sexta-feira, 30 de junho de 2017

obrigado, Gil... a fé num custuma faiá

Gilberto Gil




Quem sabe eu sinta saudade
Como em qualquer despedida

Que nada, minha porção mulher que até então se resguardara
É a porção melhor que trago em mim agora
É o que me faz viver





Não tenho medo da morte





Não Tenho Medo da Morte



Não tenho medo da morte
Mas sim medo de morrer
Qual seria a diferença
Você há de perguntar
É que a morte já é depois
Que eu deixar de respirar
Morrer ainda é aqui
Na vida, no sol, no ar
Ainda pode haver dor
Ou vontade de mijar

A morte já é depois
Já não haverá ninguém
Como eu aqui agora
Pensando sobre o além
Já não haverá o além
O além já será então
Não terei pé nem cabeça
Nem figado, nem pulmão
Como poderei ter medo
Se não terei coração?

Não tenho medo da morte
Mas medo de morrer, sim
A morte e depois de mim
Mas quem vai morrer sou eu
O derradeiro ato meu
E eu terei de estar presente
Assim como um presidente
Dando posse ao sucessor
Terei que morrer vivendo
Sabendo que já me vou

Então nesse instante sim
Sofrerei quem sabe um choque
Um piripaque, ou um baque
Um calafrio ou um toque
Coisas naturais da vida
Como comer, caminhar
Morrer de morte matada
Morrer de morte morrida
Quem sabe eu sinta saudade
Como em qualquer despedida.



Composição: Gilberto Gil




 
Se eu quiser falar com Deus






Se Eu Quiser Falar Com Deus



Se eu quiser falar com Deus
Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz
Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós
Dos sapatos, da gravata
Dos desejos, dos receios
Tenho que esquecer a data
Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus...

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aceitar a dor
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou
Tenho que virar um cão
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos do meu sonho
Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração...

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que me aventurar
Tenho que subir aos céus
Sem cordas pra segurar
Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido, pela estrada
Que ao findar vai dar em nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Do que eu pensava encontrar

Se eu quiser falar com Deus


Composição: Gilberto Gil



 
Andar com fé





Lamento sertanejo
Gilberto Gil e Dominguinhos





Domingo no Parque
Festival Record 1967






Domingo no Parque


O rei da brincadeira
Ê, José!
O rei da confusão
Ê, João!
Um trabalhava na feira
Ê, José!
Outro na construção
Ê, João!...

A semana passada
No fim da semana
João resolveu não brigar
No domingo de tarde
Saiu apressado
E não foi prá Ribeira jogar
Capoeira!
Não foi prá lá
Pra Ribeira, foi namorar...

O José como sempre
No fim da semana
Guardou a barraca e sumiu
Foi fazer no domingo
Um passeio no parque
Lá perto da Boca do Rio...

Foi no parque
Que ele avistou
Juliana
Foi que ele viu
Foi que ele viu Juliana na roda com João
Uma rosa e um sorvete na mão
Juliana seu sonho, uma ilusão
Juliana e o amigo João...

O espinho da rosa feriu Zé
(Feriu Zé!) (Feriu Zé!)
E o sorvete gelou seu coração
O sorvete e a rosa
Ô, José!
A rosa e o sorvete
Ô, José!
Foi dançando no peito
Ô, José!
Do José brincalhão
Ô, José!...

O sorvete e a rosa
Ô, José!
A rosa e o sorvete
Ô, José!
Oi girando na mente
Ô, José!
Do José brincalhão
Ô, José!...

Juliana girando
Oi girando!
Oi, na roda gigante
Oi, girando!
Oi, na roda gigante
Oi, girando!
O amigo João (João)...

O sorvete é morango
É vermelho!
Oi, girando e a rosa
É vermelha!
Oi girando, girando
É vermelha!
Oi, girando, girando...

Olha a faca! (Olha a faca!)
Olha o sangue na mão
Ê, José!
Juliana no chão
Ê, José!
Outro corpo caído
Ê, José!
Seu amigo João
Ê, José!...

Amanhã não tem feira
Ê, José!
Não tem mais construção
Ê, João!
Não tem mais brincadeira
Ê, José!
Não tem mais confusão
Ê, João!...

Êh! Êh! Êh Êh Êh Êh!
Êh! Êh! Êh Êh Êh Êh!
Êh! Êh! Êh Êh Êh Êh!
Êh! Êh! Êh Êh Êh Êh!
Êh! Êh! Êh Êh Êh Êh!...




Composição: Gilberto Gil




Gil fala sobre Domingo no Parque





"Super Homem - A Canção"





Super-Homem, a Canção



Um dia vivi a ilusão de que ser homem bastaria
Que o mundo masculino tudo me daria
Do que eu quisesse ter

Que nada, minha porção mulher que até então se resguardara
É a porção melhor que trago em mim agora
É o que me faz viver

Quem dera pudesse todo homem compreender, ó mãe, quem dera
Ser o verão no apogeu da primavera
E só por ela ser

Quem sabe o super-homem venha nos restituir a glória
Mudando como um deus o curso da história
Por causa da mulher

Quem sabe o super-homem venha nos restituir a glória
Mudando como um deus o curso da história
Por causa da mulher



Composição: Gilberto Gil




quinta-feira, 29 de junho de 2017

34. O Livro dos Abraços - Chorar - Eduardo Galeano

Eduardo Galeano


34. O Livro dos Abraços




Chorar 

Foi na selva, na Amazônia equatoriana. Os índios shuar estavam chorando a avó moribunda. Choravam sentados, na margem de sua agonia. Uma pessoa, vinda de outros mundos, perguntou: — Por que choram na frente dela, se ela ainda está viva? E os que choravam responderam: — Para que ela saiba que gostamos muito dela.




Celebração do riso


José Luis Castro, o carpinteiro do bairro, tem a mão muito boa. A madeira, que sabe que ele a ama, deixa-se fazer. O pai de José Luis tinha vindo lá de uma aldeia de Pontevedra para o Rio da Prata. O filho recorda o pai, o rosto aceso debaixo do chapéu panamá, a gravata de seda no colarinho do pijama azul-celeste, e sempre, sempre contando histórias desopilantes. Onde ele estava, lembra o filho, o riso acontecia. De todas as partes vinha gente para rir, quando ele contava, e a multidão se amontoava. Nos velórios era preciso levantar o ataúde, para que todos coubessem — e assim o morto ficava em pé para escutar com o devido respeito aquelas coisas todas, ditas com tanta graça. E de tudo o que José Luis aprendeu de seu pai, isso foi o principal: — O importante é rir — ensinou-lhe o velho —. E rir juntos.




Dizem as paredes/5


Na faculdade de Ciências Econômicas, em Montevidéu: A droga provoca amnésia e outras coisas que esqueci. Em Santiago do Chile, nas margens do rio Mapocho: Bem-aventurados os
bêbados, porque eles verão Deus duas vezes. Em Buenos Aires, no bairro de Flores: Uma namorada sem tetas é, mais que namorada, um amigo. 




O vendedor de risadas


Estou na praia de Malibu, no espigão onde há meio século o detetive Philip Marlowe encontrou um de seus cadáveres. Jack Miles me mostra uma casa linda, lá longe, lá no alto: ali morou o homem que abastecia Hollywood de risadas. Há dez anos, Jack passou uma temporada naquela casa, quando o abastecedor de risadas decidiu ir embora para sempre. A casa estava toda atapetada de risadas. Aquele homem tinha passado a vida recolhendo risadas. Gravador em punho, tinha percorrido os Estados Unidos de cabo a rabo, de alto a baixo, buscando risos, e tinha conseguido reunir a maior coleção do mundo. Tinha registrado a alegria das crianças brincando e o alvorocinho assim meio gasto de quem já viveu muito. Havia risos do norte e do sul, do leste e do oeste. De acordo com o que pedissem, ele podia proporcionar risadas de celebração ou risos de dor ou de pânico, risadas apaixonadas, escalafriantes gargalhadas de espectros e risos de loucos e bêbados e criminosos. Entre suas milhares e milhares de gravações, tinha risos para acreditar e risos para desconfiar, risadas de negros, de mulatos e de brancos, risadas de pobres e de ricos e de remediados.

Vendendo risos, risos para cinema, rádio e televisão, tinha ficado rico. Mas era um homem até que melancólico, e tinha uma mulher que só com uma olhada matava qualquer vontade de rir. Ela e ele foram embora de sua casa da praia de Malibu, e nunca mais voltaram. Foram embora fugindo dos mexicanos, porque na Califórnia existem cada vez mais mexicanos que comem comida apimentada e têm o maldito costume de rir às gargalhadas. Agora eles dois vivem na ilha de Tasmânia, que fica lá pelos lados da Austrália, só que mais longe.




Eu, mutilado capilar


Os barbeiros me humilham cobrando» meia tarifa. Faz uns vinte anos que o espelho delatou os primeiros clarões debaixo da melena frondosa. Hoje o luminoso reflexo de minha calva em vitrines e janelas e janelinhas me provoca estremecimentos de horror. Cada fio de cabelo que perco, cada um dos últimos cabelos, é um companheiro que tomba, e que antes de tombar teve nome ou pelo menos número. A frase de um amigo piedoso me consola: — Se o cabelo fosse importante, estaria dentro da cabeça, e não fora. Também me consolo comprovando que em todos esses anos caíram muitos de meus cabelos mas nenhuma de minhas ideias, o que acaba sendo uma alegria quando a gente pensa em todos esses arrependidos que andam por aí.






