quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

MPB - As águas em março de outra realidade menos morta...

Uma  pequena jornada na MPB


"Aperte o play e deixe-se envolver pela melodia dessas músicas que conquistaram corações e se tornaram trilha sonora de gerações inteiras. Desfrute desses clássicos intemporais que continuam a encantar e inspirar, afinal, a MPB é uma fonte inesgotável de beleza e poesia que merece ser apreciada sempre. Qual é a sua música favorita?"





Construção
Composição: Chico Buarque.

Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido

Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima

Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música

E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão, atrapalhando o tráfego

Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado

Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego

Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo

E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público

Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado

Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague

Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair
Deus lhe pague

Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague



Angenor de Oliveira, mais conhecido por Cartola (Rio de Janeiro, 11 de outubro de 1908 – Rio de Janeiro, 30 de novembro de 1980), foi um cantor, compositor, poeta e violonista brasileiro. É considerado por diversos músicos e críticos musicais como o maior sambista da história da música brasileira. Tendo como seus principais sucessos as músicas As Rosas não Falam, O Mundo É um Moinho e Alvorada. Ajudou na fundação da agremiação Mangueira.


O mundo é um moinho / As rosas não falam 
- Beth Carvalho - A madrinha do samba…





Como os Nossos Pais
Composição: Belchior

Não quero lhe falar, meu grande amor
Das coisas que aprendi nos discos
Quero lhe contar como eu vivi
E tudo o que aconteceu comigo

Viver é melhor que sonhar
Eu sei que o amor é uma coisa boa
Mas também sei que qualquer canto
É menor do que a vida de qualquer pessoa

Por isso, cuidado, meu bem
Há perigo na esquina
Eles venceram e o sinal está fechado pra nós
Que somos jovens

Para abraçar seu irmão
E beijar sua menina na rua
É que se fez o seu braço
O seu lábio e a sua voz

Você me pergunta pela minha paixão
Digo que estou encantada como uma nova invenção
Eu vou ficar nesta cidade, não vou voltar pro sertão
Pois vejo vir vindo no vento cheiro de nova estação
Eu sei de tudo na ferida viva do meu coração

Já faz tempo, eu vi você na rua
Cabelo ao vento, gente jovem reunida
Na parede da memória
Essa lembrança é o quadro que dói mais

Minha dor é perceber
Que apesar de termos feito tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Como os nossos pais

Nossos ídolos ainda são os mesmos
E as aparências não enganam, não
Você diz que depois deles
Não apareceu mais ninguém

Você pode até dizer que eu tô por fora
Ou então que eu tô inventando
Mas é você que ama o passado e que não vê
É você que ama o passado e que não vê
Que o novo sempre vem

Hoje eu sei que quem me deu a ideia
De uma nova consciência e juventude
Tá em casa guardado por Deus
Contando o vil metal

Minha dor é perceber
Que apesar de termos feito tudo, tudo, tudo o que fizemos
Nós ainda somos os mesmos e vivemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Como os nossos pais


Belchior





Cálice
Composição: Chico Buarque / Gilberto Gil

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Como beber dessa bebida amarga?
Tragar a dor, engolir a labuta?
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa?
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade?
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça


a História construída diante de nossos olhos cegos e calados


Cálice (censurado) - Chico Buarque e Gilberto Gil




Ana de Amsterdam




Sou Ana do dique e das docas
Da compra, da venda, das trocas de pernas
Dos braços, das bocas, do lixo, dos bichos, das fichas
Sou Ana das loucas
Até amanhã
Sou Ana
Da cama, da cana, fulana, sacana
Sou Ana de Amsterdam
Eu cruzei um oceano
Na esperança de casar
Fiz mil bocas pra Solano
Fui beijada por Gaspar
Sou Ana de cabo a tenente
Sou Ana de toda patente, das Índias
Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada
Sou Ana, obrigada
Até amanhã, sou Ana
Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos
Sou Ana de Amsterdam
Arrisquei muita braçada
Na esperança de outro mar
Hoje sou carta marcada
Hoje sou jogo de azar
Sou Ana de vinte minutos
Sou Ana da brasa dos brutos na coxa
Que apaga charutos
Sou Ana dos dentes rangendo
E dos olhos enxutos
Até amanhã, sou Ana
Das marcas, das macas, da vacas, das pratas
Sou Ana de Amsterdam



Calabar 
- Chico Buarque e Ruy Guerra





Marcel Proust - No Caminho de Swann (Combray, de longe - c)

em busca do tempo perdido

volume I
No Caminho de Swann


ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust



combray


II(c) 

continuando...

