domingo, 31 de dezembro de 2023

Me deixas louca

Elis Regina

saudade daquilo que eu vivi e gostaria de ter vivido reinventando de novo

Algumas de tantas...




Romaria



O Bêbado e A Equilibrista



Como Nossos Pais



Me deixas louca



Quando caminho pela rua lado a lado com você
Me deixas louca
E quando escuto o som alegre do teu riso
Que me dá tanta alegria
Me deixas louca

Me deixas louca quando vejo mais um dia
Pouco a pouco entardecer
E chega a hora de ir pro quarto escutar
As coisas lindas que começas a dizer
Me deixas louca

Quando me pedes por favor que nossa lâmpada se apague
Me deixas louca
Quando transmites o calor de tuas mãos
Pro meu corpo que te espera
Me deixas louca

E quando sinto que teus braços se cruzaram em minhas costas
Desaparecem as palavras
Outros sons enchem o espaço
Você me abraça, a noite passa
E me deixas louca

Composição: Armando Manzanero / Paulo Coelho


Atrás da porta




Quando olhaste bem nos olhos meus
E o teu olhar era de adeus
Juro que não acreditei
Eu te estranhei
Me debrucei
Sobre teu corpo e duvidei
E me arrastei e te arranhei
E me agarrei nos teus cabelos
Nos teus pelos
Teu pijama
Nos teus pés
Ao pé da cama
Sem carinho, sem coberta
No tapete atrás da porta
Reclamei baixinho

Dei pra maldizer o nosso lar
Pra sujar teu nome, te humilhar
E me vingar a qualquer preço
Te adorando pelo avesso
Pra mostrar que inda sou tua
Só pra provar que inda sou tua

Composição: Chico Buarque / Francis Hime


Nada Será Como Antes



Aos Nossos Filhos




Perdoem a cara amarrada
Perdoem a falta de abraço
Perdoem a falta de espaço
Os dias eram assim

Perdoem por tantos perigos
Perdoem a falta de abrigo
Perdoem a falta de amigos
Os dias eram assim

Perdoem a falta de folhas
Perdoem a falta de ar
Perdoem a falta de escolha
Os dias eram assim

E quando passarem a limpo
E quando cortarem os laços
E quando soltarem os cintos
Façam a festa por mim

Quando largarem a mágoa
Quando lavarem a alma
Quando lavarem a água
Lavem os olhos por mim

Quando brotarem as flores
Quando crescerem as matas
Quando colherem os frutos
Digam o gosto pra mim

Composição: Ivan Lins / Vitor Martins



E que venha 2024!
Viva a Palestina Livre!
Paz!
Liberdade!

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Sétimo - O processo de Champmathieu / X - O sistema da negativa

Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Sétimo — O processo de Champmathieu


X — O sistema da negativa

   Chegara o momento de terminar o julgamento. O presidente mandou levantar o réu e dirigiu-lhe a pergunta do estilo:

— Tem alguma coisa a acrescentar à sua defesa?

   O réu, de pé, enrolando e desenrolando o ensebado barrete, pareceu não ouvir. O presidente repetiu a pergunta.
   O homem desta vez ouviu e indicou ter compreendido. Fez um movimento como de quem desperta, olhou à roda de si, encarou o público, os soldados, o seu advogado, os jurados e o presidente, apoiou o monstruoso punho sobre a velha teia que lhe ficava na frente, tornou ainda a olhar para tudo, e de repente, fitando os olhos no advogado, começou a falar. Foi uma erupção.
   Pelo modo como as palavras lhe saíam da boca, incoerentes, impetuosas, embatendo-se umas com as outras e em perfeita confusão, parecia que lhe acudiam todas duma vez, para saírem ao mesmo tempo. Disse ele:

— O que eu tenho a dizer é que fui carpinteiro de carros em Paris, e até que estive em casa do senhor Baloup. É uma peste aquele trabalho dos carros, trabalha-se sempre ao ar livre, nos pátios, ou debaixo de telheiros, se o patrão é melhor, mas nunca em oficinas fechadas, porque vossemecês bem sabem que é preciso campo largo. No Inverno, tem a gente tanto frio que é preciso esfregar os braços, mas os patrões é que não estão por isso, dizem eles que se perde tempo. É uma coisa que custa muito lidar com ferro, quando as pedras estão cobertas de neve. Isto dá cabo dum homem muito depressa. Envelhece-se em pouco tempo: quando um homem tem quarenta anos está pronto. Eu tinha cinquenta e três e estava muito doente. E depois, os operários são más peças! Quando um homem já não é moço não fazem senão chamar-lhe estafermo! Não ganhava mais que trinta soldos por dia; os mestres aproveitavam-se da minha idade e pagavam-me o mais barato que podiam. Ainda assim tinha a minha filha, que era lavadeira, e que ganhava também alguma coisa; para os dois ia chegando. A rapariga levava também muito má vida. Todo o dia metida numa celha até quase à cintura, à chuva, à neve e ao vento, ainda que caia neve é preciso lavar sem descanso: há gente que tem pouca roupa e que está sempre à espera da lavadeira; se não se lavar com todo o tempo, perdem-se os fregueses. As aduelas são mal juntas e a água cai por toda a parte. Estar para ali uma mulher com as saias todas molhadas por dentro e por fora. Isto é para matar! Ela trabalhava também no lavadouro dos Enfants Rouges, onde a água sai por umas torneiras. Lá não se está na celha. A lavadeira ali lava adiante de si, à torneira, e enxuga do outro lado, no tanque. Como é casa fechada sente-se menos frio no corpo, mas fazem lá uma barrela de água quente que dá cabo da vista. A minha filha vinha para casa às sete horas da tarde, e sempre tão estafada que se deitava logo. O marido batia-lhe e ela morreu. Fomos pouco felizes. Sempre era uma rapariga tão sossegada, que nunca ia a divertimento nenhum. Ainda me lembro dum dia de Entrudo, em que ela às oito horas já estava deitada. Isto que eu digo é verídico, não têm mais do que indagar. Mas, é verdade! Que bruto que eu sou! Indagar o quê? Paris é muito grande, quem é que conhece ali o senhor Champmathieu? Ainda assim, em casa do senhor Baloup. Enquanto ao mais, nem eu sei o que é que me querem.

   O homem calou-se e conservou-se de pé. Tinha dito todas estas coisas com uma voz alta, breve, rouca e áspera, com uma espécie de ingenuidade irritada e selvagem. No meio do seu aranzel interrompera-se para cumprimentar alguém que estava entre a multidão.
   A espécie de afirmativas que ele parecia lançar ao acaso saíam-lhe como soluços, acompanhando cada uma delas com o gesto de um rachador de lenha, quando descarrega o machado.
   Quando ele terminou, rompeu o riso em todo o auditório. Olhando então para o público, e vendo que se ria, sem que compreendesse o motivo, riu-se também.
   Era sinistro aquele espetáculo.
   O presidente, homem reto e ao mesmo tempo benévolo, elevou a voz. Recordou aos «senhores jurados» que o senhor Baloup, antigo mestre carpinteiro de carros, em casa de quem o acusado dizia ter servido, fora inutilmente citado. Tinha falido, e não fora possível encontrá-lo. Depois, voltando-se para o acusado, convidou-o a escutar o que ia dizer-lhe e acrescentou:

— Você está numa situação em que precisa refletir. Pesam sobre a sua cabeça suspeitas muito graves e que lhe podem produzir consequências capitais. Acusado, em seu interesse interpelo-o ainda uma vez; explique-se claramente sobre estes dois factos: Em primeiro lugar, saltou ou não o quintal de Pierron, partiu o tronco e roubou as maçãs, isto é, cometeu o crime de roubo com escalada? Em segundo lugar, é ou não o forçado liberto Jean Valjean?

   O acusado meneou a cabeça com o ar de um homem que compreendeu muito bem e que sabe o que vai responder. Abriu a boca, voltou-se para o presidente e disse:

— Primeiro...

   Em seguida olhou para o barrete, depois para o teto, e calou-se.

— Acusado — tornou o delegado do procurador-régio com voz severa —, preste atenção ao que se lhe diz: você não responde a coisa alguma das que se lhe perguntam. A sua perturbação condena-o. É evidente que não se chama Champmathieu, que é o forçado Jean Valjean, que em princípio se ocultou sob o nome de Jean Mathieu, que era o nome de sua mãe; que esteve no Auvergne e que nasceu em Faverolles, onde exercia a profissão de podador. É evidente que roubou, por meio de escalada, algumas maçãs maduras, do quintal de Pierron. Tudo isto será devidamente apreciado pelos senhores jurados.

   O acusado tinha-se sentado, mas quando o delegado acabou de falar, levantou-se arrebatadamente e exclamou:

— Você é que é muito mau homem! Aqui está o que eu queria dizer, mas não dava ao princípio com a palavra. Eu não roubei nada a ninguém, eu sou um homem que muitas vezes passo sem comer, porque o não tenho. Vinha de Ailly, e como havia pouco tempo que tinha desabado uma grande trovoada de água, que pôs os campos todos amarelos, de modo que os pântanos iam cobertos de água a mais não poder ser e não se viam senão as pontinhas da erva a sair das areias da margem da estrada achei um ramo quebrado no chão, ainda com maçãs, e apanhei-o, muito longe de suspeitar que me havia de ser causa de tantos trabalhos. Há três meses que estou preso e que andam comigo às voltas. Ora agora, que hei-de eu dizer? Falam contra mim, dizem-me: «Responda!» O gendarme, que é bom rapaz, dá-me sinal com o cotovelo e diz-me em voz baixa: «Anda, responde»; mas eu não me sei explicar. Eu sou um pobre homem; disto não entendo, porque nunca tive estudos. Aí está o que fizeram mal em não ver. Eu não roubei nada, apanhei o que estava no chão. Os senhores falam de Jean Valjean, Jean Mathieu! Eu não conheço esses homens, que são da aldeia, e eu trabalhei no boulevard do Hospital em casa do senhor Baloup, e chamo-me Champmathieu. Tem graça dizerem-me onde eu nasci! Eu não o sei. Nem toda a gente tem uma casa para vir ao mundo; se assim fosse, era um regalo. Eu julgo que meu pai e minha mãe era gente que andavam por essas estradas; não sei mais do que isto. Quando era criança chamavam-me pequeno, agora chamam-me velho. São esses os meus nomes de baptismo. Entendam lá isto como quiserem. Estive em Auvergne, estive em Faverolles. O que tem lá isso? Então não se pode ter estado em Auvergne, nem em Faverolles, sem ter estado nas galés? Torno a dizer: eu sou Champmathieu, e não roubei nada a ninguém. Estive em casa do senhor Baloup, e aí era o meu domicílio. Os senhores, afinal de contas, já me aborrecem com os seus disparates Porque é que andam tão encarniçados atrás de mim?

