quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Dom Casmurro: Ideia Sem Pernas e Ideia Sem Braços

Machado de Assis

Dom Casmurro





CAPÍTULO XXXVI
 IDEIA SEM PERNAS E IDEIA SEM BRAÇOS



Deixei-os, a pretexto de brincar, e fui-me outra vez a pensar na aventura da manhã. Era o que melhor podia fazer, sem latim, e até com latim. Ao cabo de cinco minutos, lembrou-me ir correndo à casa vizinha, agarrar Capitu, desfazer-lhe as tranças, refazê-las e concluí-las daquela maneira particular, boca sobre boca. É isto, vamos, é isto... Ideia só! ideia sem pernas! As outras pernas não queriam correr nem andar. Muito depois é que saíram vagarosamente e levaram-me à casa de Capitu. Quando ali cheguei, dei com ela na sala, na mesma sala, sentada na marquesa, almofada no regaço, cosendo em paz. Não me olhou de rosto, mas a furto e a medo, ou, se preferes a fraseologia do agregado, oblíqua e dissimulada. As mãos pararam, depois de encravada a agulha no pano. Eu, do lado oposto da mesa, não sabia que fizesse; e outra vez me fugiram as palavras que trazia. Assim gastamos alguns minutos compridos, até que ela deixou inteiramente a costura, ergueu-se e esperou-me. Fui ter com ela, e perguntei se a mãe havia dito alguma coisa; respondeu-me que não. A boca com que respondeu era tal que cuido haver-me provocado um gesto de aproximação. Certo é que Capitu recuou um pouco. 

Era ocasião de pegá-la, puxá-la, beijá-la... Ideia só! ideia sem braços! Os meus ficaram caídos e mortos. Não conhecia nada da Escritura. Se conhecesse, é provável que o espírito de Satanás me fizesse dar à língua mística do Cântico um sentido direto e natural. Então obedeceria ao primeiro versículo: "Aplique ele os lábios, dando-me o ósculo da sua boca". E pelo que respeita aos braços, que tinha inertes, bastaria cumprir o vers. 6.° do cap. II: "A sua mão esquerda se pôs já debaixo da minha cabeça, e a sua mão direita me abraçará depois". Vedes aí a cronologia dos gestos. Era só executá-la; mas ainda que eu conhecesse o texto, as atitudes de Capitu eram agora tão retraídas, que não sei se não continuaria parado. Foi ela, entretanto, que me tirou daquela situação.




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Texto de referência:

Obras Completas de Machado de Assis, vol. I,
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.

Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1899.

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terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Charles Dickens: Um Conto de Natal 05

Um Conto de Natal


Charles Dickens

05



SEGUNDA ESTROFE 
O primeiro dos três espíritos 


O espírito e Scrooge dirigiram-se para uma porta ao fundo do vestíbulo. A porta abriu-se diante deles, mostrando uma vasta sala, triste e deserta, a que uma longa fila de bancos e carteiras dava ainda um aspecto mais austero. 

Sentado num destes bancos, um estudante solitário lia junto de um lume quase apagado. Reconhecendo o pobre menino abandonado, que era ele próprio, Scrooge sentou-se e pôs-se a chorar. Os mais insignificantes ecos desta mansão, a algazarra dos ratos atrás do madeiramento, os gemidos do vento através da galhada seca de um choupo melancólico, o ranger preguiçoso de uma porta emperrada, tudo isso eram outros tantos ecos que penetravam no coração de Scrooge e lhe enchiam a alma de uma doce emoção. 

Tocando-lhe o braço, o espírito mostrou-lhe o menino engolfado em sua leitura. Subitamente, um homem, vestido com um costume exótico, apareceu atrás da janela, com um machado preso à cintura e puxando pela brida um burro carregado de madeiras. 

– Meu Deus! Mas é Ali-Babá! – exclamou Scrooge no auge da alegria. – É o meu querido e honrado Ali-Babá! Sim, sim! Bem me lembro. Foi mesmo num dia de Natal que ele apareceu pela primeira vez, vestido exatamente desta forma, a este pequeno estudante que ficara ali sozinho. Pobre criança... E Valentino, e Orson, seu irmão mais velho... Também estou a vê-los. E como se chama, mesmo, este rapagote, que foi raptado durante o sono e deixado semi-vestido às portas de Damasco? Não o vedes? E o palafreneiro do sultão, que os deuses derrubaram por ter desposado a princesa? Lá está ele de cabeça para baixo! Pois foi muito bem feito! Quem lhe mandou querer casar com a princesa?... 

Que espanto para seus colegas de negócios se pudessem ouvir Scrooge a discorrer com tanto entusiasmo sobre tais coisas, com voz estranha, onde se misturavam o riso e as lágrimas, e se pudessem ver seu rosto incendiado e seu ar excitado! 

