segunda-feira, 30 de abril de 2018

histórias de avoinha: - filho amado!

mulheres descalças


- filho amado!
Ensaio 120B – 2ª edição 1ª reimpressão


baitasar




os dois cumpadre correu o risco qui na bendita verdade num foi ameaça pra eles, mais muntu aperto e vergão de perigo pras duas muié de barriga e as duas menina nascente. tudo pelo costume de refestelá na villa qui a vida ali obedece as vontade dos hômi. e se tem mania qui as pessoa da villa preserva com as unha e os dente é os costume de creditá qui só os hômi pode mudá as natureza da vida

na villa, a natureza da vida é a natureza dos hômi. as pessoa credita assim. desde piquininina elas vive assim, o pescoço e as perna amarrada na mesma vida, só oiando pra frente, num podendo virá as cabeça e as ideia pru lado. a vontade qui elas vê na frente é os capricho qui pras pessoa da villa merece tê vida

os dois desacatô os cuidado com a vida, obrigô as muié e as muriquinha nascente corrê o risco de tê a vida perdida pra sempre. os cumpadre jogô no palito o jogo das fantasia e o contentamento de condecorá com o nome do fundadô dos parente tudo o muriquinhu qui eles acreditava tá vindo, o nome mais antigo e conhecido das família. a vida num é mais longa qui a história, mais as ideia qui espraia a magia das coisa simples ou o pesadelo da estupidez viaja pelas vida através da história

no plano dos dois cumpadre, primêro tinha qui nascê o muriquinhu varão pra recebê o nome das família, levá em frente os costume e as natureza da vida. devia nascê com um varão, mais num vêio. em veiz do varão nasceu a rachadura. os dois cumpadre chegô trocá ideia entre eles pra emprestá ou dá as muriquinha, mais foi só uma ideia mesquinha e sem magia qui num deu certo

a inácia diminuiu a penca dos muriquinhu qui ela amparô e cortô o umbigo, mais, pra ela, isso é só um amontoado das conta com número qui num tem serventia, a única conta qui ela dava importância anunciava qui a tatuzêra continuava sem tê perdido uma criança qui ajudô desembuchá

a siá reginalda anacleta da margem crespa num conseguiu parí o muriquinhu pra seguí os costume de lembrá o nome do fundadô da família margem crespa. o nome mais entranhado qui a família margem crespa carrega é do mais antigo dos parente conhecido: joão margem crespa! qui foi pai do antônio joão, qui no seu tempo foi pai do josé antônio joão, qui mais tarde foi pai do inácio josé antônio joão da margem crespa

qui no seu tempo num teve parido o manoel inácio josé antônio joão, mais teve parida a muriquinha joana

inácio já tava com tudo acertado e o nome do piá pronto pra saí da garganta, Manoel Inácio José Antônio João da Margem Crespa!

num foi assim, agora o siô inácio passava dia e noite se puruguntando como e onde fraquejô, Quando perdi o foco para ter nascido essa menina: Joana da Margem Crespa, num entendia tanto castigo, passô bebê mais qui comê, inclusive a siá anacleta saiu do seu cardápio, depois passô num voltá um, dois, e as veiz, trêis dia. perdeu interesse na siá reginalda, num queria arriscá repetí tê otra muriquinha pra criá e um vagabundo qualqué comê. mais num perdeu interesse nas muié. ninguém sabia do paradêro do siô inácio nas veiz qui sumia nem o siô filipi

na mesma noite do nascimento da muriquinha joaninha, tumbém veio a furo a muriquinha georgina pança e rego. a tradição tava quebrada nas duas família, mais na villa do fim do mundo tão fim do mundo, os costume já de tempo acostumado num é coisa pra se jogá fora nem virá as costa, tudo qui é feito precisa sê feito do mesmo jeito qui sempre foi feito

eles num sabia imaginá pruqui tudo deu tão errado. os dois só tinha munta suspeita, mais num sabia como prová. fazia muntu calô. o siô inácio tava com sua adaga na mão. os dois continuava em silêncio, depois falava e falava inté cansá, ficá parado e mudo. um fiapo vermelhento vazava da mão do siô inácio qui apertava o fio da adaga. o siô filipi se limitava assistí. inté qui o siô inácio descobriu uqui deu errado, Já sei o que deu errado, Filipi! Essa negra enfeitiçou o nascimento!