   Enquanto minha tia assim conversava com Françoise, eu acompanhava meus pais à missa. A nossa igreja, como eu a amava, que bem a vejo agora! O velho pórtico por onde entrávamos, negro, bexigoso como uma espumadeira, estava como desviado e cavado profundamente nos ângulos (da mesma forma que a pia de água-benta aonde nos conduzia), como se o leve roçar dos mantos das camponesas ao entrar na igreja e de seus dedos tímidos ao tomar água-benta pudesse, repetido durante séculos, adquirir uma força destrutiva, curvar a pedra e talhá-la de sulcos como os traça a roda dos carros no marco onde bate todos os dias. Suas pedras tumulares, debaixo das quais o nobre pó dos abades de Combray, ali enterrado, dava ao coro um como pavimento espiritual, já não eram tampouco matéria inerte e dura, pois o tempo as abrandara, fazendo-as escorrer, como um mel, além dos limites de sua própria esquadria, que aqui haviam ultrapassado em dourada onda, arrastando à deriva uma florida maiúscula gótica, afogando as violetas brancas do mármore; ou então se reabsorviam, em outras partes, contraindo ainda mais a elíptica inscrição latina, introduzindo mais um capricho na disposição dos caracteres abreviados, aproximando duas letras de uma palavra enquanto separavam desmesuradamente as restantes. Os seus vitrais nunca se irisavam tanto como nos dias de pouco sol, de sorte que, por sombrio que estivesse lá fora, tinha-se certeza de que fazia bom tempo na igreja; havia um, ocupado em todo o seu tamanho por uma única personagem semelhante a um rei de jogo de cartas, que vivia lá no alto, sob um dossel arquitetônico, entre o céu e a terra (e em cujo reflexo oblíquo e azul, às vezes, nos dias de semana, ao meio-dia, quando não havia ofício religioso — em um desses raros momentos em que a igreja, arejada, vazia, mais humana, luxuosa, com o sol sobre seu rico mobiliário, tinha um ar quase habitável, como o hall de pedra esculpida e de vidro pintado, de um hotel de estilo medieval —, via-se ajoelhar-se por um instante a sra. Sazerat, colocando em um genuflexório ao lado um embrulho bem amarrado de bolinhos que acabara de comprar na pastelaria em frente e que ia levar para o almoço); em outro vitral uma montanha de neve rósea, a cujo pé se travava um combate, parecia haver gelado o próprio vidro ao qual empolava com seu turvo granizo, como uma vidraça onde quedassem flocos alumiados por alguma aurora (pela mesma aurora sem dúvida que purpureava o retábulo do altar de uns tons tão frescos que antes pareciam postos ali momentaneamente por uma claridade vinda de fora e prestes a esvair-se do que pelas cores aderidas para sempre às pedras); e eram todos tão antigos que se via aqui e ali sua velhice argentada fulgurar dentre a poeira dos séculos e patentear, brilhante e gasta até o fio, a trama de sua suave tapeçaria de vidro. Havia um que era um alto compartimento dividido em uma centena de pequenos vitrais retangulares onde dominava o azul, como um grande jogo de cartas semelhante àqueles que deviam distrair o rei Carlos VI;[1] mas, ou porque houvesse brilhado um raio de sol, ou porque meu olhar, movendo-se, passeasse ao longo do vitral, que se apagava e reacendia, um movediço e precioso incêndio, logo após tomava ele o esplendor mutável de uma cauda de pavão, depois tremia e ondulava em uma flamejante e fantástica chuva que gotejava do alto da abóbada sombria e rochosa ao longo das paredes úmidas, como se eu seguisse meus pais, que levavam seu livro de orações, não por uma igreja, mas pela nave de alguma gruta irisada de sinuosas estalactites; um instante depois, os pequenos vitrais em losango tinham tomado a transparência profunda, a infrangível dureza de safiras que tivessem sido justapostas sobre algum imenso peitoral, mas por trás das quais se sentisse, mais amado que todas essas riquezas, um sorriso momentâneo de sol; e esse sorriso era tão reconhecível na onda azul e suave com que banhava as pedrarias como sobre as pedras da praça ou a palha do mercado; e, mesmo nos primeiros domingos quando chegávamos antes da Páscoa, ele me consolava de que a terra estivesse ainda nua e negra, distendendo, como em uma primavera histórica e que datasse dos sucessores de são Luís, aquele dourado e ofuscante tapete de miosótis de vidro.
   Duas tapeçarias de trama vertical representavam a coroação de Ester (a tradição emprestava a Assuero os traços de um rei de França e a Ester os de uma dama de Guermantes, de quem estava enamorado); suas cores se haviam fundido, acrescentando às figuras uma expressão, um relevo, uma iluminação peculiar: um pouco de cor-de-rosa flutuava nos lábios de Ester além do desenho de seu contorno, o amarelo de seu vestido se espalhava tão untuosamente, tão plenamente, que este adquiria uma espécie de consistência e se salientava vivamente por sobre a atmosfera recuada; e a verdura das árvores que permanecia viva na parte baixa do painel de seda e lá, mas que estava “passada” no alto, fazia destacarem-se em um tom mais pálido, acima dos troncos escuros, os altos ramos amarelecidos, dourados e como que meio apagados pela brusca e oblíqua iluminação de um sol invisível. Tudo aquilo e mais ainda os objetos preciosos, oriundos de personagens que para mim eram quase personagens de lenda (a cruz de ouro trabalhada, dizia-se, por santo Elói e doada por Dagoberto,[2] o túmulo dos filhos de Luís, o Germânico, de pórfiro e de cobre esmaltado[3]) e por causa das quais eu avançava pela igreja, quando nos dirigíamos a nossos lugares, como por um vale visitado pelas fadas, onde o campônio se maravilha de ver em um rochedo, em uma árvore, em um pântano o rastro palpável de sua passagem sobrenatural; tudo aquilo fazia da igreja, para mim, alguma coisa de inteiramente diverso do resto da cidade: um edifício que ocupava, por assim dizer, um espaço de quatro dimensões — a quarta era a do Tempo — e impelia através dos séculos sua nave que, de abóbada em abóbada, de capela em capela, parecia vencer e transpor não simplesmente alguns metros, mas épocas sucessivas de onde saía triunfante; que escondia na espessura de suas paredes o rude e feroz século xi, o qual apenas se entremostrava, com seus pesados arcos de abóbada, tapados e escurecidos por grosseiros silhares, na profunda cavidade que a escada do campanário abria junto do pórtico, e, ainda assim, dissimulado pelas graciosas arcadas góticas, que se alinhavam gentilmente diante dele, como irmãs mais velhas se colocam a sorrir diante de um irmãozinho rústico, rezingão e malvestido, para ocultá-lo aos estranhos; que elevava no céu, acima da praça, sua torre que contemplara são Luís e parecia ainda vê-lo; e que mergulhava com sua cripta em uma noite merovíngia,[4] por onde Teodoro e sua irmã, guiando-nos às apalpadelas sob a abóbada escura e fortemente nervada como a membrana de um imenso morcego de pedra, iam-nos alumiar com uma vela o túmulo da neta de Sigiberto, em cuja laje havia uma profunda amolgadura — como o rastro de um fóssil — e que fora cavada, diziam, “por uma lâmpada de cristal que, na noite do assassinato da princesa franca, se desprendera das correntes de ouro a que estava suspensa no lugar que ocupa hoje a abside, e, sem que o vidro se quebrasse, sem que a chama se extinguisse, afundara na pedra, fazendo-a ceder molemente sob seu peso”.[5]
   E a abside da igreja de Combray, acaso se poderá falar a seu respeito? Tão grosseira era, tão destituída de beleza artística e até de inspiração religiosa! Por fora, como o solo em que assentava fosse em declive, seu rude muro se erguia de um embasamento de silhares toscos, eriçados de pedras, e que nada tinha de particularmente eclesiástico; as janelas dos vitrais pareciam estar a demasiada altura, e o conjunto mais se assemelhava a um muro de cárcere que de igreja. E por certo, mais tarde, ao lembrar-me de todas as gloriosas absides que já vira, jamais me ocorreria comparar com elas a abside de Combray. Apenas, um dia, na virada de uma rua provinciana, descobri, defronte ao cruzamento de três ruelas, uma parede malfeita e muito elevada, de janelas abertas no alto, com o mesmo aspecto assimétrico da abside de Combray. Então não me admirei, como em Chartres ou em Reims, da pujança com que ali fora expresso o sentimento religioso, mas involuntariamente exclamei: “A igreja!”.
   A igreja! Familiar, parede-meia, na rua de Santo Hilário, para onde dava sua porta setentrional, com suas duas vizinhas, a farmácia do sr. Rapin e a casa da sra. Loiseau, nas quais tocava sem nenhuma separação: simples cidadã de Combray, que poderia ter seu número na rua, se as ruas de Combray tivessem números, e onde, parece, o carteiro deveria parar de manhã, ao fazer a distribuição, antes de entrar na casa da sra. Loiseau e depois de sair da farmácia do sr. Rapin; havia no entanto, entre ela e tudo que não fosse ela, uma demarcação que meu espírito jamais conseguiu franquear. Embalde a sra. Loiseau cultivava na janela umas fúcsias que tinham o mau costume de deixar seus ramos correrem às cegas por toda parte, e cujas folhas não tinham nada mais urgente que fazer, quando já crescidas, do que refrescar as faces roxas e congestionadas contra a sombria fachada da igreja: nem por isso aquelas fúcsias se tornaram mais sagradas para mim; entre as flores e as pedras enegrecidas a que se apoiavam, se meus olhos não distinguiam intervalo, meu espírito adivinhava um abismo.
   Desde muito longe já se reconhecia a torre de Santo Hilário, que imprimia seu vulto inesquecível no horizonte onde ainda não assomava Combray; na semana da Páscoa, quando meu pai avistava, do trem que nos trazia de Paris, aquela torre que deslizava por todos os campos do céu, fazendo correr em todos os sentidos seu pequeno galo de ferro, logo ia nos dizendo: “Andem, recolham as capas, que já chegamos”. E em um dos maiores passeios que dávamos em Combray, havia um trecho em que o estreito caminho desembocava de súbito em um imenso planalto delimitado no horizonte pelo recorte irregular de uns bosques, atrás dos quais somente emergia a fina agulha da torre de Santo Hilário, mas tão sutil, tão rósea, que parecia apenas riscada a unha sobre o céu, no intento de dar àquela paisagem, àquele quadro que era só natureza, esse pequenino toque de arte, essa única indicação humana. Quando a gente se aproximava e podia perceber o resto da torre quadrada e meio derruída que, menos alta que a do campanário, ainda subsistia a seu lado, impressionava, antes de tudo, o tom sombrio e avermelhado das pedras; e, por uma brumosa manhã de outono, dir-se-ia, elevando-se acima do roxo tempestuoso dos vinhedos, uma ruína de púrpura quase da cor da vinha virgem.
   Muitas vezes, na praça, de volta do passeio, minha avó me fazia parar para olhar o campanário.[6] Das janelas de sua torre, colocadas de duas em duas, umas acima das outras, com essa justa e original proporção das distâncias que não só aos rostos humanos empresta beleza e dignidade, o campanário soltava, deixava tombar, a intervalos regulares, revoadas de corvos que, durante um momento, voejavam grasnando, como se as velhas pedras que os deixavam à vontade sem dar mostras de vê-los, tornando-se de súbito inabitáveis e descarregando um elemento de agitação infinita, os tivessem batido e escorraçado. Afinal, depois de haverem riscado em todos os sentidos o veludo violáceo do céu crepuscular, logo se acalmavam e voltavam a absorver-se na torre, que passava de nefasta a propícia, e alguns, pousados aqui e ali, na ponta de um ornato, pareciam imóveis quando talvez estivessem apanhando um inseto, como uma gaivota parada com a imobilidade de um pescador na crista de uma vaga. Sem saber bem por que, minha avó apreciava na torre de Santo Hilário essa ausência de vulgaridade, de pretensão, de mesquinharia que a levava a estimar, e considerar pródigas de benéfica influência, tanto a natureza, sempre que a mão do homem não a tivesse apoucado, como o fazia o jardineiro de minha tia-avó, como as obras de gênio. E, sem dúvida, qualquer parte da igreja a distinguia de qualquer outro edifício por uma espécie de pensamento que lhe era infuso, mas no campanário é que ela parecia tomar consciência de si mesma, afirmar uma existência individual e responsável. Ele é que falava por ela. Creio que, confusamente, minha avó achava no campanário de Combray aquilo que tinha mais valor no mundo para ela: naturalidade e distinção. Ignorante em arquitetura, dizia: “Meus filhos, podem rir-se de mim, essa torre talvez não esteja dentro das regras, mas agrada-me esse seu velho ar esquisito. Se ela tocasse piano, estou certa de que não tocaria sem alma”. E enquanto fitava o campanário, seguindo com os olhos a suave tensão, a inclinação fervorosa de suas vertentes de pedra que se aproximavam, elevando-se, como mãos postas em prece, de tal modo se associava ela à efusão da agulha que seu olhar parecia lançar-se com esta para o alto; e ao mesmo tempo sorria amistosamente para as velhas pedras gastas, que o poente agora alumiava apenas no cimo e que, desde o momento em que entravam nessa zona ensolarada, abrandadas pela luz, pareciam erguer-se muito além, mais para cima, como um canto reiniciado em voz aguda, uma oitava mais alto.
   Era o campanário que dava a todas as ocupações, a todas as horas, a todos os pontos de mira da cidade, seu aspecto, seu remate, sua consagração. De meu quarto, eu só podia avistar-lhe a base, que fora recoberta de ardósias; mas quando, no domingo, por uma quente manhã de verão, via-as flamejar como um sol negro, logo dizia comigo: “Meu Deus! Nove horas! Tenho de me preparar para a missa, se quero ter tempo de ir dar antes um beijo na tia Léonie”, e sabia exatamente a cor que tinha o sol na praça, o calor e a poeira do mercado, a sombra que projetava o toldo da loja onde mamãe entraria talvez, antes da missa, em meio àquele cheiro peculiar de pano cru, para comprar algum lenço que lhe mostrava o patrão mesureiro, o qual, preparando-se para fechar, viera dos fundos da casa, onde fora envergar seu traje domingueiro e lavar as mãos, que costumava esfregar uma na outra a cada cinco minutos até nas circunstâncias mais melancólicas, com um ar de audácia, de esperteza e de triunfo.
   Quando, após a missa, entrávamos para dizer a Théodore que nos levasse um brioche maior que de costume, porque nossos primos tinham aproveitado o bom tempo para vir de Thiberzy almoçar conosco, tínhamos diante de nós o campanário que, também dourado e cozido como um enorme bolo bento, com escamas e gomosos borrifos de sol, espetava sua aguda ponta no céu azul. E à tarde, quando eu voltava do passeio, já pensando no próximo momento em que teria de dar boa-noite a minha mãe e não mais a ver, mostrava-se o campanário tão suave, ao findar do dia, que parecia colocado e afundado, como um almofadão de veludo escuro, no céu esmaecido que cedera sob sua pressão, cavando-se levemente para lhe dar espaço e refluindo nas bordas; e os gritos dos pássaros que lhe revoavam em torno pareciam aumentar seu silêncio, imprimir mais impulso a sua agulha e dar-lhe qualquer coisa de inefável.

continua na página 56...
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Leia também:

Volume 1
No Caminho de Swann (II - Combray, de longe - c)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7

