terça-feira, 31 de outubro de 2017

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos VIII

Cruz e Sousa

Obra Completa
Volume 1
POESIA



O Livro Derradeiro
Primeiros Escritos

Cambiantes
Outros Sonetos Campesinas
Dispersas
Julieta dos Santos




OUTROS SONETOS 








NOIVA E TRISTE


Rola da luz do céu, solta e desfralda 
Sobre ti mesma o pavilhão das crenças, 
Constele o teu olhar essas imensas 
Vagas do amor que no teu peito escalda.

A primorosa e límpida grinalda 

Há de enflorar-te as amplidões extensas 
Do teu pesar – há de rasgar-te as densas 
Sombras – o véu sobre a luzente espalda...

Inda não ri esse teu lábio rubro 
Hoje – inda n’alma, nesse azul delubro 
Não fulge o brilho que as paixões enastra;

Mas, amanhã, no sorridor noivado, 
A vida triste por que tens passado, 
De madressilvas e jasmins se alastra.




MÃE E FILHO 
               Às mães desamparadas


Jesus, meu filho, o encanto das crianças, 
Quando na cruz, de angústia espedaçado, 
Em sangue casto e límpido banhado, 
Manso, tão manso como as pombas mansas;

Embora as duras e afiadas lanças 
Com que os judeus tinham, de lado a lado, 
Seu coração puríssimo varado, 
Inda no olhar raiavam-lhe esperanças.

Por isso, ó filho, ó meu amor – se a esmola 
De algum conforto essencial não rola 
Por nós – é força conduzir a cruz!...

Mas, volta o filho, pesaroso e triste. 
Se a nossa vida só na dor consiste, 
Ah! minha mãe, por que morreu Jesus?...




 NATUREZA 
                  Aos Poetas


Tudo por ti resplende e se constela, 
Tudo por ti, suavíssimo, flameja; 
És o pulmão da racional peleja, 
Sempre viril, consoladora e bela.

Teu coração de pérolas se estrela, 
E o bom falerno dás a quem deseja 
Vigor, saúde à crença que floreja, 
Que as expansões do cérebro revela.

Toda essa luz que bebe-se de um hausto 
Nos livros sãos, todo esse enorme fausto 
Vem das verduras brandas que reluzem!

Esse da ideia esplêndido eletrismo, 
O forte, o grande, audaz psicologismo, 
Os organismos naturais produzem...






__________________



Sousa, Cruz e, 1861-1898 Obra completa : poesia / João da Cruz e Sousa ; organização e estudo por Lauro Junkes. – Jaraguá do Sul : Avenida ; 2008. v. 1 (612 p.)

Edição comemorativa dos 110 anos de falecimento e do traslado dos restos mortais de Cruz e Sousa para Santa Catarina.


O diferencial mais arrojado desta organização reside na opção por buscar maior aproximação ao evoluir poético do instaurador do Simbolismo no Brasil. Seus poemas inéditos, na absoluta maioria anteriores à sua fase simbolista, foram aos poucos sendo recolhidos e publicados sob o título O Livro Derradeiro, que muitas vezes tem provocado interpretações errôneas. Se o livro foi o derradeiro na sua organização, os poemas não pertencem à última fase do poeta e não representam a madureza do pensamento e da arte poética do autor. Optamos, então, por colocar esse livro em primeiro lugar, antes da sua trilogia de livros simbolistas, que, estes sim, representam a arte madura do poeta.


______________________

Leia também:

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos I

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos II

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos III

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos IV

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos V

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos VI

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos VII

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos IX


Dom Casmurro: Entre Luz e Fusco

Machado de Assis

Dom Casmurro





CAPÍTULO LI
ENTRE LUZ E FUSCO



Entre luz e fusco, tudo há de ser breve como esse instante. Nem durou muito a nossa despedida, foi o mais que pôde, em casa dela, na sala de visitas, antes do acender das velas; aí é que nos despedimos de uma vez. Juramos novamente que havíamos de casar um com o outro, e não foi só o aperto de mão que selou o contrato, como no quintal, foi a conjunção das nossas bocas amorosas... Talvez risque isto na impressão, se até lá não pensar de outra maneira; se pensar, fica. E desde já fica, porque, em verdade, é a nossa defesa. O que o mandamento divino quer é que não juremos em vão pelo santo nome de Deus. Eu não ia mentir ao seminário, uma vez que levava um contrato feito no próprio cartório do céu. Quanto ao selo, Deus, como fez as mãos limpas, assim fez os lábios limpos, e a malícia está antes na tua cabeça perversa que na daquele casal de adolescentes... Oh! minha doce companheira da meninice, eu era puro, e puro fiquei, e puro entrei na aula de S. José, a buscar de aparência a investidura sacerdotal, e antes dela a vocação. Mas a vocação eras tu, a investidura eras tu.







__________________________

Texto de referência:

Obras Completas de Machado de Assis, vol. I,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.

Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1899.

_____________________


Dom Casmurro: Capítulo XLIX / Uma Vela aos Sábados


Dom Casmurro: Capítulo L / Uma Meio-Termo








segunda-feira, 30 de outubro de 2017

histórias de avoinha: o moço vai deitar na rede?

mulheres descalças


o moço vai deitar na rede?
Ensaio 110B – 2ª edição 1ª reimpressão


baitasar


num sei pruqui, num sei a razão nem a falta da razão pra vida se mostrá assim pra eu, ela esconde as coisa boa, num tô fazendo choradêra, fartura mesmo só das coisa ruim

agora mesmo, num sei se uqui aconteceu ainda vai contecê, tumbém num sei se uqui vai acontecê já conteceu. parece bobice, mais num é, num dá pra creditá qui uqui tá acontecendo tá contecendo. nuncaconteceu. a moça é muntu bunita, mais as corrente é muntu dura

gosto da buniteza da moça, pode sê qui gostá muntu da moça vai fazê eu sê livre, pode sê qui num vai. isso num importa, uqui importa é eu sê dono dieu mesmo. num é bão essa coisa dinum sabê ou sabê dimenos, sabê dimais faz parecê esperto, eu sei qui sabê num é esperteza, é só momento acertado, lugá ajustado. mais é bão sabê. é preciso sabê qui gosta da buniteza da moça pode sê otra cadeia, mais cum otro gosto, um rodomoinho cum as preocupação sobre amô, saudade, canto, sonho, vingá a semeadura na terra dumbigo

Então, o Moço não vai deitar na rede?

as purugunta diantes parece sê diagora, as coisa feita diantes parece sê feita diagora, só uma coisa num muda, a buniteza da moça

Nunca deitei assim...

parecia saí dusóio da moça um fugaréu qui entalhava toda ela cum bondade. a moça oiôeu deitada donde tava, na rede agarrada na terra pendurada nucéu. quanta beldade na terra, quanta belezura nucéu

cumo posso dá uqui nunca tive? vô sabê uqui posso dá? tava eu ali, quase um baobá ou quase uma pedra? cum medo eu tava. num tenho nem costume disabê pra repetí, num tenho nem vontade pra repetí, é tanta amargura, é tanto sofrimento, num vô perdê tempo cum amaldiçoamento da vingança. meió é vivê

Assim como?

a moça é teimosa, num vai desistí. eu num queria tremê as palavra, mais eu tava mais assoprando vento qui soltando a língua

Eu... mais a rede... mais a moça.

ela num fez zombaria nem mostrô alegria, num tava caçoando. a moça carregava muntus eu dentro da moça. parecia num pedí nada, parecia oferecê tudo. a rede embalava dengosa nucéu da terra, cheia da boa vontade

Tire esse poncho e venha cá... se o Moço assim quiser...

tô-qui-tô tô-qui-tô tô-qui-tô

as batida qui ucuração fazia empurrava cum uspé descalço umeu corpo presente pra junto da moça. um comboio cum uspé descalço, passo à passo, ucorpo queimando cuma flecha, pronto pra se soltá duarco pruvão das perna da preta. num precisava sê empurrado

Eu acho qui vai sê bão...

ela continuava puxando eu cum as palavra mais usóio mais uvão das perna aberta. ela sabia qui eu tava improvisando, num ia chegá aviso ducéu nem descê algum milagre. ucéu inté agora num fez umenó caso dieu, mesmo depois ditê derramado toda água morna dusóio, cumo se fosse assim mesmo: donoditudo vive disposto pra ganhá a vida sem trabaiá, mais cum a dô dutrabáio duspretu escravizado. ele qué mais as coisa qui a amizade das pessoa, ele qué mais mandá qui se interessá cum as pessoa

Você é mesmo um pudim de chocolate.

era munta promessa prometida, fiz qui num escutei. mais na dúvida disê ou num sê verdade soltei uponcho

Assim, puruguntei já sem uponcho qui ficô largado na terra

É... assim, sem o poncho. O Moço aceita um charuto? Ou uma cachaça?

num respondi. num sabia ugosto desse charuto, só sabia da cachaça, mais puruguntei das mão

O que têm as mãos?

Onde eu coloco as mão?

ela riu alto, muntu alto. pedí pra num rí tão grande pruqui podia alertá algum caçadô duspretu pru lugá daqui, Num tê onde colocá as mão num é bão, expliquei. ela riu mais alto, Eu num gosto das mão qui tenho. Elas parece tá sempre cum adoecimento das porcaria qui elas precisô limpá.

Deixe-me vê-las...

mostrei

ela segurô as duas. avizinhô da boca uma, depois otra. mais num parô assim, colocô as duas uma em cada peito empinado, os dois botão derramando. eu cum usóio estalado na moça qui tava dum jeito lustroso metido nusóio dieu

tô-qui-tô tô-qui-tô tô-qui-tô

ucuração da moça batia cum força nas mão dieu

Já vi mãos obscenas, enfiadas nas coxas, albergadas, acomodadas, largadas, sem ofício ou boa vontade, preguiçosas, violentas. Outras eu vi lavrando a terra, semeando, tocando guitarra, levantando o chapéu de palha. Mas as mãos que não consigo esquecer estão sempre sangrando, metidas em correntes de ferro. O céu nunca fez o menor caso com a fome destas mãos... o Moço coloca as mãos onde acha que deve, onde lhe parece melhor. Não precisa pedir permissão. O mesmo eu faço com minhas mãos.

pensei puruguntá onde devia colocá a boca, depois achei qui num devia colocá a boca em lugá nehum da moça, mais acabei puruguntando

dessa veiz, ela num riu. continuava cum usóio cravado mais doce qui já vi, eles num proibia nada nem oferecia milagre. eu num tava preparado prusóio da moça, usóio mais fresco, usóio mais alvoroçado qui já vi espiando pra eu

Coloque a boca onde o Moço quiser...

oiêi a natureza da moça, num tinha regalo meió pra oiá, parecia abrigá a terra dumbigo cercada cum mato encantado. 
a terra mais cobiçada, cuma piquinina lagoa sinuosa em meio a semeadura

Posso colocá a boca na boca da moça?

ela riu cum tremô, cum as lambida, cum vai qui vem, riu alto, Assim a moça vai anunciá qui tô aqui escondido, resmunguei cismado. ela riu mais alto, num pareceu escutá nem se importá cum as lamuria dieu. umato tava fervente, ucalô tava pra derretê. a barriga dumbigo tava ali querendo eu. ela graciosa, eu pedindo ajuda. ela sorrindo prucéu, eu cum as mão enfiada na terra. as areia espumando cum as água qui vai-vem, a moça derramando da lua ucéu entontecido. oiava pru monte da terra dumbigo, tava encantado