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Titulo original: El libro de los abrazos Primeira edição em junho 1991. Tradução: Eric Nepomuceno Revisão: Ana Teresa Cirne Lima, Ester Mambrini e Valmir R. Cassol Produção: Jó Saldanha e Lúcia Bohrer ISBN: 85.254.0306-0 G151L Galeano, Eduardo O livro dos abraços / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. 270p.:il.;21cm 1. Ficção uruguaia. I.Título. CDD U863 CDU 860(895)-3 Catalogação elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329. Texto e projeto gráfico de Eduardo Galeano © Eduardo Galeano, 1989


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Leia também:

33. O Livro dos Abraços - A última cerveja de Caldwell - Eduardo Galeano


35. O Livro dos Abraços - Celebração do nascer incessante - Eduardo Galeano


1.O Livro dos Abraços - O mundo - Eduardo Galeano



quarta-feira, 28 de junho de 2017

histórias de avoinha: a cabeça dum moringue

mulheres descalças


a cabeça dum moringue
Ensaio 104B – 2ª edição 1ª reimpressão


baitasar



O negro fujão é um cabungueiro!

Hahahaha!

Um cubeiro!

Hahahaha!

Um tigre!

Hahahaha!

num tinha garantia, num tem regalia, nunca teve nada disso prus pretu, mais sobrava comédia e desconfiança medrosa, us pretu era colocado abaixo de tudo, assim ficava meió prus dono de tudo sê cruel e fazê us fiu pensá do mesmo feitio, sentí do mesmo jeito: ugosto de vê a dô notro e ficá entediado, duro e sereno

Não adianta fugir negrinho! Vamos seguindo o rastro do cheiro!

Hahahaha!

Nossa... esse deve feder pior que negro morto...

Bobagem, Juca... carniça é carniça, tanto faz se está viva ou morta, o rastro é o mesmo.

us trêis se óia e solta umesmo riso nu mesmo tempo, aquele alvoroço acordô as coisa ruim qui dorme dentro de cada um, mais qui se solta quando encontra otras coisa ruim se soltando. depois, eles procura uma negrinha pra descarregá o desassossego, pode inté qui usiô padinhu escuta uma qui otra confissão du arrependimento e reza junto

prus dono de tudo é bão esse serviço das reza e remorso pra tê alívio, prus pretu num é bão esse conforto e descanso pra mão du rabo de tatu, depois do conforto eles volta cum a mão mais pesada

Com toda certeza! Essa negrada já não tem muito gosto pelo asseio, mas carregar nos ombros os baldes das imundícies... meu bom Deus, não tem água e sabão que salve o criolo.

Nem o rio dá jeito.

Hahahaha!

nenhuma pausa pra pensá cum ucuração sem a armadilha de se vê poderoso: umais dono da vida e da morte; umais encarregado du rabo de tatu, das correntes, da pedra infame e da estupidez

Na minha opinião, juntar esse negrinho com os outros é o mesmo que estragar o cesto todo.

Coitado do primeiro que colocar as mãos no fujão.

us dono de tudo num é maluco, eles tem um plano amoroso: a villa sê um lugá muntu bão de vivê a vida só pra eles. eles tem quem faiz userviço da sujêra. a ociosidade é udestino dus dono de tudo, mais num é qualqué ocupação de mandá, ela precisa sê assassina

É por isso que todo caçador de criolo leva junto na caçada um negro da sua confiança...

Para fazer o serviço sujo.

Isso!

us trêis sente nu mesmo tempo um arrepio de desgosto e nojo. usilêncio du aborrecimento num dura muntu mais qui a vontade de avançá inté ufundo das coisa ruim

Se tem recompensa eu agarro esse criolo!

E tem recompensa?

prus trêis, qui num é dono de tudo, mais gosta de dizê qui vive na villa dus dono de tudo e serve us dono de tudo cum useu comércio, a gula pelo prêmio num pode incluí desgosto e nojo; é isso qui faz a reparação da riqueza: encoraja uqui ocê pode, mais num tá atiçado pra fazê, ela usa a gula pra ocê se descobrí desalmado

Juca, vosmecê é mui ingênuo... isso num era pra sê dito, num se pode apontá um villêro cum lugá destacado e chamá de casto e recatado, é a mesma coisa qui sê chamado de muriquinhu, muié, frouxo ou maricas, tudo junto ou separado. ujoca num deu siná de tê percebido u estrago du humô cum a palavra dita, e se percebeu, num ia pedí desculpa pelo descuido du dito, villêro num sofre arrependimento nem pede clemência... por quê vosmecê acha que a Villa está nessa correria toda?

Hum... tem recompensa. E vale o desperdício do tempo essa tal recompensa?

otra coisa apertada de medí, pelo menos, inté a vontade pelas coisa mostrá utamanho da gula e a destruição qui pode provocá

Depende do quanto vosmecê está carecendo para tomar um bom vinho.

u apurado pela gula num é um otro hômi, é umesmo hômi à prova de bondade quando u assunto é a recompensa

O aviso da fuga e a promessa de recompensa diz que...

Opa! Lá vem vosmecê e as suas leituras emprestadas! Hahahaha...

Vosmecê sabe ou não sabe ler?

entre us trêis, a ferida duma estocada cum as palavra dita, fora du tempo e lugá, podia sê consertada cum otras palavra; entre eles, as coisa dita num era dita pra sê a ruína dum ou dotro, era só aviso: é bão tê cuidado e num avançá na direção errada, num fazê inimigo dus amigo

Já expliquei que eu não sei ler, comecei cedo o trabalho de carreteiro... e nada de me comparar com esses criolos ignorantes. Eu sei muito bem escutar, conheço o meu lugar, coisa que a negrada não sabe, ou finge não saber, pois se soubessem escutar com atenção, sem julgar se o patrão tem razão ou não, não seriam estúpidos, saberiam como ser um bom e recompensado negro e escravo. Entenderam?

Perfeito.

Entendido.

Mas conte das suas leituras sobre a recompensa da captura do tigre...

Está bem, escutem...

Mas, por Deus! Faça logo esse anúncio!

Calma... o aviso que resultar na captura do fugitivo receberá 30U00 de gratificação.

Só isso?

É uma boa recompensa por qualquer informação que leve a captura do meliante.

É melhor seguir subindo, sugeriu um dus trêis amigo de comércio

Também acho.

A porta fechada do meu comércio pode dar mais prejuízo que a recompensa anunciada.

Não é pela recompensa. Pensem bem... fazer uma justiça premiadora estimula os negros não fugirem.

Quem nasceu para ser escravo nunca vai ter sua carreta de boi.

us trêis continuô a subida e passô pelo tabulêro da liberata, umaneco chegô pisá nos pé du abicu quando parô pra voltá as vista pru rio

O serviço da justiça é dar castigo para o fujão e desencorajar nos outros a vontade de fugir. O nosso serviço é fazer a Villa prosperar. Negro fujão não é um completo inútil, ao menos pode servir de mau exemplo.

Vosmecê acha isso mesmo, Juca?

Claro, sem a justiça e o medo da punição, coitados de todos aqui na Villa... a negrada acabava com tudo. Selvageria pura. Às vezes, acho que somos muito brandos com esses crimes de fuga. Não sei, mas me parece que poderíamos ser um pouco mais duros e consistentes nos castigos. Se você bate e grita com um negro está impondo o controle. Se o negro foge, você está perdendo o controle.

O pior negro é aquele que não quer comer, não quer trabalhar, enfim, não quer fazer merda nenhuma! Só pensa em fugir!

E criola gorda, então? Vive choromingando.

Criola não engorda, quem engorda ela é você!

Hahahaha!

a subida continuava, eles num parecia tá arrependido com a desistência tão cedo da recompensa

Não tenho mais idade para essa correria toda.

Nem atrevimento para engordar alguma criola!

Hahahaha!

Depois de feito o que fizemos a coragem vira cautela.

u abicu da pedra da infâmia precisô sê mais ligêro qui upisão do maneco. ucarretêro dava as passada cum aquelas bota qui mais parecia garrão de potro, udesnascido achô meió ficá trepado nu topo da pedra

É... não vale o esforço.

as palavra dita pelos trêis, no mesmo tempo, no mesmo jeito, foi como um assopro de arrepio pra quem credita nas coisa de cá e de lá

eles subiu inté usiô padinhu

na chegada da subida, eles puxava u ar com força e desarranjo. us quatro procurava um feitio meió pra respirá, parado, oiando um pru otro

tinha uqui tava com as mão na cintura, us dois dedão agarrado nu cinto – comu dois gancho enferrujado e sujo – e us seis dedo qui tinha tava pendurado. perdeu dois dedo na barranca, ninguém conta com certeza, mais parece qui ucarretêro tava de brincadêra cum ubrutamentes, seu touro favorito, inté qui u animal lhe mordeu a mão e comeu dois dedo

otro comerciante tava cum us dois braço cruzado e as perna aberta, parecia qui num descia da montaria; utercêro hômi parado da subida tava cum uchapéu nas mão, oiava e incomodava as aba du tampo du teto enquanto escutava sem falá nem dizê nada, só balançava a cabeça

u último dus hômi reunido nu caminho du topo da colina – oiava e só oiava tudo qui passava e voltava desde usol nascido inté morrido – tava com as mão escondida nus bolso du vestido preto, quando tirava a direita du vestido era pra ajeitá meió a cruiz qui carrega nu peito. e a cruiz num parecia pesá mais qui a vontade de dá us tropeção qui esmaga nu chão uparaíso prus pretu e índio: um lugá faz-de-conta qui a cruiz du peito oferece pra depois da morte, ulugá da morte. pru lugá da vida, a cruiz oferece a escravidão

us pretu nunca se sentiu escravo. quem inventô a escravidão foi us branco com a benção da cruiz. us pretu nunca se sentiu pretu. quem inventô qui us pretu é pretu foi ufeitio de vê dus branco. nu lugá de vivê dus pretu cada um tinha useu lugá, seu nome, sua tribo. ubranco foi lá na terra-mãe buscá cada hômi, muié e muriquinho pra espezinhá e maltratá, oferecê esse lugá assassino e entediado onde se perde primêro unome, depois a vida, inté num tê mais corpo nem história pra contá, inté num sê mais ninguém

atráis dus quatro hômi, um lugá nem muntu atráis nem muntu mais pra cima, tava o fundo da pintura faz-de-conta dos quatro siô qui tem vontade e vida virtuosa, distinta, respeitada e decente, é ulugá qui us pretu trabaia escravizado no levantamento da igreja santa e piedosa

Esse não vai longe...