– Olha! – exclamou ele –, lá está o papagaio, com o corpo verde, a cauda amarela e a espécie de alface que tem na cabeça, como uma poupa. “Pobre Robinson Crusoé!”, repetia ele quando seu amo voltou, depois de inutilmente ter dado volta à ilha. “Pobre Robinson Crusoé! Onde estiveste, Robinson Crusoé?” O homem não acreditava no que via, e, entretanto, era mesmo o papagaio que falava. Agora é o Sexta-Feira, que corre desabaladamente para abrigar-se na pequena enseada. .Coragem, Sexta-Feira! Vamos! Aí, valente!. 

– Eu bem quisera... – murmurou ele pondo as mãos nos bolsos e olhando em redor de si, depois de enxugar os olhos com a manga do casaco. – Eu bem quisera, mas já não é mais tempo... 

– Que há? – perguntou o fantasma. 

– Nada, – disse Scrooge –, nada. Eu estava pensando num garoto, que ontem à noite cantava uma ária de Natal diante de minha porta. Eu desejaria ter-lhe dado alguma coisa. 

O espírito sorriu pensativamente e ergueu a mão, dizendo: 

– Passemos a outro Natal. 

A estas palavras, a sombra do Scrooge de outros tempos cresceu e a sala tomou um aspecto ainda mais sombrio e descuidado. As finas tábuas que forravam as paredes da sala racharam-se, os vidros quebraram-se, e os fragmentos, que caíram do teto, deixaram ver as vigas nuas. Como se operou esta transformação, nem Scrooge nem ninguém poderia explicar. O certo é que tudo o que via era a representação da realidade, que tudo se tinha passado exatamente assim, e que só ele lá ficara ainda uma vez, quando todos os seus colegas haviam partido festivamente para as férias em seus lares. 

Desta feita, não estava engolfado na leitura, mas passeava pela sala de um lado para outro, com ar sombrio. Scrooge olhou para o espírito, e depois, abanando tristemente a cabeça, lançou um ansioso olhar para a porta. Esta abriu-se, e uma garotinha, muito mais nova que o estudante, apareceu na sala, enlaçou-lhe o pescoço com os braços e estreitou-o repetidas vezes, chamando-lhe “meu querido”, ‘querido irmãozinho’. 

Venho chamar-te para levar-te para casa, meu adorado! – disse ela, batendo palmas e rindo-se alegremente. Sim, levar-te para casa, para casa, para casa! 

Para casa? Será possível, querida Fani? 

Mas é claro! – disse a criança, radiosa. – Para casa, sim senhor! Papai ficou tão bom, que agora nossa casa é um verdadeiro paraíso. Uma destas noites, quando eu ia deitar-me, ele falou-me com tamanha ternura, que me atrevi a perguntar-lhe se irias regressar breve. Ele respondeu que sim, e mandou-me que viesse buscar-te com o nosso carro. Agora estás quase um homem, prosseguiu a criança, e nunca mais virás para cá. Mas, para começar, vamos festejar juntos o Natal, o mais alegremente que pudermos. 

E tu? Estás já uma verdadeira mulherzinha, Fani! – exclamou o rapazinho. 

A garota bateu palmas novamente, rindo-se, e ia acariciar-lhe a cabeça, mas, pequenina como era, teve de pôr-se na ponta dos pés, o que a fez rir. Depois, com pueril impaciência, puxou-o para a porta, e ele não se fez de rogado para acompanhá-la. 

No vestíbulo, ouviu-se uma voz terrível: 

Tragam a mala do menino Scrooge! 

E na mesma hora, no vestíbulo, apareceu o próprio dono da pensão, que envolveu Scrooge com um olhar de feroz condescendência, e lhe causou uma confusão extrema ao lhe dar um aperto de mão. Depois, levando-os para um horrível cubículo gelado, que servia de salão, onde as cartas geográficas suspensas às paredes, e os mapas múndi das vitrinas estavam recobertos de uma barrela viscosa, apresentou-lhes um frasco de um vidro singularmente pesado, ao mesmo tempo que mandava perguntar ao cocheiro, por uma criada extremamente magra, se era servido de tomar um cálice de “qualquer coisa”, ao que este respondeu que agradecia a gentileza, e que só aceitaria se não fosse a zurrapa ordinária da última vez. 

Colocada a mala do aluno Scrooge, os dois irmãos despediram-se do dono da pensão e tomaram assento alegremente no carro, que logo se pôs a rodar pela pequena avenida do jardim, fazendo voar, à sua passagem, estilhaços de neve, que cobriam os arbustos de azevinho como branca espuma. 

– Era uma delicada criatura, sensível à mais leve carícia, e dona de um grande coração, – disse o espírito. 