Vosmecê tem certeza?

Claro, Filipi. Essa negra é uma feiticeira. Ela é enviada do demônio... e vosmecê me diga se ela bebeu cachaça...

Sim.

Fumou um charuto?

Sim.

E rezou baixinho para ninguém saber o que estava pedindo?

Sim.

Tudo preparação do feitiço para fazer o malefício do nascimento dessas duas meninas. Um veneno de criola.

Será, Inácio?

Venho pensando muito nesta merda toda, está é a possibilidade que me ocorre. E se pode fazer para o bem pode fazer para o mal.

Vosmecê acredita nisso?

Claro! Ela fez o feitiço para o mal. Tudo pode ser enfeitiçado por essas criolas malditas, ali tava os dois armado de corda e foguêra e a sensação de tá com os sonho suspenso num lugá qui num existi, esperando feito galinha degolada escorrê todo sangue pra sê assada, secô o suó da testa antes de seguí com as palavra, eu nunca guardei sonhos, apenas a vontade de ter um filho. Essa ambição não é minha, mas de toda natureza e não vou permitir que a liberdade pela Villa se torne prisioneira dessa criolada. A maldade dessas criolas precisa ser contida e controlada. De todos os animais o negro é o único cruel.

o siô filipi esperô um pôco pra dá resposta, queria medí o tamanho das palavra. ele num suava na testa como o siô inácio, mais na sombra do sovaco. tava parado, parecia querendo adivinhá uqui se passava dentro da cabeça de deus com seu cabelo lambuzado de gordura, penteado liso, o bigodinho abaixo do nariz carnudo e esborrachado, Então, se foi assim... só nos resta o tempo da justiça de Deus.

Não mesmo! Isso não vai se perder no tempo nem virar enredo para invencionice do populário.

ele sabia vê qui na villa do fim do mundo a tradição tava quebrada, num nasceu o varão, os costume qui já tá acostumado de sê costumado num é coisa pra se jogá fora nem virá as costa, Assim seja, repetem os hômi do bem, na máquina de fazê tradição tudo qui é feito precisa sê feito do mesmo jeito qui sempre foi feito

os dois bom amigo continuô amigo, mais a crendice dum notro tava corrompida, sem sabê explicá a fundura dos pensamento eles perdeu a intimidade; lá, no maciço das ideia mais enterrada eles culpava o otro pelo desastre acontecido: o nascimento de duas guria

num ia tê jeito nem de juntá as duas casa com o casório e fuxico no futuro. as conversa entre os dois passô sê respeitosa e civilizada, uqui num impediu as duas menina crescê junto com a eufrásia qui o siô inácio diz qui comprô recém-nascida. e as história qui cadum dos hômi de bem repetiu, repetiu e repetiu de tê escutado num parava de mudá sem nehuma resistência. a acomodação dos privilegiado de creditá distraído e se deixá convencê sem hesitação qui num passa pela cabeça de ninguém de bem mentí. as pessoa de bem num menti, mais se menti é pelo bem de todos. na villa é costume acreditá qui entre os hômi de bem num tem cretino de quexada erguida qui muda de acordo com o gosto e com os fato qui vai sendo contado

gegê ficô sendo o apelido da mais amiga das amiga da siá joana. as duas nasceu na villa, no mesmo ano e dia, só num foi na mesma hora pruqui a tatuzêra num pode tá em dois lugá diferente no mesmo tempo. os búzio qui a tatuzêra jogô indicô as meió hora pras duas muié de barriga, mais tem quem jura qui a preta escoiêu acudí na frente dona nalda pruqui o siô inácio ofereceu meió paga prus serviço feito

