso de consciência, entretanto, se não tinha um constante e particular pensamento pela desdita da filha de Albernaz, abrangia-a ainda na sua bondade geral, larga e humana.
Não se demorou muito na casa do compadre; ele queria, antes de voltar ao Caju, passar pelo quartel do seu batalhão. Ia ver se arranjava uma pequena licença, para visitar a irmã que deixara lá, no “Sossego”, e de quem tinha notícias, por carta, três vezes por semana. Eram elas satisfatórias, contudo ele tinha necessidade de ver tanto ela como o Anastácio, fisionomias com quem se encontrava diariamente há tantos anos e cuja contemplação lhe fazia falta e talvez lhe restituísse a calma e a paz de espírito.
Na última carta que recebera de Dona Adelaide, havia uma frase de que, no momento, se lembrava sorrindo: “Não te exponhas muito, Policarpo. Toma muita cautela.” Pobre Adelaide! Estava a pensar que esse negócio de balas é assim como a chuva?!...
O quartel ainda ficava no velho cortiço condenado pela higiene, lá para as bandas da Cidade Nova. Assim que Quaresma apontou na esquina, a sentinela deu um grande berro, fez uma imensa bulha com a arma e ele entrou, tirando o chapéu da cabeça baixa, pois estava a paisana e tinha abandonado a cartola com medo de que esse traje fosse ferir as susceptibilidades republicanas dos jacobinos.


continua na página 88...
___________

Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…

Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.

_________________

MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional 
Departamento Nacional do Livro
________________

O Triste fim de Policarpo Quaresma: 3ª Parte II (a) - Você, Quaresma, É um Visionário
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 3ª Parte III (a) - ...E Tornaram Logo Silenciosos...
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 3ª Parte III (b) - ... E Tornaram Logo Silenciosos...