– Sim, um grande coração, – exclamou Scrooge. 

– Tendes razão, Espírito. Não serei eu quem vos dirá o contrário. 

– Morreu casadinha de novo, – disse o espírito, e deixou filhos, parece-me. 

– Um filho, – retificou Scrooge. 

– Ou isso, – disse o espírito. Teu sobrinho. 

Scrooge aquiesceu, com ar desajeitado. 


**** 



Mal deixaram o pensionato, logo se encontraram nas ruas movimentadas de uma grande cidade, por onde os transeuntes iam e vinham sobre os passeios, enquanto os carros disputavam a passagem e o tumulto e a agitação dos grandes centros faziam lembrar um campo de batalha. 


O aspecto das lojas indicava claramente que se estava de novo na época do Natal. Era noite, e as ruas estavam iluminadas. 

O espírito deteve-se diante da porta de uma loja e perguntou a Scrooge se a reconhecia. 

– Oh, se a reconheço! Não foi aqui que comecei o meu aprendizado? 

Ambos entraram. 

Um ancião, com uma peruca na cabeça, estava sentado em uma carteira tão alta, que mais umas polegadas e sua cabeça teria tocado o teto. 

À vista dele, Scrooge exclamou emocionado: 

– Meu Deus! Mas é o velho Fezziwig! Louvado seja Deus! É o velho Fezziwig ressuscitado! 

O velho Fezziwig pousou a caneta e olhou para o relógio, que marcava sete horas. Depois, esfregando as mãos, reajustou o largo colete, deu uma gargalhada que o sacudiu da cabeça aos pés, e berrou com voz sonora, plena, rica, grossa e jovial: 

– Olá, Ebenezer! Dick! 

O velho Scrooge, tornado agora um jovem, correu apressadamente, como o seu colega de aprendizado: 

– Ora esta! É Dick Williams! – disse Scrooge ao espírito. – É fato! É realmente ele, que foi sempre muito agarrado comigo, o bom rapaz! Pobre Dick! Meu Deus! Meu Deus! 

– Olá, rapazes! – exclamou Fezziwig –, o dia terminou. – Amanhã é Natal, Dick! É Natal, Ebenezer! – Fechem a loja, – gritou Fezziwig batendo palmas, e que os ferrolhos sejam ajustados imediatamente, antes que eu tenha tempo de dizer: Jack Robinson

Ninguém poderia imaginar a rapidez com que estes bravos rapazes cumpriram a ordem. Ambos se precipitaram para a rua com os ferrolhos... um... dois... três... ajustaram; quatro... cinco... seis... puseram as barras e as cunhas; sete... oito... nove... tornaram a entrar, resfolegando como cavalos de corrida, antes que tivessem tempo de contar até doze. 

– Vamos, adiante! – berrou o velho Fezziwig, pulando de sua escrivaninha com surpreendente agilidade. – Vamos, criançada! Desocupem tudo, arranjem o maior espaço possível! 

Arranjar espaço? Mas eles seriam capazes de desmontar tudo sob as ordens animadoras do velho Fezziwig! 

Em menos de um minuto, tudo estava pronto. Tudo que podia ser transportado foi tirado e levado para outras partes como se para desaparecer de uma vez da face da terra. O soalho foi varrido e encerado, os candelabros espanados, a lareira reabastecida. 

Dentro em breve, o armazém estava transformado em um belo salão de baile, tão confortável e bem iluminado quanto se poderia desejar numa noite de inverno. 

Neste instante, chegou o rabequista com um caderno de música. Empoleirando-se no alto de um estrado, e sob pretexto de afinar o instrumento, acabou por tirar dele apenas insuportáveis chiados. 

A seguir, entrou a senhora Fezziwig, cuja pessoa era inteirinha um vasto sorriso. Entraram, depois, as três meninas Fezziwig, radiantes e adoráveis, seguidas de seis rapagotes, cujos corações elas pisavam. Vieram, a seguir, todas as moças e moços que trabalhavam na loja, e mais a criada com seu primo e mais o padeiro. Vieram, depois, a cozinheira com o amigo íntimo de seu irmão, o leiteiro, o pequeno aprendiz da loja fronteira, que parecia passar fome em casa de seu patrão, e que procurava esconder-se por detrás da criadinha. 

Uns após outros, todos entraram, uns timidamente, outros afoitamente, estes com graça, aqueles desajeitados; uns empurrando os companheiros, outros puxando-os. Finalmente, de um modo ou de outro, todos entraram. 

Começada a festa, todos se puseram a dançar – vinte pares a um tempo – executando passos vários, avançando, recuando, rodopiando, voltando e recomeçando. O par da dianteira não sabia mais onde se meter, uma vez terminado o seu número, e o par seguinte saía sem esperar sua vez, de tal maneira que em breve só havia pares de dianteira e nenhum na traseira para substituí-los. 