a verdade é qui o nascimento da siá georgina precisô esperá a chegada da dona jojô, quase qui gegê se perdeu da vida já na sua chegada. jojô ficô a mais véia das duas em meio à noite. aqui, na valorosa villa sorriso, as muié num tem muntu qui reclamá ou pedí, só precisa obedecê, sê ajuizada, pura e da família. os costume manda qui a mais véia tem destaque sobre a mais nova, tem preferência inté pra marcá os rebuliço com bolo e vela e palma

a preta tatuzêra foi vincada e taxada de fazê feitiçaria no nascimento das criança nas família de bem, pelo prazê da doce vingança do siô inácio e o conchavo do siô filipi. os dois queria acertá as conta com a inácia. assim, eles foi no juiz pedí a desforra da punição

a prática dos costume é a herança dos pai e das mãinha prus fiu. é preciso passá prus fiu dos fiu o mesmo treino dos costume; assim os mais véio precisa sê escutado inté o dia qui passá mijá nas calça

a natureza da villa foi respeitada: os mais véio primêro; assim, as alegria e alvoroço pela vida nascida na siá georgina sempre precisô esperá pelos festejo da jojô. uma queria a otra nos próprio festejo, mais nehuma sabe explicá quando esses festejo perdeu importância e uma parô de convidá a otra pra recordá o próprio nascimento

é inevitável, chegô pra elas o tempo de sabê qui na tê felicidade na villa é uma obrigação qui só acontece pras competente. no tempo de casá, jojô tava na frente, a primêra da fila entre as duas. então, quando o sargento-mor joão manoel de barros foi mandado pra serví de guarda-vida das pessoa de bem da villa, o siô inácio josé antônio joão da margem crespa viu a oportunidade de tê o manoel qui os costume de cama com siá reginalda anacleta num lhe deu, tentô e num conseguiu. a chegada daquele pulícia era um aviso do destino, o último e o primêro nome junto: joão manoel

antes mesmo da siá joana sabê do moço, o siô inácio começô os preparativo do casório ou ele num se chamava inácio josé antônio joão da margem crespa. já tava com a decisão tomada, era só uma questão de tempo, O gajo tem aparência, trabalho definido e de importância, moradia para abrigar a família. Só serão precisos alguns ajustes, os pensamentos do siô inácio era de satisfação e certeza, assim começô os preparativos, os ajustamento e as combinação

e a siá joana, primêra da fila de duas gêmea de nascimento, casô com o sargento-mor joão manoel de barros, na época, no posto de alferes. um partidão inté mesmo depois de sê puxado pra sê menos qui já era. as causa do acontecido nunca foi explicada com clareza, mais num tinha como escondê a vontade e o gosto como o sargento-mor castigava os pretu qui acusava de preguiça e vadiação

existe quem jure qui gegê tumbém tava de interesse no alferes joão manoel, mais elas vive num tempo em qui antiguidade é posto. ela precisô deixá pra lá as vontade sobre o rapaz tão bem ajustado na villa. jojô chegô antes

gegê num foi no casório

alegô pra mãe, siá felicidade perpétua, qui tava nos dia ruim: doia a cabeça e sangrava muntu, precisava ficá no resguardo. mostrô as vestimenta de baixo, tudo manchada de sangue. num tinha como saí pru casório

depois qui siô filipi e a siá felicidade saiu junto pru casório, gegê foi inté a cozinha, Joaquina...

Sim, siá Georgina.

Quero uma canja de galinha. Pode usar essa mesma que deixei pendurada escorrendo sangue.

Sim, siá...

ela nunca casô e joana num teve comentário nem puruguntô pela falta da aparição da gêmea de nascimento no seu casório

então, jojô virô a siá joanna de barros, esposa do rebaixado alferes pra sargento-mor das arma e milícia pública, joão manoel de barros

e na villa das pessoa de bem tudo e todos se acostuma com os costume do tempo e do vento

Jojô, vosmecê entende de galinha como ninguém.

É amor, Georgina, as duas continuava de conversa no pátio das galinha, o tempo no galinhêro da jojô num parecia mudá tanto, É preciso ter amor e cuidado. Elas comem bem, bebem água limpa, andam para lá e cá, se locomovem à vontade pelo quintal, baixô a voz na continuação, melhor que os negros tão preguiçosos. É um amor vê-las ciscando durante todo o dia. E nos brindam com ovos fresquinhos, baixô outra veiz a voz, cumprem com o seu dever melhor que os negros, tão desanimados e malandros.