É um começo, ela disse

num respondi pruqui num sabia mais uqui dizê. num queria fazê aquele encantamento desaparecê cuma ou qui otra palavra desastrada qui flutua perdida, fingida cumu defunto pra ganhá sapato novo, inté qui acha uma boca ingênua ou cum muntu veneno pra vivê. num quero sê a boca cum veneno nem a boca cum tolice qui dá vida pras palavra desastrada

num tive vida vivida tão perto duma moça, seja moça qui seja, pensei caí cum usjoêio na terra, cum as mão prucéu, pra rezá, Oh, moça! Num fuja nem deixa eu fugí da moça. Prometo qui vô aprendê rezá, vô estudá canto, vô acostumá dançá duspé inté a cabeça. Num desista dieu, vô sê rei.

abrí muntu usóio, depois fechei sem fazê força. coloquei a boca na moça. foi quando vento mais água parô, as correnteza da vida parô ditá indo dum lugá protro. nada acalma mais a vida qui a terra dumbigo. é a terra cobiçada da lagoa sinuosa, lugá da semeadura. a moça linda, mimosa, preta cuma noite mais sedutora, gemeu uma, duas, num parecia cum vontade pra num gemê. colocô as mão na cabeça dieu, cumu pra abençoá, mais empurrô a cabeça dupretu pra dentro duvão das perna. gemia, mais num era gemido qui era dô

parei pra respirá, desafogá de segurá a vida cum a boca. a moça abriu usbraço em cruz, ela é a pintura da buniteza. depois qui fechô usbraço cum firmeza perdi a vontade qui tava pra fugí, hoje mais amanhã ninguém foge dum abraço assim. sentia vontade ditê um lugá, uma casa pra colocá dentro cada sonho dieu

fiquei muntu retesado

num sabia se tudo era sonhado antes, pensado depois. tava cum medo disê acordado quando ela beijô meu rosto. queria mostrá atenção. rezei pra num acordá quando a moça roçô a boca carnuda dupescoço dieu, depois assoprô qui queria eu deitado na rede. pode sê qui eu pegue gosto, pode sê qui eu goste da moça, mais foi quando ela colocô a boca cum a boca qui fiquei enfesado. ela cochichô pra boca dieu qui tava pronta. 
dei um pulo assustado

desconfio qui a moça num é verdade. ela vive sem vivê ou sôeu qui numsô da vida. tô cismado qui ninguém mais vê a moça cum corpo presente, mais pode num sê assim, pode sê só medo da moça sê verdade cum corpo presente. num sei cumu fazê pra sê corpo presente na rede da moça. deitá deve sê a parte mais fácil, mais esse lugá dumundo num é meu lugá. existí é bão, mais bão mesmo é existí cum lugá numundo. a gostosura da vida é sabê aproveitá vivê. deitá na rede pra durumi e gemê

pedi permissão pra deitá na moça, ela ofereceu as perna aberta, oiava pasmo useu oferecimento. ôiei cum a boca qui simôiô. toquei cum finura, cum a maió delicadeza qui sabia tê, cada dobra qui desdobrava, num sabia se tava lento ou se num tava, mais num queria nada qui a moça num tava cum vontade pra dá

empurrô sem fazê força a cabeça dieu pruvão, a mais finura das carícia. parei pra abrí usóio. esperei uqui ela queria fazê. pediu pra eu começá dá beijo, lá nuspé

atendi

desci duvão das perna, fui pruspé descalço. perdi a afobação quando dei um beijo, depois otro, mais otro nuspé da moça. umundo calmô mais, perdeu interesse qualqué alvoroço. beijá uspé faz parecê qui a mágica num é truque. a mágica é creditá qui num é truque fazê parecê qui a moça existe, é verdade cum corpo presente

tava muntu retesado, esticado na extremadura duarco

beijava uspé da moça pra mostrá qui eu segurava a impaciência pra dá atenção nas vontade da moça. roçava cum a boca qui tava aprendendo, tava gostando daquele feitio cum demora pra chegá inté depois

tava bão num tê afobação

a moça dava gemido cum cada afago qui recebia, cada mimo sem agitação. as mão qui acarinhava uspé subiu inté as coxa, mais a boca dusbeijo num saía duspé, ela gemia, fazia pedido, Cócegas, não. Eu tenho cócegas.

Num é bão?

Não, o Moço precisa colocar atenção nos beijinhos...

Eu tô cum toda atenção.

Vem cá.

desviei duspé pra chegá nas canela preta, toda alisada, sem mistura, transparente, feliz, ela era puro alvoroço

subi inté usjoêio

continuava renteando cum a palma das mão as coxa, beijava dusjoêio inté uspé. as mão resvalando cum a lombada depois cum a palma, as cócega deixando a língua adormecida, O Moço não existe... não posso esquecer o Moço. Não existe corpo presente que fica sem afobação, sem medo, com tanto cuidado.

cuidado pode sê medo. num respondi, num sabia cumu dizê qui tava cum medo. roçava a boca inté usjoêio, resvalava as mão cum a lombada prudentro das coxa, subia prufora cum as palma. subia cum as palma, descia cum as lombada. a moça retrocia, quanto mais pedia mais gemia

aproximava usbeijo cum as mão lambendo. inté qui a moça dobrô uma das perna. num esperei ela desdobrá, subí roçando cum a boca inté usjoêio pra descê nuvão das coxa, sentí um perfume qui chamava eu pra vida na terra dumbigo

continuei usbeijo na perna qui tava toda esticada. uma veiz, otra veiz, acarinhava as pernas inté uvão. saía pra voltá cum roçado da boca. as mão perdida nuvão, elas tava cum vontade, eu tava cum vontade, ela tava cum vontade

Você e eu precisamos terminar o que começamos.

mostrava tudo qui deliciava cum gosto dusóio, longe da maldade, curado inté usóio adormecê. a lua mostrava, a lua escondia as fantasia mais viva da moça, deixava eu cismado cum as hesitação da lua

ali, na rede, tava eu cum a muié mais linda da vida, tava a vida qui precisava da vida. a moça atracô cum as mão a cabeça dieu, Fica... fica...

fiquei cum uvão das coxa na boca, num tinha aconselhamento duqui fazê. continuei beijando, roçando, num queria sê salvo, num podia ficá pasmo, O Moço tem língua?

as mão da moça voltô guiá a cabeça dieu, queria beijo cum a língua nuvão das perna. a purugunta foi recomendação, num queria conversá, queria tê a língua dieu. bebia a moça, mais tumbém bebia eu, as água tava tudo misturada. eu derramava na moça, ela derramava, Quem lhe disse para que fizesse assim?

a moça num sossegava, eu num sossegava agarrado na sua cintura de terra. aprendê é muntu rápido cum a vontade toda dentro, É aqui que o Moço vai entrar, mas antes vem cá, foi a veiz qui num obedeci. foi tanta fartura, tava tão retesado uarco, Até o fim do terreiro, Moço...

a moça é muntu atrevida, tem munta coragem, Agora que matou o meu desejo, dorme.

Pru qui essa lágrima?





_________________________

Leia também:

histórias de avoinha: Ora ye ye o! A ie ie u!
Ensaio 107B – 2ª edição 1ª reimpressão


histórias de avoinha: agarrada na terra, pendurada nucéu
Ensaio 108B – 2ª edição 1ª reimpressão


histórias de avoinha: nesse tempo fui cabunguêro
Ensaio 109B – 2ª edição 1ª reimpressão


histórias de avoinha: existimos porque resistimos
Ensaio 111B – 2ª edição 1ª reimpressão



Memórias Póstumas de Brás Cubas: Um primo de Virgília

Machado de Assis


Memórias Póstumas de Brás Cubas







CAPÍTULO XLVIII / UM PRIMO DE VIRGÍLIA







— Sabe quem chegou ontem de São Paulo? Perguntou-me uma noite Luis Dutra. 

Luís Dutra era um primo de Virgília, que também privava com as musas. Os versos dele agradavam e valiam mais do que os meus; mas ele tinha necessidade da sanção de alguns, que lhe confirmasse o aplauso dos outros. Como fosse acanhado, não interrogava a ninguém; mas deleitava-se com ouvir alguma palavra de apreço; então criava novas forças e arremetia juvenilmente ao trabalho. 

 Pobre Luís Dutra! Apenas publicava alguma coisa, corria à minha casa, e entrava a girar em volta de mim, à espreita de um juízo, de uma palavra, de um gesto, que lhe aprovasse a recente produção, e eu falava-lhe de mil coisas diferentes, — do último baile do Catete, da discussão das câmaras, de berlindas e cavalos, — de tudo, menos dos seus versos ou prosas. Ele respondia-me, a princípio com animação, depois mais frouxo, torcia a rédea da conversa para o assunto dele, abria um livro, perguntava-me se tinha algum trabalho novo, e eu dizia-lhe que sim ou que não, mas torcia a rédea para o outro lado, e lá ia ele atrás de mim, até que empacava de todo e saía triste. Minha intenção era fazê-lo duvidar de si mesmo, desanimá-lo, eliminá-lo. E tudo isto a olhar para a ponta do nariz...




______________________



Texto-fonte: 
Obra Completa, Machado de Assis, 
Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994. 


Publicado originalmente em folhetins, a partir de março de 1880, na Revista Brasileira.


___________________________


Memórias Póstumas de Brás Cubas: Capítulo XLVI / A herança

Memórias Póstumas de Brás Cubas: Capítulo XLVII / O recluso

Memórias Póstumas de Brás Cubas: Capítulo XLIX / 




19.O Estrangeiro: Tudo é verdade e nada é verdade - Albert Camus

Albert Camus


SEGUNDA PARTE


Capítulo 3


19. Tudo é verdade e nada é verdade



  AO APARECER, O PORTEIRO olhou-me e depois afastou os olhos, respondendo às perguntas que lhe dirigiram. Disse que eu não tinha querido ver a minha mãe, que tinha fumado, que tinha dormido e que tinha tomado café com leite. Senti então que qualquer coisa se levantava na sala e compreendi pela primeira vez que era culpado. Pediram ao porteiro para repetir a história do café com leite e a do cigarro. O advogado de acusação olhou-me com um brilho irônico no olhar. Nesse momento, o meu advogado perguntou ao porteiro se não tinha fumado também um cigarro comigo. Mas o procurador reagiu violentamente contra esta pergunta: "Quem é aqui o criminoso e que métodos são estes, que consistem em denegrir as testemunhas de acusação para lhes diminuir depoimentos que nem por isso ficam menos esmagadores?!" 

Apesar de tudo, o presidente disse ao porteiro para responder à pergunta. O velho replicou, com um ar embaraçado: "Sei que não andei bem, mas não ousei recusar o cigarro que este senhor me ofereceu". Em última instância, perguntaram-me se queria acrescentar alguma coisa. "Nada", respondi, "a não ser que a testemunha fala verdade. É certo que lhe ofereci um cigarro". O porteiro olhou-me um pouco espantado e com uma espécie de gratidão. Hesitou e em seguída disse que fora ele, que me oferecera café com leite. O meu advogado triunfou ruidosamente e declarou que os jurados saberiam formar a sua opinião. Mas o procurador, gritando mais alto, disse: "Sim. Os senhores jurados saberão formar a sua opinião. E não deixarão de concluir que um estranho podia oferecer café, mas que um filho devia recusá-lo diante do corpo daquela que o deu à luz". O porteiro regressou ao seu lugar. 

Quando chegou a vez de Tomás Perez, um bedel teve que o ajudar a ocupar o lugar das testemunhas. Perez disse que conhecera sobretudo a minha mãe e que a mim, só me vira uma única vez, no dia do enterro. Perguntaram-lhe o que tinha eu feito nesse dia e ele respondeu: "Não sei se compreendem, mas eu estava com um grande desgosto. Por isso, não vi nada. O desgosto impedia-me de ver. Porque para mim, era um grande desgosto. Cheguei mesmo a desmaiar. Por isso, não pude ver este senhor". O advogado de acusação perguntou-lhe se, ao menos, me vira chorar. Perez respondeu que não.