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[1] Rei francês, no período de 1380 a 1422. Imaginava-se, no século xix, que um jogo de cartas de tarô italiano, pintado à mão, teria sido feito para divertir o rei. A ópera de Fromenthal Halévy intitulada Charles vi, representada em 1842, data da publicação de trabalhos sobre a questão. [n. e.]
[2] Santo Elói, padroeiro da ourivesaria, tesoureiro e conselheiro de Dagoberto i (600- 38). Proust parece aludir à cruz de ouro que desapareceu da basílica de Saint-Denis durante a Revolução, cruz que seu amigo Émile Mâle, em seu livro L’Art religieux du xiii e siècle en France, acreditava ser “um dos mais preciosos monumentos não apenas da arte mas do pensamento religioso da Idade Média”. [n. e.]
[3] Louis ii, o Germânico, era neto de Carlos Magno (c. 804-76). Dois de seus três filhos revoltaram-se contra ele por ter favorecido o filho mais velho na divisão do reino. Proust consulta passagens do Dictionnaire raisonné de l’architecture française du xi e au xvi e siècle, do tantas vezes citado e discutido Viollet-le-Duc, em particular os itens “Relicário”, “Túmulo” e “Vitral”. [n. e.]
[4] Primeira dinastia de reis francos, iniciada por Mérovée (morto em 458) e terminada em 751 com a deposição de Chilpéric iii por Pepino, o Breve, filho de Carlos Martel, que funda a dinastia carolíngia. [n. e.]
[5] Citação aproximada, extraída do livro Récits des temps mérovingiens, de Augustin Thiéry (1840). [n. e.]
[6] A esse contato muito íntimo com a igreja de Combray se oporá sua destruição durante a Primeira Guerra Mundial, mencionada no último volume do livro. [n. e.]

A Montanha Mágica - Hippe

Thomas Mann


A Montanha Mágica 


Capítulo IV

Hippe 

   Dessa forma se destacou o domingo. Sua tarde foi, além disso, assinalada por excursões de coche que realizaram vários grupos de hóspedes. Depois do chá, diversas parelhas subiram laboriosamente a rampa do sanatório e pararam em frente ao portão principal, para recolher os pensionistas que haviam encomendado os carros. Eram na maioria russos, sobretudo senhoras russas.

– Os russos gostam de passear de carro – disse Joachim a Hans Castorp. Os primos estavam diante da entrada e divertiam-se a    presenciar a partida das carruagens. – Vão a Clavadell ou ao lago ou ao vale de Flüela ou a Klosters. São esses os passeios que se costuma fazer. Qualquer dia poderíamos também passear de carro, se quiser. Mas acho que por enquanto você terá bastante trabalho para se aclimatar, e não tem necessidade de aventuras.

   Hans Castorp concordou. Tinha um cigarro na boca e as mãos nos bolsos da calça. Viu como a jovial velhota russa com a sobrinha magra e mais duas outras senhoras – Marusja e Mme.. Chauchat – tomavam assento num coche. Mme.. Chauchat trazia um guarda-pó leve, cinturado, mas não usava chapéu. Sentou-se ao lado da senhora idosa, no fundo do carro, ao passo que as senhoritas ocuparam os assentos da frente. As quatro estavam alegres, e suas bocas não paravam nem um segundo. Tagarelavam naquele seu idioma brando, como que desprovido de ossos. Falavam e riam-se do cobertor de viagem, muito pequeno e que com dificuldade bastava para quatro pessoas, bem como dos bombons russos que a velha tia levava como merenda, numa caixinha de madeira, forrada de algodão e papel rendado, e que já antes da partida fazia circular... Hans Castorp distinguiu com interesse a voz velada de Mme.. Chauchat. Como sempre, quando avistava essa mulher negligente, sentia reafirmar-se aquela semelhança que andara procurando por tanto tempo e finalmente descobrira num dos seus sonhos... O riso de Marusja, porém, o aspecto dos seus olhos redondos e castanhos que vagavam com uma expressão infantil por cima do lencinho que cobria a boca, e seus seios rijos, que interiormente estavam bastante doentes – tudo isso lhe recordava outra coisa, uma visão comovente que tivera havia pouco tempo. Cautelosamente, sem mover a cabeça, olhou para Joachim, a seu lado. Não! Graças a Deus, o seu rosto não tinha a cor terrosa do outro dia, e os lábios também não se crispavam daquele modo doloroso. Mas o primo estava com os olhos fixos em Marusja, numa atitude e com uma fisionomia que seria impossível qualificar de militares, e que, bem ao contrário, pareciam tão tristonhas e descontroladas que era inelutável tachá-las de perfeitamente civis. No entanto, não tardou a dominar-se e lançou um olhar tão rápido a Hans Castorp, que este mal teve tempo para desviar os olhos e dirigi-los para qualquer ponto no ar. Sentiu, simultaneamente, como o seu coração se punha a bater, sem motivo nenhum e por iniciativa própria, como às vezes fazia ali em cima.
   O resto do domingo não ofereceu mais nada de extraordinário, a não ser a comida, que, embora não pudesse ser mais farta do que de costume, distinguia-se ao menos por um maior requinte nos pratos. (No cardápio do almoço figurava um chaud-froid de galinha, guarnecido de caranguejos e meias cerejas; os sorvetes vieram acompanhados de filhoses, em cestinhos tecidos de fios de açúcar, e por fim surgiram até fatias de abacaxi fresco.) Pela noite, depois de tomar a sua cerveja, Hans Castorp sentiu-se esgotado, com frio e com uma lassidão nos membros ainda maior do que nos dias anteriores. Já às nove horas disse “Boa noite” ao primo, cobriu-se apressadamente com o acolchoado de penas e adormeceu como um fulminado. 
   Mas o dia seguinte, isto é, a primeira segunda-feira que o visitante passou no sanatório, trouxe outra dentre as modificações periódicas do programa normal: uma daquelas conferências que o Dr. Krokowski fazia de quinze em quinze dias na sala de refeições para todos os pensionistas adultos do Berghof que dominassem o idioma alemão. Tratava-se, segundo Hans Castorp soube de Joachim, de uma série de preleções contínuas, espécie de curso científico-popular, sob o título geral de “O amor como fator patogênico”. A palestra didática realizava-se depois do café da manhã, e, também segundo a informação de Joachim, não era lícito, ou pelo menos era muito malvisto, que alguém deixasse de assistir a ela. Por isso considerava-se uma ousadia pasmosa a atitude de Settembrini, que, embora dominando o alemão melhor do que ninguém, não somente nunca comparecia a essas conferências, mas até as criticava em termos sumamente depreciativos. Quanto a Hans Castorp, estava disposto a ir, em primeiro lugar por  cortesia, como também por uma curiosidade não dissimulada. Antes, porém, fez uma coisa completamente errada e prejudicial: deu-lhe na veneta empreender, por conta própria, um extenso passeio, de que se saiu sobremodo mal.

– Escute – foram as suas primeiras palavras, quando Joachim, pela manhã, entrou no seu quarto. – Eu vejo que não posso continuar desse jeito. Estou farto da vida horizontal. Com esse regime, o sangue adormece nas veias da gente. O seu caso é diferente, claro! Absolutamente não quero tentar você. Mas tenho a intenção de dar, logo depois do café, um bom passeio, se você não me leva a mal essa idéia. Caminharei assim, sem destino, durante algumas horas. Vamos ver se não me sentirei outro homem quando regressar. 

– Está bem – disse Joachim, ao notar que o outro levava a sério o projeto. – Mas não exagere, ouviu? Aqui as coisas não são como lá embaixo. E procure estar de volta na hora da conferência. 

   Na realidade, as razões que haviam levado o jovem Hans Castorp ao projeto desse passeio não se relacionavam somente com o seu bem-estar físico. Parecia-lhe que sua cabeça quente, o gosto ruim que ele amiúde tinha na boca, e as pulsações caprichosas do seu coração se deviam menos às dificuldades da aclimatação do que a certos fatores, como, por exemplo, as atividades do casal russo no quarto vizinho, a lengalenga que a estúpida e doente Srª. Stöhr proferia durante as refeições, a tosse lamacenta do aristocrata austríaco, que todos os dias se ouvia no corredor, as palavras do Sr. Albin, as impressões que os costumes sociais da mocidade enferma lhe haviam causado, a fisionomia de Joachim quando olhava para Marusja, e outras observações desse tipo. Pensava então que deveria ser saudável subtrair-se ao círculo mágico do Berghof, respirar profundamente ao ar livre e fazer algum exercício, a fim de saber, de noite, por que se sentia tão cansado. E assim se separou de Joachim, quando este, após o café da manhã, começava o seu passeio delimitado pelo regulamento, em direção ao banco junto da calha. Brandindo a bengala, desceu pela estrada de rodagem, para seguir caminhos independentes.
   Era uma manhã fresquinha e nublada, pelas oito e meia. Tal e qual se propusera, Hans Castorp aspirava profundamente o puríssimo ar matutino, uma atmosfera fresca e leve que se deixava sorver sem esforço, atmosfera sem umidade nem conteúdo nem recordações... Transpôs o curso d'água e os trilhos de bitola estreita, alcançou a rua principal, aqui e ali ladeada de casas, mas logo a abandonou, para tomar um atalho através dos prados, que, depois de um curto trajeto plano, subia, num curso oblíquo e bastante íngreme, a encosta à direita. Essa subida alegrou Hans Castorp. Dilatou-se-lhe o peito. Com o castão da bengala empurrou o chapéu para trás, e quando, de certa altura, lançou um olhar sobre a paisagem e avistou ao longe o espelho do lago, pôs-se até a cantar. 
   Cantou as canções que lhe ocorriam, toda espécie de cantigas sentimentais e populares, como figuram nas antologias para ginasianos. Uma, por exemplo, continha os versos:

“Que os bardos cantem o amor e o vinho, 
 Mas antes cantem a virtude...”   