   O delegado do ministério público, que permanecia de pé, dirigiu-se ao presidente:

— Senhor presidente, em vista das negativas confusas, mas extremamente hábeis do réu, que ainda que quisesse passar por idiota não seria capaz de o conseguir, desde já o prevenimos, requeremos que tenha a bondade, bem como os senhores jurados, de chamar a este recinto os condenados Brevet, Cochepaille e Chenildieu, e o inspetor de polícia Javert, e ainda outra vez interrogá-los sobre a identidade do réu com o forçado Jean Valjean.

— Devo observar ao senhor delegado — disse o presidente —, que o inspetor de polícia Javert, chamado no exercício das suas funções, à capital do vizinho distrito, apenas fez o seu depoimento saiu, não só da audiência, mas da cidade. Concedemos-lhe a autorização para se retirar, com o assentimento do senhor delegado e do senhor advogado de defesa.

— É exato, senhor presidente — tornou o delegado. — Mas, em vista da ausência do senhor Javert, julgo dever recordar aos senhores jurados o que ele há poucas horas disse neste mesmo lugar. Javert é um homem geralmente estimado, e que honra pela sua rigorosa e estrita probidade as funções subalternas, mas importantes. Eis o seu depoimento: 

Não necessito de presunções morais e provas materiais que desmintam as negativas do acusado. Reconheço perfeitamente. Esse homem não se chama Champmathieu; é um ex-forçado de péssimas qualidades e muito temido chamado Jean Valjean. Houve até grande pena de o soltarem, apesar de haver concluído o tempo de castigo. Sofreu dezenove anos de trabalhos forçados por um roubo qualificado. Além do roubo de Gervásio, e desse de Pierron, tenho ainda suspeitas de outro cometido em casa de sua grandeza o defunto bispo de Digne. Quando fui guarda ajudante da chusma nas galés de Toulon, vi-o muitas vezes. Repito que o reconheço perfeitamente.

   Esta declaração tão categórica, pareceu produzir profunda impressão tanto no público como no júri. O delegado terminou insistindo para que, na falta de Javert, fossem ouvidas de novo e interpeladas solenemente as três testemunhas, Brevet, Cheneldieu e Cochepaille. 
   O presidente deu uma ordem a um oficial de diligências, e um momento depois abriu-se a porta da sala em que estavam as testemunhas. O oficial de diligências, acompanhado de um gendarme, pronto a prestar-lhe auxílio, introduziu na sala o condenado Brevet. O auditório estava como suspenso, todos os peitos palpitavam como se fossem animados por uma só alma.
   O antigo forçado Brevet trazia o vestuário preto e pardo das casas centrais. Brevet era um homem de uns sessenta anos, com uma espécie de figura de procurador de causas e o ar de um velhaco. Encontram-se por vezes juntas estas qualidades. Na prisão, aonde novas proezas o tinham reconduzido, tornara-se o que quer que era como guarda-chaves. Era um homem de quem os chefes diziam: diligencia tornar-se útil; e de quem os capelães testemunhavam os bons hábitos religiosos. É necessário não esquecer que tudo isto ocorria no tempo da restauração.
 
— Brevet — disse o presidente — não pode prestar juramento porque sofreu uma sentença infamante.

   Brevet baixou os olhos.

— Todavia — continuou o presidente — mesmo no homem que a lei degradou pode conservar-se, quando a piedade divina o permite, um sentimento de honra e de piedade. É para este sentimento que eu apelo neste momento decisivo. Se, como julgo, ele existe ainda no seu íntimo, reflita antes de me responder; considere de um lado esse homem que uma palavra só pode perder, e do outro a justiça a quem pode esclarecer. O momento é solene; se julga ter-se enganado, é ainda tempo de se retratar. Acusado, levante-se. Brevet, observe-o bem, concentre as suas recordações e diga-nos, com a alma e a consciência, se persiste em reconhecer esse homem por Jean Valjean, outrora seu camarada nas galés.

   Brevet olhou para o acusado e voltou-se para a mesa.

— Sim, senhor presidente. Fui eu o primeiro que o reconheci e persisto em que é o mesmo. Este homem é o Jean Valjean, que foi para Toulon em 1796, e que saiu de lá em 1815. Eu saí passado um ano. Agora parece ter assim o ar de um bruto: é talvez da idade, nas galés era ele triste e dissimulado. Reconheço-o positivamente. 

— Sente-se — disse o presidente. — Acusado, conserve-se de pé.

   Trouxeram em seguida Cheneldieu, condenado a trabalhos forçados por toda a vida, como o indicavam a roupeta vermelha e o barrete verde. Estava cumprindo a sentença em Toulon de onde fora trazido a Arras para ser testemunha neste processo. Era um homem baixo, com cinquenta anos, pouco mais ou menos, vivo, encarquilhado, raquítico, amarelo, descarado, febril, que apresentava em todo o seu físico extrema fraqueza e no olhar uma força imensa. Os seus companheiros das galés tinham-no apelidado de Nega-a-Deus. O presidente dirigiu-lhe quase as mesmas perguntas que fizera a Brevet. No momento em que o presidente lhe recordava que a sua infâmia lhe tirava o direito de prestar juramento, Cheneldieu levantou a cabeça e encarou a multidão. O presidente convidou-o a recolher as recordações e perguntou-lhe, como a Brevet, se persistia em reconhecer o acusado.
   Cheneldieu soltou uma gargalhada.

— Ora essa! Se o reconheço! Andámos cinco anos presos à mesma grilheta. Não te faças amarelo, meu velho!

— Pode sentar-se — disse o presidente.

   O oficial de diligências conduziu Cochepaille. Este outro condenado por toda a vida, vindo de Toulon e vestido de vermelho como Cheneldieu, era um camponês de Lourdes, um semi-urso dos Pirinéus. Guardara, rebanhos na montanha, e de pastor transformara-se em salteador. Cochepaille não era menos selvagem nem parecia menos estúpido do que o acusado. Era um desgraçado dos que a natureza esboça para animais bravios, e que a sociedade completa em forçados. O presidente tentou movê-lo com algumas palavras patéticas e graves, e perguntou-lhe como aos outros, se persistia, sem hesitação ou dúvida, em reconhecer o homem que tinha diante de si.

— É o Jean Valjean — disse Cochepaille —, é o mesmo a quem chamavam Jean-le-Cric, tanta era a força que ele tinha!

   Cada uma das afirmavas destes três homens, evidentemente sinceras e de boa fé, suscitara no auditório um murmúrio que crescia e se prolongava por muito tempo, cada vez que uma nova declaração se juntava à precedente.
   O acusado escutara-as com a expressão de espanto que, segundo a acusação, era o principal meio de defesa. A primeira tinham-no os gendarmes que estavam ao lado dele, ouvido dizer por entre os dentes: «Bem, cá está um!» Depois, à segunda, dissera um pouco mais alto e com ar quase satisfeito: «bom!» À terceira, exclamou: «Magnífico!»

— Acusado, ouviu o que se disse? O que tem a responder?

— Eu respondo, magnífico!

   No mesmo momento rompeu no auditório prolongado rumor, que quase se comunicou ao juiz.

— Oficiais de justiça, façam restabelecer o silêncio. Vão-se formular os quesitos.

   Ato contínuo, houve certo movimento ao lado do presidente e ouviu-se uma voz dizer:

— Brevet, Cheneldieu, Cochepaille! Olhem para este lado!

   Todos os que ouviram esta voz se sentiram gelados, tanto ela era lastimosa e terrível. Todos os olhos se voltaram para o lado de onde ela partira. Um homem que se encontrava entre os espectadores privilegiados que tinham assento por trás da presidência, levantara-se, empurrara a porta da teia que separava o tribunal do pretório, e avançara para o meio da sala. O presidente, o delegado, o senhor Barmatabois, vinte pessoas em suma, o reconheceram imediatamente e exclamaram: 

— O senhor Madelaine! 

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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.

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Os Miseráveis: Fantine, Livro Sétimo - X — O sistema da negativa
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Victor Hugo

OS MISERÁVEIS

Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira (1851-1888)

Las poetisas del amor... Gabriela Mistral (Chile)

 Las Poetisas del Amor (34)


Me vou de você gota a gota.
Se vai meu rosto numa pintura fosca;
Se vão minhas mãos em óleo solto;
Se vão meus pés como poeira.

Tudo se foi, tudo se foi!
Minha voz se foi, isso fez você ficar
fechado para tudo fomos nós
...
Tudo se foi, tudo se foi!



"A mulher que educou mulheres em pequenas comunidades rurais chilenas para que fossem livres."



LA MUJER FUERTE

Me acuerdo de tu rostro que se fijó en mis días,
mujer de saya azul y de tostada frente,
que en mi niñez y sobre mi tierra de ambrosía
vi abrir el surco negro en un abril ardiente.

Alzaba en la taberna, honda, la copa impura
el que te apegó un hijo al pecho de azucena,
y bajo ese recuerdo, que te era quemadura,
caía la simiente de tu mano, serena.

Segar te vi en enero los trigos de tu hijo,
y sin comprender tuve en ti los ojos fijos,
agrandados al par, de maravilla y llanto.