Não tem onde buscar esconderijo.

us quatro fez balanço da cabeça pra confirmá a sabedoria du qui foi dito sem grito e sem raiva, aquilo tudo fazia parte das suas vida. nas palavra dita num tinha mágoa nem espanto, talveiz qui faltava o vinho

Eu só acho que esse movimento todo deveria ser feito à noite.

Vosmecê está de brincadeira!

Como achar esse negro na escuridão da noite?

Por que vosmecê diz isso?

Maneco, bem se vê que vosmecê não desce da carreta. É preciso evitar o máximo possível qualquer transtorno ao comércio da Villa. Garantir o nosso funcionamento habitual é garantir o bom funcionamento da Villa.

Então... por hoje, o dia está perdido?

Quase...

Concordo. Tudo porque um negrinho de merda não sabe o seu lugar e resolve fugir!

Pensando assim... é verdade, parece que foi montada uma operação de guerra para capturar o fugitivo.

Nem tanto assim, mas uma pequena guerrilha no centro da Villa. Isso nos provoca muita tensão e angústia.

Não esqueça que a escuridão favorece o fujão.

us trêis riu da justeza qui eles encontrô nas palavra du juca

Nem tanto... nem tanto...

us quatro num teve susto, mais ficô assustado cum aquela voz de atrevimento de aparecê nu assunto sem tá convidativo

... além do rastro dos pés, ele carrega as pegadas do tigre.

u intrometido continuô a intromissão e us quatro continuô cum as vista interrogativa na direção du intrometido

Olhem quem chegou...

nu desdizê du siô padinhu urecém-chegado era bem-vindo e tava atrasado

... o Moringue!

as rua continuava nu maió alvoroçamento, ninguém parecia tá interessado na visita nu topo da colina

mãinha mais ayomide tinha as vista prus lado da gritaria, as duas firmava o corpo na ponta dos pé, elas sabia qui num podia se ocupá só das coisa e dos acontecido do seu gosto. o peito das duas precisava tê mais tamanho qui a villa toda, precisa tê mais nobreza qui toda valentia qui mata e escraviza, precisa tê mais amô qui todo ódio da villa das boa intenção, precisa tê mais apego e cuidado qui todo descaso e desdém das pessoa rezadêra com os pretu, precisa sabê mais qui tudo escrito pra escondê os pretu

a villa sempre teve os dente arreganhado, mais vive disfarçada de povoamento de roça qui ficô com o jeito risonho. no meu modo de vê esse ajuntamento de gente nas beirada do rio, a villa num ficô perdida do seu feitio risonho – se é qui já teve o jeito desaborrecido e delicado – cada villêro nascido aprende vigiá e puní meió qui os já morrido. um jogo de branco qui nasce com boa intenção, escutando qui é dono de tudo. inté mesmo, dono do lombo dos pretu pra fazê uso qui resolvê fazê. os nascido na villa e dono de tudo num resiste pra tanta fartura de vontade. a villa deu pra cada um dos seus fiu nascido os motivo qui tinha, e cada um dos fiu ficô com os esquecimento qui precisa tê pra fingí qui é bem criado sê assim: dono de gente

um povoamento lambido com as água do rio, um povoado búrburú, gente do mal, gente ruim esses dono de tudo. eles é capaz de chamá qualqué um de fiu-da-puta se num cai nas boa graça do jeito risonho, fingí qui é bão é meió qui sê bão, fingí qui é risonho é meió qui sê risonho. um povoamento de gente fingida ou tolerante com as mentira qui escuta se é no seu favô se é no seu gosto

deu vontade de saí da pedra, fiz movimento pra descê da cabeça da infâmia, mais liberata gritô uma ordem, Num sai daí, muriquinho desnascido. Quero sabê u qui mais acontece, escutei a ordem qui num podia fingí qui num tinha escutado, resolvi ficá no lugá de vigiá qui tava

tem coisa desse mundo qui as coisa dotro mundo acha meió deixá do jeito qui tá. num mexê é meió qui mexê, num provocá é meió qui destratá. o segredo é fazê conversá as vontade dos dois mundo, mais é muntu raro os dois se entendê

as pessoa nas rua ficô mais medrosa e nervosa, mais num tava menó de sê curiosa. as pessoa tem munta máscara, cada disfarce esconde um machucado

Olha lá, Liberata!

Uqui é, Fumaça?

apontei, ela procurô mirá as vista, mais num achava o qui tava na ponta do meu dedo

Dotro lado, bem atrás de mãinha...

Uqui foi, Fumaça?

apontei no rumo qui os abicu mirava

Viu?

Não... umuriquinho desnascido vai dizê ou num vai uqui tá vendo?

inté mesmo muriquinho desnascido gosta de brincá de escondê e fazê desaparecê, mais num é o caso, vê aquele hôme é um insulto

Na colina... ele tá de conversa com o siô padinhu. Viu? Agora, está descendo...

ela firmô as vista no siô padinhu e no ajuntamento de hôme

Viu, repeti a pururgunta, ele tá descendo a colina. Aposto qui vai na direção do rio. Um hôme qui só pode tê nascido da invenção imaginativa dos dono de tudo.

mãinha girô os pé, queria vê com as própria vista o chefe dos perseguidô

Ele é o chefe, num tem otro!

o perseguidô tinha a cabeça dum moringue, parecia a pintura da ruindade com boa intenção. num precisava vê de perto pra sabê qui ele andava desenfreado, tinha o sobreôio carregado, o rabo de tatu nas mão, as venta arreganhada, parecia tá atento pra tudo – e pronto pra tudo – um caçadô de pretu




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Leia também:


histórias de avoinha: hômi tigre
Ensaio 103B – 2ª edição 1ª reimpressão

histórias de avoinha: muntu agradecido...
Ensaio 105B – 2ª edição 1ª reimpressão

terça-feira, 27 de junho de 2017

Júlio Verne: Viagem ao Centro da Terra / XXIV

Júlio Verne



Viagem ao Centro da Terra/XXIV





No dia seguinte, já havíamos esquecido nossos sofrimentos. Surpreendia-me, antes de mais nada, não sentir mais sede e perguntava-me por quê. O riacho que corria a meus pés em murmúrios encarregou-se de responder-me. Depois do desjejum, bebemos aquela excelente água ferruginosa. 

Sentia-me reanimado e decidido a ir longe. Por que um homem convicto como meu tio não obteria êxito com um guia esperto como Hans e um sobrinho "determinado" como eu? Que ideias e tanto percorriam minha mente! Se me propusessem voltar ao cimo do Sneffels, negar-me-ia a fazê-lo com indignação. Felizmente, era só uma questão de descer.

- Vamos! - gritei, acordando os velhos ecos do globo com minha voz entusiasmada.

Recomeçamos a andar na quinta-feira, às oito horas da manhã. O corredor de granito, cheio de desvios sinuosos, apresentava cotovelos inesperados e parecia um labirinto; mas, em suma, sua direção principal era sempre sudeste. Meu tio não parava de consultar a bússola com o maior cuidado para saber exatamente para onde estávamos indo. A galeria embrenhava-se quase horizontalmente, com duas polegadas de inclinação por toesa no máximo. O riacho corria sem precipitação, murmurando a nossos pés. Comparava-o a um espírito familiar que nos guiava pela terra e acariciava com a mão a tépida náiade cujos cantos acompanhavam nossos passos.

Meu bom humor assumia cada vez mais feições mitológicas. Meu tio já praguejava contra a horizontalidade da estrada, ele, "homem das verticais". Seu caminho prolongava-se indefinidamente e, em vez de escorregar ao longo do raio terrestre, seguia, de acordo com o que dizia, pela hipotenusa. Mas não tínhamos escolha e por menos que avançássemos em direção ao centro, não tínhamos do que nos queixar.

Além disso, de vez em quando as inclinações tornavam-se mais íngremes; a náiade começava a descambar mugindo, e nós afundávamos com ela. Em suma, naquele dia e no dia seguinte, percorremos uma boa distância horizontal e relativamente pouco caminho vertical.

De acordo com as estimativas, na sexta-feira à noite, 10 de julho, devíamos estar trinta léguas a sudoeste de Reykjavik e a uma profundidade de duas léguas e meia. Abriu-se, então, sob nossos pés, um poço bastante assustador. Meu tio não conseguiu evitar aplaudir depois de calcular o declive de suas vertentes.