   Começou cantarolando baixinho, mas logo aumentou o volume e por fim cantava com toda a força que tinha. Sua voz de barítono era áspera, mas, nesse momento, pareceu-lhe bonita. Entusiasmava-se cada vez mais, à medida que ia cantando. Quando chegava a notas excessivamente altas, recorria ao falsete, e também este lhe agradava. Às vezes falhava a sua memória, e nesses casos saía-se bem entoando a melodia com quaisquer palavras e sílabas absurdas que no momento lhe ocorriam, e que ele, à maneira dos cantores de ópera, proferia modulando-as com os lábios e carregando nos “r”. Finalmente passou a improvisar tanto o texto como a melodia, acompanhando sua apresentação com gestos teatrais dos braços. Já que é muito cansativo subir e cantar ao mesmo tempo, Hans Castorp em breve perdeu o fôlego. Mas, por idealismo, em prol da beleza do canto, venceu a emergência e, por entre numerosos suspiros, deu tudo o que tinha. Por fim, completamente sem alento, quase cego, com olhos que enxergavam apenas faíscas coloridas, e com o pulso a martelar, deixou-se cair ao pé de um enorme pinheiro. Depois de tamanha emoção, sentiu-se tomado de uma sensação de intenso mal-estar, de uma ressaca que tocava as raias do desespero.
   Quando, com os nervos mais ou menos tranquilizados, animou-se a prosseguir o passeio, tremia-lhe veementemente a nuca, de modo que, apesar da sua juventude, sacudia a cabeça da mesma forma como outrora fizera o velho Hans Lorenz Castorp. Ele mesmo sentiu que esse fenômeno lhe recordava simpaticamente o falecido avô, e sem experimentar repugnância, divertiu-se com a imitação daquele gesto de apoiar o queixo sobre o nó da gravata, gesto com o qual o velho procurava evitar o tremor da cabeça, e que tanto agradava ao menino.
   Subiu ainda mais, em ziguezague. Atraía-o o tilintar dos cincerros das vacas. Passado pouco tempo, avistou um rebanho a pastar nas proximidades de um chalé, cujo telhado estava consolidado com pedras. Dois homens barbudos, com machados no ombro, vinham a seu encontro. Perto dele, despediram-se um do outro. – Pois então, passe bem, e muito agradecido! – disse um dos homens, numa voz profunda, gutural e, mudando o machado de um ombro para o outro, dirigiu-se ao vale, abrindo caminho, a passo ruidoso, por entre os pinheiros. Aquele “Passe bem, e muito agradecido”, que soara estranhamente através da solidão, fez sonhar o espírito de Hans Castorp, ainda tonto pela subida e pelo canto. Repetiu as palavras em voz baixa, procurando arremedar o dialeto gutural, singelo e solene do montanhês. Subiu um bom pedaço além da choça, na intenção de alcançar o limite das árvores. Mas um olhar ao relógio fez com que desistisse do projeto.
   Dobrou para a esquerda, rumo à aldeia, seguindo uma vereda que começava plana e depois descia. Acolheu-o um bosque de altas coníferas. Ao atravessá-lo, Hans Castorp voltou a cantar um pouco, ainda que cautelosamente. Mesmo assim tremiam-lhe os joelhos durante a descida ainda mais do que antes. Quando saiu do bosque, deteve-se, surpreso, diante de um quadro magnífico que se lhe descortinava, uma paisagem íntima e fechada, de plasticidade tranquila e grandiosa.
   Por um leito pedregoso, pouco profundo, precipitava-se um curso d'água pela encosta direita abaixo; saltava, escumando, os rochedos dispostos como que em terraços, e em seguida corria, num fluxo mais calmo, em direção ao vale, passando por baixo de uma pitoresca pontezinha, com um tosco parapeito de madeira. O solo parecia azul pelas flores campanuláceas de um arbusto que crescia em toda parte. Pinheiros sombrios, de troncos gigantescos e bem-proporcionados, viam-se ora isolados, ora em grupos, no fundo do desfiladeiro e nas encostas. Um deles, arraigado obliquamente no alcantil à beira do arroio torrentoso, atravessava o panorama numa diagonal torta e excêntrica. Uma solidão cheia de rumores pairava sobre esse sítio isolado e formoso. Do outro lado do regato, Hans Castorp viu um banco que convidava ao repouso.
   Transpôs a pontezinha e sentou-se, a fim de se divertir com o aspecto da cachoeira de águas espumantes e de lhes escutar o ruído idilicamente palrador, uniforme e todavia cheio de variação íntima. O murmúrio das águas – Hans Castorp adorava-o tanto quanto a música, e talvez ainda mais. Mas, apenas se pusera à vontade, começou a sangrar-lhe o nariz, tão de repente que não pôde evitar que se manchasse a sua roupa. A hemorragia era violenta e obstinada; durante meia hora, pouco mais ou menos, não parou de incomodá-lo, obrigando-o a ir e vir, sem cessar, entre o regato e o banco, para lavar o lenço, aspergir água e voltar a estender-se nas tábuas do assento, com o nariz coberto pelo lenço úmido. Quando finalmente o sangue estancou, permaneceu assim deitado, imóvel, com as mãos presas atrás da cabeça, e com os joelhos fletidos. Tinha os olhos cerrados e os ouvidos cheios de zoadas. Contudo, não se sentia mal, antes acalmado pela copiosa sangria. Achava-se num estado de vitalidade singularmente diminuída; pois, cada vez que expelia o ar, durante algum tempo não experimentava nenhuma necessidade de aspirar outra vez; com o corpo em suspenso, deixava, com toda a calma, que seu coração palpitasse diversas vezes, antes que, tardia e indolentemente, voltasse a tomar fôlego.
   Eis que, de súbito, se sentiu transportado para aquela fase remota da sua vida, em que se passara a cena original de um sonho remodelado em conformidade com impressões mais recentes, e que tivera poucas noites atrás... Vigorosa, irrestritamente, a ponto de olvidar o espaço e o tempo, sentiu-se ele arrebatado para aquela hora e aquele lugar, com tanta intensidade que se poderia dizer que no banco, junto da cachoeira, jazia um corpo inânime, ao passo que o verdadeiro Hans Castorp se encontrava longe dali, num ambiente e numa época muito distantes – e ainda numa situação que, apesar da sua simplicidade, era para ele arriscada e lhe inebriava o coração.
   Tinha então treze anos; era aluno do quarto ano do ginásio, um rapazote de calças curtas. Achava-se no pátio da escola, a conversar com outro garoto, aproximadamente da mesma idade, mas que pertencia a outra série. Era por motivos bastante gratuitos que Hans Castorp entabulara essa conversa, que o alegrava sobremodo, posto que seu assunto objetivo e claramente delimitado a obrigasse a um máximo de brevidade. Isso se passava durante o recreio entre a penúltima e a última aula, aulas de história e de desenho, respectivamente, para a série de Hans Castorp. No pátio pavimentado de ladrilhos vermelhos e separado da rua por um muro coberto de telhas e provido de dois portões, os alunos passeavam em filas ou formavam grupos, encostando-se semi-sentados às saliências azulejadas do edifício. Entrecortavam-se numerosas vozes. Um professor, com um chapéu de abas largas, vigiava a rapaziada, enquanto comia um sanduíche de presunto.
   O garoto com o qual Hans Castorp conversava chamava-se Hippe, e seu prenome era Pribislav. Acrescia a isso, como detalhe curioso, que o “r” desse prenome se pronunciava como “ch”: dizia-se Pchibislav, e esse nome pouco comum condizia bem com o aspecto do rapaz, cujo tipo, longe de ser normal, era antes bastante exótico. Hippe, filho de um historiador e professor de ginásio, e por conseguinte um aluno modelar, já freqüentava a classe imediatamente acima da de Hans Castorp, se bem que fosse quase da mesma idade. Provinha de Mecklenburg, e sua pessoa constituía, evidentemente, o produto de uma antiga mistura de raças, com uma dose de sangue eslavo num recipiente germânico, ou vice-versa. Seus cabelos, aparados rente ao crânio redondo, eram louros, mas seus olhos, de uma cor entre o azul e o cinzento – era uma cor incerta, ambígua, qual a de uma cordilheira longínqua –, mostravam uma forma singular, estreita e, a rigor, até um pouco oblíqua; e sob esses olhos destacavam-se as maçãs, salientes e fortemente acentuadas. Essas feições, nada feias e mesmo bastante simpáticas, haviam valido a Hippe, entre os colegas, o apelido de “o Quirguiz”[1]. Hippe já usava calças compridas e uma jaqueta azul, cinturada nas costas e fechada até o pescoço, sobre cuja gola se percebiam habitualmente alguns vestígios de caspa.
   Acontecia que Hans Castorp, desde muito tempo, fixara a sua atenção nesse Pribislav; escolhera-o em meio ao formigueiro de rostos conhecidos e desconhecidos que enchia o pátio; interessava-se por ele, acompanhava-o com os olhos e -será lícito dizer que o admirava? Em todo caso devotava-lhe um interesse especial e, ao dirigir-se à escola, já se regozijava com a idéia de observá-lo no trato com os companheiros de curso, de vê-lo falar e rir-se, e de distinguir-lhe de longe a voz no meio das outras, aquela voz agradável, velada e um tanto rouca. É forçoso admitir que não havia razão suficiente para essa simpatia, a não ser que se queira considerar como tal o prenome pagão, a qualidade de aluno modelar – cuja influência podemos excluir – ou finalmente os olhos quirguizes, olhos que às vezes (por ocasião de certos relances para o lado, que não se fixavam em nada) eram capazes de se envolver languidamente em trevas misteriosas. Fosse como fosse, Hans Castorp pouco se preocupava com a justificação intelectual dos seus sentimentos e ainda menos com o problema de encontrar uma denominação para eles. Indubitavelmente não se podia falar de amizade, já que ele nem sequer “conhecia” Hippe. Mas, em primeiro lugar, não havia a mínima necessidade de uma denominação, porquanto nem se pensava em falar de um assunto que não se prestava para isso nem requeria palavras. E em segundo lugar, uma denominação representa, se não uma crítica, ao menos uma definição, isto é, uma classificação na ordem das coisas conhecidas e habituais, ao passo que Hans Castorp estava compenetrado da convicção inconsciente de que um tesouro íntimo como esse devia ser preservado para sempre de tal definição e classificação.
   Bem ou mal justificados, e em todo caso impróprios para qualquer denominação ou expressão verbal, eram esses sentimentos de tanta força vital, que Hans Castorp, já fazia um ano – pouco mais ou menos, por ser impossível fixar a data do começo –, alimentava-os em silêncio, o que revelava, pelo menos, a fidelidade e a constância do seu caráter, levando-se em conta o lapso enorme de tempo que nessa idade representa um ano. Infelizmente as designações de qualidades de caráter contêm, via de regra, um julgamento moral, quer no sentido de um elogio, quer de uma censura, se bem que todas elas tenham dois aspectos. Quando examinamos, sem emitir nenhuma opinião acerca do seu valor, a tal “fidelidade” de Hans Castorp – da qual ele mesmo não se gabava absolutamente –, consistia ela em certa morosidade, lentidão e persistência do seu espírito, numa mentalidade fundamentalmente conservadora, que lhe afigurava as situações e as circunstâncias da vida tanto mais dignas de estabilidade e de simpatia quanto maior era a sua duração. Também se inclinava a crer na eternidade do estado particular e da disposição de alma em que se achava em determinado momento, e justamente por isso os apreciava, sem almejar nenhuma modificação. Assim se acostumara, no seu íntimo, a essa longínqua e silenciosa relação que o ligava a Pribislav Hippe, tomando-a no fundo por uma instituição permanente da sua vida. Adorava as emoções que ela acarretava, a curiosidade de saber se neste ou naquele dia o outro iria ou não a seu encontro, se passaria perto dele, ou talvez se lhe dirigiria um olhar; adorava essas satisfações tácitas e delicadas com que o brindava o seu segredo; adorava até mesmo as decepções inerentes ao caso, e dentre as quais a maior era verificar que Pribislav faltava à aula; então, o pátio parecia ermo; o dia, privado de todo sabor; e entretanto permanecia viva a esperança no futuro.
   Isso durou um ano, até alcançar aquele apogeu crítico. Depois, continuou por mais um ano, graças à fidelidade conservadora de Hans Castorp, e por fim terminou, sem que ele notasse mais do afrouxamento e da dissolução dos laços que o ligavam a Pribislav Hippe do que notara da sua formação. Ademais, Pribislav abandonou o ginásio e a cidade, devido a uma transferência de seu pai; mas esse fato, Hans Castorp mal o percebeu. Pode-se dizer que o vulto do “Quirguiz”, desprendendo-se imperceptivelmente de uma névoa, entrou na sua vida, onde ia adquirindo uma nitidez e um relevo cada vez mais intensos, até aquele instante no pátio, que representava o máximo de clareza e de corporeidade; que durante algum tempo se conservou assim no primeiro plano, e por fim, aos poucos, recuou, desaparecendo nas brumas, sem despertar nenhuma tristeza de despedida.
   Esse instante, porém, a situação arriscada, cheia de aventuras, pela qual Hans Castorp novamente passava neste momento, a conversa, uma verdadeira conversa com Pribislav Hippe, produziu-se da seguinte forma: era antes da aula de desenho, e Hans Castorp verificou que não tinha lápis. Dos seus companheiros de curso, nenhum podia dispensar o seu. Mas, entre os alunos de outras séries, Hans Castorp tinha este ou aquele conhecido que lhe poderia suprir a falta. Dentre todos – achava ele – era Pribislav Hippe quem ele conhecia melhor; era-lhe mais familiar do que os outros esse rapaz com o qual, em silêncio, já se preocupara tantas vezes. E com um impulso alegre de todo o seu ser, resolveu aproveitar a oportunidade – chamava a isso de oportunidade – e pedir a Pribislav Hippe que lhe emprestasse um lápis. Não percebeu que esse ato seria um tanto estranho, visto ele não conhecer Hippe em realidade; pelo menos não se importou com isso, obcecado por uma desconsideração singular. E assim aconteceu que, no meio da azáfama do pátio ladrilhado, se plantou diante de Pribislav Hippe e lhe disse:

– Perdão, você poderia emprestar-me um lápis?

   E Pribislav fitou-o com seus olhos quirguizes, por cima das maçãs salientes. Respondeu-lhe então na sua voz simpática e velada, falando sem a mínima surpresa, ou, ao menos, sem manifestá-la. 

– Com muito prazer – disse. – Mas você deve devolvê-lo sem falta depois da aula. – Com essas palavras tirou do bolso uma lapiseira prateada, com um anel que se devia empurrar para cima, para que o lápis vermelho apontasse do tubo metálico. Hippe explicou o mecanismo simples, enquanto as duas cabeças se inclinavam sobre o objeto.

– Cuidado para não quebrá-lo! – acrescentou. 

   Que ideia! Como se Hans Castorp pretendesse não devolver a lapiseira ou até tratá-la com descuido. 
   Depois, olharam-se sorrindo e, como nada mais restasse a dizer, deram lentamente meia-volta e separaram-se.
   Foi tudo. Mas nunca na vida Hans Castorp sentira-se mais satisfeito do que naquela aula de desenho, ao trabalhar com o lápis de Pribislav Hippe, e com a perspectiva de entregá-lo, mais tarde, ao seu dono, como consequência natural e espontânea daquilo que haviam combinado. Tomou a liberdade de apontar o lápis, e das lasquinhas vermelhas que sobraram, guardou três ou quatro durante quase um ano numa gaveta da sua carteira. Ninguém que as visse suspeitaria da sua importância. A devolução realizou-se, de resto, da forma mais simples possível, em perfeita conformidade com as intenções de Hans Castorp, que até se orgulhava um pouco desse fato, displicente e pretensioso que se tornara pela intimidade com Hippe.

– Tome – disse. – E muito obrigado.

   Pribislav não respondeu nada; limitou-se a verificar rapidamente o mecanismo e meteu a lapiseira no bolso.
   Depois disso, nunca mais voltaram a se falar. De qualquer maneira, porém, haviam se falado uma vez, graças ao espírito empreendedor de Hans Castorp...
   Abriu os olhos, ainda confuso pela intensidade do seu arrebatamento. “Parece que sonhei!”, pensou. “Pois é, era Pribislav. Faz tempo que não lembro dele. Onde é que foram parar aquelas lasquinhas? A carteira está no sótão, na casa do tio Tienappel. Devem ainda estar na gavetinha esquerda. Não as tirei. Nem sequer lhes prestei a atenção suficiente para jogá-las fora... Era Pribislav, em carne e osso. Eu nunca teria pensado que tornaria a vê-lo tão nitidamente. Como se parecia com ela, com aquela mulher, ali do sanatório. Quem sabe se não é por isso que eu me interesso tanto por ela? Bobagem! Pura bobagem! Em todo caso está na hora de voltar, e bem depressa.” Ainda assim, permaneceu deitado por mais alguns instantes, cismando, absorto em recordações. “Pois então, passe bem, e muito agradecido”, disse e sorriu, com os olhos cheios de lágrimas. A seguir fez uma tentativa de se pôr a caminho. Mas logo tornou a sentar-se, com o chapéu e a bengala na mão, pois verificou que os joelhos não o sustentavam com firmeza. “Epa!”, pensou. “Parece que não dá. Contudo, é preciso que eu esteja às onze em ponto na sala de refeições, para assistir à conferência. Os passeios aqui têm seus atrativos, mas têm também as suas dificuldades. Seja como for, não posso ficar aqui. Estou apenas com as pernas duras por ter ficado deitado durante tanto tempo! Com o movimento, isso vai melhorar.” Tentou mais uma vez pôr-se de pé e, com um sério esforço, conseguiu fazê-lo.
   Mas, comparado com a partida briosa, o regresso não deixava de ser lamentável. Repetidas vezes, Hans Castorp teve que descansar à beira do caminho, por sentir que seu rosto de súbito empalidecera, que sua testa estava banhada em suor frio, e que as palpitações desregradas do coração lhe tolhiam o fôlego. Penosamente se esfalfou na descida em ziguezague, e quando chegou ao vale, nas proximidades da estância, compreendeu com toda a clareza que lhe seria impossível percorrer com suas próprias forças o extenso trajeto até o Berghof. Como não houvesse condução coletiva, nem se enxergasse nenhum carro de aluguel, fez parar um carroceiro que conduzia rumo à aldeia uma carreta, cheia de caixotes vazios, e pediu-lhe que o deixasse subir. Sentou-se de costas para o homem, com as pernas pendendo para fora do veículo. Os transeuntes contemplavam-no com surpresa e compaixão, enquanto assim se deixava transportar, oscilando sob o efeito das sacudidelas, com a cabeça a balançar de sonolência. Perto da passagem de nível, desembarcou, deu ao carroceiro algumas moedas, sem reparar se eram muitas ou poucas, e galgou apressadamente a rampa sinuosa.

Dépêchez-vous, monsieur – disse o porteiro francês. – La conférence de M. Krokowski vient de commencer. – Hans Castorp atirou o chapéu e a bengala ao moço encarregado do vestiário e, com a língua entre os dentes, esgueirou-se depressa, e todavia cautelosamente, pela porta entreaberta da sala de refeições, onde os pensionistas se haviam agrupado em cadeiras dispostas em filas, enquanto à direita, atrás de uma mesa guarnecida de uma garrafa de água, o Dr. Krokowski, vestido de sobrecasaca, já começara a falar.

continua pág 081...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Hippe
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

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[1]  Indivíduo dos quirguizes, povo de origem turca que habita a Rússia asiática. (N. do E.)