Y el lodo de tus pies todavía besara,
porque entre cien mundanas no he encontrado tu cara
¡y aun te sigo en los surcos la sombra con mi canto!


MIS LIBROS

Libros, callados libros de las estanterías,
vivos en su silencio, ardientes en su calma;
libros, los que consuelan, terciopelos del alma,
y que siendo tan tristes nos hacen la alegría!

Mis manos en el día de afanes se rindieron;
pero al llegar la noche los buscaron, amantes
en el hueco del muro donde como semblantes
me miran confortándome aquellos que vivieron.

¡Biblia, mi noble Biblia, panorama estupendo,
en donde se quedaron mis ojos largamente,
tienes sobre los Salmos las lavas más ardientes
y en su río de fuego mi corazòn enciendo!

Sustentaste a mis gentes con tu robusto vino
y los erguiste recios en medio de los hombres,
y a mí me yergue de ímpetu sólo el decir tu nombre;
porque yo de ti vengo he quebrado al Destino.

Después de ti, tan sólo me traspasó los huesos
con su ancho alarido, el sumo Florentino.
A su voz todavía como un junco me inclino;
por su rojez de infierno fantástica atravieso.

Y para refrescar en musgos con rocío
la boca, requemada en las llamas dantescas,
busqué las Florecillas de Asís, las siempre frescas
¡y en esas felpas dulces se quedó el pecho mío!

Yo vi a Francisco, a Aquel fino como las rosas,
pasar por su campiña más leve que un aliento,
besando el lirio abierto y el pecho purulento,
por besar al Señor que duerme entre las cosas.

¡Poema de Mistral, olor a surco abierto
que huele en las mañanas, yo te aspiré embriagada!
Vi a Mireya exprimir la fruta ensangrentada
del amor y correr por el atroz desierto.

Te recuerdo también, deshecha de dulzuras,
versos de Amado Nervo, con pecho de paloma,
que me hiciste más suave la línea de la loma,
cuando yo te leía en mis mañanas puras.

Nobles libros antiguos, de hojas amarillentas,
sois labios no rendidos de endulzar a los tristes,
sois la vieja amargura que nuevo manto viste:
¡desde Job hasta Kempis la misma voz doliente!

Los que cual Cristo hicieron la Vía-Dolorosa,
apretaron el verso contra su roja herida,
y es lienzo de Verònica la estrofa dolorida;
¡todo libro es purpúreo como sangrienta rosa!

¡Os amo, os amo, bocas de los poetas idos,
que deshechas en polvo me seguís consolando,
y que al llegar la noche estáis conmigo hablando,
junto a la dulce lámpara, con dulzor de gemidos!

De la página abierta aparto la mirada,
¡oh muertos!, y mi ensueño va tejiéndoos semblantes:
las pupilas febriles, los labios anhelantes
que lentos se deshacen en la tierra apretada.


LA SOMBRA INQUIETA

Flor, flor de la raza mía, Sombra Inquieta,
¡qué dulce y terrible tu evocación!
El perfil de éxtasis, llama la silueta,
las sienes de nardo, l'habla de canción.

Cabellera luenga de cálido manto,
pupilas de ruego, pecho vibrador;
ojos hondos para albergar más llanto;
pecho fino donde taladrar mejor.

Por suave, por alta, por bella, ¡precita!
fatal siete veces; fatal, ¡pobrecita!,
por la honda mirada y el hondo pensar.

¡Ay!, quien te condene, vea tu belleza,
mire el mundo amargo, mida tu tristeza,
¡y en rubor cubierto rompa a sollozar!

**

¡Cuánto río y fuente de cuenca colmada,
cuánta generosa y fresca merced
de aguas, para nuestra boca socarrada!
¡Y el alma, la huérfana, muriendo de sed!

Jadeante de sed, loca de infinito,
muerta de amargura la tuya en clamor,
dijo su ansia inmensa por plegaria y grito:
¡Agar desde el vasto yermo abrasador!

Y para abrevarte largo, largo, largo,
Cristo dio a tu cuerpo silencio y letargo,
y lo apegó a su ancho caño saciador...

El que en maldecir tu duda se apure,
que puesta la mano sobre el pecho juré;
"Mi fe no conoce zozobra, Señor."

**
Y ahora que su planta no quiebra la grama
de nuestros senderos, y en el caminar
notamos que falta, tremolante llama,
su forma, pintando de luz el solar,

cuantos la quisimos abajo, apeguemos
la boca a la tierra, y a su corazón,
vaso de cenizas dulces, musitemos
esta formidable interrogación:

¿Hay arriba tanta leche azul de lunas,
tanta luz gloriosa de blondos estíos,
tanta insigne y honda virtud de ablución

que limpien, que laven, que albeen las brunas
manos que sangraron con garfios y en ríos,
¡oh Muerta!, la carne de tu corazón?


DESOLACIÓN

La bruma espesa, eterna, para que olvide dónde
me ha arrojado la mar en su ola de salmuera.
La tierra a la que vine no tiene primavera:
tiene su noche larga que cual madre me esconde.

El viento hace a mi casa su ronda de sollozos
y de alarido, y quiebra, como un cristal, mi grito.
Y en la llanura blanca, de horizonte infinito,
miro morir intensos ocasos dolorosos.

¿A quién podrá llamar la que hasta aquí ha venido
si más lejos que ella sólo fueron los muertos?
¡Tan sólo ellos contemplan un mar callado y yerto
crecer entre sus brazos y los brazos queridos!

Los barcos cuyas velas blanquean en el puerto
vienen de tierras donde no están los que son míos;
y traen frutos pálidos, sin la luz de mis huertos,
sus hombres de ojos claros no conocen mis ríos.

Y la interrogación que sube a mi garganta
al mirarlos pasar, me desciende, vencida:
hablan extrañas lenguas y no la conmovida
lengua que en tierras de oro mi vieja madre canta.

Miro bajar la nieve como el polvo en la huesa;
miro crecer la niebla como el agonizante,
y por no enloquecer no encuentro los instantes,
porque la "noche larga" ahora tan solo empieza.

Miro el llano extasiado y recojo su duelo,
que vine para ver los paisajes mortales.
La nieve es el semblante que asoma a mis cristales;
¡siempre será su altura bajando de los cielos!

Siempre ella, silenciosa, como la gran mirada
de Dios sobre mí; siempre su azahar sobre mi casa;
siempre, como el destino que ni mengua ni pasa,
descenderá a cubrirme, terrible y extasiada.


AUSENCIA

Se va de ti mi cuerpo gota a gota.
Se va mi cara en un óleo sordo;
se van mis manos en azogue suelto;
se van mis pies en dos tiempos de polvo.

¡Se te va todo, se nos va todo!
Se va mi voz, que te hacía campana
cerrada a cuanto no somos nosotros.

Se van mis gestos, que se devanaban,
en lanzaderas, delante tus ojos.

Y se te va la mirada que entrega,
cuando te mira, el enebro y el olmo.

Me voy de ti con tus mismos alientos:
como humedad de tu cuerpo evaporo.

Me voy de ti con vigilia y con sueño,
y en tu recuerdo más fiel ya me borro.

Y en tu memoria me vuelvo como esos
que no nacieron ni en llanos ni en sotos.

Sangre sería y me fuese en las palmas
de tu labor y en tu boca de mosto.

Tu entraña fuese y sería quemada
en marchas tuyas que nunca más oigo,
¡y en tu pasión que retumba en la noche,
como demencia de mares solos!

¡Se nos va todo, se nos va todo!






"A mulher que apesar de todos os preconceitos venceu, em 1945, uma premiação dominada por homens até os dias de hoje."


Por que sabemos tão pouco sobre Gabriela Mistral?





"A mulher que representa toda a marginalização dos povos que defende. Carrega em si todos os requisitos para o esquecimento nessas terras."



Besos





"A mulher que ajudou a erradicar o analfabetismo no Chile., lutou pela educação básica de qualidade."

sábado, 30 de dezembro de 2023

os Embalos de Sábado à Noite

Bee Gees


You Should Be Dancing

A minha garota dança à meia-noite
Vai até de manhã
A minha garota me deixa animado
Eu sinto seu calor

O que você faz escondida?
O que você faz escondida?
Você devia estar dançando, sim
Dançando, sim

Ela é gostosa, mas perigosa
Ela me faz sentir bem
A minha garota me faz sentir poderoso
Faz o meu sangue ferver

O que você faz escondida?
O que você faz escondida?
Você devia estar dançando, sim
Dançando, sim

A minha garota dança à meia-noite
Vai até de manhã
A minha garota me deixa animado
Eu sinto seu calor

O que você faz escondida?
O que você faz escondida?
Você devia estar dançando, sim
Dançando, sim

Você devia estar dançando, sim
Você devia estar dançando, sim
Você devia estar dançando, sim
Você devia estar dançando, sim
Você devia estar dançando, sim


Bee Gees 
- One Night Only 1997 (Show Completo)




01 - Intro (You Should Be Dancing) (0:00)
02 - Alone (2:41)
03 - Massachusetts (7:07)
04 - To Love Somebody (9:53)
05 - I've Gotta Get A Message To You (13:13)
06 - Words (17:14)
07 - Closer Than Close (21:19)
08 - Islands In The Stream (26:05)
09 - One (30:12)
10 - Our Love (Don't Throw It All Away) - Feat. Andy Gibb (35:12)
11 - Night Fever (39:17)
12 - More Than A Woman (41:02)
13 - Still Waters (Run Deep) (43:00)
14 - Lonely Days (46:22)
15 - Morning Of My Life (50:26)
16 - New York Mining Disaster 1941 (54:03)
17 - Too Much Heaven (56:20)
18 - I Can't See Nobody (58:11)
19 - Run To Me (59:39)
20 - And The Sun Will Shine (1:00:45)
21 - Nights On Broadway (1:02:45)
22 - How Can You Mend A Brocken Heart (1:04:47)
23 - Heartbreaker (1:08:17)
24 - Guilty (1:09:40)
25 - Immortality - Feat. Celine Dion (1:12:05)
26 - Tragedy (1:17:21)
27 - I Started A Joke (1:22:12)
28 - Grease - Feat. Frankie Valli (1:25:21)
29 - Jive Talkin' (1:28:29)
30 - How Deep Is Your Love (1:33:10)
31 - Stayin' Alive (1:37:23)
32 - You Should Be Dancing (1:44:24)