O procurador disse por sua vez: "Os senhores jurados saberão formar a sua opinião". Mas nesta altura, o meu advogado zangou-se. Perguntou ao velho Perez, num tom que se me afigurou exagerado "se tinha visto que eu não estava a chorar". Perez disse: "Não". O público riu-se. E o meu advogado, arregaçando uma das mangas, disse num tom peremptório: "Eis aqui a imagem deste processo. Tudo é verdade e nada é verdade". O procurador mostrava uma fisionomia fechada e rabiscava com o lápis nos papéis que tinha em frente. 

Após cinco minutos de suspensão, durante os quais o meu advogado me disse que tudo corria pelo melhor, foi ouvido o Celeste, que era citado pela defesa: A defesa, era eu. 

Celeste deitava, de tempos a tempos, olhares na minha direção e rodava o panamá nas mãos. Trazia o fato novo que punha aos domingos, quando ia comigo às corridas de cavalos. Mas julgo que não conseguira pôr o colarinho, pois apenas um botão de metal lhe conservava a camisa fechada. 

Perguntaram-lhe se eu era seu cliente e ele respondeu: "Sim, mas era também meu amigo", o que pensava de mim, e ele respondeu que eu era um homem, o que queria dizer com isso, e ele declarou que toda a gente sabia o que isso queria dizer, se notara que eu era taciturno, e ele reconheceu apenas que eu não falava por falar. O advogado de acusação perguntou-lhe se eu pagava regularmente as minhas despesas. Celeste riu-se e declarou: "Isso era entre mim e ele". Perguntaram-lhe ainda o que pensava do meu crime. Pôs então as duas mãos na barra e via-se que preparara qualquer coisa. Disse: "Para mim, foi uma desgraça. Toda a gente sabe o que é uma desgraça. Pois bem, na minha opinião, foi uma desgraça". Ia continuar, mas o presidente disse que estava bem e que muito lhe agradecia. Celeste ficou um pouco atrapalhado. Mas declarou que queria dizer mais coisas. Pediram-lhe para ser breve. Voltou a repetir que era uma desgraça. E o presidente disse-lhe: "Está bem, estamos entendidos. Mas nós estamos aqui justamente para julgar as desgraças deste gênero. Muito obrigado". Como se tivesse chegado ao fim da sua ciência e da sua boa vontade, Celeste voltou-se então para mim. Parecia-me que tinha os olhos brilhantes e os lábios trémulos. Tinha o ar de perguntar a si mesmo o que poderia ainda fazer.

Quanto a mim, não disse nada, não esbocei um único gesto, mas foi a primeira vez na minha vida que tive vontade de beijar um homem. O presidente disse-lhe que se podia ir embora. Celeste foi sentar-se no seu lugar. Durante o resto da audiência ali se deixou ficar, um pouco inclinado para a frente, os cotovelos nos joelhos, o panamá nas mãos, escutando tudo o que se dizia. 

Chegou a vez de Maria. Pusera um chapéu e estava muito bonita. Mas gostava mais dela com os cabelos soltos. Do sítio onde estava, eu adivinhava-lhe o peso ligeiro dos seios e reconhecia-lhe o lábio inferior, sempre um pouco inchado. Parecia muito nervosa. Perguntaram-Lhe imediatamente há quanto tempo me conhecia. Indicou a época em que trabalhava lá no escritório. O presidente quis saber que relações tinha comigo. Disse que era minha amiga. A uma outra pergunta, respondeu que, de facto, fazia tenção de casar comigo. O procurador, que folheava o processo, perguntou-lhe bruscamente quando começara a nossa ligação. Maria indicou a data. O procurador observou com um ar indiferente que lhe parecia ser apenas um dia depois da morte da minha mãe. Depois disse, com uma certa ironia, que não queria insistir numa situação delicada, que compreendia perfeitamente os escrúpulos de Maria (e aqui o tom da sua voz endureceu), mas que o seu dever o impelia a elevar-se acima das conveniências. Pediu-lhe, por conseguinte, para resumir o dia em que se dera o nosso encontro. Maria não queria falar mas, em face da insistência do procurador, contou o nosso banho, a nossa ida ao cinema e o encontro em minha casa. O advogado de acusação disse que, em consequência das declarações de Maria durante a instrução do processo, consultara os programas dessa data. Acrescentou que a própria testemunha diria que filme tinham ido ver. Com uma voz trémula, Maria indicou que era um filme de Fernandel. Quando ela acabou, o silêncio na sala era completo. O procurador levantou-se então, muito sério e com uma voz que me pareceu autenticamente emocionada apontou o dedo para mim e articulou lentamente: "Meus senhores, um dia depois da morte da sua mãe, este homem tomava banhos de mar, iniciava relações com uma amante e ia rir às gargalhadas, num filme cômico.

Não tenho nada a acrescentar". Sentou-se, no meio do silêncio geral. De repente Maria começou a soluçar, exclamou que não era isso, que a obrigavam a dizer o contrário do que pensava, que me conhecia muito bem e que eu não tinha feito nada de mal. Mas, a um sinal do presidente, o bedel levou-a e a audiência prosseguiu. 

Depois disto, mal ouviram Masson declarar que eu era uma pessoa honesta, "direi mesmo mais, uma excelente pessoa". Mal escutaram Salamano, quando recordou que eu fora muito bom para o cão dele e quando respondeu a uma pergunta a meu respeito, dizendo que eu metera a minha mãe no asilo porque já não tinha nada a dizer-Lhe. "É preciso compreendê-lo, dizia Salamano, é preciso compreendê-lo". Mas ninguém parecia compreender-me. Levaram-no. 

Chegou depois a vez de Raimundo, que era a última testemunha. Raimundo fez-me um pequeno sinal e disse imediatamente que eu estava inocente. Mas o presidente lembrou-lhe que não lhe pediam apreciações, pediam-lhe factos. Convidou-o a esperar as perguntas e depois responder. Pediram-lhe que especificasse as suas relações com a vítima. 

Raimundo aproveitou para dizer que era a ele, que o Árabe assassinado odiava, desde que lhe esbofeteara a irmã. O presidente perguntou então se a vítima não tinha nenhuma razão para me odiar. Raimundo disse que a minha presença na praia fora um mero acaso. O procurador perguntou-lhe então porque é que, se assim era, a carta que estava na origem do drama, fora escrita para mim. Raimundo respondeu que fora também um acaso. O procurador retorquiu que o acaso tinha costas largas, nesta história toda. Quis saber se fora por acaso que eu não interviera quando Raimundo esbofeteara a amante, por acaso que servira de testemunha no comissariado, por acaso ainda que as minhas declarações nessa altura se tinham revelado sem fundamento sério. Para acabar, perguntou a Raimundo o que fazia na vida e, como este respondesse que era "lojista" o advogado de acusação declarou aos jurados que a testemunha exercia uma profissão mais do que duvidosa. Eu era seu cúmplice e amigo. Tratava-se de um drama crapuloso da pior espécie, agravado pelo facto de estarmos em presença de um monstro moral. Raimundo quis defender-se e o meu advogado protestou, mas disseram-lhes que deixassem o procurador acabar o que estava a dizer. Este disse: "Pouco tenho a acrescentar. O acusado era seu amigo?", perguntou a Raimundo. "Sim, respondeu este, era meu amigo". O advogado de acusação fez-me então a mesma pergunta e eu olhei para Raimundo, que não desviou os olhos. Respondi: "Sim". O procurador voltou-se então para o júri e declarou: "O mesmo homem que, um dia depois da mãe ter morrido, se entregava à mais vergonhosa devassidão, matou por razões fúteis e para liquidar um inqualificável caso crapuloso". 

Voltou então a sentar-se. Mas o meu advogado, a paciência esgotada, gritou levantando os braços, de tal forma que as mangas, caindo para trás, descobriram as pregas de uma camisa engomada: "Enfim, estão a acusá-lo de ter assassinado um homem ou de lhe ter morrido a mãe?" 

O público riu-se. Mas o procurador levantou-se outra vez, ajustou a toga e declarou que era preciso ter a ingenuidade do ilustre defensor para não sentir que entre as duas ordens de factos, havia uma relação profunda, patética, essencial. "Sim, exclamou ele com força, acuso este homem de ter assistido ao enterro da mãe com um coração de criminoso".

Esta declaração parece ter provocado um efeito considerável sobre o juri e sobre o público. O meu advogado encolheu os ombros e limpou o suor que lhe cobria a testa. Mas ele próprio parecia abalado e compreendi nesta altura que as coisas não iam muito bem para mim. 

Em seguida, tudo se passou muito depressa. A audiência foi suspensa. À saída do tribunal e ao subir para o carro, reconheci durante breves instantes o cheiro e o calor das tardes de verão. Na obscuridade da minha prisão rolante, reencontrei um a um, no fundo do meu cansaço, todos os ruídos familiares de uma cidade que eu amava e de uma certa hora em que tantas vezes me sentira contente. O pregão dos vendedores de jornais no ar já mais fresco, os últimos pássaros no largo, o grito dos vendedores de sanduíches, o queixume dos eléctricos nas curvas íngremes da cidade e este rumor do céu antes da noite tombar sobre o porto, tudo isto reconstituía aos meus olhos um cego itinerário que já conhecia muito antes de entrar para a prisão. Sim, era a hora em que, há muito, muito tempo, eu me sentia contente. O que então me aguardava, era sempre um sono ligeiro e sem sonhos. E no entanto alguma coisa se modificara, pois com a expectativa do dia seguinte, foi a minha cela, que reencontrei enfim. Como se os caminhos familiares traçados nas noites de verão pudessem conduzir, tanto às prisões, como aos sonos inocentes.




________________________

A Constatação do Absurdo

Nascido e criado entre contrastes fundamentais, Albert Camus desde cedo aprendeu que a miséria engendra uma solidão que lhe é típica, uma austeridade toda sua, uma desconfiança da vida - mas a paisagem desperta uma rica sensualidade, uma eufórica sensação de onipotência, um orgulho desmedido de possuir a beleza inteiramente gratuita. Este aprendizado, feito a meio caminho entre a miséria e o sol, levou-o à consciência do que existe de mais trágico na condição humana: o absurdo, essa irremediável incompatibilidade entre as aspirações e a realidade.


___________________________


Camus, Albert, 1913-1960.
              O Estrangeiro
Título Original L'Étranger
Tradução de António Quadros
Edição Livros do Brasil
Lisboa
___________________________

Leia também:

17.O Estrangeiro: A prisão - Albert Camus

18.O Estrangeiro: O meu interrogatório começou quase imediatamente - Albert Camus

20.O Estrangeiro: E como tal deverá ser castigado - Albert Camus

1.O Estrangeiro: Hoje, minha mãe morreu - Albert Camus




quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Ele vive

Taiguara






Hoje
Trago em meu corpo as marcas do meu tempo
Hoje a minha pele já não tem cor
Meu desespero, a vida num momento
Vivo a minha vida seja onde for
A fossa, a fome, a flor, o fim do mundo










































Hoje
1969






Hoje


Hoje
Trago em meu corpo as marcas do meu tempo
Meu desespero, a vida num momento
A fossa, a fome, a flor, o fim do mundo

Hoje
Trago no olhar imagens distorcidas
Cores, viagens, mãos desconhecidas
Trazem a lua, a rua às minhas mãos

Mas hoje,
As minhas mãos enfraquecidas e vazias
Procuram nuas pelas luas, pelas ruas
Na solidão das noites frias por você

Hoje
Homens sem medo aportam no futuro
Eu tenho medo acordo e te procuro
Meu quarto escuro é inerte como a morte

Hoje
Homens de aço esperam da ciência
Eu desespero e abraço a tua ausência
Que é o que me resta, vivo em minha sorte

Sorte
Eu não queria a juventude assim perdida
Eu não queria andar morrendo pela vida
Eu não queria amar assim como eu te amei



Composição: Taiguara





Teu Sonho Não Acabou





Teu sonho não acabou



Hoje a minha pele já não tem cor
Vivo a minha vida seja onde for
Hoje entrei na dança e não vou sair
Vem que eu sou criança não sei fingir

Eu preciso, eu preciso de você
Ah! Eu preciso, eu preciso, eu preciso muito de você

Lá onde eu estive o sonho acabou
Cá onde eu te reencontro só começou
Lá colhi uma estrela pra te trazer
Bebe o brilho dela até entender

Que eu preciso...