É verdade.

a perpétua cacarejô e saltô assustada dos braço da mãe, Viu isso?

Mãe!

Aqui, filho adorado! Ela pressentiu o menino.

É incrível...

o piá entrô com a quêxada erguida no pátio e se parô pra anunciá a surpresa pra mãe

Mãe, olha o que eu achei!

as muié se oiô sem creditá. as duas ficô com as vista fixa e a boca aberta, elas num podia tá tendo alucinação junta, mais tava confusa

O que é isso, filho amado?

Meu Deus, exclamô a visita gêmea

o piá levantô mais a quêxada antes de respondê, aprendeu com o pai qui a postura é muntu importante na hora de negociá, algumas pessoa é descuidada, otras é cismada, mais num é o caso dele, o pai já tinha se apercebido, Não é que seja ruindade. Mas o piá não parece se importar com quem quer que seja. A educação vem do berço, sinto orgulho, o painho pulícia num tá longe de sabê a resposta acertada, só precisa confirmá qui o fiu é da ruindade como ele, Meu filho, Sim meu pai, Vosmecê só precisa sentir e ver que é melhor que as outras pessoas na Villa, mas tem vez que é preciso fazer que todos vejam quem você é: o melhor, o pai pulícia ensinô qui mais arrumação e acerto pra vivê é meió quando ele agarrá com as mão um sofrente pra controlá e se mostrá

Achei perdido nas ruas... é meu!

a dona jojô conseguiu recuperá o fôlego pra puruguntá, Como assim? E o dono desse negro...

o piá afrôxo a sissal e apontô com o chicote, Esse não tem dono, não. Só mais um vagabundo perambulando perdido nas ruas. Solto dá medo, mas pendurado no laço da sissal não é nada.

E vosmecê, meu filho amado, trás esse... esse... negro africano - sabe-se lá a procedência e as doenças que carrega com ele - para dentro da nossa casa?

Ele tem cheiro de cocô, Joanna... desculpe, amiga...

Meu filho amado, que horror!

o piá levantô e baixô a quêxada dos ombro, Ele cagou nas calça com medo da surra.

Meu Deus! Por favor, meu filho...

E por que a surra, menino?

oiô pra visita e reconheceu a tia gegê, num lembrava se eufrásia disse qui a visita era sua tia, mais isso num tinha importância nem alterava o resultado da conversa, depois do cumprimento de bem-vinda - era assim qui ele foi educado procedê: respeitá os mais véio - respondeu pra tia gegê, E precisa ter motivo, tia Georgina? O negro não quis colocar a sissal no pescoço. Ameaçou gritar que era negro forro. Mentira! Esses criolos são mentirosos. Precisei usar o laço do jeito que papai ensinou.

Meu filho amado, não existe negro sem dono.

Eu achei e achado não é roubado!

pru piazito num existe maió beleza qui usá as palavra e os ensinamento qui vem do pai, oiando com atenção, vontade e determinação pra caça

Como assim... achou...

Eu sei que eles assustam.

a sua tia georgina num controlô os resmungo e deixô escapá sua inconformidade, É nojento... ele é fedido...

o pretu assistia tudo aquilo curvado pela sissal atada no pescoço e as mão amarrada nas costa. num podia ficá escondido entre os arbusto com o grito da dô e da raiva pronto saí, Num adianta, Jaquín Benguela, o pretu virô os óio mais pra baixo e viu o muriquinhu num nascido, Abicu, preciso conversá, Aqui, Jaquín, O muriquinhu tá vendo? Dá nisso ficá véio, Calma. Espera. Logo, o muriquinhu tira esse trapo de corda e o pretu benguela desaparece, Falta pôco pra repousá no buraco da terra, Calma, Jaquín. A distância pra terra lhe comer ainda é grande. O pretu vai comer muito mondongo apimentado, Só se fô o caldo, chegô o tempo dos último dente caí.