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

OS SERTÕES, Euclides da Cunha - Travessia do Cambaio: V - Retirada

OS SERTÕES 

Euclides da Cunha

Volume 1


Travessia do Cambaio


V - Retirada

   Começara, de fato, a retirada.
   Extintas as esperanças de sucesso, resta aos exércitos infelizes o recurso desse oscilar entre a derrota e o triunfo, numa luta sem vitórias em que, entretanto, o vencido vence em cada passo que consegue dar para a frente, pisando, indomável, o território do inimigo — e conquistando a golpes de armas todas as voltas dos caminhos.
   Ora, a retirada do major Febrônio se, pelo restrito do campo em que se operou, não se equipara a outros feitos memoráveis, pelas circunstâncias que a enquadraram é um dos episódios mais emocionantes de nossa história militar. Os soldados batiam-se ia para dous dias, sem alimento algum, entre os quais mediava o armistício enganador de uma noite de alarmas; cerca de setenta feridos enfraqueciam as fileiras; grande número de estropiados mal carregavam as armas; os mais robustos deixavam a linha de fogo para arrastarem os canhões ou arcavam sobre feixes de espingardas, ou, ainda, em padiolas, transportavam malferidos e agonizantes; — e, na frente desta multidão revolta, se estendia uma estrada de cem quilômetros, em sertão maninho, inçado de tocaias...
   Ao perceberem o movimento, os jagunços encalçaram-na.
   Capitaneava-os, agora, um mestiço de bravura inexcedível e ferocidade rara, Pajeú. Legítimo cafuz, no seu temperamento impulsivo acolcheteavam-se todas as tendências das raças inferiores que o formavam. Era o tipo completo do lutador primitivo — ingênuo, feroz e destemeroso — simples e mau, brutal e infantil, valente por instinto, herói sem o saber — um belo caso de retroatividade atávica, forma retardatária de troglodita sanhudo aprumando-se ali com o mesmo arrojo com que, nas velhas idades, vibrava o machado de sílex à porta das cavernas...
   Este bárbaro ardiloso distribuiu os companheiros pelas caatingas, ladeando as colunas.
   Estas marchavam lutando. Dado um último choque partindo o círculo assaltante, começou a desfilar pelas veredas ladeirentas, sem que se lobrigasse neste movimento gravíssimo, o mais sério das guerras, o mais breve resquício de preceitos táticos onde avulta a clássica formatura em escalões permitindo às unidades combatentes alternarem-se na repulsa.
   É que a expedição perdera de todo em todo a estrutura militar, nivelados oficiais e praças de pré pelo mesmo sacrifício. Enquanto o comandante, cujo ânimo não afrouxara, procurava os pontos mais arriscados; enquanto capitães e subalternos, sobraçando carabinas, se precipitavam, de mistura com as praças de pré, em cargas feitas sem vozes de comando, um sargento, contra todas as praxes, dirigia a vanguarda.
   Desta maneira penetraram de novo nas gargantas do Cambaio. Ali estava a mesma passagem temerosa, estreitando-se em gargantas, ou içada a meia encosta, num releixo sobre os abismos; entalando-se entre escarpas; aberta a esmo ao viés das vertentes; sobranceada em torno o percurso pelas trincheiras alterosas. Uma variante apenas: de bruços ou de supino sobre as pedras, desenlapando-se à boca das furnas, esparsos pelas encostas, viam-se os jagunços vitimados na véspera.
   Os companheiros sobreviventes passavam-lhes, agora, de permeio, parecendo uma turba vingadora de demônios entre caída multidão de espectros...
   Não arremetiam mais em chusma sobre a linha, desafiando as últimas granadas; flanqueavam-na, em correrias pelos altos, deixando que agisse, quase exclusiva, a sua arma formidável — a terra. Esta bastava-lhes. O curiboca que partira a lazarina ou perdera o ferrão no torvelino, volvia o olhar em torno — e a montanha era um arsenal. Ali estavam blocos esparsos ou arrumados em pilhas vacilantes prestes a desencadear o potencial de quedas violentas, pelos declives. Abarcava-os; transmudava a espingarda imprestável em alavanca; e os monólitos abalados oscilavam, e caíam, e rolavam, a princípio em rumo incerto entre as dobras do terreno, depois, mais rápidos, pelas normais de máximo declive, despenhando-se, por fim, vertiginosamente, em saltos espantosos; e batendo contra as outras pedras, e esfarelando-as em estilhas, passavam como balas rasas monstruosas sobre as tropas apavoradas.
   Estas embaixo salvavam-se cobertas pelo ângulo morto do próprio caminho a meia encosta, sob uma avalanche de blocos e graeiros. As fadigas da marcha abatiam-nas mais que o inimigo. O Sol culminara ardente e a luz crua do dia tropical, caindo na região pedregosa e despida, refluía aos espaços num flamejar de queimadas grandes alastrando-se pelas serras.
   A natureza toda quedava-se imóvel naquele deslumbramento, sob o espasmo da canícula. Os próprios tiros mal quebravam o silêncio: não havia ecos nos ares rarefeitos, irrespiráveis. Os estampidos estalavam, secos, sem ressoarem; e a brutalidade humana rolava surdamente dentro da quietude universal das cousas...
   A travessia das trincheiras foi lenta.
   Entretanto, os sertanejos por bem dizer não agrediam.
   Num tripúdio de símios amotinados pareciam haver transmudado tudo aquilo num passatempo doloroso e num apedrejamento. Desfilavam pelos altos em corrimaças turbulentas e ruidosas. Os lutadores embaixo seguiam como atores infelizes, no epílogo de um drama mal representado. Toda a agitação de dous dias sucessivos de combates e provações tinha o repentino desfecho de uma arruaça sinistra. Piores que as descargas, ouviam brados irônicos e irritantes, cindidos de longos assovios e cachinadas estrídulas, como se os encalçasse uma matula barulhenta de garotos incorrigíveis.
   Assim chegaram, ao fim de três horas de marcha, a Bendegó de Baixo. Salvou-os a admirável posição desse lugar, breve planalto em que se complana a estrada, permitindo mais eficazes recursos de defesa.
   O último recontro aí se fez, ao cair da noite, à meia-luz dos rápidos crepúsculos do sertão.
   Foi breve, mas temeroso. Os jagunços deram a última investida com a artilharia, que timbravam em arrebatar à tropa. As metralhadoras, porém, disparadas a cavaleiro, rechaçaram-nos; e, varridos a metralha, deixando vinte mortos, rolaram para as baixadas, perdendo-se na noite...
   Estavam findas as horas de provações.
   Um incidente providencial completou o sucesso. Fustigado talvez pelas balas, um rebanho de cabras ariscas invadiu o acampamento, quase ao tempo em que refluíam os sertanejos repelidos. Foi uma diversão feliz. Homens absolutamente exaustos apostaram carreiras doudas com os velozes animais em torno dos quais a força circulou delirante de alegria; prefigurando os regalos de um banquete, após dous dias de jejum forçado; e, uma hora depois, acocorados em torno das fogueiras, dilacerando carnes apenas sapecadas — andrajosos, imundos, repugnantes — agrupavam-se, tintos pelos clarões dos braseiros, os heróis infelizes, como um bando de canibais famulentos em repasto bárbaro...

A expedição, no outro dia, cedo, prosseguiu para Monte Santo.
   Não havia um homem válido. Aqueles mesmos que carregavam os companheiros sucumbidos claudicavam, a cada passo, com os pés sangrando, varados de espinhos e cortados pelas pedras. Cobertos de chapéus de palha grosseiros, fardas em trapos, alguns tragicamente ridículos mal velando a nudez com os capotes em pedaços, mal alinhando-se em simulacro de formatura, entraram pelo arraial lembrando uma turma de retirantes, batidos dos sóis bravios, fugindo à desolação e à miséria. 
   A população recebeu-os em silêncio. 

continua 118...
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Leia também:

OS SERTÕES - A Terra: I Preliminares
OS SERTÕES - A Terra: II Do alto de Monte Santo
OS SERTÕES - A Terra: III O clima
OS SERTÕES - A Terra: IV As secas
OS SERTÕES - A Terra: V Uma categoria geográfica que Hegel não citou
OS SERTÕES - O Homem: I Complexidade do problema etnológico no Brasil
OS SERTÕES - O Homem: II ... A gênese do jagunço
OS SERTÕES - O Homem: II ... Um parêntese irritante
OS SERTÕES - O Homem: III ... O sertanejo é, antes de tudo, um forte
OS SERTÕES - O Homem: IV ... Antônio Conselheiro, documento vivo
OS SERTÕES - O Homem: IV ... Como se faz um monstro ...
OS SERTÕES - O Homem: IV   Mais lendas...
OS SERTÕES - O Homem: IV   Polícia de bandidos
OS SERTÕES - O Homem: IV... Agrupamento bizarro 
OS SERTÕES - O Homem: IV  Uma missão abortada 
OS SERTÕES - Travessia do Cambaio: V - Retirada 
OS SERTÕES - Travessia do Cambaio: VI - Procissão dos jiraus
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Os Sertões, de Euclides da Cunha

Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).

Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.

Humilha a tua vaidade

Ezra Pound


Ezra Weston Loomis Pound (Hailey, 30 de outubro de 1885 — Veneza, 1 de novembro de 1972) foi um poeta e crítico literário americano considerado, ao lado de T. S. Eliot, o principal representante do movimento modernista do início do século XX. Ele foi o motor de diversos movimentos modernistas, notadamente do Imagismo (líder e principal representante) e do Vorticismo. O crítico Hugh Kenner disse após conhecer Pound: “De repente, percebi que estava na presença do centro do modernismo".

Imagismo foi um movimento literário da poesia anglo-americana do começo do século XX que favorecia a precisão das imagens e uma linguagem clara e objetiva. Foi descrito como o mais influente movimento na poesia inglesa desde os Pré-Rafaelitas. Como estilo poético, inaugurou o modernismo no começo do século XX e é considerado o primeiro movimento literário modernista organizado em língua inglesa. Imagismo é mor das vezes visto como "uma sucessão de momentos criativos" mais que um contínuo período de desenvolvimento. René Taupin ressaltou que "é mais acurado considerar Imagismo não como uma doutrina, nem mesmo como uma escola poética, mas como a associação de alguns poetas que estiveram por um certo tempo de acordo com um pequeno número de princípios importantes.

Vorticismo, teoria estética criada por Ezra Pound, em que o escritor mantém diversos aspectos do imagismo e adiciona uma determinada estilização gráfica em seus poemas, que podem ser considerados como precursores da poesia concreta. Outra inovação estética é o conceito de poesia como "condensação".

É o mesmo movimento britânico pertencente ao campo artístico da pintura do início do século XX com influência cubista e futurista, tendo seu expoente em Wyndham Lewis.