Só feche o seu livro quem já aprendeu
Só peça outro amor quem já deu o seu
Quem não soube a sombra, não sabe a luz
Vem não perde o amor de quem te conduz

Eu preciso...

Nós precisamos, precisamos sim
Você de mim, eu de você.



Composição: Taiguara




Universo No Teu Corpo






O Cavaleiro da Esperança







Te Quero









Série Boleros Inesquecíveis 02: Solamente una vez

Agustín Lara




o baile vai continuar
a gente vai para o escurinho
tinha umas paradinhas
não se via nada
depois coxa a coxa




Emilio Santiago







Roberto Carlos e Julio Iglesias - 1989 (México)





Solamente Una Vez


Solamente una vez
Ame en la vida
Solamente una vez
Y nada mas

Una vez nada mas en mi huerto
Brillo la esperanza
La esperanza que alumbra el camino
De mi soledad

Una vez nada mas
Se entrega el alma
Con la dulce y total renunciación

Y cuando ese milagro realiza
El prodigio de amarse
Hay campanas de fiesta que cantan
En el corazón

Composição: Agustín Lara






“Solamente una vez” (feita em Buenos Aires e dedicada a José Mujica)
Esta canción tiene una historia muy bonita: el actor y cantante José Mujica había sido aceptado en el seminario. Agustín Lara escribió esta inolvidable canción en homenaje al amor de Mojica por Jesucristo.



Agustín Lara







Nat King Cole







Trio los Panchos







Altemar Dutra







CHICO melodia 
sax tenor






domingo, 22 de outubro de 2017

17. O Guardador de Rebanhos - XVII - No meu prato - Alberto Caeiro

Fernando Pessoa





XVII - No meu Prato




No meu prato que mistura de Natureza!
As minhas irmãs as plantas, As 
companheiras das fontes, as santas A 
quem ninguém reza...

E cortam-as e vêm à nossa mesa
E nos hotéis os hóspedes ruidosos,
Que chegam com correias tendo mantas
Pedem "Salada", descuidosos...,
Sem pensar que exigem à Terra-Mãe
A sua frescura e os seus filhos primeiros,
As primeiras verdes palavras que ela tem,
As primeiras cousas vivas e irisantes
Que Noé viu
Quando as águas desceram e o cimo dos montes
Verde e alagado surgiu
E no ar por onde a pomba apareceu 
O arco-íris se esbateu...





___________________

O Guardador de Rebanhos
Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)
(Fonte: http://www.cfh.ufsc.br/~magno/guardador.htm)


___________________

Leia também:

15. O Guardador de Rebanhos - XV - As Quatro Canções - Alberto Caeiro




18. O Guardador de Rebanhos - XVIII - Quem me Dera que eu Fosse o Pó da Estrada - Alberto Caeiro

bom dia...

James Carter - Laura




Quando você não sabe o que dizer... escute











Garota de Ipanema 
Saxperience 2015







James Carter organ trio 
- Live @ festival Sons d'hiver 2017










O Segundo Sexo - 15. Fatos e Mitos: A humanidade não é uma espécie animal: é uma realidade histórica

Simone de Beauvoir



15. Fatos e Mitos


Primeira Parte
Destino

CAPITULO III
O PONTO DE VISTA DO MATERIALISMO HISTÓRICO




 : A humanidade não é uma espécie animal: é uma realidade histórica




A TEORIA do materialismo histórico pôs em evidência muitas verdades importantes. A humanidade não é uma espécie animal: é uma realidade histórica. A sociedade humana é uma anti-phisis: ela não sofre passivamente a presença da Natureza, ela a retoma em mãos. Essa retomada de posse não é uma operação interior e subjetiva; efetua-se objetivamente na práxis. Assim, a mulher não poderia ser considerada apenas um organismo sexuado: entre os dados biológicos só têm importância os que assumem, na ação, um valor concreto; a consciência que a mulher adquire de si mesma não é definida unicamente pela sexualidade. Ela reflete uma situação que depende da estrutura econômica da sociedade, estrutura que traduz o grau de evolução técnica a que chegou a humanidade. 

Viu-se que, biologicamente, os dois traços que caracterizam a mulher são os seguintes: seu domínio sobre o mundo é menos extenso que o do homem; ela é mais estreitamente submetida à espécie. Mas esses fatos assumem uma valor inteiramente diferente segundo o seu contexto econômico e social. Na história humana, o domínio do mundo não se define nunca pelo corpo nu: a mão com seu polegar preensivo já se supera em direção ao instrumento que lhe multiplica o poder; desde os mais antigos documentos de pré-história o homem surge sempre armado. No tempo em que se tratava de brandir pesadas maças, de enfrentar animais selvagens, a fraqueza física da mulher constituía uma inferioridade flagrante; basta que o instrumento exija uma força ligeiramente superior à de que dispõe a mulher para que ela se apresente como radicalmente impotente. Mas pode acontecer, ao contrário, que a técnica anule a diferença muscular que separa o homem da mulher: a abundância só cria superioridade na perspectiva de uma necessidade; não é melhor ter demais do que não ter bastante. Assim, o manejo de numerosas máquinas modernas não exige mais do que uma parte dos recursos viris. Se o mínimo necessário não é superior às capacidades da mulher, ela torna-se igual ao homem no trabalho. Efetivamente, pode-se determinar hoje imensos desenvolvimentos de energia simplesmente apertando um botão. Quanto às servidões da maternidade, elas assumem, segundo os costumes, uma importância muito variável: são esmagadoras se se impõem à mulher muitas procriações e se ela deve alimentar e cuidar dos filhos sem mais ajuda; se procria livremente, se a sociedade a auxilia durante a gravidez e se se ocupa da criança, os encargos maternais são leves e podem ser facilmente compensados no campo do trabalho.

É de acordo com essa perspectiva que Engels retraça a história da mulher em A Origem da Família. Essa história dependeria essencialmente da história das técnicas. Na Idade da Pedra, quando a terra era comum a todos os membros do clã, o caráter rudimentar da pá, da enxada primitiva, limitava as possibilidades agrícolas: as forças femininas estavam na medida do trabalho exigido pelo cultivo dos jardins. Nessa divisão primitiva do trabalho, os dois sexos já constituem, até certo ponto, duas classes; entre elas há igualdade. Enquanto o homem caça e pesca, a mulher permanece no lar. Mas as tarefas domésticas comportam um trabalho produtivo: fabricação dos vasilhames, tecelagem, jardinagem, e com isso ela desempenha um papel importante na vida econômica. Com a descoberta do cobre, do estanho, do bronze, do ferro, com o aparecimento da charrua, a agricultura estende seus domínios. Um trabalho intensivo é exigido para desbravar florestas, tornar os campos produtivos. O homem recorre, então, ao serviço de outros homens que reduz à escravidão. A propriedade privada aparece: senhor dos escravos e da terra, o homem torna-se também proprietário da mulher. Nisso consiste "a grande derrota histórica do sexo feminino". Ela se explica pelo transtorno ocorrido na divisão do trabalho em conseqüência da invenção de novos instrumentos. "A mesma causa que assegurara à mulher sua autoridade anterior dentro da casa, seu confinamento nos trabalhos domésticos, essa mesma causa assegurava agora a preponderância do homem. O trabalho doméstico da mulher desaparecia, então, ao lado do trabalho produtivo do homem; o segundo era tudo, o primeiro um anexo insignificante". O direito paterno substituiu-se então ao direito materno; a transmissão da propriedade faz-se de pai a filho e não mais da mulher a seu clã. É o aparecimento da família patriarcal baseada na propriedade privada. Nessa família a mulher é oprimida. O homem, reinando soberanamente, permite-se, entre outros, o capricho sexual: dorme com escravas ou hetairas, é polígamo. A partir do momento em que os costumes tornam a reciprocidade possível, a mulher vinga-se pela infidelidade: o casamento completa-se naturalmente com o adultério. É a única defesa da mulher contra a servidão doméstica em que é mantida; a opressão social que sofre é a consequência de uma opressão econômica. A igualdade só se poderá restabelecer quando os dois sexos tiverem direitos juridicamente iguais, mas essa libertação exige a entrada de todo o sexo feminino na atividade pública. "A mulher só se emancipará quando puder participar em grande medida social na produção, e não for mais solicitada pelo trabalho doméstico senão numa medida insignificante. E isso só se tornou possível na grande indústria moderna, que não somente admite o trabalho da mulher em grande escala como ainda o exige formalmente..."

Deste modo, o destino da mulher e o socialismo estão intimamente ligados, como se vê igualmente na vasta obra consagrada por Bebel à mulher. "A mulher e o proletário, diz ele, são ambos oprimidos". É o mesmo desenvolvimento da economia a partir das modificações provocadas pelo maquinismo que os deve libertar uma e outro. O problema da mulher reduz-se ao de sua capacidade de trabalho. Forte na época em que as técnicas se adaptavam às suas possibilidades, destronada quando se tornou incapaz de explorá-las, ela volta a encontrar no mundo moderno sua igualdade com o homem. São as resistências do velho paternalismo capitalista que na maioria dos países impede que essa igualdade se realize: ela o será no dia em que tais resistências se quebrarem. Já o é na U.R.S.S., afirma a propaganda soviética. E quando a sociedade socialista tiver dominado o mundo inteiro, não haverá mais homens e mulheres, mas tão-somente trabalhadores iguais entre si.

Embora a síntese esboçada por Engels assinale um progresso sobre as que examinamos anteriormente, ela nos decepciona: os problemas mais importantes são escamoteados. O pivô de toda a história está na passagem do regime comunitário ao da propriedade privada: não se indica absolutamente de que maneira pôde efetuar-se; Engels, em A Origem da Família, confessa mesmo que "não o sabemos até o presente"; e não somente ele ignora o pormenor histórico como ainda não sugere nenhuma interpretação. Nem é claro, tampouco, que a propriedade privada tenha acarretado fatalmente a escravização da mulher. O materialismo histórico considera certos e verdadeiros fatos que fora preciso explicar. Afirma, sem discuti-lo, o lado de interesse que prende o homem à propriedade: mas onde esse interesse, mola das instituições sociais, tem, ele próprio, sua origem? A exposição de Engels permanece, portanto, superficial e as verdades que descobre parecem-nos contingentes. É que é impossível aprofundá-las sem sair fora do materialismo histórico. Este não pode fornecer soluções para os problemas que indicamos, porque tais problemas interessam o homem na sua totalidade e não essa abstração que se denomina homo oeconomicus.





______________________



O SEGUND O SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR

Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.

Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.

Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.


4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES
________________________



Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.

No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.