O alto da glória e da tristeza





Os Embalos de Sábado à Noite




"Saturday Night Fever": dança solo de Tony




Bee Gees - More Than A Woman 
- Legendado




Memórias - 03: siempre ha sido así

No se puede hacer la revolucion sin las mujeres

Livro Dois

baitasar

Memórias

03 – siempre ha sido así

dona Manoela vivia se queixando da violação da sua requisição de privacidade, o banheiro suíte virou de uso comum das meninas e meninos, Os guris são nojentos, mamá, a mesma reclamação que tinha do marido, perdeu a intimidade de ficar com seus pensamentos de urgência ou abandono, ruídos da incontinência ou aparência de aborrecimentos

por vezes, em seus dias de penitência e recolhimento, se dizia arrependida, Todos en esta casa usan las vajillas e las toalhas. ¿Por qué no mean y cagan em su váter?

no assento da bacia sanitária havia perdido a conta das vezes que encontrou molhado, saia aos gritos, ¿Cuánto cuesta levantar la tapa del váter?

silêncio...

siempre se calaban

¿Es mucho pedir que cada uno levante la tapa antes de usarla?

as respostas se mantinham no sigilo das bocas caladas de medo e constrangimento, todos resmungavam suas razões, mas não passavam do hábito de replicar baixinho, na verdade, não queriam seus retruques ouvidos, respingando entre dentes o mau humor

sabiam que a mãe tinha razão

para o bem da verdade estabelecida – e se a ouvires não me queiras mal –, as mães sempre têm mais juízo, bom senso e prudência quendo o assunto é sobre seus filhos e filhas, sempre visitam suas casas – mesmo que não recebam a reciprocidade de suas visitas –, usam das suas garras e dentes embruxados para afugentar o pior destino desconhecido

enxergam de longe discursos vazios, falsas promessas, não negam nem o que pedem, sofrem frio na sombra da solidão, não choram o filho ausente, pelo menos, aparentemente, se sossegam na presença vivida de longe sem fingidas proximidades

as mães são intensas, o equipamento mais apurado da natureza, uma conexão profunda com a terra, elementos e ciclos da vida, a energia de um furacão, poderosas e irresistíveis

não duvide que possamos caminhar pelos campos com os pés descalços, sentindo a energia pulsante da natureza fluir através dos nossos corpos. nós, mulheres, temos o toque curativo porque somos guardiãs da terra, protetoras de todas criaturas e defensoras da natureza

através dos séculos fomos usadas e incompreendidas, alguns nos veem como intensas demais, difíceis de lidar, não reconhecem essa intensidade como um presente que carregamos para o mundo, não somos apenas seres humanos, somos a força da natureza

quando sorrimos as flores desabrocham; quando choramos, nuvens choram junto. dançamos ao ritmo das paixões, amamos com a intensidade avassaladora das emoções, cada sentimento nos invade, enfrentamos tempestades e nunca desistimos de nossos sonhos, inspiramos e mostramos que obstáculos se enfrentam com determinação, coragem e a suavidade graciosa da brisa que acaricia as folhas das árvores, delicadas como as pétalas de uma flor

compreendemos a importância do desamparo e fragilidade na vida, permitimo-nos sermos abertas e autênticas, sabemos que a vida é um fluxo constante de altos e baixos, nossas cicatrizes tecem histórias de resilência, até podemos ter medo do escuro e de baratas, mas sabemos que é uma transição para a luz

somos todas um chamado para a humanidade despertar para sua própria essência, uma alma poderosa, capaz de criar magia

nosso instinto enfrenta desafios, independente de qualquer exercício biológico recebido, impulso espontâneo e alheio à razão, como levar a boca no peito

sobrevivências

supervivências

subvivências

todos na casa sabiam que depois do berreiro o silêncio reapareceria, meninas de rosa, bonecas, casinhas, panelas e fogão

nenhuma menina jamais, em tempo algum, deixou de sugurar uma boneca de pano, louça, plástica ou sabugo, mesmo que fosse para deixar cair no chão e correr para brincar de esconde-esconde, não temos como escapar

rosa é menina, mãe cuida e protege, Tá na hora da comidinha, nana nenê que o bicho vem aí...

os meninos de azul

o pai usa da instrução familiar da espada como um escudo secular, carrinho é coisa de menino, sua insígnia de caçador – não importa se soldado da infantaria ou cavalaria – lhe diz que a implicação natural é o combate empunhando o gládio da força, fodendo corpos femininos até encherem o peito de medalhas: um garanhão de sorte que leva à boca e morde têêêtas, mantido a distância pelo medo da intuição peniana, Mostra essa espada pro papai... que lindo... grandão assim vai fazer muita mágica. As bruxas que se cuidem, vão arder no fogo!

as vozes do passado estão no presente, seguirão no futuro educando seus machos, como a família Gonçalves Lara, meninos crescem para ultrapassarem corpos com suas espadas enquanto meninas rompem suas fendas no segredo sagrado do casamento

siempre ha sido así... e na família Gonçalves Lara não havia como ser diferente


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Leia também:

Livro Um:
Memórias - 01: a lua cheia
Livro Dois:
Memórias - 03: siempre ha sido así

Los Poetas del Amor... Feliciano Mejía (Perú)

Los Poetas del Amor (101)


FRONTISPICIO

Aquí es mi muralla raída
donde arde mi fuego.

Si entras, ven:
dobla en dos tu gemido,
como pañuelo, tu lágrima.

Aquí es donde sueña
sueños verdes la Mariposa
y el Venado mastica arcoiris.

Pasajero, si has de entrar,
afila a buido diamante
tu cólera
y afuera deja arrojada tu conmiseración.

Esta es la puerta
de mi casa escarlata.


TANGO DEL MALVADO

Es malo y sufre.

Malvado hasta la santidad.

Y le duele el alma hasta las cachas
y ríe con risa de lata
y duerme con angustia de cernícalo.

En sus noches dementes
oigo su cantar
enmohecido, arrugando el aire.

Tortuoso hasta hacer marchitar
las begonias de la casa
de la mujer que ama.

Es malo, quiróptero,
y anida en su mañana
de brea chamuscada.


EL LADRON DE MAICAO

reía con quimbeo de palomas
huyendo de las balas.

Grandes bocados de pescado marinado
en los toldos tocoloros
de Boca de Ceniza
y picantes vasos de aguardiente metálico.

El ladrón de Maicao
frotaba sus hombros,
desesperado,
y lanzaba hacia el cielo sus manos
y reía
a gritos en el día caliente,
oliendo los sancochos a plena carrera
y escapando a las sirenas
de los guardias traficantes de drogas.

El bruno ladrón era un rayo
de vida
en la calina urticante
del puerto caldeado.


TOROS

Los toros que van a morir
esperan en su aprisco,
ebrios de sol
y de cansancio
y de grasa.

(las olas vienen y van, azules)

Los toros que van a morir
están parados -moscardón-moscas-bisbiseos-
en la tabla sin fin de la espera,
ahuecados por la luz mortecina
de lámparas eléctricas esmirriadas.

(las sombrillas por miles
se rasmillan con el viento caldeado
y con los gránulos de arena)

Los garfios de los ganchos
estáticos-serenos;
las reses,
emporcadas sus pezuñas
en el cieno surgido de sus vientres.

(el sol caldea las pieles
repletas de aceites...
masticaciones-alcoholes-televisores
altoparlantes y gritos de carteles
en cada centímetro de este mundo
donde el sol cae)

Los toros.....


BALADAS DE JIM MORRISON

I

TUMBA

Gordos los gatos amodorrados
entre los cipreses,
las cornejas
aspando el bisbiseo
del aire
y las gritonas bandadas de cuervos lerdos:
los buches repletados
de granos del cementerio...

Aquí no hay paz:
sólo un río de dinero
de mármol carcomido.

Sobre la tumba
de Jim
las agujas hipodérmicas
de los ateridos peregrinos
que van a saludar a Jim
en su sueño alucinado
del campo mortuorio
del Padre Lachaise.

Aquí no puede haber paz.

Sólo un grito de silencio
que parece un río
de mármol carcomido.


CANTOS

(Gracias a Blaise Cendras por su “Antología Negra”.)

Para Percy, Tania, Nazim, Maywi, Sébatien y Mïlis Yauri Jeanne-Dulmira.

Canto a la lluvia

Yembelé, yembelé tuná.
Yaisla bembe bembé tuná.
¡Ulisla vá, bembelebe vé!

Tunjó oleja ti.
Elfili yá, tundala yá.

Telinla, yabahó.
Telinda, asihá.
¡Ulisla vá, bembelebe vé!

Efir. Efir. Datinga dá.


Aquimpele lulitendo si.
Efir, efir, efirvale si.

¡Ulisla vá, bembelebe vé!


Canto al agua

Agua roja, de la fruta i del hombre, agua.
Agua azul, de las nubes i del aire, agua.

Dame tu bocado,
dame tus pies, agua, agua.

Tú corres entre las piedras i los peces;
tú corres por el corazón de las pencas.
Agua quieta i agua turbia,
agua de las pozas que guardas en tu fondo el cielo,
agua plana.

¡Balam shá! ¡Sís, sis!

Eres buena en mi boca y en mis brazos.
Yo te canto y te apaciguo.
Agua de las chorreras i los líquenes,
no me mates.

¡Balam shá! ¡Sís, sis!



Canto al fuego

Fuego, fuego, fuego de entre la sangre, fuego.
Fuego nuevo en los ojos del cielo, fuego.
Donde estás todo habitas, fuego.

Yo voy en pos de ti, yo voy en tu busca.
En la fruta i en el árbol.
El fuego es el fuego.

Crepitando en la fogata
¿qué hablas?, ¿qué cantas?.
Yo bailo en tu honor i tú sonríes.