“uma sociedade capitalista que, no último estado de sua podridão, sempre considerou como merda a percepção inteligente ou as capacidades literárias.”


Canto I

E pois com a nau no mar,
Assestamos a quilha contra as vagas
E frente ao mar divino içamos vela
No mastro sobre aquela nave escura,
Levamos as ovelhas a bordo e
Nossos corpos também no pranto aflito,
E ventos vindos pela popa nos
Impeliam adiante, velas cheias,
Por artifício de Circe,
A deusa benecomata.
Assim no barco assentados
Cana do leme sacudida em vento
Então com vela tensa, pelo mar
Fomos até o término do dia.
Sol indo ao sono, sombras sobre o oceano
Chegamos aos confins das águas mais profundas.
Até o território cimeriano,
E cidades povoadas envolvidas
Por um denso nevoeiro, inacessível
Ao cintilar dos raios de sol, nem a
O luzir das estrelas estendido,
Nem quando torna o olhar do firmamento
Noite, a mais negra, sobre os homens fúnebres.
Refluindo o mar, chegamos ao local
Premeditado por Circe.
Aqui os ritos de Perímedes e Euríloco e
“De espada a cova cubital escavo”.
Vazamos libações a cada morto,
Primeiro o hidromel, depois o doce
Vinho mais água com farinha branca.
E orei pela cabeça dos finados;
Em Ítaca, os melhores touros estéreis
Para imolar, cercada a pira de oferendas,
Um carneiro somente de Tirésias,
Carneiro negro e com guizos.
Sangue escuro escoou dentro do fosso,
Almas vindas do Erebus, mortos cadavéricos,
De noivas, jovens, velhos, que muito penaram;
Úmidas almas de recentes lágrimas,
Meigas moças, muitos homens
Esfolados por lanças cor de bronze,
Desperdício de guerra, e com armas em sangue
Eles em turba em torno de mim, a gritar,
Pálido, reclamei-lhes por mais bestas;
Massacraram os rebanhos, ovelhas sob lanças;
Entornei bálsamos, clamei aos deuses.
Plutão, o forte, e celebrei Prosérpina;
Desembainhada a diminuta espada,
Fiquei para afastar a fúria dos defuntos,
Até que ouvisse Tirésias.
Mas primeiro veio Elpenor, o amigo Elpenor,
Insepulto, jogado em terra extensa,
Membros que abandonamos em casa de Circe,
Sem agasalho ou choro no sepulcro,
Já porque outras labutas nos urgiam.
Triste espírito. E eu gritei em fala rápida:
“Elpenor, como veio a esta praia escura?
Veio a pé, mais veloz que os marinheiros?”
….E ele, taciturno:
“Azar e muito vinho. Adormeci
Na morada de Circe ao pé do fogo.
Descendo a escadaria distraído
Desabei sobre a pilastra,
Com o nervo da nuca estraçalhado,
O espírito procurou o Avernus.
Mas, ó Rei, me lembre, eu peço,
E sem agasalho ou choro,
Empilhe minhas armas numa tumba
À beira-mar com esta gravação:
Um homem sem fortuna e com um nome a vir.
E finque o remo que eu rodava entre os amigos
Lá, ereto, sobre a tumba.”

Veio Anticléia, a quem eu repelia,
E então Tirésias tebano,
Levando o seu bastão de ouro, viu-me
E falou primeiro:
“Uma segunda vez? Por quê? homem de maus fados,
Face aos mortos sem sol e este lugar sem gáudio?
Além do fosso! eu vou sorver o sangue
Para profecia.”
….E eu retrocedi,
E ele, vigor sangüíneo: “Odysseus
Deverás retornar por negros mares
Através dos rancores de Netuno,
Todos teus companheiros perderás.”
Depois veio Anticléia.
Divus, repouse em paz, digo, Andreas Divus,
In officina Wecheli, 1538, vindo de Homero.
E ele velejou entre sereias ao
largo e além até Circe.
….Venerandam,
Na frase em Creta, e áurea coroa, Afrodite,
Cypri munimenta sortita est, alegre, orichalchi, com dourados
Cintos, faixas nos seios, tu, com pálpebras de ébano
Levando o ramo de ouro de Argicida. Assim:





Canto XLV
…… Com Usura

Com usura homem algum terá casa de boa pedra
cada bloco talhado em polidez
e bem ajustado
para que o esboço envolva suas faces,
com usura
homem algum terá paraíso pintado na parede de sua igreja
harpes et luz
ou onde a virgem receba a mensagem
e um halo projeta-se do inciso,
com usura
homem algum vê Gonzaga seus herdeiros e concubinas
pintura alguma é feita pra ficar
nem pra com ela conviver
só é feita a fim de vender
e vender depressa
com usura, pecado contra a natureza,
sempre teu pão será rançosas códeas
sempre teu pão será de papel seco
sem trigo da montanha, sem farinha forte
com usura uma linha cresce turva
com usura não há clara demarcação
e homem algum encontra sua casa.
O talhador não talha sua pedra
o tecelão não vê o seu tear
COM USURA
não vai a lã até a feira
carneiro não dá ganho com usura
a usura é uma peste, usura
engrossa a agulha lá nas mãos da moça
E só pára a perícia de quem fia. Pietro Lombardo
não veio via usura
Duccio não veio via usura
Nem Pier della Francessa; Zuan Bellini não pela usura
nem foi pintada ‘La Calunnia’ assim.
Angelico não veio via usura; nem veio Ambrogio Praedis,
Não veio igreja alguma de pedra talhada
com a incisão: Adamo me fecit.
com a incisão: Adamo me fecit.
Nem via usura St Trophime
Nem via usura Saint Hilaire.
Usura oxida o cinzel
Ela enferruja o ofício e o artesão
Ela corrói o fio no tear
Ninguém aprende a tecer ouro em seu modelo;
O azul é necrosado pela usura;
não se borda o carmesim
A esmeralda não acha o seu Memling
A usura mata o filho nas entranhas
Impede o jovem de fazer a corte
Levou paralisia ao leito, deita-se
entre a jovem noiva e seu noivo
CONTRA NATURAM
Trouxeram meretrizes para Elêusis
Cadáveres dispostos no banquete
às ordens de usura.

Usura: Gravame por uso de poder aquisitivo, taxado sem considerar as possibilidades de produção; frequentemente sem relação com as possibilidades da produção. (Daí a quebra do banco dos Médicis.)

tradução José Lino Grünewald




E assim em Nínive

“Sim, sou um poeta e sobre a minha tumba
Donzelas hão de espalhar pétalas de rosas
E os homens, mirto, antes que a noite
Degole o dia com a espada escura.

“Vê! Não cabe a mim
Nem a ti objetar,
Pois o costume é antigo
E aqui em Nínive já observei
Mais de um cantor passar e ir habitar
O horto sombrio onde ninguém perturba
Seu sono ou canto.
E mais de um cantou suas canções
Com mais arte e mais alma do que eu;
E mais de um agora sobrepassa
Com seu laurel de flores
Minha beleza combalida pelas ondas,
Mas eu sou um poeta e sobre a minha tumba
Todos os homens hão de espalhar pétalas de rosas
Antes que a noite mate a luz
Com sua espada azul.

“Não é, Raana, que eu soe mais alto
Ou mais doce que os outros. É que eu
Sou um Poeta, e bebo vida
Como os homens menores bebem vinho.”

{transcriação de Augusto de Campos}. em “Antologia poética de Ezra Pound”. [organização, apresentações e traduções por Augusto de Campos; Haroldo de Campos; Mário Faustino; Décio Pignatari; José Lino Grünewald]. Lisboa: Ulisséia, 1968.


Envoi (1919)

Vai, livro natimudo,
E diz a ela
Que um dia me cantou essa canção de Lawes:
Houvesse em nós
Mais canção, menos temas,
Então se acabariam minhas penas,
Meus defeitos sanados em poemas
Para fazê-la eterna em minha voz

Diz a ela que espalha
Tais tesouros no ar,
Sem querer nada mais além de dar
Vida ao momento,
Que eu lhes ordenaria: vivam,
Quais rosas, no âmbar mágico, a compor,
Rubribordadas de ouro, só
Uma substância e cor
Desafiando o tempo.

Diz a ela que vai
Com a canção nos lábios
Mas não canta a canção e ignora
Quem a fez, que talvez uma outra boca
Tão bela quanto a dela
Em novas eras há de ter aos pés
Os que a adoram agora,
Quando os nossos dois pós
Com o de Waller se deponham, mudos,
No olvido que refina a todos nós,
Até que a mutação apague tudo
Salvo a Beleza, a sós.

{tradução Augusto de Campos}.. . do livro “Ezra Pound: poesia”. [organização, introdução e notas de Augusto de Campos; prefácio Haroldo de Campos; tradução Décio Pignatari, Haroldo de Campos, Augusto de Campos, José Lino Grünewald e Mário Faustino]. Edição bilíngue. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da UnB, 1983.




Saudação

Oh geração dos afetados consumados
e consumadamente deslocados,
Tenho visto pescadores em piqueniques ao sol,
Tenho-os visto, com suas famílias mal-amanhadas,
Tenho visto seus sorrisos transbordantes de dentes
e escutado seus risos desengraçados.
E eu sou mais feliz que vós,
E eles eram mais felizes do que eu;
E os peixes nadam no lago
e não possuem nem o que vestir.




Saudação Segunda

Fostes louvados, meus livros,
porque eu acabara de chegar do interior;
Eu estava atrasado vinte anos
e por isso encontrastes um público preparado.
Não vos renego,
Não renegueis vossa progênie.

Aqui estão eles sem rebuscados artifícios,
Aqui estão eles sem nada de arcaico.
Observai a irritação geral:

Então é isto, dizem eles, o contra-senso
que esperamos dos poetas?
Onde está o Pitoresco?
Onde a vertigem da emoção?
Não ! O primeiro livro dele era melhor.
Pobre Coitado ! perdeu as ilusões.

Ide, pequenas canções nuas e impudentes,
Ide com um pé ligeiro !
(Ou com dois pés ligeiros, se quiserdes !)
Ide e dançai despudoradamente !
Ide com travessuras impertinentes !