________________________

Leia também:

O Segundo Sexo - 12. Fatos e Mitos: a mulher é uma fêmea na medida em que se sente fêmea


O Segundo Sexo - 13. Fatos e Mitos: quando a observação descobre tantas anomalias quantos casos normais


O Segundo Sexo - 14. Fatos e Mitos: o próprio Freud admite que o prestígio do pênis explica-se pela soberania do pai


O Segundo Sexo - 16. Fatos e Mitos: as categorias impotentes para encerrar uma mulher concreta


O Segundo Sexo - 1 Fatos e Mitos: que é uma mulher?



sábado, 21 de outubro de 2017

O Brasil Nação - v1: § 42 – Pedro II - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim



O Brasil nação volume 1





PRIMEIRA PARTE
SEQUÊNCIAS HISTÓRICAS



capítulo 5
o acervo do império





§ 42 – Pedro II




A monarquia brasileira foi Pedro II. Os nove anos do primeiro Império, agitados na luta – contra o príncipe estrangeiro e despótico; esses nove anos não se contariam, se o reinado do segundo imperante não tivesse normalizado o regime, para a vida relativamente longa que teve, e que foi a própria vida da monarquia. E, sustendo o regime, Pedro II não foi, apenas, o fecho da política monárquica, mas a mesma substância dela. De fato, quando se revistam os motivos em que essa política foi conduzida, ainda nos pormenores mínimos e nos lineamentos sutis, só se encontra a personalidade do imperador. E naqueles cinco ou seis anos primeiros, quando a insuficiência adolescente não podia ainda dominar o mundo da política!... Note-se, antes de mais nada, que Pedro II não foi propriamente um ânimo de domínio – a reduzir vontades e a abater e anular disposições que se lhe opusessem: foi, apenas, uma atividade de consciência, a encher um mundo vazio, uma vontade própria, substituindo-se a vontades ausentes, ou meditadamente submissas. Nos primeiros anos, ao lado dele, encontraram-se logo os mais traquejados na política já assentada, criaturas que bem conheciam a insuficiência dos outros, e que, garantidas no trono, facilmente pairaram sobre todos; foi o período da camarilha. Alcançando o pleno desenvolvimento, Pedro II substituiu por sua vez a camarilha, de tal sorte que o seu reinado nenhuma diferença apresenta entre aqueles primeiros tempos, e os decênios seguintes, quando era ele, exclusivamente, o gerente da vida pública do Brasil. 

Pedro II fez sozinho o seu reinado: que valores havia, nessa criatura, para tanto poder? Analisado bem o caso, mesmo sem paixão, ele parece monstruoso, não tanto pela usurpação e concentração de poderes, como pela desproporção entre o desenvolvimento desse poder e a exiguidade física da personalidade onde se fez tal concentração. E não se pode compreender a monstruosa desproporção se não se aprecia bem a pessoa, em todos os seus dotes, antes de colocá-la na situação que lhe foi feita, entre os ânimos com quem ela se encontrou. 

Não há descrições inteligentes, e metódicas, do caráter de Pedro II; mas era ele tão simples, tanto se patenteou em atos, que não é difícil achar-lhe as linhas definidoras e a acentuação das qualidades reais em que ele valeu. Temperamento – frio, livre de todo o sensualismo, não só para a paixão sexual, para todo o prazer, como para todo o intenso sentir. Inteligência – mediana, com imaginação escassa, assimilação fácil, tendência ao exame, à crítica, mas sem perspectivas, por isso mesmo que lhe escasseava a imaginação. Tudo isto valendo sob a forma de erudição, tudo isto impondo-se como reflexão e discernimento, muito avolumado pela grande capacidade de estudo. Do que fica notado, já resulta que a sua organização moral se apresentava aliviada das grandes dificuldades que são as emoções, substituídas, para os respectivos efeitos, por uma formidável vaidade, só limitada pela reflexão. Como consequência da escassez de sensualismo e de imaginação, era de uma afetividade também pobre, medida, não concentrada, mas convencional. Mostrava, talvez, mais do que sentia. Coração seco, sensibilidade frívola, tinha uma bondade também toda convencional. Não alimentava, certamente, intenções de crueldades, mas não tinha a bondade essencial e legítima, que o levaria, desde logo, a comover-se pela sorte dos miseráveis escravos, a bondade incompatível com o nefando crime, contra a América e contra a humanidade – a guerra do Paraguai. Se o sensualismo é o grande escolho da moralidade, é, também, por transformações íntimas do sentir, a fonte onde se alimentam as paixões que exaltam e dão beleza à vida moral. Todo esse fulgor faltava à afetividade do imperador. Refletido, meditado... isto quer dizer que era uma criatura dotada de acentuado poder de inibição. E tudo isto, num descendente de Carlos V, fez dele um caráter, ao mesmo tempo – forte e apagado, conduzido por uma vontade lúcida, refletida e nítida, a serviço, sobretudo, da vaidade, o estímulo mais forte na sua natureza moral. 

Personalidade que a herança assim dispusera, Pedro II teve de fazer-se e completar-se numa educação dispersiva, deformante e inumana. Além do isolamento e do desconforto moral constante nas crianças régias, ele foi o órfão total, criado e formado numa pobre corte exótica e frustra, representante de um trono desprestigiado, abatido, descendente imediato de um dinasta escorraçado e banido. Por sobre essa infância, triste e moralmente desgraçada, o estímulo bastardo, de carícias mercenárias, em viço de adulação, a pedagogia árida e esgotante de Frei Mariano, o influxo do septuagenário José Bonifácio, logo substituído pelo nulo Itanhaém, ajustados a criaturas que tudo incluíam em lisonja. Como efeito de uma tal educação, através dessa infância suplantada, o natural de Pedro II, já de si acanhado, mais esquivo se fez: conteve-se e concentrou-se até a deformação, para que ele viesse a ser – a consagrada criança sem risos de meninice, o adolescente traçado num ríctus de circunspeção, sem transportes de jovialidade. Nessa vida contrafeita e afetivamente viciada, no estojo de adulação em que o fechavam, somente uma das suas qualidades naturais podia expandir-se – vaidade, que, finalmente, se tornou o motivo mais seguro sobre a sua ação. Conte-se, também, da sua linhagem de Habsburgos, a fidalguia essencial, a dignidade de si mesmo, a decência verdadeira, que é a decência moral. E como nenhum desses dotes secundários se opõe à vaidade, eles vieram formar o mais legítimo valor natural do seu caráter. 

Composto assim – em qualidades naturais negativas conduzidas pela vaidade, assistido por aquela pedagogia deformadora e depressiva, só estimulante da mesma vaidade, Pedro II, ao ser senhor de si, achou-se, de fato, sem outra linha de caráter além das depressões – circunspecção, reflexão, sensatez... E por que era um vaidoso, e tinha a inteligência bastante para compreender a necessidade de ter um feitio moral, imperante, compôs um caráter em correspondência com as suas concepções políticas e morais; compô-lo decidido a ser um tipo próprio para a função que lhe foi dada. Tinha força de vontade; não sentia exigências de temperamento; tomou importância na altura a que o destino o levou: quis ser elogiado como um grande rei, e enfronhou-se numa fórmula de conduta bem determinadamente nesse intuito. Não era um caráter de empréstimo, falso ou falsificado. Tudo que havia nele baseava-se em condições naturais: mas uma mera construção, dilatada por sobre a singeleza da estrutura natural, essencial. Era uma expressão toda convencional, e que, dada a sua escassez de imaginação, mostrava-se, efetivamente, pobre, mesmo naqueles dotes 161 ostentados. Assim, por convenção (que, aqui se distingue bem de hipocrisia) ele foi – liberal, justo, bom, probo, honesto, patriota. 


161 Tornou-se legendária a secura de coração do imperador, comentada, mesmo, nos desvãos do paço. “Afirma-se que, por ocasião do passamento de Joaquim Faro, Visconde de Bom-Retiro e General Cabral, seus amigos, não apresentou a menor demonstração de pesar”. Conta Otoni (Biogr.) que, no mesmo dia do enterro do Marquês de Paraná, seu primeiro ministro, Pedro II foi ao teatro, com manifesta indiferença pelo que os clássicos chamam de grande perda para a política nacional. Antes, em 1848, ao anunciarem-lhe que Pernambuco estava ardendo, ele respondeu (ao Ministro Manoel Felizardo) – “Pois deixe arder...”

Liberal, Pedro II deixou inexoravelmente cativar as províncias, naquela monstruosa centralização, pior que o cativeiro dos dias coloniais; liberal, ele ostentava o liberalismo, reduzindo-o, finalmente a um favor, com que trazia os Brasileiros à condição infamante de escravos... de bom senhor. E era esse o fim do liberalismo – destacar o mérito de quem o concedia. Justo, ele permitia que a Justiça pública fosse descarada mentira, pois que nunca houve poderoso punido, qualquer que fosse o crime: justo e liberal, ele abusava do seu privilégio – para negar a Otoni e Alencar aquilo que o eleitorado manifestamente queria conferir-lhes. Bom, generoso, ele guardava rancores imperecíveis; bom, ele suportava o espetáculo doloroso do cativeiro como indústria; bom, ele fez exterminar, nos campos do Sul, centenas de milhares de brasileiros moços e válidos; bom, ele quis e fez aniquilar, por longos anos, uma nação americana, sempre amiga do Brasil, guerreando-a inexoravelmente, até o extermínio completo de todos os seus homens válidos. Amante das letras, ele negava acintosamente o senado a um dos mais legítimos representantes da literatura brasileira, assim como consentia – passasse fome, na Europa, o primeiro e glorioso poeta brasileiro – Gonçalves Dias; cultor da ciência, propugnador do progresso intelectual, ele deixava abandonada a verdadeira prática científica, sem um estabelecimento de desinteressada e alta cultura, sem meios, para os que pretendessem dedicar-se a investigações orientadoras; propugnador do progresso intelectual, o seu governo condenava as sucessivas gerações de brasileiros, inválidos no analfabetismo, aviltados na ignorância profunda. Probo, ele dirigia um governo de deslavados esbanjamentos; probo, ele fazia da probidade ostentação, como virtude rara, e que desmoralizava o ambiente político. Honesto, ele aceitou a corrupção política, cultivou-a, estimulou-a, explorou-a, em proveito do seu poder pessoal; honesto, ele presidiu aqueles decênios de vida pública, para os dias de desmoralização definitiva em que tudo acabou. Patriota, ele converteu a soberania da nação em soberania do trono, e reduziu o Brasil à mera expressão da sua onipotência pessoal; patriota, assim onipotente, ele nada fez do muito bem que poderia ter feito, e o seu reinado foi, somente, de efeitos negatíficos, ou, explicitamente, maléficos – conservação monstruosa da escravidão, sistematização da corrupção política, guerras injustas com os vizinhos, destruição final de tudo que o movimento de 1831-32 havia trazido às instituições nacionais, resistência a tudo que era verdadeiro progresso... Não é que lhe faltasse, ao imperador, boas intenções, convencionalmente definidas; mas, porque, eram de convenção; porque faltava, a um Bragança, aqui abandonado, a efetiva correspondência com os sentimentos e as necessidades do Brasil. A verdade é que as boas intenções dele não combinavam com o verdadeiro bem desta pátria. E assim se explica – que apesar de não odiado, foi o imperador o motivo mais forte na campanha pela república. Como ideologia, todos o sabem, a propaganda de 1870-89 nada valeu; para mover a opinião, só se notaram, de substanciais, argumentos concretos – que o governo imperial se concentrava no poder pessoal. E como eram os políticos e chefes monárquicos os mais veementes contra esse mesmo personalismo do governo, sendo também os mais autorizados para dar testemunho do fato, foram eles, os monarquistas, os mais eficientes propagandistas da República. 162 


162 Quando o despeito do romântico – conservador e escravocrata José de Alencar, o leva a vociferar no parlamento contra o poder pessoal e a sua ação dissolvente, isto fazia mais efeito do que a discurseira dos arcaicos republicanos, em bacharelice bolorenta. “Os partidos, órgãos legítimos da vontade nacional, representam os vigorosos impulsos da democracia. A demolição é pois uma necessidade congênita com o trono”.