Mãe, as pessoas acham que os criolos são um perigo. Olhe para esse aqui, não tem porque se apavorar.

as duas muié acalmô a visão, depois o nariz e a barriga, respirô fundo pra oiá uqui tinha pra vê: o pretu com magreza pra dá dó, muntu véio, marcado da vida escravizada antiga e das nova chicotada do piá do sargento-mor joão manoel e da siá georgina, gente de bem da villa, pru pretu nem em pé parecia qui dava pra ficá, Aguente, Jaquín, Num sei se posso, abicu, Pode sim, A sissal sufoca, Aguente, logo acaba, Amarrado num molecote, Acontece, Só acontece com véio cansado, Aguente, Tô aos pedaço das tira, Aproveita o perfume das moça, ele obedeceu e fungô fundo, É bão... refresca...



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O Segundo Sexo - 21. Fatos e Mitos: a era dos contratos e o casamento tornou-se contratual

Simone de Beauvoir



21. Fatos e Mitos


Segunda Parte
História

CAPITULO I


III


 : a era dos contratos e o casamento tornou-se contratual




FOI NO EGITO que a condição da mulher foi a mais favorecida. As deusas-mães conservaram seu prestígio em se tornando esposas; a unidade religiosa e social é constituída pelo casal; a mulher surge como aliada e complementar do homem. Sua magia é tão pouco hostil que o próprio medo do incesto é vencido e que não hesita em confundir a irmã com a esposa(1). Ela tem os mesmos direitos que o homem, a mesma força jurídica; herda e possui bens. Essa sorte singular nada tem de casual: provém do fato de que no Egito antigo o solo pertencia ao rei e às castas superiores dos sacerdotes e dos guerreiros; para os particulares, a propriedade territorial consistia apenas no usufruto; o fundo permanecia inalienável, os bens transmitidos por herança tinham pouco valor e não se via nenhum inconveniente em partilhá-los. Em virtude da ausência do patrimônio privado, a mulher conservava a dignidade de uma pessoa. Casava-se livremente e, quando viúva, podia tornar a casar-se. O homem praticava a poligamia mas, embora todos os filhos fossem legítimos, ele só tinha uma esposa verdadeira, a única associada ao culto e a ele ligada legalmente; as outras não passavam de escravas privadas de quaisquer direitos. A esposa-chefe não mudava de estatuto ao casar-se novamente: continuava dona de seus bens e com a liberdade de contratar. Quando o Faraó Bochóris estabeleceu a propriedade privada, a mulher ocupava uma posição demasiado forte para ser desalojada; Bochóris deu início à era dos contratos e o casamento tornou-se contratual. Houve três tipos de contrato: um dizia respeito ao casamento servil; a mulher tornava-se a coisa do homem mas especificava-se, por vezes, que ele não teria outra concubina; entretanto, a esposa legítima era considerada igual ao homem e todos os bens eram comuns; muitas vezes, o marido comprometia-se a pagar-lhe certa soma em caso de divórcio. Esse costume conduziu pouco mais tarde a um tipo de contrato singularmente favorável à mulher: o marido entregava-lhe um documento de dívida fictício. Havia graves penalidades contra o adultério, mas o divórcio era mais ou menos livre para os dois cônjuges. A prática dos contratos restringiu grandemente a poligamia; as mulheres açambarcavam as fortunas e transmitiam-nas aos filhos, o que provocou o advento de uma classe plutocrática. Ptolomeu Filopáter decretou que as mulheres não poderiam mais alienar seus bens sem autorização marital, fazendo delas eternas menores. Mas, mesmo no tempo em que gozaram de um estatuto privilegiado, único no mundo antigo, não foram as mulheres socialmente iguais aos homens; associadas ao culto, ao governo, podiam desempenhar o papel de regente, mas o faraó era homem; os sacerdotes e os guerreiros eram homens; elas só interferiam na vida pública de modo secundário; e na vida privada exigiam dela uma fidelidade sem reciprocidade.


(1) Em certos casos pelo menos o irmão deve desposar a irmã.