- Isso pode nos levar longe e com muita facilidade – gritou -, pois as saliências da rocha formam uma verdadeira escada!

Hans dispôs as cordas de forma a prevenir qualquer acidente. Começamos a descer. Não ouso chamar a descida de perigosa, pois já estava familiarizado com aquele tipo de exercício.

O poço era uma fenda estreita no maciço do tipo a que chamamos de "falha". Com certeza fora produzida pela contração da estrutura terrestre na época de seu resfriamento. Se outrora servira de passagem ao material eruptivo vomitado pelo Sneffels, não conseguia encontrar qualquer explicação para o fato de não ter deixado qualquer vestígio. Descíamos por uma espécie de escada em caracol, que parecia ter sido feita pelo homem.

De quinze em quinze minutos, tínhamos de parar para descansar um pouco para que as barrigas de nossas pernas voltassem à sua elasticidade normal. Então sentávamos em qualquer saliência, as pernas penduradas, conversávamos comendo e matávamos a sede no riacho. Nem é preciso dizer que naquela falha o Hans Bach transformara-se numa cascata em detrimento de seu volume; mas era mais do que suficiente para matar nossa sede; além disso, nos declives menos íngremes, não deixava de voltar ao seu curso tranqüilo. Naquele momento, lembrava-me meu digno tio, com seus acessos de impaciência e de raiva, enquanto, nas inclinações mais suaves, mantinha a calma do caçador islandês.

Nos dias 11 e 12 de julho, seguimos as espirais da falha, penetrando mais duas léguas na crosta terrestre, o que perfazia quase cinco léguas abaixo do nível do mar. Mas no dia 13, por volta do meio-dia, a falha assumiu na direção sudeste uma inclinação bem mais suave, de cerca de quarenta e cinco graus. O caminho tornou-se então fácil e muito monótono. Difícil ser de outra forma. A viagem não podia ser variada pelos incidentes da paisagem.

Finalmente, na quarta-feira, 15 de julho, estávamos sete léguas sob a terra e a mais ou menos cinqüenta léguas do Sneffels. Embora um pouco cansados, o nosso estado de saúde era tranquilizador; ainda não tocáramos na nossa farmácia de viagem.

Meu tio anotava hora a hora as indicações da bússola, do cronômetro, do manômetro e do termômetro, as que publicou no relato científico de sua viagem. Era portanto fácil saber exatamente nossa situação. Quando me disse que estávamos a uma distância horizontal de cinqüenta léguas, não pude conter uma exclamação.

- O que você tem? - perguntou.

- Nada, só estou pensando uma coisa.

- No quê, meu rapaz?

- É que, se seus cálculos estão corretos, não estamos mais sob a Islândia.

- Você acha?

- É fácil verificar. Com o compasso medi as distâncias no mapa.

- Não estava enganado - disse. - Ultrapassamos o cabo Portland, e essas cinquenta léguas a sudeste colocam-nos em pleno mar.

- Em pleno mar! - replicou meu tio, esfregando as mãos.

- Desta forma - exclamei -, o oceano se estende sobre nossas cabeças!

- Ora, Axel, nada mais natural! Não existem minas de carvão em Newcastle que se estendem por muitas milhas sob as ondas?

Para o professor, essa situação podia parecer muito simples, mas a ideia de passear sob a massa aquática não deixou de preocupar-me. E no entanto, fazia ter suspensas sobre nossas cabeças as montanhas da Islândia ou as vagas do Atlântico, desde que a estrutura granítica fosse sólida. Além disso, acostumei-me rapidamente com a ideia, pois o corredor, ora reto, ora sinuoso, caprichoso em suas inclinações e seus desvios, mas sempre correndo para sudeste e sempre continuando a penetrar na terra, conduziu-nos com rapidez a grandes profundidades.

Quatro dias depois, no sábado, 18 de julho, à noite, chegamos a uma espécie de gruta muito ampla. Meu tio pagou a Hans seus três risdales semanais, e decidimos descansar durante todo o dia seguinte.







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Júlio Verne: Viagem ao Centro da Terra / XXV

Júlio Verne: Viagem ao Centro da Terra / I




sexta-feira, 23 de junho de 2017

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos III

Cruz e Sousa

Obra Completa
Volume 1
POESIA



O Livro Derradeiro
Primeiros Escritos

Cambiantes
Outros Sonetos Campesinas
Dispersas
Julieta dos Santos




OUTROS SONETOS 








[DEIXAI QUE DESTE ÁLBUM] 
(5 dez., 1882)
Embeberam-me a pena em fel!
Antônio (Mendes Leal)


Deixai que deste álbum na folha delicada 
Eu venha difundir meus rudes pensamentos 
Deixai que as pobres rimas, uns nadas poeirentos 
Eu possa transudar da mente entrenublada!...

Deixai que de minh’alma na fibra espedaçada 
Eu busque inda vibrar uns cantos tardos, lentos!... 
Bem cedo os vendavais, aspérrimos, cruentos 
Ai! Tudo arrojarão à campa amargurada!

Porém qu’importa isso! dos mares desta vida 
Nos pávidos, estranhos, enormes escarcéus 
Se alguma coisa val, és tu, ó luz querida!...

Rasguemos do porvir os áditos, os véus!... 
Riamos sem cessar, embora em dor sentida!... 
Também as nuvens negras conglobam-se nos céus!!...






[ALÇANDO O LIVRO] 
(28 nov., 1882)
A mocidade é a alavanca do templo da ciência, no futuro; só ela tem o direito de ser a força motriz dos fenômenos intelectuais, das grandes revoluções do pensamento. (Do Autor)

Alçando o livro colossal, ardente 
Traças no crânio um sulco luminoso, 
E vais seguindo o remontar garboso 
Do sol fagueiro lá no espaço ingente!

Ergues a fronte juvenil potente 
Já como herói ou lutador famoso 
E c’uma forma de pensar honroso 
Fazes-te esperança da brasílea gente!

Seis vezes astro de maior grandeza 
Enfim lá surges nos exames belos, 
Enfim triunfas na brilhante empresa!

Seis vezes quebras da ignorância os elos, 
Seis vezes vives com mais sã firmeza, 
Gemem seis vezes a louvar-te os prelos!...







O DESEMBARQUE DE JULIETA DOS SANTOS


Chegou enfim, e o desembarque dela 
Causou-me logo uma impressão divina! 
É meiga, pura como sã bonina, 
Nos olhos vivos doce luz revela!

É graciosa, sacudida e bela, 
Não tem os gestos de qualquer menina: 
Parece um gênio que seduz, fascina, 
Tão atraente, singular é ela!

Chegou, enfim! eu murmurei contente! 
Fez-se em minh’alma purpurina aurora, 
O entusiasmo me brotou fervente!

Vimos-lhe apenas a construção sonora, 
Vimos a larva, nada mais, somente 
Falta-nos ver a borboleta agora!





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Sousa, Cruz e, 1861-1898 Obra completa : poesia / João da Cruz e Sousa ; organização e estudo por Lauro Junkes. – Jaraguá do Sul : Avenida ; 2008. v. 1 (612 p.)

Edição comemorativa dos 110 anos de falecimento e do traslado dos restos mortais de Cruz e Sousa para Santa Catarina.


O diferencial mais arrojado desta organização reside na opção por buscar maior aproximação ao evoluir poético do instaurador do Simbolismo no Brasil. Seus poemas inéditos, na absoluta maioria anteriores à sua fase simbolista, foram aos poucos sendo recolhidos e publicados sob o título O Livro Derradeiro, que muitas vezes tem provocado interpretações errôneas. Se o livro foi o derradeiro na sua organização, os poemas não pertencem à última fase do poeta e não representam a madureza do pensamento e da arte poética do autor. Optamos, então, por colocar esse livro em primeiro lugar, antes da sua trilogia de livros simbolistas, que, estes sim, representam a arte madura do poeta.


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Leia também:


Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos III
Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos IV

quarta-feira, 21 de junho de 2017

Dom Casmurro: As Pazes



Machado de Assis

Dom Casmurro





CAPÍTULO XLVI
AS PAZES



As pazes fizeram-se como a guerra, depressa. Buscasse eu neste livro a minha glória, e diria que as negociações partiram de mim; mas não, foi ela que as iniciou. Alguns instantes depois, como eu estivesse cabisbaixo, ela abaixou também a cabeça, mas voltando os olhos para cima a fim de ver os meus. Fiz-me de rogado; depois quis levantar-me para ir embora, mas nem me levantei, nem sei se iria. Capitu fitou-me uns olhos tão ternos, e a posição os fazia tão súplices, que me deixei ficar, passei-lhe o braço pela cintura, ela pegou-me na ponta dos dedos, e... 

Outra vez D. Fortunata apareceu à porta da casa; não sei para que, se nem me deixou tempo de puxar o braço; desapareceu logo. Podia ser um simples descargo de consciência, uma cerimônia, como as rezas de obrigação, sem devoção, que se dizem de tropel; a não ser que fosse para certificar aos próprios olhos a realidade que o coração lhe dizia... 

Fosse o que fosse, o meu braço continuou a apertar a cintura da filha, e foi assim que nos pacificamos. O bonito é que cada um de nós queria agora as culpas para si, e pedíamos reciprocamente perdão. Capitu alegava a insônia, a dor de cabeça, o abatimento do espírito, e finalmente "os seus calundus”. Eu, que era muito chorão por esse tempo, sentia os olhos molhados... Era amor puro, era efeito dos padecimentos da amiguinha, era a ternura da reconciliação.