Comprimentai os graves, os indigestos,
Saudai-os pondo a língua para fora.
Aqui estão vossos guizos, vossos confetti.
Ide ! rejuvenescei as coisas !
Rejuvenescei até The Spectator.
Ide com vaias e assobios !

Dançai a dança do phallus
contai anedotas de Cibele !
Falai da conduta indecorosa dos Deuses !

Levantai as saias das pudicas,
falai de seus joelhos e tornozelos.
Mas sobretudo, ide às pessoas práticas -
Dizei-lhes que não trabalhais
e que viverei eternamente.

(Tradução de Mário Faustino)



Ezra Pound: Canto 81
("O que amas de verdade")
lido por Fernando Graça






A totalidade da sabedoria humana não está contida em nenhuma língua, e nenhuma língua é capaz de expressar todos as formas e todos os graus da compreensão humana.




O Navagente

Fernando Vieira declama O NAVEGANTE de Ezra Pound. 
Tradução de Augusto de Campos.





Toda a arte começa na insatisfação física (ou na tortura) da solidão e da parcialidade.


Humilha a tua vaidade





sábado, 20 de janeiro de 2024

The Raven: O Corvo

The Raven: O Corvo

A História de Amor de Edgar Allan Poe
1915
LEGENDADO


A HISTÓRIA DE AMOR DE EDGAR ALLAN POE, 1915, Estados Unidos, preto e branco, mudo, 59 minutos. LEGENDADO 
Direção e roteiro: Charles J. Brabin. 
Com Henry B. Walthall, Warda Howard, Ernest Maupain, Eleanor Thompson, Marion Skinner, Harry Dunkinson.
A biografia do escritor americano Edgar Allan Poe, enfatizando os amores e momentos mais trágicos de sua vida, culminando com a composição de “O Corvo”, seu poema mais famoso.
Cinebiografia romanceada do escritor Edgar Allan Poe (1809-1849), mistura fato e ficção, tendo como base a celebrada peça em quatro atos escrita em 1903 pelo ator George Hazelton, em sua primeira investida como dramaturgo. A obra posteriormente foi adaptada em romance pelo próprio autor, em 1909, e levada ao cinema em 1915 pela companhia Essanay. 
Três anos antes o curta-metragem “The Raven”, produzido pela Eclair, adaptou o famoso poema de Poe.





"O Corvo" é um poema narrativo do escritor norte-americano Edgar Allan Poe. Publicado pela primeira vez em janeiro de 1845, é conhecido principalmente por sua musicalidade, linguagem estilizada e atmosfera sobrenatural. O poema trata da visita misteriosa de um corvo falante a um homem, frequentemente identificado como estudante, que lamenta a perda de sua amada, Lenore, e progressivamente enlouquece.



Tradução de Machado de Assis

Em certo dia, á hora, á hora
Da meia-noite que apavora,
Eu, cahindo de somno e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina, agora morta,
Ia pensando, quando ouvi á porta
Do meu quarto um soar devagarinho,
E disse estas palavras taes:
«É alguem que me bate á porta de mansinho;
«Ha de ser isso e nada mais.»


Ah! bem me lembro! bem me lembro!
Era no glacial Dezembro;
Cada braza do lar sobre o chão reflectia
A sua ultima agonia.

Eu, ancioso pelo sol, buscava
Saccar d’aquelles livros que estudava
Repouso (em vão!) á dôr esmagadora
D’estas saudades immortaes
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora,
E que ninguem chamará mais.

E o rumor triste, vago, brando
Das cortinas ia acordando
Dentro em meu coração um rumor não sabido
Nunca por elle padecido.
Emfim, por applacal-o aqui no peito,
Levantei-me de prompto, e: «Com effeito,
(Disse) é visita amiga e retardada
«Que bate a estas horas taes.
«É visita que pede á minha porta entrada:
«Ha de ser isso e nada mais.»

Minh’alma então sentiu-se forte;
Não mais vacillo e d’esta sorte
Fallo: «Imploro de vós, — ou senhor ou senhora,
«Me desculpeis tanta demora.
«Mas como eu, precisado de descanço,
«Já cochilava, e tão de manso e manso
«Batestes, não fui logo, prestemente,
«Certificar-me que ahi estaes.»
Disse; a porta escancaro, acho a noite somente,
Sómente a noite, e nada mais.

Com longo olhar escruto a sombra,
Que me amedronta, que me assombra,


E sonho o que nenhum mortal ha já sonhado,
Mas o silencio amplo e calado,
Calado fica; a quietação quieta;
Só tu, palavra unica e dilecta,
Lenora, tu, como um suspiro escasso,
Da minha triste boca saes;
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;
Foi isso apenas, nada mais.

Entro co’ a alma incendiada.
Logo depois outra pancada
Sôa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ella:
«Seguramente, ha na janella
«Alguma cousa que sussura. Abramo
«Eia, fôra o temor, eia, vejamos
«A explicação do caso mysterioso
«D’essas duas pancadas taes.
«Devolvamos a paz ao coração medroso,
«Obra do vento e nada mais.»

Abro a janella, e de repente,
Vejo tumultuosamente
Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias.
Não despendeu em cortezias
Um minuto, um instante. Tinha o aspecto
De um lord ou de uma lady. E prompto e recto
Movendo no ar as suas negras alas,
Acima vôa dos portaes,
Trepa, no alto da porta, em um busto de Pallas;
Trepado fica, e nada mais.

Diante da ave feia e escura,
Naquella rigida postura,
Com o gesto severo, — o triste pensamento
Sorriu-me alli por um momento,
E eu disse: «Ó tu que das nocturnas plagas
«Vens, embora a cabeça nua tragas,
«Sem topete, não és ave medrosa,
«Dize as teus nomes senhoriaes;
«Como te chamas tu na grande noite umbrosa?»
E o corvo disse; «Nunca mais.»

Vendo que o passaro entendia
A pergunta que lhe eu fazia,
Fico attonito, embora a resposta que dera
Difficilmente lh’a entendera.
Na verdade, jamais homem ha visto
Cousa na terra semelhante a isto:
Uma ave negra, friamente posta
N’um busto, acima dos portaes,
Ouvir uma pergunta e dizer em resposta
Que este é seu nome: «Nunca mais.»

No emtanto, o corvo solitario
Não teve outro vocabulario,
Como se essa palavra escassa que alli disse
Toda a sua alma resumisse.
Nenhuma outra proferiu, nenhuma,
Não chegou a mexer uma só pluma,
Até que eu murmurei: «Perdi outr’ora
Tantos amigos tão leaes!

«Perdeirei tambem este em regressando a aurora.»
E o corvo disse: «Nunca mais!»

Estremeço. A resposta ouvida
É tão exacta! é tão cabida!
«Certamente, digo eu, essa é toda a sciencia
«Que elle trouxe da convivéncia
«De algum mestre infeliz e acabrunhado
«Que o implacavel destino ha castigado
«Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,
«Que dos seus cantos usuaes
«Só lhe ficou, na amarga e ultima cantiga,
«Esse estribilho: «Nunca mais.»

Segunda vez, nesse momento,
Sorriu-me o triste pensamento;
Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo;
E mergulhando no velludo
Da poltrona que eu mesmo alli trouxera
Achar procuro a lugubre chimera,
A alma, o sentido, o pavido segredo
Daquellas syllabas fataes,
Entender o que quiz dizer a ave do medo
Grasnando a phrase: — Nunca mais.

Assim posto, devaneando,
Meditando, conjecturando,
Não lhe fallava mais; mas, se lhe não fallava,
Sentia o olhar que me abrazava.
Conjecturando fui, tranquillo, a gosto,
Com a cabeça no macio encosto

Onde os raios da lampada cahiam
Onde as tranças angelicaes
De outra cabeça outr’ora alli se desparziam,
E agora não se esparzem mais.

Suppuz então que o ar, mais denso,
Todo se enchia de um incenso,
Obra de seraphins que, pelo chão roçando
Do quarto, estavam meneando
Um ligeiro thuribulo invisivel;
E eu exclamei então: «Um Deus sensivel
«Manda repouso á dor que te devora
«D’estas saudades immortaes.
«Eia, esquece, eia, olvida essa extincta Lenora.»
E o corvo disse: «Nunca mais.»

«Propheta, ou o que quer que sejas!
«Ave ou demonio que negrejas!
«Propheta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno
«Onde reside o mal eterno,
«Ou simplesmente naufrago escapado
«Venhas do temporal que te ha lançado
«N’esta casa onde o Horror, o Horror profundo
«Tem os seus lares triumphaes,
«Dize-me: existe acaso um balsamo no mundo?»
E o corvo disse: «Nunca mais.»

«Propheta, ou o que quer que sejas!
«Ave ou demonio que negrejas!
«Propheta sempre, escuta, attende, escuta, attende!
«Por esse céu que alem se estende,

«Pelo Deus que ambos adoramos, falla,
«Dize a esta alma se é dado inda escutal-a
«No Eden celeste a virgem que ella chora
«Nestes retiros sepulchraes,
«Essa que ora nos ceus anjos chamam Lenora!»
E o corvo disse: «Nunca mais.»

«Ave ou demonio que negrejas!
«Propheta, ou o que quer que sejas!
«Cessa, ai, cessa! clamei, levantando-me, cessa!
«Regressa ao temporal, regressa
«Á tua noite, deixa-me commigo.
«Vae-te, não fique no meu casto abrigo
«Pluma que lembre essa mentira tua.
«Tira-me ao peito essas fataes
«Garras que abrindo vão a minha dor já crua.»
E o corvo disse: «Nunca mais.»

E o corvo ahi fica; eil-o trepado
No branco marmore lavrado
Da antiga Pallas; eil-o immutavel, ferrenho.
Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demonio sonhando. A luz cahida
Do lampeão sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e fóra
D’aquellas linhas funeraes
Que fluctuam no chão, a minha alma que chora
Não sai mais, nunca, nunca mais!



215 anos de aniversário do nascimento do mestre Edgar Allan Poe