Os costumes dos gregos aproximam-se muito dos orientais; eles não praticam entretanto a poligamia. Não se sabe exatamente por quê. Na realidade, a manutenção de um harém sempre constituiu pesado encargo: é o faustoso Salomão, são os sultões das Mil e Uma Noites, os reis, os chefes, os ricos proprietários que podem dar-se ao luxo de um vasto serralho; o homem médio contentava-se com três ou quatro mulheres; o camponês raramente possuía mais de duas. Por outro lado — salvo no Egito, onde não há propriedade fundiária particular — a preocupação de conservar intato o patrimônio levava a outorgar ao primogênito direitos sobre a herança paterna; com isso se estabelecia uma hierarquia entre as mulheres, revestindo-se a mãe do herdeiro principal de uma dignidade muito superior à das outras esposas. Se a própria mulher possui bens, se é dotada, é uma pessoa para o marido: ele é ligado a ela por um laço religioso e exclusivo. Daí proveio, sem dúvida, o costume de reconhecer somente uma esposa; em verdade, o cidadão grego permanecia agradavelmente polígamo, porquanto podia encontrar a satisfação de seus desejos na prostituta da cidade ou na serva do gineceu. "Temos a hetaira para os prazeres do espírito, diz Demóstenes, a palákina para o prazer dos sentidos e a esposa para nos dar filhos." A palákina substituía a mulher no leito do senhor quando esta se achava doente, indisposta, grávida ou convalescente do parto, de maneira que, do gineceu ao harém, não vai grande diferença. Em Atenas, a mulher era encerrada em seus aposentos, adstrita por leis a uma disciplina severa e fiscalizada por magistrados especiais. Durante toda sua existência, ela permanece menor; é dependente do poder de seu tutor: pai ou marido, ou herdeiro do marido, ou na ausência de um desses, do Estado por intermédio de funcionários públicos; são os seus senhores e dela dispõem como de uma mercadoria, estendendo-se o poder de tutor, a um tempo, sobre a pessoa e os bens; o tutor pode transmitir seus direitos à vontade, o pai dá a filha em adoção ou em casamento; o marido pode, repudiando a esposa, entregá-la a um novo marido. A lei grega assegurava, entretanto, à mulher um dote que se destinava à sua manutenção e devia ser-lhe integralmente restituído em caso de dissolução de casamento; autorizava também, em certos casos muito raros, a mulher pedir o divórcio; mas eram as únicas garantias que a sociedade lhe outorgava. Naturalmente, toda a herança era legada aos filhos, representando o dote não um bem adquirido por filiação mas uma espécie de serviço imposto ao tutor. Entretanto, graças ao dote, ela não passa mais como um bem hereditário para as mãos dos herdeiros do marido: torna a submeter-se à tutela dos pais.

Um dos problemas formulados nas sociedades fundadas na agnação é o destino da herança na ausência de descendentes masculinos. Os gregos tinham instituído o costume do epiclerado: a herdeira devia desposar na gens paterna seu parente mais idoso; desse modo, os bens que lhe legava o pai eram transmitidos às crianças do mesmo grupo, a propriedade continuava pertencendo à gens; a epiclera não era herdeira e, sim, apenas uma máquina de procriar herdeiros; esse costume colocava-a inteiramente à mercê do homem, posto que era automaticamente entregue ao mais idoso dos homens da família que acontecia ser, o mais das vezes, um ancião.

Já que a opressão da mulher tem sua causa na vontade de perpetuar a família e manter intato o patrimônio, ela se liberta também dessa dependência absoluta na medida em que escapa da família. Se a sociedade, negando a propriedade privada, recusa a família, a sorte da mulher melhora consideravelmente. Esparta, onde prevalecia um regime comunitário, era a única cidade em que a mulher se via tratada quase em pé de igualdade com o homem. As meninas eram educadas como os meninos; a esposa não era confinada ao lar do marido; este só era autorizado a fazer-lhe furtivas visitas noturnas e a esposa lhe pertencia tão pouco que, em nome da eugenia, outro homem podia unir-se a ela: a própria noção de adultério desaparece quando a herança deixa de existir; pertencendo todos os filhos em comum a toda a cidade, as mulheres não se veem mais ciumentamente escravizadas a um senhor: ou, inversamente, pode-se dizer que não possuindo nem bem próprio nem descendência singular, o cidadão não possui tampouco a mulher. As mulheres suportam as servidões da maternidade como os homens as da guerra: mas, salvo o desempenho desse dever físico, nenhum constrangimento lhes limita a liberdade.