Fuego del aire, fuego de la tierra,
¡Oh, fuego!
La noche viene i todo lo iluminas.
Ven, de donde vengas, fuego madre, fuego madre;
yo bailo para ti.

Gota a gota la lluvia cae de las hojas del ciruelo.
Pero tú vives, fuego, fuego, de la tea i de la sangre.


Canto a la luz

Del espacio grande, grande,
donde todo ha sido oscuro,
ha venido. Ahá, ella. Ahá, ella.

¿Qué pasaría que no vino antes?
¿Qué habría antes?

De las garras de Vieri, ave de las dos Cabezas,
se escapó la luz. Se escapó la luz.

El árbol no se vería.
La piedra no se vería.
El camaleón i la tortuga no se verían.
¿Qué, entonces, se vería?
No sé. No me lo preguntes.
La luz ya estaba cuando yo vine.

¡Ahá, ah, éh! ¡Ahá, ah, éh!

Los hombres

La calabaza está creciendo.
Knegún, knegún.

Los hombres dicen que el hombre es bueno
i que el hombre es malo.
Knegún, knegún.

Rué, le, le rué, el hombre más pequeño
puede ser el más grande.
Knegún, knegún.

Rué, le, etin le: los tambores suenan.
Etin le, le etin; los tambores suenan.

Knegún, knegún.
Knegún, knegún, fii.
Fii, fii, knegún fii.

Aren pi, u e né

Bingo de la tierra donde no hay pájaros,
no eres flor ni árbol.

Bingo dice: alé, i las aguas de los ríos
se abren a su paso.
Bingo dice: ven, i nadie viene.

Están llorando las frondas una leche deleitosa
i la serpiente Uré le da a Bingo
un anillo de marfil.

Bingo de la tierra donde nació el fuego,
tiene la piel más hermosa del mundo.

Bingo juega dando saltos
entre las puntas de los cerros.
¡Huewech, Huewech, Bingo!
que sí nació de madre en nueve esperas.

Bingo: hijo de la piedra
i el pan.

Canción a la madrugada

Oh, madre, triste canto.
Oh, madre, ya no estoy.

La Tierra no tiene a nadie.
Oh, madre, así ha sido.

Mis lágrimas hacen un lago
lleno de peces. Oh, madre.

De mi boca ya no nacen flores.
Oh, madre, ¿qué ha pasado?

La noche ha llegado a mi corazón.
Oh, madre, oh, madre.
Triste canto.

A eeeeeee, oh! Eeeee

La muerte viene
sobre las aguas del río,
en el canto de los pájaros, viene.
Nadie la detendrá.
Uge nú, ya. Nadie. Nadie.

Mis ojos ya no verán cosa alguna.
Alguien me ha matado.

Dame mi corazón,
dame mis manos,
dame mi sonrisa.
Uge nú, ya. Árbol, te entrego mi alma.

Así, así, ¡yelle, yelle!, así

La luna en el cielo.
El sol en el cielo.
La luz los ha unido:
sobre la luz el espíritu.

Vida, canto i muerte.



El país de los sueños
del escritor Feliciano Mejía.




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De nacionalidade peruano-francesa, estudou na Universidad Nacional Mayor de San Marcos, em Lima, e na França, nas universidades de Le-Mirail, La Sorbonne e Caen. Publicou POEMAS RACIONAIS, LANCE DA GRAÇA, CÍRCULO DE FOGO, KANTUTA NEGRO, A TERRA DOS SONHOS, KANTUTA VERMELHO e YANAQA, CONTOS DA MINHA COMUNIDADE.

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Dostoiévski - O Idiota: Segunda Parte (1b) - Para encerrar tais rumores

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Segunda Parte

1.

 continuando...

   Para encerrar tais rumores e explicações, acrescentaremos que na primavera houve muitas novidades no lar dos Epantchín, não tendo sido pois difícil esquecer o príncipe, que não mandava notícias, e decerto nem pensou nisso. Durante o inverno combinaram após muitas vacilações passar o verão no estrangeiro, isto é, Lizavéta Prokófievna mais as filhas, visto ser impossível, ao general, perder seu tempo em “diversões frívolas”. Tal decisão partiu mais dos imediatos e contínuos esforços das moças, totalmente persuadidas de que os pais não as queriam levar para fora do país por estarem empenhados demais em casá-las, procurando-lhes maridos. 
   Decerto os pais acabaram se convencendo que isso de maridos era matéria que também podia ser achada no estrangeiro; e que essa viagem. por um verão apenas, longe de atrapalhar seus planos, poderia talvez “ser proveitosa”. 
   E esta é a ocasião e o lugar de mencionar que o proposto casamento de Afanássii Ivánovitch Tótskíi com a moça mais velha foi desmanchado, a oferta mesmo formal, de sua mão, nunca tendo chegado a ser feita, o que se deu por si só, sem nenhum discurso ou disputa doméstica. O projeto caíra sozinho ao tempo da partida do príncipe; e caíra tanto de um como do outro lado. 
   O fato fora uma das causas do mau humor da família, muito embora a mãe acabasse por declarar peremptoriamente, então, que ficara tão contente “que até se benzera com as duas mãos ao mesmo tempo”. 
   Apesar de vencido, e de saber que só se podia queixar de si mesmo, o general se considerou ofendido e desconsiderado em casa, por algum tempo. Sentia ter perdido Afanássii Ivánovitch, “uma tamanha fortuna e um sujeito tão aguçado!” Mas não demorou muito para o general vir a saber que Tótskii se apaixonara por certa francesa da mais alta sociedade, marquesa e legitimista; que estavam ambos para se casar, e que Afanásii Ivánovitch se achava de viagem marcada para Paris, e, depois, Grã-Bretanha. “Ora, com a tal francesa, é um homem perdido!” concluiu ele. 
   Estavam os Epantchín se preparando a fim de partir antes do verão, quando uma circunstância de todo inesperada sobreveio, mudando-lhes os planos. E o passeio foi adiado, outra vez, com grande satisfação para o general e respectiva esposa.
   Apareceu em Petersburgo. vindo de Moscou, um certo Príncipe Chtch... homem muito conhecido; e justamente muito considerado por suas excelentes qualidades. Tratava-se de um desses homens modernos, pode-se mesmo dizer reformadores, e que sendo honesto, modesto, e desejando de modo inteligente e acertado o bem público, trabalhava deveras. sempre se distinguindo por uma rara e feliz faculdade de saber como trabalhar. Sem cortejar o favor público, evitando a amargura e a verbosidade das lutas partidárias, o príncipe tinha uma lúcida compreensão da sua época e respectiva evolução, muito embora não se considerando um chefe. Estivera no serviço imperial. Fora, em seguida, membro ativo de um Zémstvo.
   Filiara-se, como correspondente, a diversas sociedades culturais. Colaborando com um afamado perito, tinha reunido fatos e observações que o levaram a melhorar em muito o plano de uma nova linha de estrada de ferro de grande importância. Andava pelos trinta e cinco anos de idade. Era homem “da mais alta sociedade” e possuía, além de tudo, uma “boa, sólida e notória fortuna”, segundo as palavras do General Epantchín que, por acaso, tivera negócios com ele relativos a certos empreendimentos de monta. Conhecera-o em casa do conde, que era o diretor do seu departamento de trabalho oficial.
   Interessava-se o Príncipe Chtch... pelos homens práticos da Rússia, e nunca desdenhara a sociedade deles. E aconteceu ser introduzido na família Epantchín, tendo Adelaída Ivánovna, a segunda das irmãs, lhe causado considerável impressão. Pediu-a, no fim do inverno. Adelaída o apreciava deveras; Lizavéta Prokófievna, idem. O General Epantchín ficou radiante. O passeio ao estrangeiro foi naturalmente transferido, e o casamento marcado para a primavera.
   Isso não impediria que a viagem se realizasse lá pelos meados do verão, apenas como uma breve visita de um mês ou dois, a título de consolo para a mãe e para as duas filhas que ficavam; consolo pela perda de Adelaída. 
   Mas aconteceu logo algo de novo. 
   Nos fins da primavera (o casamento de Adelaída fora adiado para o meio do verão), o Príncipe Chtch... apresentou aos Epantchín certo membro de sua família, muito íntimo seu, embora parente afastado. Tratava-se de Evguénii Pávlovitch R., jovem de vinte e oito anos, ajudante-de- campo imperial, muito bem-parecido e pertencente a grande e importante família. Era talentoso, brilhante, “moderno”, “de alta educação” e, também, quase fabulosamente rico. Principalmente com este último ponto era o General Epantchín muito cuidadoso sempre. 
   Tomou suas informações. “Parece que a coisa é certa, embora. naturalmente, a gente se deva sempre certificar”. Esse jovem e futuroso ajudante-de-ordens viera altamente recomendado de Moscou, pela Princesa Bielokónskaia. Mas corria a seu respeito um rumor algo inquietador: falava-se em liaisons, em conquistas, em corações esmagados. Vendo Agláia, deu em se tornar assíduo em suas visitas aos Epantchín. Nada ainda fora dito, nenhuma suspeita. por menor, se esboçara, e já aos pais pareceu ficar de lado, outra vez, a ida ao estrangeiro, pelo verão. 
   Só Agláia era de opinião diversa.
   Tudo isso aconteceu justamente antes da segunda entrada do nosso herói na cena desta história. A esse tempo, a julgar pelas aparências, tinha o pobre Príncipe Míchkin sido completamente esquecido em Petersburgo. E se, inopinadamente surgisse entre aqueles que o tinham conhecido, pareceria ter caído do céu. Devemos aqui acrescentar outro fato, para assim completarmos a nossa introdução.
   Depois da partida do príncipe, continuara Kólia Ívolguin a passar o seu tempo como antes – quer dizer, ia à escola, visitava o seu amigo Ippolít, tratava do pai, ajudava a irmã em casa, levava recados. Mas todos os pensionistas se tinham ido. Ferdichtchénko fora-se três dias depois da noitada em casa de Nastássia Filíppovna, sem deixar traço, de maneira que não se sabia dele absolutamente. Dizia-se, aliás, em fontes desautorizadas, que dera em beber.
   Com a ida do príncipe para Moscou os hóspedes acabaram. Mais tarde. com o casamento de Vária, Nina Aleksándrovna e Gánia mudaram-se para a casa de Ptítsin na outra ponta da cidade. Quanto ao General Ívolguin, um acontecimento surpreendente lhe sucedera mais ou menos nessa ocasião: fora dar com os costados na prisão dos devedores por obra e graça da sua amiga, a viúva do capitão, ligando-se o fato a diversas promissórias por ele assinadas no valor total de dois mil rublos. Causara-lhe isso não pequena surpresa; o pobre general fora “indubitavelmente vítima de sua incrível fé na generosidade do coração humano, fiando-se de um modo genérico. Tendo adotado o suave hábito de assinar promissórias e letras, nunca lhe passara pela cabeça que isso implicasse em qualquer compromisso. Sempre supusera que tudo estava muito bem. Mas aconteceu que tudo ficou foi muito mal. “Depois de uma coisa destas, como acreditar na humanidade? De que modo mostrar alguém a sua generosa confiança?”, deu ele em exclamar, amargamente, amesendado entre os seus novos amigos, em casa de Tarássov, em frente de uma garrafa de vinho, contando-lhes anedotas sobre o cerco de Kars e do soldado que ressuscitou.
   Assim a coisa lhe assentou de maneira capital. Ptítsin e Vária foram de opinião que nunca estivera em lugar mais próprio; Gánia concordara inteiramente com eles. Apenas a pobre Nina Aleksándrovna derramou lágrimas amargas, em segredo (do que em casa todo o mundo se admirou, deveras) e, doente como já estava, arrastava-se, muitas vezes, como podia, para visitar o marido.
   Mas desde o tempo da “adversidade do general”, como Kólia dizia - e, mais exatamente, desde o tempo do casamento da irmã, Kólia se desvencilhara deles e as coisas deram em se passar de tal modo que muito raramente dormia em casa, só sabendo, os seus, que fizera um número sem conta de novas relações. Ainda assim se tornou bastante conhecido na prisão dos devedores. Nina Aleksándrovna não ia até lá sem ele, e em casa, agora, já não o aborreciam com questões. Vária, que fora antes tão severa, já não o enfezava com a menor indagação que fosse a respeito da sua vagabundagem; e, com grande surpresa para o restante da família. Gánia, a despeito da sua hipocondria, dera habitualmente em conversar e em se comportar de maneira totalmente amistosa para com o irmão. E isso era algo inteiramente novo, pois Gánia, com vinte e sete anos de idade, jamais tomara o menor interesse, como amigo, pelo rapazinho de quinze anos. Tratara-o sempre de modo rude e exigia que a família fosse severa para com ele, estando sempre pronto a puxar-lhe as orelhas, o que levava Kólia “para lá dos mais extremos limites do sofrimento humano”. Podia-se com isso concluir que Kólia se tornara positivamente indispensável ao irmão.
   Verdade é que o impressionara o fato de Gánia haver devolvido o dinheiro: só por tal gesto estava pronto a perdoar-lhe muita e muita coisa. Foi só três meses depois da partida do príncipe, que a família Ívolguin se deu conta de que Kólia inesperadamente entretinha relações com os Epantchín, sendo muito bem recebido pelas moças. Vária soube logo disso, não devendo ele à irmã esse conhecimento, tendo-os procurado por vontade e inclinação sua. Pouco a pouco os Epantchín foram gostando dele. Logo no começo. Lizavéta Prokófievna não o tolerou; mas depois começou a levá-lo a sério, “por causa da sua franqueza e porque não era adulador”. Que Kólia não era adulador, aí estava uma asserção mais que verídica.
    Armara as coisas de maneira a ser bastante independente e a se pôr em pé de igualdade perante elas, chegando, às vezes, a ler livros e jornais para a generala ouvir. A sua prestimosidade estava sempre à prova. Uma ou duas vezes, no entanto, teve brigas com Lizavéta Prokófievna, ousando chamá-la de déspota e jurando que não tornaria a pisar em casa dela. A primeira vez a briga começou por causa da questão “mulher”, já a segunda tendo sido por causa de divergência quanto ao melhor tempo do ano para apanhar verdelhões. E, por mais esquisito que pareça, dois dias depois da briga a Sra. Epantchina mandou- lhe um bilhete, por um criado, pedindo-lhe que voltasse. Kólia não embirrou e foi imediatamente vê-la. Somente Agláia não simpatizava com ele, conservando-o a distância. E no entanto era a Agláia que ele estava destinado a surpreender: o fato foi que, na Páscoa, ele aproveitou uma oportunidade de estarem ambos sós para lhe entregar uma carta, apenas lhe dizendo que lhe fora recomendado entregar-lhe quando estivesse sozinha. Agláia encarou de modo ameaçador o “pequeno atrevido”, mas Kólia se retirou sem aguardar mais nada. Ela abriu a carta e leu:

Outrora me honrastes com a vossa confiança. Talvez, agora, já me tenhais esquecido. Todavia vos estou escrevendo!... Como pode ser isso? Não sei. Mas sinto um irreprimível desejo de vos relembrar, e a vós tão só, que ainda existo. Quantas vezes não tenho eu tido saudades das três. Mas, de todas, era só a vós que eu via. Preciso de vós - preciso muitíssimo. A meu respeito, que hei de eu dizer? Nada há a dizer. E nem é disso que se trata. O meu maior desejo é que sejais feliz. Sois feliz? Eis tudo quanto eu vos queria dizer. Vosso irmão, Príncipe L. Míchkin.
   
   Lendo essa carta tão curta quanto incoerente, Agláia corou e ficou pensativa. Seria difícil dizer no que estava ela pensando. Entre outras coisas perguntou a si mesma se a deveria mostrar a alguém. Sentiu que isso a envergonharia. E acabou trancando a carta na gaveta da sua mesa, fazendo-o com um sorriso irônico. Mas no dia seguinte a tirou de lá e a enfiou dentro de um volume grosso e pesadão (sempre fazia isso com os seus papéis de maneira a poder encontrá-los com facilidade quando quisesse). E nem bem uma semana depois, notou que livro era esse. Era Dom Quixote de la Mancha. Agláia desandou a rir, sem saber por quê. Nunca se ficou sabendo se chegou a mostrar a carta às irmãs.
   Mas mesmo quando estava lendo a carta ficara perplexa com uma coisa: como podia o príncipe ter escolhido aquele criançola presumido e confiado, como seu correspondente, e talvez até único, em Petersburgo? Pôs-se então, com um cuidado exagerado, a reexaminar Kólia. Mas, apesar de ser ele facilmente suscetível, desta vez nem chegou a perceber essa análise. Apressadamente, e de maneira seca, explicou que apesar de ter dado o seu endereço permanente ao príncipe quando este deixara Petersburgo, tendo-se- lhe oferecido ficar às ordens para o que pudesse fazer, a entrega dessa carta fora a primeira incumbência recebida da parte dele; e, como reforço do que estava dizendo, mostrou o recado que o príncipe lhe dirigira. Agláia não fez a menor cerimônia e leu. A carta para Kólia dizia isto:

Caro Kólia, queira ter a bondade de entregar a cartaselada aqui junta a Agláia Ivánovna! 
Espero que V. esteja bem. 
Seu dedicado, Príncipe L. Míchkin 

- É ridículo confiar em um fedelho como você! - disse Agláia arrogantemente a Kólia, tornando a lhe entregar a carta que acabara de ler; e passou por ele, desdenhosamente, indo embora para os seus aposentos.

   Isso ultrapassava o que Kólia podia suportar, pois chegara a pedir a Gánia, sem lhe dizer para que, que lhe emprestasse (e para essa ocasião) o seu novo cachecol verde. Ficou amargamente ofendido. 

continua página 169..
_____________________

Leia também:
Primeira Parte
O Idiota: Primeira Parte (1a.) Em dada manhã...
Segunda Parte
O Idiota: Segunda Parte (1b) - Para encerrar tais rumores
O Idiota: Segunda Parte (2a) - Estava-se nos primeiros dias

quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Carinhoso

Pixinguinha

Carinhoso




Meu coração, não sei por quê
Bate feliz quando te vê
E os meus olhos ficam sorrindo
E pelas ruas vão te seguindo
Mas mesmo assim foges de mim

Ah, se tu soubesses
Como sou tão carinhoso
E o muito, muito que te quero
E como é sincero o meu amor
Eu sei que tu não fugirias mais de mim

Vem, vem, vem, vem
Vem sentir o calor dos lábios meus
À procura dos teus
Vem matar esta paixão
Que me devora o coração
E só assim então serei feliz
Bem feliz
Meu coração

Composição: Pixinguinha e João de Barros


CARINHOSO 
Por que tanta gente gosta?






TV Cultura: Programa Ensaio | Pixinguinha
Programa em homenagem ao compositor Pixinguinha.





Cenas do filme 'Saravah'
Pixinguinha, João da Baiana e Baden Powell em 1969

O Brasil tem cara própria, basta assumi-la. E é linda. Um contraponto às modas massificadas vindas de fora, exemplos supremos da decadência de alguns países ricos apenas economicamente, que nos impingem a parte empobrecida e neurotizada de sua cultura, empobrecida por conflitos e impasses de suas sociedades super-desenvolvidas, um lamentável super-desenvolvimento que se alimenta de vidas humanas, e que é insaciável porque suga o espírito dos sobreviventes. O reflexo é a descaracterização da música e cultura genuinamente brasileiras.





PIXINGUINHA 
O Gênio Brasileiro da nossa música.
1897 - 1973
Simplesmente o maior e melhor compositor brasileiro, um gênio muito importante para o nosso Brasil.