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Texto de referência:

Obras Completas de Machado de Assis, vol. I,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.

Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1899.

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Dom Casmurro: Capítulo XLVII / "A Senhora Saiu”

Dom Casmurro: Capítulo Primeiro DO TÍTULO


A Carolina

Machado de Assis

- por Paulo Autran




Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs o mundo inteiro.











Carolina


Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs o mundo inteiro.

Trago-te flores - restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.

Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.



Machado de Assis, 1906





1906 – Dedica à mulher já falecida seu mais famoso soneto, "A Carolina".



Uma pequena amostra da grandiosidade de Machado de Assis... chegamos a sentir falta da crase em "A Carolina", mas a ausência de crase no título pode indicar distanciamento, pois se houvesse o artigo ‘A’, daria a possibilidade de leitura de proximidade ao que era impossível, uma vez que Carolina estava morta. Um imenso escritor que viaja além do seu tempo, viaja nos tempos com sua pena e a literatura dos pensamentos.


Série Blues - As rosas não falam

Celso Blues Boy




Queixo-me às rosas
Mas que bobagem
As rosas não falam









As Rosas Não Falam


Bate outra vez
Com esperanças o meu coração
Pois já vai terminando o verão
Enfim

Volto ao jardim
Com a certeza que devo chorar
Pois bem sei que não queres voltar
Para mim

Queixo-me às rosas
Mas que bobagem
As rosas não falam
Simplesmente as rosas exalam
O perfume que roubam de ti, ai

Devias vir
Para ver os meus olhos tristonhos
E, quem sabe, sonhavas meus sonhos
Por fim


Composição: Cartola




terça-feira, 20 de junho de 2017

Memórias Póstumas de Brás Cubas: Marquesa, Porque Eu Serei Marquês

Machado de Assis


Memórias Póstumas de Brás Cubas







CAPÍTULO XLIII / MARQUESA, PORQUE EU SEREI MARQUÊS





Positivamente, era um diabrete Virgília, um diabrete angélico, se querem, mas era-o, e então...

Então apareceu o Lobo Neves, um homem que não era mais esbelto que eu, nem mais elegante, nem mais lido, nem mais simpático, e todavia foi quem me arrebatou Virgília e a candidatura, dentro de poucas semanas, com um ímpeto verdadeiramente cesariano. Não precedeu nenhum despeito; não houve a menor violência de família. Dutra veio dizer-me, um dia, que esperasse outra aragem, porque a candidatura de Lobo Neves era apoiada por grandes influências. Cedi; tal foi o começo da minha derrota. Uma semana depois, Virgília perguntou ao Lobo Neves, a sorrir, quando seria ele ministro.

— Pela minha vontade, já; pelas dos outros, daqui a um ano.

Virgília replicou:

— Promete que algum dia me fará baronesa?

— Marquesa, porque eu serei marquês.

Desde então fiquei perdido. Virgília comparou a águia e o pavão, e elegeu a águia, deixando o pavão com o seu espanto, o seu despeito, e três ou quatro beijos que lhe dera. Talvez cinco beijos; mas dez que fossem não queria dizer coisa nenhuma. O lábio do homem não é como a pata do cavalo de Átila, que esterilizava o solo em que batia; é justamente o contrário.



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Texto-fonte: 
Obra Completa, Machado de Assis, 
Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994. 


Publicado originalmente em folhetins, a partir de março de 1880, na Revista Brasileira.


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Memórias Póstumas de Brás Cubas: Prólogo e AO LEITOR



domingo, 18 de junho de 2017

Série Ballet - Queen

Bohemian Rhapsody
Reinterpreted
English National Ballet




porque dançar é isso...
flutuar desenhos coloridos com o próprio corpo
ah, o corpo...
                                  quanto pecado para hipócritas 
e quanta graça humana para o ballet...
                                   prefiro o ballet aos hipócritas








Queen + Adam Lambert North American Summer Tour 2017


Série: Jazz Para Sempre 17 - U. Jazz 1989

Stan Getz Quartet
Green Dolphin St. Pt. 1 





Quando você não sabe o que dizer... escute








Stan Getz - Tenor Sax
Kenny Barron - Piano
Yasuhito Mori - Bass
Ben Riley - Drums




quinta-feira, 15 de junho de 2017

Pátria Amada

Inocentes




"A maior banda punk do Brasil tocando a sua música mais foda!!!!"










Pátria Amada


Pátria Amada, é pra você esta canção
Desesperada, canção de desilusão
Não há mais nada entre eu e você
Eu fui traído e não fiz por merecer

Pátria Amada, cantei hinos em seu louvor
Mas tudo o que fiz de nada adiantou
Na boca amarga ainda resta esse refrão
Que diz pra morrer por ti e não importa a razão

Pátria Amada, como pude acreditar
Em palavras vazias e promessas soltas no ar
Pátria Amada, você me decepcionou
Quando eu lhe pedi justiça você me negou

Pátria amada!

Pátria Amada, de quem você é afinal
É do povo nas ruas ? Ou do Congresso Nacional
Pátria Amada, idolatrada, salve, salve-se quem puder!





14.O Estrangeiro: Se os vires esta noite perto da nossa casa, avisa-me - Albert Camus


Albert Camus


Capítulo 5


14. Se os vires esta noite perto da nossa casa, avisa-me




RAIMUNDO telefonou-me para o escritório. Disse-me que um amigo dele, a quem falara de mim, me convidava para passar o domingo numa casa que tinha perto de Argel. Respondi que gostaria de ir, mas que já combinara passar o domingo com uma amiga. Raimundo declarou imediatamente que também a convidava. A mulher do amigo ficaria, até, muito contente por não ser a única no meio de um grupo de homens. 

 Quis desligar imediatamente, pois sei que o chefe não gosta que estejamos ao telefone. Mas Raimundo pediu-me para esperar e disse que me poderia ter transmitido o convite à noite, mas me queria avisar de outra coisa. Fora seguido durante todo o dia por um grupo de Árabes entre os quais estava o irmão da sua antiga amante. "Se os vires esta noite perto da nossa casa, avisa-me". Respondi que estava combinado. 

 Pouco depois o chefe mandou-me chamar e fiquei aborrecido porque pensei que me ia dizer para telefonar menos e trabalhar mais. Não era nada disso. Declarou que me ia falar num projeto ainda muito vago. Queria apenas saber a minha opinião sobre o assunto. Tencionava instalar um escritório em Paris, para tratar diretamente com as grandes companhias e perguntou-me se eu estava disposto a ir. Poderia assim viver em Paris e viajar durante parte do ano. "Você ainda é novo e creio que essa vida lhe agradaria". Disse que sim, mas que no fundo me era indiferente. Perguntou-me depois se eu não gostava de uma mudança de vida. Respondi que nunca se muda de vida, que em todos os casos, todas as vidas se equivaliam e que a minha, aqui, não me desagradava. Mostrou um ar descontente, disse que eu respondia sempre à margem das questões, e que não tinha ambição, o que para os negócios era desastroso. Voltei para o meu trabalho. Teria preferido não o descontentar, mas não via razão nenhuma para modificar a minha vida. Pensando bem, não era infeliz. Quando era estudante, alimentara muitas ambições desse gênero. Mas quando abandonei os estudos, compreendi muito depressa que essas coisas não tinham verdadeira importância. 

 Maria veio buscar-me à noite e perguntou-me se eu queria casar com ela. Respondi que tanto me fazia, mas que se ela de facto queria casar, estava bem. Quis então saber se eu gostava dela. Respondi, como aliás respondera já uma vez, que isso nada queria dizer, mas que julgava não a amar. "Nesse caso, porquê casar comigo?", disse ela. Respondi que isso não tinha importância e que, se ela quisesse, nos podíamos casar. Era ela, aliás, quem o perguntava, e eu contentava-me em dizer que
sim. Maria observou então que o casamento era uma coisa muito séria. Respondi: "Não". Maria calou-se durante uns instantes e olhou-me em silêncio. Depois, falou. Queria simplesmente saber se, vinda de outra mulher com a qual estivesse relacionado do mesmo modo, eu teria aceito uma proposta semelhante. Respondi: "Possivelmente". Perguntou então de si para si se gostaria de mim, mas, sobre esse ponto, como poderia eu saber alguma coisa? Depois de mais uns instantes de silêncio, murmurou que eu era uma pessoa estranha, que gostava de mim se calhar por isso mesmo, mas que um dia, pelos mesmos motivos, era capaz de passar aos sentimentos contrários. Como eu me calasse, por não ter nada a acrescentar, tomou-me o braço a sorrir e declarou que queria casar comigo. Respondi que sim, logo que ela quisesse. Falei-lhe então na proposta do chefe e Maria disse-me que gostaria de conhecer Paris. Contei-lhe que lá vivera durante algum tempo e ela perguntou-me como era a cidade. Respondi: "Suja. Há pombas e pátios escuros. As pessoas têm a pele muito branca". 

 Depois passeamos, escolhendo as grandes ruas. As mulheres eram bonitas e perguntei a Maria se ela achava o mesmo. Disse que sim, e que me compreendia. Depois calamo-nos. Queria no entanto que ela ficasse comigo e disse-lhe que poderíamos jantar juntos no Celeste. Maria replicou que gostaria muito, mas tinha que fazer. Estávamos ao pé da minha casa e eu disse-lhe adeus. Ela olhou para mim: "Não queres saber o que é que tenho que fazer?" Eu queria, mas não me lembrara de lho perguntar e era por isso que estava com um ar de censura. Diante do meu ar embaraçado, voltou então a rir e, para me estender a boca, teve para mim um movimento de todo o corpo. 