Ao lado das mulheres livres de que acabamos de falar e das escravas que vivem no interior da gens — e que são propriedade absoluta do chefe de família — encontravam-se prostitutas na Grécia. Os povos primitivos conheciam a prostituição hospitaleira, cessão da mulher aos hóspedes de passagem, que tinha sem dúvida razões místicas, e a prostituição sagrada destinada a libertar as misteriosas forças da fecundação em benefício da coletividade. Esses costumes existiam na Antiguidade clássica. Heródoto conta que, no século V a. C, toda mulher de Babilônia devia, uma vez na vida, entregar-se a um estranho no templo de Milita em troca de uma moeda que ela oferecia ao tesouro do templo; em seguida retornava ao lar para viver castamente. A prostituição religiosa perpetuou-se até hoje entre as almeias do Egito e as bailadeiras das índias que constituem castas respeitadas de músicas e dançarinas. Mas, o mais das vezes, no Egito, na índia, na Ásia Ocidental houve passagem da prostituição sagrada para a prostituição legal, encontrando a classe sacerdotal nesse comércio um meio de se enriquecer. Entre os próprios hebreus havia prostitutas venais. Na Grécia era principalmente à beira-mar, nas ilhas, nas cidades a que acorriam muitos estrangeiros, que existiam templos em que se encontravam "jovens hospitaleiras aos estrangeiros" como as denomina Píndaro: o dinheiro que recebem destina-se ao culto, isto é, aos sacerdotes e, indiretamente, à manutenção deles. Na verdade, sob uma forma hipócrita, exploram-se — em Corinto particularmente — as necessidades sexuais dos marinheiros, dos viajantes; e já existe a prostituição venal. Foi Sólon que fez dela uma instituição. Comprou escravas asiáticas e encerrou-as nos dicterions situados em Atenas, perto do templo de Vênus, não longe do porto. A direção era confiada aos pornotrops encarregados de administrar financeiramente o estabelecimento; cada jovem recebia um salário e os lucros cabiam ao Estado. Mais tarde abriram-se os kapaileia, que eram estabelecimentos particulares: um priapo vermelho servia-lhes de insígnia. Muito breve, além das escravas, mulheres gregas de baixa condição fizeram-se receber como pensionistas. Os dicterions eram considerados tão necessários que logo foram reconhecidos como lugares de asilo invioláveis. Entretanto, as cortesãs eram tacha das de infames, não tinham nenhum direito social, os seus filhos não eram obrigados a sustentá-las; deviam usar um vestido especial de fazenda sarapintada e enfeitada com flores, além de tingir os cabelos com açafrão. Além das mulheres encerradas nos dicteríons, havia cortesãs livres que se classificavam em três categorias: as Dicteríades, análogas às mulheres registradas na polícia, em nossos tempos; as Auletrides, que eram dançarinas e tocadoras de flauta; e as Hetairas, meretrizes que vinham geralmente de Corinto e tinham relações oficiais com os homens mais notáveis da Grécia e desempenhavam o papel social das "mundanas" de hoje. As primeiras recrutavam-se entre as forras e as jovens gregas de baixa extração; exploradas pelos proxenetas, levavam uma existência miserável. As segundas conseguiam muitas vezes enriquecer graças a seus talentos musicais: a mais célebre foi Lâmia, amante de Ptolomeu do Egito e, depois, do vencedor dele, o rei da Macedônia, Demétrio Poliorceta. Quanto às últimas, sabe-se que muitas se associaram à glória de seus amantes. Dispondo livremente de si mesmas e de sua fortuna, inteligentes, cultas, artistas, eram tratadas como pessoas pelos homens que se encantavam com seu comércio. Pelo fato de escaparem da família, situam-se à margem da sociedade e escapam também do homem: podem então apresentar-se a ele como uma semelhante e quase uma igual. Com Aspásia, Frinéia, Lais, afirma-se a superioridade da mulher liberta sobre a mãe de família.