A História Por Trás da Canção Rosa 
de Pixinguinha





ORLANDO SILVA - MUSICAL (Programa na TV)





ROSA com ORLANDO SILVA 
edição MOACIR SILVEIRA




Tu és
Divina e graciosa, estátua majestosa
Do amor, por Deus esculturada
E formada com ardor
Da alma, da mais linda flor, de mais ativo olor
Que na vida é preferida pelo beija-flor

Se Deus
Me fora tão clemente aqui neste ambiente
De luz, formada numa tela, deslumbrante e bela
O teu coração junto ao meu, lanceado
Pregado e crucificado sobre a rósea cruz
Do arfante peito teu

Tu és
A forma ideal, estátua magistral, ó alma perenal
Do meu primeiro amor, sublime amor
Tu és
De Deus, a soberana flor
Tu és
De Deus, a criação, que em todo coração sepultas o amor
O riso, a fé, a dor, em sândalos olentes, cheios de sabor
Em vozes tão dolentes, como um sonho em flor

És láctea estrela
És mãe da realeza
És tudo, enfim, que tem de belo
Em todo resplendor da santa natureza

Perdão
Se ouso confessar que eu hei de sempre amar-te
Ó flor, meu peito não resiste
Ó meu Deus, quanto é triste
A incerteza de um amor que mais me faz penar e em esperar
Em conduzir-te um dia ao pé do altar

Jurar
Aos pés do Onipotente, em prece comovente
De dor, e receber a unção de tua gratidão
Depois de remir meus desejos em nuvens de beijos
Hei de te envolver até meu padecer de todo fenecer

Composição: Pixinguinha e Otávio de Souza



Uma das músicas mais belas da música brasileira! 
- Rosa (Pixinguinha e Otávio de Souza) | Choro das 3





Caminhos da Reportagem 
| Pixinguinha ao Mestre com Carinho




D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L3 Capitulo XXVIII(a): Que trata da nova e agradável aventura

D. Quixote de la Mancha

Miguel de Cervantes

Vol 1

O Engenhoso Fidalgo 
D. Quixote de la Mancha 
Miguel de Cervantes


PRIMEIRA PARTE

LIVRO QUARTO

CAPÍTULO XXVIIi

Que trata da nova e agradável aventura sucedida na mesma serra ao cura e ao barbeiro.


      DITOSOS e felicíssimos tempos, em que ao mundo veio o tão audaz cavaleiro D. Quixote de la Mancha pela sua mui honrada determinação de restituir ao mundo a já quase esquecida ordem da cavalaria andante! Saboreamos nós agora, nesta idade tão falta de passatempos alegres, a doçura de estarmos lendo a sua verdadeira história e os contos que nela se travam como episódios; estes em boa parte não são menos agradáveis, artificiosos e verdadeiros que a história mesma.
   Conta ela, prosseguindo o seu tortuoso fio, que tanto como o cura começava de preparar-se para consolar a Cardênio, o atalhou uma voz, que lhe chegou aos ouvidos, e que em tons magoados se lastimava assim:

— Ai, Deus! será possível ter eu já achado lugar, em que sepulte a ocultas este corpo, que tão sobreposse vou arrastando? espero que sim, se me não mente a soledade que estas serras me afiançam. Ai desditosa! quão mais agradável companhia não farão estas penhas e moitas ao meu sentimento, pois me proporcionarão comunicar estas queixas com o céu, e não a criaturas humanas! Na terra já não há com quem se possa tomar conselho nas incertezas, alívio nos queixumes, nem remédio na desgraça.

   Tudo isto ouviram distintamente o cura e os mais que ali eram; e por lhes parecer que perto dali estava a pessoa que tais queixas proferia, se levantaram para ir ter com ela. Não tinham andado vinte passos, quando de trás de um penhasco viram sentado ao pé de um freixo um mancebo entrajado à lavradora, ao qual, por estar com a cabeça baixa, a lavar os pés num regatinho, não puderam imediatamente divisar o rosto. Aproximaram-se-lhe tão calados, que não foram dele pressentidos, de atento que estava na sua lavagem dos pés; e tais eram eles, que não pareciam senão dois pedaços de puro cristal entre as outras pedras da corrente. Maravilhou-os a alvura e lindeza daquelas plantas, que não pareciam feitas a pisar torrões, nem a seguir arados e bois, como inculcava o vestuário do dono. Assim, vendo que não tinham sido por ora sentidos, o cura, que ia adiante, fez sinal aos outros dois para que se agachassem e escondessem por trás de uns pedaços de penha que ali havia. Assim o executaram todos, reparando com atenção para o que o moço fazia.
   Trazia este um roupãozinho pardo de duas abas, muito bem cingido ao corpo com uma toalha branca. Trazia uns calções e polainas de pano pardo, e na cabeça uma gorra também parda. As polainas tinha-as levantadas até meia perna, que na alvura alembrava alabastro.
   Acabados de lavar os formosos pés, enxugou-os com um lenço da cabeça, o qual tirou da gorra; e, quando já ia para retirar-se, ergueu o rosto; com o que tiveram lugar os que o estavam olhando de descobrir uma formosura incomparável, e tal, que Cardênio disse baixinho para o cura:

— Esta, como não é Lucinda, não é criatura humana; deve ser por força divindade.

   O moço tirou a gorra e, sacudindo a cabeça para uma e outra parte, começou a espalhar os cabelos, que bem puderam aos do sol fazer inveja. Conheceram então que o suposto rústico não era senão mulher, e mimosíssima; pelo menos, a mais formosa que ambos eles com seus olhos jamais tinham visto. Outro tanto encareceria Cardênio, se não conhecera Lucinda, cuja lindeza, como depois declarou, era a única para se comparar àquela. Os cabelos compridos e louros não só lhe cobriam as costas, mas toda em derredor a velavam; tanto, que, afora os pés, nada de todo o corpo lhe aparecia. Para os alisar serviram de pente mãos, que em brancura ainda aos pés se avantajavam.
   Todo aquele conjunto acrescentava ainda nos três espectadores a admiração e o desejo de saberem quem fosse. Por isso se deliberaram a aparecer.
   Ao movimento que fizeram para se erguer, alçou a gentil moça a cabeça, e arredando dos olhos os cabelos com as mãos ambas, procurou ver donde o ruído provinha. Tanto que os descobriu pôs-se em pé; e, sem se deter a calcar-se, ou recolher os cabelos, apanhou muito à pressa um volume como de roupa, que junto lhe estava, e quis pôr-se em fugida, cheia de perturbação e sobressalto. Mas seis passos não teria ainda dado, quando, não lhe podendo mais os delicados pés com a aspereza das pedras, se deixou cair. Correram para ela os três, sendo o cura o primeiro que lhe falou, dizendo:

— Detende-vos, senhora, quem quer que sejais. Os que vedes aqui só ambicionam servir-vos. Não há porque nos fujais; nem vós podeis correr assim descalça, nem nós outros consentir-vo-lo.

   A nada disto ela respondia palavra, a poder de atônita e confusa. 
   Chegados pois a ela, o cura, travando-lhe da mão, prosseguiu:

— Os vossos cabelos, senhora, bem estão desmentindo o vosso trajo. De pouco tomo não devem ser as causas de se ter a vossa lindeza disfarçado em vestuário tão indigno, e em tão funda soledade como esta. Dita foi que vos achássemos; se não para darmos remédio aos vossos males, ao menos para vos ajudar com algum bom conselho. Não há desventura tão cansada, nem tão posta no cabo, enquanto não degenera em morte, que deva esquivar-se a um alvitre oferecido com bom ânimo. Portanto, senhora, ou senhor, ou o que mais quiserdes ser, tornai a vós do sobressalto que a nossa presença vos causou, e contai-me o vosso caso, seja qual for. Todos e cada um de nós vos acompanharemos, ao menos no sentimento dos vossos trabalhos.

   Enquanto o cura assim discorria, estava ela como fora de si, olhando para todos sem boquejar. Dava por longe a lembrar um sáfaro aldeão, a quem de repente se mostram coisas raras, que ele nunca viu; mas, recomeçando o cura mais razões ao mesmo propósito encaminhadas, ela, dando um profundo suspiro, quebrou o silêncio, e disse: 

— Uma vez que o solitário destas serras não bastou para me esconder, e estes meus cabelos desmentem enganos, por demais fora fingir eu por mais tempo o que vós só por cortesia mostraríeis acreditar. Isto suposto, agradeço-vos, senhores, os vossos oferecimentos; tanto, que por eles me julgo obrigada a satisfazer-vos em tudo que me pedis, se bem que temo que a narração das minhas desditas vos cause, além da compaixão, desconsolo não pequeno, porque afinal nem atinareis remédio para o que padeço, nem consolações que me suavizem. Apesar de tudo isto, e para que lá por dentro dos vossos juízos não ande estremecida a ideia da minha honra, por saberdes já que sou mulher, moça, sozinha, e neste trajo, coisas todas (e bastava qualquer delas) para arrasar má reputação, devo enfim dizer-vos o que bem quisera calar-vos, se me fora possível. 