 Jantei no restaurante do Celeste. Começara já a comer, quando entrou uma mulherzinha esquisita e veio perguntar se podia sentar-se à minha mesa. Porque não havia de poder? Fazia gestos bruscos e tinha uns olhos brilhantes, inseridos numa pequena cara de maçã. Tirou o casaco, sentou-se e consultou febrilmente a lista. Chamou o Celeste e pediu imediatamente os pratos que queria, com uma voz ao mesmo tempo precisa e precipitada. Enquanto esperava os acepipes, abriu a carteira, tirou um pequeno quadrado de papel e um lápis, fez a conta ao que tinha que pagar, e depois tirou do porta-moedas, acrescentando-lhe a gorjeta, a quantia exata. Colocou-a diante dela. Nesse momento levaram-lhe os acepipes, que engoliu a toda a velocidade. Enquanto esperava o prato seguinte tirou ainda da carteira um lápis azul e uma revista que dava os programas radiofônicos da semana.

 Com o maior cuidado, sublinhou um a um quase todos os programas. Como a revista tinha umas doze páginas, continuou este trabalho metodicamente durante toda a refeição. Já eu acabara de comer, e ainda ela estava a sublinhar, sempre com a mesma aplicação. Depois levantou-se, vestiu o casaco com os mesmos gestos precisos de autômato e saiu. Como não tinha nada que fazer, também saí e segui-a durante uns momentos. Colocou-se à beira do passeio e, com uma segurança e uma rapidez incríveis, seguia o seu caminho sem se desviar e sem olhar para os lados. Acabei por perdê-la de vista e por voltar para trás. Achei que era uma mulher estranha, mas depressa a esqueci. 

 À porta de casa, encontrei o velho Salamano. Disse-lhe para entrar e ele informou-me que o cão se perdera, pois não estava na Câmara. Os empregados haviam-lhe dito que fora, talvez, atropelado. Perguntara se não era possível sabê-lo nos comissariados da polícia. Tinham-lhe respondido que eles não tomavam nota de coisas como essas, pois aconteciam todos os dias. Disse ao velho Salamano que podia arranjar outro cão, mas ele respondeu-me com toda a razão aliás, que estava habituado àquele. 

 Eu estava estendido na cama e Salamano sentara-se numa cadeira em frente da mesa. Estava voltado para mim e tinha as mãos em cima dos joelhos. Conservara o velho chapéu na cabeça: Sob o bigode amarelecido, mastigava frases que depois não acabava. Massava-me um bocado, mas como não tinha nada que fazer e não estava com sono, não me importei. Para dizer alguma coisa, fiz-Lhe perguntas sobre o cão. Disse-me que o arranjara depois da morte da mulher. Casara-se bastante tarde. Na sua mocidade, tivera vontade de entrar para o teatro: na tropa, representara em várias récitas militares. Mas acabara por entrar para os caminhos de ferro e não estava arrependido, pois agora davam-he uma pequena reforma. Não fora feliz com a mulher, mas, por fim, habituara-se a ela. Quando esta morrera, sentira-se muito só: Pedira então a um colega do escritório para lhe dar um cão, e fora-lhe oferecido este, quase recém-nascido. Tivera que o alimentar a biberão. Mas como o cão vive menos do que o homem, tinham acabado por envelhecer juntos.

 "Tinha mau feitio, Disse Salamano. De tempos a tempos zangávamo-nos. Mas apesar disso, era um bom cão". Disse que o cão devia ser de boa raça, e Salamano ficou com um ar contente. "E para mais, acrescentou, não o conheceu antes da doença. Não havia pelo mais bonito do que o dele". Todas as noites e todas as manhãs, desde que o cão aparecera com aquela doença de pele, Salamano punha-lhe pomada. Mas na sua opinião, a verdadeira doença que o cão tinha era a velhice, e a velhice não cura. 

 Nesse momento bocejei, e o velho anunciou que se ia embora. Disse-lhe que podia ficar e que estava aborrecido com o que Lhe acontecera ao cão: agradeceu-me. Disse-me que a minha mãe gostara muito do cão. Ao falar dela, chamava-a "a sua pobre mãe". Emitiu a suposição que eu devia sentir-me bem infeliz desde que a minha mãe morrera. Não respondi. Disse-me então, muito depressa e com um ar embaraçado, que no bairro me tinham criticado por a ter mandado para o asilo, mas ele conhecia-me e sabia que eu gostava muito da minha mãe. Respondi, não sei ainda porquê, que ignorava até agora que fosse criticado por causa disso, mas que o asilo se me afigurara uma coisa muito natural, pois não tinha recursos para a manter comigo. "Além disso, acrescentei ainda, há muito tempo que não tínhamos nada que dizer um ao outro e que ela se aborrecia sozinha. 

 - "Sim, disse-me ele, e no asilo, ao menos, arranjam-se amigos". Depois, despediu-se. Queria dormir. A sua vida agora mudara completamente, e não sabia muito bem o que havia de fazer. Pela primeira vez desde que nos conhecíamos, estendeu-me a mão num gesto envergonhado e eu senti-lhe as escamas da pele. Teve um sorriso breve e, antes de sair, disse: "Espero que os cães não ladrem esta noite. Julgo sempre que é o meu".


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A Constatação do Absurdo

Nascido e criado entre contrastes fundamentais, Albert Camus desde cedo aprendeu que a miséria engendra uma solidão que lhe é típica, uma austeridade toda sua, uma desconfiança da vida - mas a paisagem desperta uma rica sensualidade, uma eufórica sensação de onipotência, um orgulho desmedido de possuir a beleza inteiramente gratuita. Este aprendizado, feito a meio caminho entre a miséria e o sol, levou-o à consciência do que existe de mais trágico na condição humana: o absurdo, essa irremediável incompatibilidade entre as aspirações e a realidade.


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Camus, Albert, 1913-1960.
              O Estrangeiro
Título Original L'Étranger
Tradução de António Quadros
Edição Livros do Brasil
Lisboa
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Leia também:

15.O Estrangeiro: O gatilho cedeu - Albert Camus

1.O Estrangeiro: Hoje, minha mãe morreu - Albert Camus


sábado, 10 de junho de 2017

Professorxs, na sala de aula

Leci Brandão

Anjos da Guarda




e porto alegre que já foi a cidade da cidadania... hoje, sei lá, escolheu um guri que sabe bem vigiar e punir








Anjos da Guarda


Professores
Protetores... das crianças do meu país
Eu queria, gostaria
De um discurso bem mais feliz
Porque tudo é educação
É matéria de todo o tempo

Ensinem a quem sabe de tudo
A entregar o conhecimento
Ensinem a quem sabe de tudo
A entregar o conhecimento

Na sala de aula
É que se forma um cidadão
Na sala de aula
Que se muda uma nação
Na sala de aula
Não há idade, nem cor
Por isso aceite e respeite
O meu professor

Batam palmas pra ele
Batam palmas pra ele
Batam palmas pra ele que ele merece!
Batam palmas pra ele
Batam palmas pra ele
Batam palmas pra ele que ele merece!

Professores
Protetores... das crianças do meu país
Como eu queria, gostaria
De um discurso bem mais feliz
Porque tudo é educação
É matéria de todo o tempo
Ensinem a quem pensa que sabe de tudo
A entregar o conhecimento

Na sala de aula
É que se forma um cidadão
Na sala de aula
Que se muda uma nação
Na sala de aula
Não há idade, nem cor
Por isso aceite e respeite
O meu professor

Batam palmas pra ele
Batam palmas pra ele
Batam palmas pra ele que ele merece!



Composição: Leci Brandão




O Segundo Sexo - 10. Fatos e Mitos: nessas espécies favoráveis

Simone de Beauvoir



10. Fatos e Mitos


Primeira Parte
Destino

CAPITULO I
OS DADOS DA BIOLOGIA




 : nessas espécies favoráveis




NESSAS ESPÉCIES FAVORÁVEIS ao desenvolvimento da vida individual, o esforço do macho pela autonomia — que nos animais inferiores o destrói — é coroado de êxito. Ele é geralmente maior do que a fêmea, mais robusto, mais rápido, mais aventuroso; leva uma vida mais independente e cujas atividades são mais gratuitas; é mais conquistador, mais imperioso. Nas sociedades animais é sempre ele que comanda.