Salvo essas brilhantes exceções, a mulher grega é reduzida a uma semiescravidão; ela não tem sequer a liberdade de se indignar. Mal se ouvem alguns protestos de Aspásia e, mais apaixonadamente, de Safo. Em Homero subsistem reminiscências da época heroica em que as mulheres tinham algum poder: entretanto os guerreiros as rechaçam com dureza para seus cômodos. Depara-se com o mesmo desprezo em Hesíodo: "Quem se confia a uma mulher confia-se a um ladrão". Na época clássica, a mulher é resolutamente confinada ao gineceu. "A melhor mulher é aquela de quem os homens menos falam", dizia Péricles. Platão, que propõe aceitar um conselho de matronas na administração da república e dar às jovens uma educação livre, é uma exceção: ele provoca as zombarias de Aristófanes: em Lisístrata, a uma mulher que o interroga acerca dos negócios públicos, responde o marido: "Não é da tua conta. . . Cala-te ou apanharás. . . Tece o teu pano". "Aristóteles exprime a opinião comum ao declarar que a mulher é mulher em virtude de uma deficiência, que deve viver fechada em sua casa e subordinada ao homem. "O escravo é inteiramente desprovido da liberdade de deliberar; a mulher a possui, mas fraca e ineficiente", afirma. Segundo Xenofonte, a mulher e o marido são profundamente estranhos um ao outro: "Existem pessoas com quem converses menos do que com tua mulher? — Muito poucas..." Tudo o que se exige da mulher em Economia é que seja uma dona de casa atenta, prudente, econômica, trabalhadeira como a abelha, uma intendente modelar. A condição modesta a que a mulher é reduzida não impede os gregos de serem profundamente mísógenos. Já no século VII a. C, Arquíloco escreve epigramas mordazes contra as mulheres. Lê-se em Sirmônide de Amorga: "As mulheres são o maior mal que Deus jamais criou: que pareçam por vezes úteis, logo se transformam em motivo de preocupação para seus senhores". E em Hiponax: "Só há dois dias na vida em que nossa mulher nos dá prazer: no dia de núpcias e no dia do enterro dela". São os habitantes da Jônia que, nas histórias de Mileto, manifestam maior mordacidade: conhece-se entre outros o conto da matrona de Éfeso. O que se censura principalmente às mulheres nessa época é serem preguiçosas, azedas, perdulárias, isto é, precisamente a ausência das qualidades que se exigem delas. "Há muitos monstros na terra e no mar, mas o maior de todos é ainda a mulher", escreve Menandro. "A mulher é um sofrimento que não nos larga". Quando, pela instituição do dote, a mulher assume certa importância, deplora-se a sua arrogância; é um dos temas familiares de Aristófanes e principalmente de Menandro. "Desposei uma feiticeira com um dote. Aceitei-a por causa de seus campos e de sua casa e isso, ó Apoio, é o pior dos males!..." "Maldito seja quem inventou o casamento, e em seguida o segundo, e o terceiro, e o quarto, e todos os que o imitaram". "Se sois pobre e casais com uma mulher rica, ficareis ao mesmo tempo escravo e pobre". A mulher grega era controlada de demasiado perto para que lhe censurassem os costumes. E não é a carne que se vilipendia nela. São principalmente os encargos e as servidões do casamento que pesam aos homens: isso nos permite supor que, apesar do rigor de sua condição, e embora nenhum direito lhe reconhecesse, ela devia ocupar um lugar importante no lar e gozar de certa autonomia; votada à obediência, podia desobedecer; podia atormentar o marido com cenas, lágrimas, tagarelices, injúrias; o casamento destinado a escravizar a mulher era também uma cadeia para o marido. Na personagem de Xantipa resumem-se todos os ressentimentos contra a esposa megera e os infortúnios da vida conjugal.



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O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR

Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.

Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.

Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.


4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES



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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.

No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.



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