   Tudo isto disse sem se interromper, com fala tão pronta e voz tão suave, que não menos maravilhou por discreta, do que já maravilhara por formosa. Iam reiterar prometimentos e rogativas para que satisfizesse o prometido, quando ela, sem se fazer mais rogar, calçando-se com toda a honestidade, e apanhando as madeixas, se assentou numa pedra, ficando os três em derredor; e, forcejando para reprimir lágrimas, que aos olhos lhe acudiam, com voz serena a sonora começou desta maneira a sua história:

 — Há nesta Andaluzia um lugar, donde toma nome um Duque, dos que chamam Grandes de Espanha. Tem ele dois filhos; o mais velho, herdeiro do seu estado, e dos seus bons costumes também (segundo parece), e o mais novo, herdeiro não sei de que, se não for das traições de Belido, e dos embustes de Galalão. Deste Duque são vassalos meus pais, humildes de geração, porém tão ricos dos bens da fortuna, que, se o nascimento lhos igualasse, nem eles teriam mais que desejar, nem eu temeria nunca ver-me na desgraça em que me vejo. Talvez que a minha pouca ventura só nascesse da que também lhes faltou a eles por não nascerem ilustres. Verdade é que não são tão humildes, que se devam envergonhar do seu estado, nem também tão altos, que me tirem a cisma em que estou de ser a minha desgraça efeito da sua humildade. Em suma: são lavradores, gente chã sem nódoas na geração, e (como se costuma dizer) cristãos-velhos e rançosos, mas não tão rançosos, que a sua riqueza e magnífico trato lhes não vá a pouco e pouco adquirindo nome de fidalgos e cavalheiros, ainda que a maior riqueza e nobreza de que eles se prezavam era terem-me por filha. Por não terem outro nem outra que deles herdasse, como porque eram pais, e pais extremosíssimos, era eu uma das mais regaladas filhas que jamais houve. Eu o espelho em que se reviam, o bordão da sua velhice e o alvo de todas as suas ambições, que se levantavam até ao céu. Dessas ambições, por tão santas que eram, não discrepavam as minhas nem um til; tão senhora era eu dos seus corações, como dos seus haveres; por mim se recebiam e despediam os criados; a conta das sementeiras e colheitas corria toda por minha mão; das moendas de azeite, das lagaradas de vinho, do gado maior e menor, dos colmeais, finalmente de tudo aquilo que um lavrador opulento, como meu pai, deve ter, e tem, a administração fazia-a eu. Era a mordoma e senhora, com tanto desvelo meu, e tão a seu contento, como não posso encarecer. Os pedaços que no dia me sobravam destes lavores, depois de ter dado a devida atenção aos maiorais ou capatazes, e a outros jornaleiros, entretinha-os em exercícios, que às donzelas são tão lícitos como necessários, tais como os de agulha e de almofada, e a roca muitas vezes; e quando, para espairecer, interrompia estes exercícios, recorria ao entretenimento de ler algum livro devoto, ou a tocar uma harpa, porque a experiência me tinha ensinado ser a música uma suavizadora dos ânimos alterados e um alívio para os trabalhos do espírito. Tal era a vida que eu levava em casa de meus pais. Se tão por miúdo a contei, não foi por ostentação, nem por alardo de riquezas, mas só para que se reconheça quanto sem culpa caí daquele bom estado neste em que hoje me vejo. É o caso que, passando eu a vida em tantas ocupações, e num tal recato, que se podia comparar ao de um mosteiro, sem ser vista (supunha eu) de pessoa alguma, afora os criados de casa (porque os dias em que ia à missa era tão de manhãzinha, tão acompanhada de minha mãe e de criadas, e toda eu tão coberta e recatada, que apenas via por onde punha os pés); apesar de tudo aquilo, os olhos do amor, ou da ociosidade, por melhor dizer, que são mais que olhos de lince, descobriram-me entre as outras cortejadas de D. Fernando, que assim se chama o filho mais novo do Duque de quem já vos falei.

   Ao nome, apenas proferido, de D. Fernando, mudou-se a Cardênio a cor do rosto, e começou a suar, com tão grande alteração, que, reparando nele o cura e o barbeiro, temeram ser-lhe chegado algum daqueles ataques de loucura, de que já tinham notícia. Mas Cardênio o que só fez foi continuar a tressuar, porém quieto, com os olhos fitos na lavradora, imaginando quem ela era. 
   Esta, sem reparar, prosseguiu a sua história, dizendo: 

— Apenas me tinha avistado, quando (segundo ele depois contou) ficou tão possuído de amores meus, quanto as suas obras o deram a entender. Mas, para abreviar o sem fim das minhas desditas, quero passar em silêncio as diligências que D. Fernando fez para me declarar a sua vontade. Subornou toda a gente da minha casa; deu e ofereceu dádivas e mercês a meus parentes; todos os dias eram de festa e regozijo na minha rua; de noite ninguém podia pegar no sono, com as músicas; os bilhetes que me vinham à mão, sem eu saber como, eram infinitos, cheios de namoradas frases e oferecimentos, com menos letras que promessas e juras. Tudo aquilo não só me não abrandava, mas até me endurecia de maneira, como se proviera de inimigo mortal. Tudo que ele fazia para me reduzir à sua vontade redundava-lhe sempre no efeito contrário; não era por me desagradar a gentileza de D. Fernando, nem por achar demasiadas as suas finezas, porque em verdade me dava não sei que contentamento ver-me tão querida e estimada de cavaleiro tão principal; e não me descontentava do que ele escrevia em meu louvor (que neste particular, por feias que sejamos, tenho para mim que todas as mulheres nos lisonjeamos quando nos ouvimos celebrar de bonitas). A tudo porém resistia a minha honestidade e os conselhos incessantes de meus pais, já então conhecedores e certos das pretensões de D. Fernando; que admira se ele próprio já se não importava de que todo o mundo lhes soubesse! Repetiam-me meus pais que a honra deles permanecia confiada toda na minha virtude, e que me lembrasse da distância que ia de mim a D. Fernando, prova clara de que os seus desejos, por mais que os ele disfarçasse, mais se encaminhavam ao seu gosto que a meu proveito, e que, se eu quisesse pôr de algum modo estorvo, que o descorçoasse daquela imperdoável teima, eles me casariam sem dilação com quem eu mais levasse em gosto, ou fosse do nosso lugar, ou dos circunvizinhos, que para tudo lhes davam confiança o seu cabedal e a minha fama. Com estas promessas e com a verdade que as acompanhava, me ia eu fortalecendo para resistir; nunca jamais respondi a D. Fernando palavra, que lhe mostrasse, nem por sombras, esperança de me alcançar. Todos estes recatos meus, que a ele se deviam figurar desdéns, creio que ainda avivaram mais o seu apetite desonesto, que outra coisa não era o afeto que me ele encarecia. A ter sido verdadeiro, não vos estaria eu agora contando isto, nem haveria de que me queixar. Soube afinal D. Fernando que meus pais andavam em diligências de me casar, para lhe tirarem a ele toda a esperança de me possuir, ou, pelo menos, para eu ter mais quem me guardasse. Que faria com tal novidade D. Fernando? Ides sabê-lo. Uma noite, estando eu no meu aposento com a companhia única de uma donzela do meu serviço, com as portas bem fechadas para acautelar qualquer perigo, não sei nem imagino como, no meio destes resguardos, e na solidão de tamanho encerro, vejo-o diante de mim. Tal foi a minha perturbação, que me fugiu a vista e a fala; não podia gritar por socorro, nem ele, creio eu, me consentiria. Chegou-se logo a mim, e, tomando-me entre os braços, (como havia eu de me defender na turbação daquele repente?) começou a dizer-me tais coisas, que não sei como é possível que se inventem; com as lágrimas e suspiros do traidor se acreditavam os seus dizeres. Eu pobrezinha! eu entre os meus desamparada, inexperiente de semelhantes apuros, comecei, não sei como, a ter por sinceras todas aquelas falsidades, mas não tanto, ainda assim, que me abalassem a compadecer-me repreensivelmente de tantos extremos de lágrimas e gemidos. Passado o primeiro sobressalto, recobrei algum tanto o espírito amortecido, e, com mais ânimo do que eu própria pensei que tivesse, lhe disse: “Se estivera, como estou, senhor, nos vossos braços, nos de um leão feroz, e me certificassem de que lhes escaparia com dizer ou fazer fosse o que fosse em prejuízo da minha honestidade, tão impossível me fora isso, como me foi impossível deixar de me portar como me portei. Tendes o meu corpo cativo entre os vossos braços, e eu tenho a minha alma segura com os meus bons propósitos; são eles tão outros dos vossos, como vereis, se, teimando, quiserdes violentar-me. Sou vossa vassala, mas não vossa escrava; a nobreza do vosso sangue não tem nem deve ter licença para desonrar a humildade do meu. Sou vilã e lavradora, mas nem por isso me aprecio em menos do que vós vos estimais por senhor e cavalheiro. Comigo não hão de aproveitar as vossas forças, nem valer as vossas opulências, nem as vossas palavras hão de lograr seduzir-me, nem suspiros e lágrimas enternecer-me. Se alguma destas coisas que digo a visse num esposo escolhido por meus pais, à sua vontade seria dócil a minha, como ficava com honra, ainda que sem gosto, de grado entregaria o que vós, senhor, agora com tanto esforço ambicionais. Digo tudo isto, porque não há cuidar que de mim alcance coisa alguma quem não for meu legítimo esposo.” — “Se nisso está a tua dificuldade, belíssima Dorotéia” — (assim se chama esta desditada) — disse o desleal cavaleiro — “desde aqui te dou com esta mão a certeza de o ser teu; tomo por testemunhas os céus, a que nada se esconde, e esta imagem de Nossa Senhora que tens aqui.”

continua página 170...

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D. Quixote - Cervantes Vol 1 - Ao Livro de D. Quixote de la Mancha
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L1 Capitulo I
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D. QUIXOTE 
VOL. I 
Cervantes 
D. Quixote de La Mancha — Primeira Parte 
(1605) 
Miguel de Cervantes [Saavedra] 
(1547-1616)
Tradução: 
Francisco Lopes de Azevedo Velho de Fonseca Barbosa Pinheiro Pereira e Sá Coelho (1809- 1876) Conde de Azevedo 
Antônio Feliciano de Castilho (1800-1875) 
Visconde de Castilho
Edição 
eBooksBrasil www.ebooksbrasil.com 
Versão para eBook 
eBooksBrasil.com 
Fonte Digital 
Digitalização da edição em papel de Clássicos Jackson, Vol. VIII Inclusões das partes faltantes confrontadas com a edição em espanhol da eBooksBrasil.com 
(1999, 2005)
Copyright 
Autor: 1605, 2005 Miguel de Cervantes 
Tradução Francisco Lopes de Azevedo Velho de Fonseca Barbosa Pinheiro Pereira e Sá Coelho 
António Feliciano de Castilho 
Capa: Honoré-Victorin Daumier (1808-1879) 
Retrato de Cervantes: Eduardo Balaca (1840-1914) 
Edição: 2005 eBooksBrasil.com