Com esse testemunho do absolutismo ilegal de Pedro II, entraram os republicanos na campanha contra o trono. E era bem fácil a campanha porque, sendo o governo imperial um franco despotismo, era de uma absoluta esterilidade, a não ser para o mal da campanha no Sul. Ora, suporta-se a tirania, pede-se a ditadura, apesar de toda a liberdade sacrificada, em vista das realizações fáceis que ela traz: o poder absoluto não pode ser estéril; está condenado. Foi o que aconteceu com o segundo Império – estéril, apesar das boas intenções do poder soberano. Como se explica isto? É que Pedro II foi absoluto e pessoal, como poder, por motivos alheios à sua compleição psíquica: ele não tinha o feitio moral, nem a energia íntima de um déspota – Cesar caricato! invectiva, sem propriedade, um dos línguas mais acatados da monarquia. Pedro II não era um Cesar, nem, talvez, pretendia tal amplitude de realização. Não era caricato, por isso mesmo que não se sentia com alma cesárea. Para ser Cesar, é preciso ter, antes de mais nada, o temperamento em que se definiram os Césares, Luíz XIV, Catarina, Mahomet, Carlos V, Cromwel, Bonaparte... Ou imediatamente sensuais, ou sublimados nos gozos das grandes realizações, todos esses foram almas de intenso e desenvolvido sentir, com a plenitude de forças psíquicas como se exige de um César. A despótica absorção dos poderes da nação não se faz sem a premência de necessidades íntimas – para satisfação irresistível de tendências dominantes e irreprimíveis. Ora, no príncipe brasileiro, não havia, de exigência soberana, senão a vaidade, e isto não basta para fazer uma alma cesariana. Em verdade, Pedro II, no apagado equilíbrio das suas faculdades, dado o tom negativo do seu caráter, com a honestidade e decência pessoal que possuía, como soberano, só podia ser um chefe rigorosamente constitucional: só prestava para isto,.. Coloquemos essa criatura na situação que lhe foi dada, e teremos a explicação do seu despotismo, isto é – de como ele teve de ser absoluto e pessoal. 

Criança, mal-formada no isolamento moral em que se encontrava, o futuro imperante teve, muito cedo, o espetáculo sintetizado no beija-mão de Araújo Lima, desenvolvido no servilismo de Itanhaém. Adolescente, é aproveitado pelos manobreiros da maioridade, convertido, assim, desde logo, em instrumento superior – para dar e tirar poder aos politiqueiros. Antonio Carlos insuflara-lhe a ingênua vaidade, tornando-o árbitro da situação; quatro meses depois, o companheiro Vilela Barbosa, e a camarilha já constituída, aproveitam o mesmo árbitro, e enxotam Antonio Carlos e os outros vagos liberais. Agora, nesse passo, o manobreiro vai mais longe: faz com que o imperial adolescente lhe dê a dissolução prévia. Revoltam-se os restos de autênticos liberais: nunca houve mais legítima revolução; mas, até Paula e Sousa renega o liberalismo, e agacha-se aos pés do senhor moço, 163


163 Esta expressão – senhor moço, é de Otoni: “A criadagem inferior, submetendo-se a todos os caprichos do Senhor Moço, acabava de estragá-lo...” cap. I.

enquanto as baionetas policiais de Lima e Silva reduzem os restos de liberalismo. O trono é um rapazinho, aos pés de quem se prosternam todos, qual mais pressuroso, qual mais empenhado em obter as imperiais graças, em troca da nação que entregavam ao seu definitivo e incontrastável mando. A vaidade do adolescente inflou, distendeu-se, e veio ocupar toda aquela soberania que a seus caprichos abandonavam os falsos representantes da Nação. Agora, de 1842 em diante, a política é somente o saracoteio tumultuário em torno do rapazelho distendido sobre a nação. E a imperial mocidade, ou por curiosidade de nova ambiência, ou enfado de servilismo conservador, põe fora os José Clemente e Vilela Barbosa, para entregar a empreitada de mando ao liberalismo de Almeida Torres (o futuro Caravelas) e o destemperado Holanda Cavalcanti: nova dissolução solicitada e concedida, novas eleições, com intervenção mais descarada, ainda, do governo, novos ataques contra os resquícios de liberalismo da legislação... Então, no vigor de juventude, o trono vai ocupando o lugar que lhe deixam, vai usurpando as soberanias que lhe entregam... Agora, já nem é preciso que lho deem formalmente: em 1848, a mutação política, e as subsequentes reações, são da autoria exclusiva de Pedro II, que já não tinha camarilha, propriamente dita, se não os áulicos, dentro de cujo servilismo ele escolhia muito livremente. Desse momento em diante, não era de esperar que, por si, quando tudo conspirava para dar-lhe o absoluto poder, fosse Pedro II abrir mão dos privilégios que lhe fizeram, e, viesse, ele próprio, ele sozinho, corrigir o sistema de há tanto tempo em uso. Aí, era o Brasil objeto de experiência da sua bem-intencionada vaidade, e fora preciso portentos de virtude, no imperante, ou muita energia patriótica e independência de caráter nos outros, para mudar a feição da política. Fora preciso milagre. 

Em todo caso, é tanta a verdade desse caráter que, no resto da sua existência, Pedro II foi um homem são, morigerado, essencialmente decente, e pessoalmente digno. A demonstração completa, disto, temo-la no seu proceder – na prova definitiva da queda. Nem parecia um Bragança. Comparem-se as duas cartas, em assunto de dinheiro, escritas por um e pelo outro, no momento supremo de partirem para o exílio: a do primeiro é uma sórdida e mesquinha alegação de quantias a receber, reclamadas na baixeza do querelante ganancioso; a do segundo, a desistência sóbria, essencialmente digna, de uma quantia oferecida pela Revolução. Há, entre os dois documentos, a diferença sempre notada, entre a vida privada do marido de Teresa Christina, e o grosseiro desbragamento do espancador da arquiduquesa Maria Leopoldina. Todo esse conjunto – caráter do imperador e realização das suas funções majestáticas, deu em resultado que Pedro II, só dedicado ao Brasil, não era realmente estimado pela nação brasileira, nem mesmo inspirava o respeito que merecia pela dignidade da sua vida. O achincalhe da miserável política presidida por ele mesmo, envolvia a sua pessoa no merecido desprestígio dos politiqueiros, ao mesmo tempo que se impunham surdamente à alma da nação os grandes males ligados ao seu reinado. Como em tudo mais, o caráter de Pedro II explica-nos até aquela acrimoniosa justificativa do último momento – Passei cinquenta anos a arrastar maus governos...  164  Não foi generoso, o ex-imperador, em expurgar-se, desse modo, de uma responsabilidade que foi principalmente sua; não é, mesmo, verdade, que os governos fossem propriamente maus senão abaixo da responsabilidade que lhes cabia; mas, em si mesmo, sentia-se Pedro II sem a responsabilidade do poder que exerceu, porque, em consciência, ele não se sentia um déspota. No entanto, foi a acusação mais repetida contra o seu reinado – a do poder pessoal.


164 Contesta-se o dito; é um caso a apurar.



____________________



"Morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."

Cecília Costa Junqueira



_______________________


O Brasil nação: vol. I / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 332 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 35).


_______________________

Download Acesse:

http://www.fundar.org.br/bbb/index.php/project/o-brasil-nacao-vol-i-manoel-bonfim/


_______________________





O Brasil Nação - v1: § 39 – A choldra dos partidos – sobre a nação abandonada - Manoel Bomfim 


O Brasil Nação - v1: § 40 – Já é corrupção... - Manoel Bomfim 


O Brasil Nação - v1: § 41 – O exclusivo da honestidade - Manoel Bomfim 


O Brasil Nação - v1: § 43 – O moderador, pessoal e absoluto - Manoel Bomfim 


O Brasil nação - v1: Prefácio - Manoel Bomfim



Série: Choro Encanta 01 - Ingênuo

Pizindim e Bruno Lacerda

mais o violão de 7 cordas




ouvir choro desperta algo que dói... 
e mesmo assim encanta. 
será que é isso o que sente um músico quando toca choro?









Rayuela - Julio Cortázar: Capítulo 55

Capítulo 55/133


    Claro que, como lo pensó en seguida Traveler, lo que contaba eran los resultados. Sin embargo, ¿por qué tanto pragmatismo? Cometía una injusticia con Ceferino, puesto que su sistema geopolítico no había sido ensayado como muchos otros igualmente insensatos (y por tanto promisorios, eso había que reconocerlo). Impertérrito, Cefe se mantenía en el terreno teórico y casi de inmediato entraba en otra demostración aplastante:

Los jornales obreros en el mundo:

    De acuerdo con la Sociedad de las Naciones será o ha de ser que si por ejemplo un obrero francés, un herrero pongamos por caso, gana un jornal diario y basado entre una base mínima de $ 8,00 y una base máxima de $ 10,00, entonces ha de ser que un herrero italiano también ha de ganar igual, entre $ 8,00 y $ 10,00 por jornada; más: si un herrero italiano gana lo mismo dicho, entre $ 8,00 y $ 10,00 por jornada, entonces un herrero español también ha de ganar entre $ 8,00 y $ 10,00 por jornada; más: si un herrero español gana entre $ 8,00 y $ 10,00 por jornada, entonces un herrero ruso también ha de ganar entre $ 8,00 y $ 10,00 por jornada; más: si un herrero ruso gana entre $ 8,00 y $ 10,00 por jornada, entonces un herrero norteamericano también ha de ganar entre $ 8,00 y $ 10,00 por jornada; etc.

—¿Cuál es la razón —monologó Traveler— de ese «etc.», de que en un momento dado Ceferino se pare y opte por ese etcétera tan penoso para él? No puede ser solamente el cansancio de la repetición, porque es evidente que le encanta, ni la sensación de monotonía, porque es evidente que le encanta (se le estaba pegando el estilo). El hecho era que el «etc.» lo dejaba un poco nostálgico a Ceferino, cosmólogo obligado a conceder un reader’s digest irritante. El pobre se desquitaba agregando a continuación de su lista de herreros:

(Por lo demás, en esta tesis, de seguir hablando, caben o cabrían desde luego todos los países respectivamente, o bien todos los herreros de todo respectivo país.)

    «En fin», pensó Traveler sirviéndose otra caña y rebajándola con soda, «es raro que Talita no vuelva». Habría que ir a ver. Le daba lástima salirse del mundo de Ceferino en pleno arreglo, justamente cuando Cefe se ponía a enumerar las 45 Corporaciones Nacionales que debían componer un país ejemplar:

1) CORPORACIÓN NACIONAL DE MINISTERIO DEL INTERIOR (todas las dependencias y empleados en general de Ministerio del Interior). (Ministración de toda estabilidad de todo establecimiento, etc.); 2) CORPORACIÓN NACIONAL DE MINISTERIO DE HACIENDA (todas las dependencias y empleados en general de Ministerio de Hacienda). (Ministración a modo de patrocinio, de todo bien (toda propiedad) dentro de territorio nacional, etc.); 3)

Y así, corporaciones en número de 45, entre las que se destacaban por derecho propio la 5, la 10, la 11 y la 12:

5) CORPORACIÓN NACIONAL DE MINISTERIO DE LA PRIVANZA CIVIL (todas las dependencias y empleados en general de cuyo Ministerio). (Instrucción, Ilustración, Amor de un prójimo para con otro, Control, Registro (libros de), Salud, Educación Sexual, etc.). (Ministración o Control y Registro (letrado...) que ha de suplir a «Juzgados de Instrucción», a «Juzgados de lo Civil», a «Consejo del Niño», a «Juez de Menores», a «Registros»: nacimientos, defunciones, etc.) (Ministración que ha de comprender a todo lo que sea de la Privanza Civil: MATRIMONIO, PADRE, HIJO, VECINO, DOMICILIO, INDIVIDUO, INDIVIDUO DE BUENA O MALA CONDUCTA, INDIVIDUO DE INMORALIDAD PUBLICA, INDIVIDUO CON MALAS ENFERMEDADES. HOGAR (FAMILIA Y), PERSONA INDESEABLE, JEFE DE FAMILIA, NIÑO, MENOR DE EDAD, NOVIO. CONCUBINATO, etc.).