Nunca, na Natureza, tudo é inteiramente claro: os dois tipos, macho e fêmea, nem sempre se distinguem com nitidez; observa-se, por vezes, entre eles, um dimorfismo — cor do pelo, disposição das manchas — que parece absolutamente contingente; mas acontece, ao contrário, que não sejam discerníveis e que suas funções mal se diferenciem, como vimos com os peixes. Entretanto, em conjunto, e principalmente no alto da escala animal, os dois sexos representam dois aspectos diversos da vida da espécie. Sua oposição não é, como se pretendeu, a de uma atividade e de uma passividade: não somente o núcleo ovular é ativo, como também o desenvolvimento do embrião é um processo vivo, e não um desenrolar mecânico. Seria simples demais defini-la como a da mudança e a da permanência. O espermatozoide só cria porque sua vitalidade mantém-se no ovo; o óvulo só se pode manter superando-se, sem o quê, retrocede e degenera. É verdade, entretanto, que nessas operações, ambas ativas, manter e criar, a síntese do servir não se realiza da mesma maneira. Manter é negar a dispersão dos instantes, é afirmar a continuidade durante o seu aparecimento; criar é fazer rebentar no seio da unidade temporal um presente irredutível, separado, e é verdade, também, que, na fêmea, é a continuidade da vida que busca realizar-se, a despeito da separação, ao passo que a separação em forças novas e individualizadas é suscitada pela iniciativa do macho. É-lhe portanto permitido afirmar-se em sua autonomia: a energia específica, ele a integra em sua própria vida. Ao contrário, a individualidade da fêmea é combatida pelo interesse da espécie. Ela aparece como possuída por forças estranhas, alienada. E é por isso que, quanto mais se afirma a individualidade dos organismos, a oposição dos sexos não se atenua. Ao contrário, o macho encontra caminhos sempre mais diversos para despender as forças de que se torna senhor; a fêmea sente cada vez mais sua servidão. O conflito entre seus interesses próprios e o das forças geradores que a habitam exaspera-se. O coito das vacas e das éguas é muito mais doloroso e perigoso que o das camundongas e das coelhas. A mulher, que é a mais individualizada das fêmeas, aparece também como a mais frágil, a que vive mais dramaticamente seu destino e que se distingue mais profundamente do macho.

Na humanidade, como na maioria das espécies, nasce mais ou menos quase o mesmo número de indivíduos dos dois sexos (100 mulheres para 104 homens). A evolução dos embriões é análoga. Entretanto, o epitélio primitivo permanece neutro mais tempo no feto feminino; disso resulta ficar ele mais tempo submetido ao meio hormonal e ocorrer que seu desenvolvimento se inverta mais amiúde. Os hermafroditas, em sua maioria, seriam sujeitos genotipicamente femininos que se teriam masculinizado posteriormente. Tem-se a impressão de que o organismo masculino se define de imediato como macho, ao passo que o embrião feminino hesita em aceitar sua feminilidade. Mas esses primeiros balbucios da vida fetal são ainda muito pouco conhecidos para que se possa emprestar-lhes um sentido. Uma vez constituídos, os aparelhos genitais são, em ambos os sexos, simétricos. Os hormônios de um e de outro pertencem à mesma família química, a dos esteróis, e derivam todos, em última análise, da colesterina. São eles que determinam as diferenciações secundárias do soma. Nem suas fórmulas nem as singularidades anatômicas definem a fêmea do homem como tal. E sua evolução funcional que a distingue do macho. Comparativamente, o desenvolvimento do homem é simples. Do nascimento à puberdade cresce mais ou menos regularmente: por volta dos quinze ou dezesseis anos começa a espermatogênese que se efetua de maneira contínua até a velhice; seu aparecimento acompanha-se de uma produção de hormônios que determina a constituição viril do soma. A partir de então, o macho tem uma vida sexual que é normalmente integrada em sua existência individual: no desejo e no coito, sua superação na espécie confunde-se com o momento subjetivo de sua transcendência: ele é seu corpo. A história da mulher é muito mais complexa. Desde a vida embrionária, a provisão de oócitos já se acha constituída; o ovário contém cerca de cinquenta mil óvulos encerrados cada qual em um folículo, sendo que mais ou menos quatrocentos chegam à maturação. Desde o nascimento, a espécie toma posse dela e tenta afirmar-se; a mulher, vindo ao mundo, atravessa uma espécie de primeira puberdade: os oócitos crescem subitamente, de pois o ovário reduz-se a um quinto mais ou menos, Dir-se-ia que uma pausa é concedida à criança; enquanto seu organismo se desenvolve, o sistema genital permanece mais ou menos estacionado: certos foliados incham, mas sem atingir a maturidade. O crescimento da menina é análogo ao do menino; com a mesma idade ela chega a ser um pouco mais alta e mais pesada do que ele. Mas, no momento da puberdade, a espécie reafirma seus direitos. Sob a influência de secreções ovarianas, o número de folículos em via de crescimento aumenta, o ovário congestiona-se e cresce, um dos óvulos chega à maturidade e o ciclo menstrual se inicia; o sistema genital adquire seu volume e sua forma definitiva, o soma feminiza-se, o equilíbrio endócrino estabelece-se. É digno de nota o fato de assumir esse acontecimento o aspecto de uma crise; não é sem resistência que o corpo da mulher deixa a espécie instalar-se nela e esse combate enfraquece-a e faz com que corra perigo. Antes da puberdade morre mais ou menos o mesmo número de meninas que de meninos; de 14 a 18 anos morrem 128 meninas para cada 100 meninos e de 18 a 22 anos 105 moças para cada 100 rapazes. É nesse momento que surgem, muitas vezes, a clorose, a tuberculose, a escoliose, a osteomielite etc. Em certos indivíduos, a puberdade é anormalmente precoce, podendo ocorrer entre quatro e cinco anos. Noutros, ao contrário, ela não ocorre: o sujeito continua então infantil, sofre de amenorreia ou de dismenorreia. Certas mulheres apresentam sinais de virilismo: um excesso de secreções elaboradas pelas glândulas suprarrenais dá-lhes caracteres masculinos. Tais anomalias não representam, em absoluto, vitórias do indivíduo sobre a tirania da espécie. A esta não há meio de escapar, porquanto, ao mesmo tempo em que escraviza a vida individual, ele a alimenta; essa dualidade exprime-se no nível das funções ovarianas; a vitalidade da mulher tem suas raízes no ovário, como a do homem as tem nos testículos; em ambos os casos, o indivíduo castrado não somente se torna estéril como ainda retrocede e degenera. Não "formado", mal formado, todo o organismo é empobrecido, desequilibrado; ele só se desenvolve com a maturação do sistema genital. E, no entanto, muitos fenômenos genitais não interessam a vida individual do sujeito e até chegam a pô-la em perigo. As glândulas mamárias que se desenvolvem no momento da puberdade nenhum papel desempenham na economia individual da mulher; pode-se proceder à sua ablação em qualquer momento de sua vida.

Muitas secreções ovarianas têm sua finalidade no óvulo, na maturação, na adaptação do útero a suas necessidades; para o conjunto do organismo, constituem mais um fator de desequilíbrio do que de regulação; a mulher é adaptada às necessidades do óvulo mais do que a ela própria. Da puberdade à menopausa, é o núcleo de uma história que nela se desenrola e que não lhe diz respeito pessoalmente. Os anglo-saxões chamam a menstruação the curse, "a maldição"; e, efetivamente, não há nenhuma finalidade individual no ciclo menstrual. Acreditava-se, no tempo de Aristóteles, que mensalmente escorria um pouco de sangue destinado a constituir, no caso de fecundação, a carne e o sangue da criança. O que existe de verdadeiro nessa teoria é que, incessantemente, a mulher esboça o trabalho da gestação. Nos outros mamíferos, o ciclo menstrual só se verifica durante uma estação; não se acompanha de corrimento sanguinolento; é somente nos primatas e na mulher que ele ocorre mensalmente entre dores e sangue (1). Durante cerca de 14 dias, um dos folículos de Graaf que envolvem os óvulos aumenta de volume e amadurece, enquanto o ovário secreta o hormônio situado ao nível dos folículos e que se denomina foliculina. No décimo quarto dia verifica-se a ovulação: a parede do folículo rompe-se (o que acarreta, por vezes uma ligeira hemorragia), o ovo cai nas trompas, enquanto a cicatriz evolui de maneira a constituir o corpo amarelo. Começa então a segunda fase, ou fase luteínica, caracterizada pela secreção do hormônio chamado progestina e que age sobre o útero. Este modifica-se: o sistema capilar da parede congestiona-se, ela enruga-se como um coscorão, formando uma espécie de renda. Assim forma-se na matriz um berço destinado a receber o ovo fecundado. Sendo essas transformações celulares irreversíveis, no caso de não haver fecundação, esse edifício não se reabsorve. Possivelmente, nos demais mamíferos, os restos inúteis sejam carregados pelos vasos linfáticos, mas na mulher, quando as rendas do endométrio se desprendem, produz uma esfoliação da mucosa, os tubos capilares abrem-se e uma massa sanguínea destila-se externamente. Depois, enquanto o corpo amarelo degenera, a mucosa reconstitui-se e inicia-se uma nova fase folicular. Esse processo complexo, e ainda



(1) "A análise desses fenômenos pôde ser aprofundada nestes últimos anos, comparando o que se passa na mulher com o que se observa nos símios superiores, do gênero Rhesus em particular. Ê evidentemente mais fácil fazer experiências com estes animais", escreve Louis Gallien (La Sexualité).

bastante misterioso em seus pormenores, abala todo o organismo, porquanto é acompanhado de secreções hormonais que reagem sobre a tireoide e a hipófise, sobre o sistema nervoso central e o sistema vegetativo e, por conseguinte, sobre todas as vísceras.