10) CORPORACIÓN NACIONAL DE ESTANCIAS (todos los establecimientos rurales de la Cría Mayor de animales y todos los empleados en general de cuyos establecimientos). (Cría Mayor o cría de animales corpulentos: bueyes, caballos, avestruces, elefantes, camellos, jirafas, ballenas, etc.);

11) CORPORACIÓN NACIONAL DE GRANJAS (todas las granjas agrícolas o chacras grandes, y todos los empleados en general de cuyos establecimientos). (Plantíos de toda clase respectiva de vegetales, menos hortalizas y árboles frutales);

12) CORPORACIÓN NACIONAL DE CASAS-CRIADEROS DE ANIMALES (todos los establecimientos de la Cría Menor de animales, y todos los empleados en general de cuyos establecimientos). (Cría Menor o cría de animales no corpulentos: cerdos, ovejas, chivos, perros, tigres, leones, gatos, liebres, gallinas, patos, avejas, peces, mariposas, ratones, insectos, microbios, etc.)

    Enternecido, Traveler se olvidaba de la hora y de cómo bajaba la botella de caña. Los problemas se le planteaban como caricias: ¿Por qué exceptuar las hortalizas y los árboles frutales? ¿Por qué la palabra aveja tenía algo de diabólico? Y esa visión casi edénica de una chacra donde los chivos se criaban al lado de los tigres, los ratones, las mariposas, los leones y los microbios... Ahogándose de risa, salió al pasillo. El espectáculo casi tangible de una estancia donde los empleados-de-cuyo-establecimiento se debatían tratando de criar una ballena, se superponía a la austera visión del pasillo nocturno. Era una alucinación digna del lugar y de la hora, parecía perfectamente tonto preguntarse qué andaría haciendo Talita en la farmacia o en el patio, cuando la ordenación de las corporaciones se seguía ofreciendo como una lámpara.

25) CORPORACIÓN NACIONAL DE HOSPITALES Y CASAS AFINES (todos los hospitales de toda clase, los talleres de arreglos y composturas, casas de curados de cueros, caballerizas de las de componer caballos, clínicas dentales, peluquerías, casas de podado de vegetales, casas de arreglado le expedientes intrincados, etc., y también todos los empleados en general de cuyos establecimientos).

—Ahí está —dijo Traveler—. Una ruptura que prueba la perfecta salud central de Ceferino. Horacio tiene razón, no hay por qué aceptar los órdenes tal como nos los alcanza papito. A Cefe le parece que el hecho de componer alguna cosa vincula al dentista con los expedientes intrincados; los accidentes valen tanto como las esencias... Pero es la poesía misma, hermano. Cefe rompe la dura costra mental, como decía no sé quién, y empieza a ver el mundo desde un ángulo diferente. Claro que a eso es lo que le llaman estar piantado.

Cuando entró Talita, estaba en la Corporación vigesimoctava:

28) CORPORACIÓN NACIONAL DE LOS DETECTIVES CIENTÍFICOS EN LO ANDANTE Y SUS CASAS DE CIENCIAS (todos los locales de detectives y/o policías de la investigación, todos los locales de exploradores (recorredores) y todos los locales de exploradores científicos, y todos los empleados en general de cuyos mismos establecimientos). (Todos los mencionados empleados han de pertenecer a una clase que se ha de denominar como «ANDANTE».)

    A Talita y a Traveler les gustaba menos esta parte, era como si Ceferino se abandonara demasiado pronto a una inquietud persecutoria. Pero quizá los detectives científicos en lo andante no eran meros pesquisas, lo de «andante» los investía de un aire quijotesco que Cefe, a lo mejor dándolo por sentado, no se había molestado en subrayar.

29) CORPORACIÓN NACIONAL DE LOS DETECTIVES CIENTIFICOS EN LO PERTENECIENTE A LA PETICIÓN Y A SUS CASAS DE CIENCIAS (todos los locales de detectives y/o policía de la Investigación, y todos los locales de exploradores, y todos los empleados en general de cuyos mismos establecimientos). (Todos los mencionados empleados han de pertenecer a una clase que se ha de denominar como «PETICION», y los locales y empleados de esta clase han de ser aparte de los de otras clases como la ya mencionada «ANDANTE».)

30) CORPORACIÓN NACIONAL DE LOS DETECTIVES CIENTÍFICOS EN LO PERTENECIENTE A LA ACOTACIÓN A FIN Y SUS CASAS DE CIENCIAS (todos los locales de detectives y/o policías de la Investigación, y todos los locales de exploradores, y todos los empleados en general de cuyos mismos establecimientos). (Todos los mencionados empleados han de pertenecer a una clase que se ha de denominar como «ACOTACIÓN», y los locales y empleados de esta clase han de ser aparte de los de otras clases como las ya mencionadas «ANDANTE» y «PETICIÓN».)

—Es como si hablara de órdenes de caballería dijo Talita convencida—. Pero lo raro es que en estas tres corporaciones de detectives, lo único que se menciona son los locales.

—Por un lado eso, y por otro, ¿qué quiere decir «acotación a fin»?

—Debe ser una sola palabra, afín. Pero no resuelve nada. Qué importa.

—Qué importa —repitió Traveler—. Tenés mucha razón.

    Lo hermoso es que exista la posibilidad de un mundo donde haya detectives andantes, de petición y de acotación. Por eso me parece bastante natural que ahora Cefe pase de la caballería a las órdenes religiosas, con un intermedio que viene a ser una concesión al espíritu cientificista (algún nombre hay que darle, che) de estos tiempos. Te leo:

31) CORPORACIÓN NACIONAL DE LOS DOCTOS EN CIENCIAS DE LO IDÓNEO Y SUS CASAS DE CIENCIAS (todas las casas o locales de comunidad de doctos en ciencias de lo idóneo, y todos cuyos mismos doctos). Doctos en ciencias de lo idóneo: médicos, homeópatas, curanderos (todo cirujano), parteras, técnicos, mecánicos (toda clase de técnicos), ingenieros de segundo orden o arquitectos en toda respectiva rama (todo ejecutor de planes ya trazados de antemano, tal como lo sería un ingeniero de segundo orden), clasificadores en general, astrónomos, astrólogos, espiritistas, doctores completos en toda rama de la ley o leyes (todo perito), clasificadores en especies genéricas, contadores, traductores, maestros de escuelas de las Primarias (todo compositor), rastreadores —hombres— de asesinos, baquianos o guías, injertadores de vegetales, peluqueros, etc.

—¡Qué me contás! —dijo Traveler, bebiéndose una caña de un trago—. ¡Es absolutamente genial!

—Sería un gran país para los peluqueros —dijo Talita, tirándose en la cama y cerrando los ojos—. Qué salto que dan en el escalafón. Lo que no entiendo es que los rastreadores de asesinos tengan que ser hombres.

—Nunca se oyó hablar de una rastreadora —dijo Traveler— y a lo mejor a Cefe le parece poco apropiado. Ya te habrás dado cuenta de que en materia sexual es un puritano terrible, se nota todo el tiempo.

—Hace calor, demasiado calor —dijo Talita—. ¿Te fijaste con qué gusto incluye a los clasificadores, y hasta repite el nombre? Bueno, a ver el salto místico que ibas a leerme.

—Carpeteá —dijo Traveler.

32) CORPORACIÓN NACIONAL DE LOS MONJES DE LA ORACIÓN DE SANTIGUAMIENTO Y SUS CASAS DE CIENCIAS (todas las casas de comunidad de monjes, y todos los monjes). (Monjes u hombres santiguadores, que han de pertenecer fuera de todo culto extraño, únicamente y solamente al mundo de la palabra y los misterios curativos y de «vencimiento» de ésta.) (Monjes que han de combatir siempre a todo mal espiritual, a todo daño ganado o metido dentro de bienes o cuerpos, etc.) (Monjes penitentes, y anacoretas que han de orar o santiguar, ya a personas, ya a objetos, ya a lugares de parajes, ya a sembrados de vegetales, ya a un novio mal afectado por un rival, etcétera.)

33) CORPORACIÓN NACIONAL DE LOS BEATOS GUARDADORES DE COLECCIONES Y SUS CASAS DE COLECCION (todas las casas de colección, e ídem, casas —depósitos, almacenes, archivos, museos, cementerios, cárceles, asilos, institutos de ciegos, etc., y también todos los empleados en general de cuyos establecimientos). (Colecciones: ejemplo: un archivo guarda expedientes en colección; un cementerio guarda cadáveres en colección; una cárcel guarda presos en colección, etc.)

—Lo del cementerio no se le ocurrió ni a Espronceda —dijo Traveler—. No me vas a negar que la analogía entre la Chacarita y un archivo... Ceferino adivina las relaciones, y eso en el fondo es la verdadera inteligencia, ¿no te parece? Después de semejantes proemios, su clasificación final no tiene nada de extraño, muy al contrario. Habría que ensayar un mundo así.

    Talita no dijo nada, pero levantó el labio superior como un festón y proyectó un suspiro que venía de eso que llaman el primer sueño. Traveler se tomó otra caña y entró en las Corporaciones finales y definitivas:

40) CORPORACIÓN NACIONAL DE AGENTES COMISIONADOS EN ESPECIES COLORADAS DEL COLORADO DEL ROJO Y CASAS DE LABOR ACTIVA PRO ESPECIES COLORADAS DEL ROJO (todas las casas de comunidad de agentes comisionados en especies genéricas del colorado del rojo, u Oficinas grandes de cuyos agentes, y también todos cuyos mismos agentes). (Especies genéricas del colorado del rojo: animales de pelaje colorado del rojo; vegetales de flor colorada del rojo, y minerales de aspecto colorado del rojo.)

41) CORPORACIÓN NACIONAL DE AGENTES COMISIONADOS EN ESPECIES COLORADAS DEL NEGRO Y CASAS DE LABOR ACTIVA PRO ESPECIES COLORADAS DEL NEGRO (todas las casas de comunidad de agentes comisionados en especies genéricas del negro, u Oficinas grandes de cuyos agentes, y también todos cuyos mismos agentes). (Especies genéricas del colorado del negro o del negro simplemente: animales de pelaje negro, vegetales de flor negra, y minerales de aspecto negro.)

42) CORPORACIÓN NACIONAL DE AGENTES COMISIO NADOS EN ESPECIES COLORADAS DEL PARDO Y CASAS DE LABOR ACTIVA PRO ESPECIES GENERICAS DEL PARDO (todas las casas de comunidad de agentes comisionados en especies genéricas del colorado del pardo, u Oficinas grandes de cuyos agentes, y también todos cuyos mismos agentes). (Especies genéricas del colorado del pardo o del pardo simplemente: animales de pelaje pardo, vegetales de flor parda, y minerales de aspecto pardo.)

43) CORPORACIÓN NACIONAL DE AGENTES COMISIONADOS EN ESPECIES COLORADAS DEL AMARILLO Y CASAS DE LABOR ACTIVA PRO ESPECIES COLORADAS DEL AMARILLO (todas las casas de comunidad de agentes comisionados en especies genéricas del colorado del amarillo, u Oficinas grandes de cuyos agentes, y también todos cuyos mismos agentes). (Especies genéricas del colorado del amarillo o del amarillo simplemente: animales de pelaje amarillo, vegetales de flor amarilla, y minerales de aspecto amarillo.)

44) CORPORACIÓN NACIONAL DE AGENTES COMISIONADOS EN ESPECIES GENERICAS DEL BLANCO Y CASAS DE LABOR ACTIVA PRO ESPECIES GENERICAS DEL COLORADO DEL BLANCO (todas las casas de comunidad de agentes comisionados en especies genéricas del colorado del blanco, u Oficinas grandes de cuyos agentes, y también todos cuyos mismos agentes). (Especies genéricas del colorado del blanco: animales de pelaje blanco, vegetales de flor blanca, y minerales de aspecto blanco.)