Quase todas as mulheres — mais de 85% — apresentam perturbações durante esse período. A tensão arterial eleva-se antes do início do corrimento sanguíneo e baixa a seguir; o pulso acelera-se, a temperatura sobe. São frequentes os casos de febre; o abdome fica dolorido; observa-se, muitas vezes, certa tendência para a constipação, seguida de diarreia. Amiúde, também há aumento do volume do fígado, retenção de ureia, albuminúria; muitas pessoas apresentam uma hiperemia da mucosa pituitária (dor de garganta); outras são vítimas de perturbações do ouvido e da vista; a secreção de suor aumenta, acompanhada, no princípio das regras, de um odor sui generis que pode ser muito forte e persistir durante toda a menstruação. O metabolismo basal é aumentado. O número de glóbulos vermelhos diminui. Enquanto isso, o sangue veicula substâncias geralmente em reserva nos tecidos, em particular sais de cálcio; esses sais reagem sobre o ovário, sobre a tireoide que se hipertrofia, sobre a hipófise que preside à metamorfose da mucosa uterina e cuja atividade se amplia; essa instabilidade das glândulas acarreta uma grande fragilidade nervosa. O sistema central é atingido, frequentemente ocorre cefaleia e o sistema vegetativo reage exageradamente; há diminuição do controle automático pelo sistema central, o que liberta reflexos, complexos convulsivos e traduz-se por uma grande instabilidade de humor. A mulher torna-se mais emotiva, mais nervosa, mais irritável que de costume e pode apresentar perturbações psíquicas graves. É nesse período que ela sente mais penosamente seu corpo como uma coisa opaca alienada; esse corpo é presa de uma vida obstinada e alheia que cada mês faz e desfaz dentro dele um berço; cada mês, uma criança prepara-se para nascer e aborta no desmantelamento das rendas vermelhas; a mulher, como o homem, é seu corpo (1) mas seu corpo não é ela, é outra coisa.

A mulher conhece uma alienação mais profunda quando o ovo fecundado desce ao útero e aí se desenvolve. Sem dúvida,


(1) "Eu sou, portanto, meu corpo, pelo menos na medida em que tenho dêle conhecimento e reciprocamente meu corpo é como um sujeito natural, como um esboço provisório de meu ser total" (Merleau-Ponty, Phénoménologie de la perception).

a gestação é um fenômeno normal que, em se produzindo em condições normais de saúde e nutrição, não é nocivo à mãe; estabelece-se mesmo, entre ela e o feto, certas interações que lhe são favoráveis. Entretanto, contrariamente a uma teoria otimista cuja utilidade social é demasiado evidente, a gestação é um trabalho cansativo que não trás à mulher nenhum benefício individual (1) e exige, ao contrário, pesados sacrifícios. Acompanha-se, não raro, durante os primeiros meses, de falta de apetite e de vômitos, que não se observam em nenhuma outra fêmea doméstica e que manifestam a revolta do organismo contra a espécie que dele toma posse; ele se empobrece em fósforo, em cálcio, em ferro, sendo este último déficit difícil de ser compensado posteriormente; a superatividade do metabolismo acentua o sistema endócrino; o sistema nervoso vegetativo fica num estado de excitabilidade intensificada; quanto ao sangue, seu peso específico diminui, torna-se anêmico, análogo ao dos "jejuadores, dos que se acham em estado de inanição, dos que sofreram sangrias repetidas, dos convalescentes" (2). Tudo o que a mulher sadia e bem alimentada pode esperar é, depois do parto, recuperar seu desgaste sem muitas dificuldades. Mas muitas vezes, produzem-se, durante a gravidez, acidentes graves, ou perigosas perturbações e se a mulher não for robusta, se sua higiene não for perfeita, ficará prematuramente deformada e envelhecida pelas maternidades: sabe-se a que ponto o caso é frequente no campo. O parto em si é doloroso, é perigoso. É nessa crise que vemos com maior evidência que o corpo nem sempre satisfaz a espécie e o indivíduo ao mesmo tempo. Acontece a criança morrer e também, ao nascer, matar a mãe ou acarretar-lhe uma enfermidade crônica. O aleitamento é também uma servidão esgotante; um conjunto de fatores — o principal dos quais é, sem dúvida, o aparecimento de um hormônio, a progestina — traz às glândulas mamárias a secreção do leite; a ocorrência é dolorosa e acompanha-se, amiúde, de febres, e é em detrimento de seu próprio vigor que a mãe alimenta o recém-nascido. O conflito espécie-indivíduo, que no parto assume um aspecto dramático, confere ao corpo feminino uma inquietante



(1) Coloco-me aqui num ponto de vista exclusivamente fisiológico. É evidente que psicologicamente a maternidade pode ser muito útil à mulher, como pode também ser um desastre.

(2) Cf. H. Vignes em Traité de Physiologie, t. XI, dirigido por Roger e Binet.

fragilidade. Diz-se constantemente que as mulheres "têm doenças no ventre" e é verdade que encerram um elemento hostil: é a espécie que as corrói. Muitas de suas doenças não resultam de uma infecção de origem externa e sim de um desregramento interno. Assim é que as falsas metrites são produzidas por uma reação da mucosa uterina a uma excitação ovariana anormal; se persiste em lugar de ser absorvido, após a menstruação, o corpo amarelo provoca salpingites, endometrites etc.


E ainda através de uma crise difícil que a mulher escapa ao domínio da espécie; entre quarenta e cinco e cinquenta anos desenrolam-se os fenômenos da menopausa, inversos aos da puberdade. A atividade ovariana diminui e até desaparece. Esse desaparecimento acarreta um empobrecimento vital do indivíduo. Supõe-se que as glândulas catabólicas — tireoide e hipófise — esforçam-se por suprir as insuficiências do ovário; observa-se então, ao lado da depressão da cessação do mênstruo, fenômenos intempestivos: baforadas de calor, hipertensão, nervosismo; há, por vezes, recrudescência do instinto sexual. Certas mulheres acumulam, então, banha em seus tecidos; outras virilizam-se. Em muitas, um equilíbrio endócrino restabelece-se. Então, a mulher acha-se libertada da servidão da fêmea; não é comparável ao eunuco, porque sua vitalidade continua intata, entretanto, não mais é presa de forças que a superam: coincide consigo mesma. Já se afirmou que as mulheres idosas constituem "um terceiro sexo", e, com efeito, não são machos e não são mais fêmeas, traduzindo-se amiúde essa autonomia fisiológica por uma saúde, equilíbrio, e vigor que antes não possuíam.

Às diferenciações propriamente sexuais superpõem-se na mulher singularidades que são, mais ou menos, consequências diretas delas. São ações hormonais que determinam seu soma. Em média, ela é menor que o homem, menos pesada e seu esqueleto mais frágil, a bacia mais larga, adaptada às funções da gestação e do parto; seu tecido conjuntivo fixa as gorduras e suas formas são mais arredondadas que as do homem; a atitude geral — morfologia, pele, sistema piloso etc. — é nitidamente diferente nos dois sexos. Sua força muscular é muito menor, mais ou menos dois terços da do homem; sua capacidade respiratória é inferior, os pulmões, a traqueia e a laringe são menores; a diferença da laringe acarreta também a da voz. O peso específico do sangue é menor, pois há menos fixação de hemoglobina; as mulheres são, por conseguinte, menos robustas, mais predispostas à anemia. Seu pulso bate mais depressa, seu sistema vascular é mais instável: coram facilmente. A instabilidade é um traço marcante de seu organismo em geral. Entre outros, há no homem estabilidade no metabolismo do cálcio, ao passo que a mulher fixa muito menos sais de cal, pois os elimina durante as regras e durante a gravidez. É de imaginar que os ovários tenham, em relação ao cálcio, uma ação catabólica; essa instabilidade acarreta desordens nos ovários e na tireoide que é nela mais desenvolvida do que no homem, e a irregularidade das secreções endócrinas reage sobre o sistema nervoso vegetativo; o controle nervoso e muscular é imperfeitamente assegurado. Essa falta de estabilidade e de controle provoca sua emotividade, diretamente ligada às variações vasculares: pulsações, rubor etc; e elas são, assim, sujeitas a manifestações convulsivas: lágrimas, gargalhadas, ataques de nervos.

Vê-se que muitos desses traços provêm ainda da subordinação da mulher à espécie. Tal é a conclusão mais notável desse exame: é ela, entre todas as fêmeas de mamíferos, a que se acha mais profundamente alienada e a que recusa mais violentamente esta alienação; em nenhuma, a escravização do organismo à função reprodutora é mais imperiosa nem mais dificilmente aceita: crises da puberdade e da menopausa, "maldição" mensal, gravidez prolongada e não raro difícil, parto doloroso e por vezes perigoso, doenças, acidentes são características da fêmea humana. Dir-se-ia que seu destino se faz tanto mais pesado quanto mais ela se revolta contra ele, afirmando-se como indivíduo. Comparada com o macho, este parece infinitamente privilegiado: sua vida genital não contraria a existência pessoal; desenvolve-se de maneira contínua, sem crise e geralmente sem acidente. Em média, as mulheres vivem tanto quanto o homem, mas adoecem muito mais vezes e durante muitos períodos não dispõem de si mesmas.

Esses dados biológicos são de extrema importância: desempenham na história da mulher um papel de primeiro plano, são um elemento essencial de sua situação. Em todas as nossas descrições ulteriores, teremos que nos referir a eles. Pois, sendo o corpo o instrumento de nosso domínio do mundo, este se apresenta de modo inteiramente diferente segundo seja apreendido de uma maneira ou de outra. Eis por que os estudamos tão demoradamente; são chaves que permitem compreender a mulher. Mas o que recusamos, é a ideia de que constituem um destino imutável para ela. Não bastam para definir uma hierarquia dos sexos; não explicam por que a mulher é o Outro; não a condenam a conservar para sempre essa condição subordinada.




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O SEGUND O SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR

Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.

Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.

Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.


4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES
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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.

No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.


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Leia também:

O Segundo Sexo - 9. Fatos e Mitos: um dos traços mais notáveis


O Segundo Sexo - 11. Fatos e Mitos: afirmou-se muitas vezes que somente a fisiologia


O Segundo Sexo - 1 Fatos e Mitos: que é uma mulher?