45) CORPORACIÓN NACIONAL DE AGENTES COMISIONADOS EN ESPECIES GENERICAS DEL PAMPA Y CASAS DE LABOR ACTIVA PRO ESPECIES GENERICAS DEL COLORADO DEL PAMPA (todas las casas de comunidad de agentes comisionados en especies genéricas del colorado del pampa, u Oficinas grandes de cuyos agentes, y también todos cuyos mismos agentes). (Especies genéricas del colorado del pampa o del pampa simplemente: animales de pelaje pampa, vegetales de flor pampa, y minerales de aspecto pampa.)

    Romper la dura costra mental... ¿Cómo veía Ceferino lo que había escrito? ¿Qué realidad deslumbrante (o no) le mostraba escenas donde los osos polares se movían en inmensos escenarios de mármol, entre jazmines del Cabo? O cuervos anidando en acantilados de carbón, con un tulipán negro en el pico... ¿Y por qué «colorado del negro», «colorado del blanco»? ¿No sería «coloreado»? Pero entonces, ¿por qué: «colorado del amarillo o del amarillo simplemente»? ¿Qué colores eran esos, que ninguna marihuana michauxina o huxleyana traducía? Las notas de Ceferino, útiles para perderse un poco más (sí eso era útil) no iban muy lejos. De todos modos:

    Sobre el ya mencionado color pampa: el color pampa es todo aquel color que sea vario, o que esté o sea formado por dos o más pintas.

Y una aclaración eminentemente necesaria:

    Sobre los ya aludidos o mencionados agentes en especies genéricas: cuyos agentes han de ser Gobernadores, que por medio de ellos nunca llegue a extinguirse del mundo ninguna de las especies genéricas; que las especies genéricas, dentro de sus clases, no se crucen, ya una clase con otra, ya un tipo con otro, ya una raza con otra raza, ya un color de especie con otro color de otra especie, etc.

    ¡Purista, racista Ceferino Piriz! ¡Un cosmos de colores puros, mondrianesco a reventar! ¡Peligroso Ceferino Piriz, siempre posible candidato a diputado, tal vez a presidente! ¡En guardia, Banda Oriental! Y otra caña antes de irse a dormir mientras Cefe, borracho de colores, se concedía un último poema donde como en un inmenso cuadro de Ensor estallaba todo lo estallable en materia de máscaras y antimáscaras. Bruscamente irrumpía el militarismo en su sistema, y había que ver el tratamiento entre macarrónico y trismegístico que le reservaba el filósofo uruguayo. O sea:

    En cuanto a la anunciada obra «La Luz de la Paz del Mundo», se trata de que en ella se explica algo detallado sobre el militarismo, pero ahora, en breve explicación, diremos la o las siguientes versiones sobre militarismo:

    La Guardia (tipo «Metropolitana») para los militares nacidos bajo el signo zodiacal Aries; los Sindicatos del antigobierno fundamental, para los militares nacidos bajo el signo zodiacal Tauro, la Dirección y auspicios de festejos y reuniones sociales (bailes, reuniones de veladas, conciertos de noviazgos: hacer parejas de novios, etc.) para los militares nacidos bajo el signo zodiacal Géminis; la Aviación (militar) para los militares nacidos bajo el signo zodiacal Cáncer; la Pluma pro gobierno fundamental

(periodismo militar, y de las magias políticas en pro de todo el Gobierno fundamental y nacional) para los militares nacidos bajo el signo zodiacal Leo; la Artillería (armas pesadas en general y bombas) para los militares nacidos bajo el signo zodiacal Virgo; Auspicios y representaciones prácticas de fiestas publicas y/o patrias (usos de disfraces adecuados por parte de militares, en los momentos de encarnar, ya un desfile militar, ya un desfile de carnaval, ya una comparsa carnavalesca, ya una fiesta de las de «vendimia», etc.) para los militares nacidos bajo el signo zodiacal Escorpión; la Caballería (caballerías comunes y caballerías motorizadas, con las respectivas participaciones, ya de fusileros, ya de lanceros, ya de macheteros: caso común: «Guardia Republicana», ya de espadachineros, etc.) para los militares nacidos bajo el signo zodiacal Capricornio; y la ,Servidumbre militar práctica (chasquis, propios, bomberos, misioneros prácticos, sirvientes de lo práctico, etc.) para los militares nacidos balo el signo zodiacal Acuario.

    Sacudiendo a Talita, que se despertó indignada, Traveler le leyó la parte del militarismo y los dos tuvieron que meter la cabeza debajo de la almohada para no despertar a toda la clínica. Pero antes se pusieron de acuerdo en que la mayoría de los militares argentinos eran nacidos bajo el signo zodiacal Tauro. Tan borracho estaba Traveler, nacido bajo el signo zodiacal Escorpión, que se declaró dispuesto a apelar de inmediato a su condición de subteniente de la reserva a fin de que le permitieran hacer uso de disfraces adecuados por parte de militares.

—Organizaremos enormes fiestas de las de vendimia —decía Traveler, sacando la cabeza de debajo de la almohada y volviéndola a meter apenas terminaba la frase—. Vos vendrás con todas tus congéneres de la raza pampa, porque no hay la menor duda de que sos una pampa, o sea que estás formada por dos o más pintas.

—Yo soy blanca —dijo Talita—. Y es una lástima que vos no hayas nacido bajo el signo zodiacal Capricornio, porque me encantaría que fueras un espadachinero. O por lo menos un chasqui o un propio.

—Los chasquis son Acuario, che, Horacio es Cáncer, ¿no?

—Si no lo es, lo merece dijo Talita cerrando los ojos.

—Le toca modestamente la aviación. No hay más que imaginárselo piloteando un Bang-Bang de ésos y ya te lo está escrachando en la Confitería del Águila a la hora del té con masitas. Sería fatal.

    Talita apagó la luz y se apretó un poco contra Traveler que sudaba y se retorcía, envuelto por diversos signos del zodíaco, corporaciones nacionales de agentes comisionados y minerales de aspecto amarillo.

—Horacio vio a la Maga esta noche —dijo Talita, como dormida—. La vio en el patio, hace dos horas, cuando vos estabas de guardia.

—Ah —dijo Traveler, tendiéndose de espaldas y buscando los cigarrillos sistema Braille—. Habría que meterlo entre los beatos guardadores de colecciones.

—La Maga era yo —dijo Talita, apretándose más contra Traveler—. No sé si te das cuenta.

—Más bien sí.

—Alguna vez tenía que ocurrir. Lo que me asombra es que se haya quedado tan sorprendido por la confusión.

—Oh, vos sabés, Horacio arma los líos y después los mira con el mismo aire de los cachorros cuando han hecho caca y se quedan contemplándola estupefactos.

—Yo creo que empezó el mismo día en que lo fuimos a buscar al puerto —dijo Talita—. No se puede explicar, porque ni siquiera me miró, y entre los dos me echaron como a un perro, con el gato abajo del brazo.

—Cría de animales no corpulentos —dijo Traveler. —Me confundió con la Maga —insistió Talita—. Todo lo demás tenía que seguir como si lo enumerara Ceferino, una cosa detrás de la otra. —La Maga —dijo Traveler, chupando del cigarrillo hasta que se le iluminó la cara en la oscuridad— también es uruguaya. Ya ves que hay un cierto orden.

—Dejame hablar, Manú.

—Mejor no. Para qué.

—Primero vino el viejo con la paloma, y entonces bajamos al sótano. Horacio hablaba todo el tiempo del descenso, de esos huecos que lo preocupan. Estaba desesperado, Manú, daba miedo ver lo tranquilo que parecía, y entre tanto... Bajamos en el montacargas, y él fue a cerrar una de las heladeras, era tan horrible.

—De manera que bajaste —dijo Traveler—. Está bueno.

—Era diferente —dijo Talita—. No era como bajar. Hablábamos, pero yo sentía como si Horacio estuviera desde otra parte, hablándole a otra, a una mujer ahogada, por ejemplo. Ahora se me ocurre eso, pero él todavía no había dicho que la Maga se había ahogado en el río.

—No se ahogó en lo más mínimo —dijo Traveler— . Me consta, aunque admito que no tengo la menor idea. Basta con conocerlo a Horacio.

—Cree que está muerta, Manú, y al mismo tiempo la siente cerca y esta noche fui yo. Me dijo que también la había visto en el barco, y debajo del puente de la Avenida San Martín... No lo dice como si hablara de una alucinación, y tampoco pretende que le creas. Lo dice, nomás, y es verdad, es algo que está ahí. Cuando cerró la heladera y yo tuve miedo y dije no sé qué, me empezó a mirar y era a la otra que miraba. Yo no soy el zombie de nadie, Manú, no quiero ser el zombie de nadie.

    Traveler le pasó la mano por el pelo, pero Talita lo rechazó con impaciencia. Se había sentado en la cama y él la sentía temblar. Con ese calor, temblando. Le dijo que Horacio la había besado, y trató de explicar el beso y como no encontraba las palabras iba tocando a Traveler en la oscuridad, sus manos caían como trapos sobre su cara, sobre sus brazos, le resbalaban por el pecho, se apoyaban en sus rodillas, y de todo eso nacía como una explicación que Traveler era incapaz de rechazar, un contagio que venía desde más allá, desde alguna parte en lo hondo o en lo alto o en cualquier parte que no fuera esa noche y esa pieza, un contagio que a través de Talita lo poseía a su vez, un balbuceo como un anuncio intraducible, la sospecha de que estaba delante de algo que podía ser un anuncio, pero la voz que lo traía estaba quebrada y cuando decía el anuncio lo decía en un idioma ininteligible, y sin embargo eso era lo único necesario ahí al alcance de la mano, reclamando el reconocimiento y la aceptación, debatiéndose contra una pared esponjosa, de humo y de corcho, inasible y ofreciéndose, desnudo, entre los brazos pero como de agua yéndose entre lágrimas.

«La dura costra mental», alcanzó a pensar Traveler. Oía confusamente que el miedo, que Horacio, que el montacargas, que la paloma; un sistema comunicable volvía a entrar poco a poco en el oído. De manera que el pobre infeliz tenía miedo de que él lo matara, era para reírse.

—¿Te lo dijo así, che? Cuesta creerlo, vos sabes el orgullo que tiene.

—Es otra cosa —dijo Talita, quitándole el cigarrillo y chupando con una especie de avidez de cine mudo—. Yo creo que el miedo que siente es como un último refugio, el barrote donde tiene las manos prendidas antes de tirarse. Está tan contento de tener miedo esta noche, yo sé que está contento en el fondo.

—Eso —dijo Traveler, respirando como un verdadero yogi— no lo entendería la Cuca, podés estar segura. Y yo debo estar de lo más inteligente esta noche, porque lo del miedo alegre es medio duro de tragar, vieja.

    Talita se corrió un poco en la cama y se apoyó contra Traveler. Sabía que estaba otra vez de su lado, que no se había ahogado, que él la estaba sosteniendo a flor de agua y que en el fondo era una lástima, una maravillosa lástima. Los dos lo sintieron en el mismo instante, y resbalaron el uno hacia el otro como para caer en ellos mismos, en la tierra común donde las palabras y las caricias y las bocas los envolvían como la circunferencia al círculo, esas metáforas tranquilizadoras, esa vieja tristeza satisfecha de volver a ser el de siempre, de continuar, de mantenerse a flote contra viento y marea, contra el llamado y la caída. 



_____________________

Leia também:

Rayuela - Julio Cortázar: Capítulo 54

Rayuela - Julio Cortázar: Capítulo 56