Obtido este resultado, o velho Fezziwig exclamou: “Está ótimo!” e bateu palmas para fazer parar a dança. O músico mergulhou a cara congestionada num copázio de cerveja, enchido especialmente para ele. Logo, porém, que voltou, tratou de recomeçar a música com mais vivo entusiasmo, antes mesmo que os presentes estivessem prontos para dançar. Queria, talvez, que todos imaginassem que o primeiro músico, indo tomar cerveja, tinha ficado por lá e em lugar dele surgiu outro rabequista, novo em folha, disposto a ultrapassar o rival ou então morrer. 

Seguiram-se outras danças, depois alegres diversões, e depois ainda outras danças. Houve, em seguida, uma mesa de bolos, vinho quente, enormes pedaços de carne assada e cerveja à vontade. Mas o mais belo momento da noitada foi depois da ceia, quando o músico – aliás um guapo rapagão, podem acreditar –, como bom conhecedor de seu papel, atacou a ária de Sir Roger de Coverly. 

Foi então que o velho Fezziwig e esposa começaram pessoalmente a conduzir o baile: e posso afirmar que não era fácil dirigir vinte e três ou vinte e quatro pares de bailadores, e que bailadores! Era gente que sabia dançar de fato e não simplesmente arrastar os pés. Mas, mesmo que fossem duas, três ou mesmo quatro vezes mais, o velho Fezziwig seria capaz de aguentar a parada, do mesmo modo que a senhora Fezziwig, sua digna companheira em toda a extensão da palavra. 

Os pés de Fezziwig pareciam irradiar um brilho todo particular, fulgurando como meteoros em todos os pontos da dança ao mesmo tempo. Seria impossível prever onde iriam eles aparecer no momento seguinte. 

Quando o senhor e a senhora Fezziwig executaram todos os passos da contradança, Fezziwig terminou com um magnífico entrechat, depois do qual se pôs novamente em pé, firme e ereto como um I. 

Esta noitada familiar terminou exatamente quando o relógio bateu as onze horas. Então, o senhor e a senhora Fezziwig colocaram-se de cada lado da porta, apertando a mão a cada um dos convidados e desejando a cada um deles um feliz Natal. Quando todos se retiraram, com exceção dos dois aprendizes, os Fezziwig trocaram com estes os mesmos votos; em seguida, as alegres vozes calaram-se e os dois rapazes voltaram para seus leitos, arrumados num cômodo atrás da loja. 

Enquanto o baile durou, Scrooge comportou-se como um homem que tivesse sido transportado para a sua mocidade. Tomava parte de alma e coração na cena, com o Scrooge de outros tempos. Ele tudo reconhecia, lembrava-se de tudo, divertia-se com tudo e manifestava a mais estranha emoção. Foi somente quando os rostos alegres de Dick e do outro Scrooge se desviaram deles, que ele se lembrou da presença do espírito. Notou, então, que este o observava com atenção e que a claridade do ápice de sua cabeça brilhava com viva intensidade. 

– Não vejo nada de extraordinário para inspirar a estes idiotas tanto reconhecimento, – disse o espírito. 

– De fato, – disse Scrooge. 

O espírito fez-lhe sinal com o dedo para escutar os dois aprendizes que cantavam os louvores de Feziwig. Depois, continuou 

– Como? Aí está uma coisa engraçada! Este homem não despendeu senão algumas libras do seu dinheiro terrestre. Isso é razão para tanto elogio? 

– Não se trata disso, – protestou Scrooge já esquentado por esta observação e falando, sem que o percebesse, como teria falado o Scrooge de outrora. Não se trata disso, Espírito. Fezziwig tem o poder de nos fazer felizes ou infelizes; pode fazer que o nosso trabalho seja um prazer ou uma insuportável tarefa. Que este poder se manifeste por palavras, por gestos ou olhares, pouco importa; a felicidade que espalha em torno dele é tão grande como se custasse uma fortuna. 

Scrooge sentiu pesar sobre ele o olhar do espírito, e calou-se. 

– Que é que há? – perguntou este. 

– Nada de mais, – respondeu Scrooge. 

– Alguma coisa te preocupa, – insistiu o espírito. 

– Nada, mesmo, – disse Scrooge. – Eu gostaria de dizer duas ou três palavras a meu empregado, que aí está. 

Expresso este desejo, o antigo Scrooge apagou as velas, e Scrooge e o fantasma acharam-se novamente na rua, lado a lado. 

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

O Brasil nação - v1: § 19 – Incompatibilidade – entre o Império e a nação - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim



O Brasil nação volume 1





PRIMEIRA PARTE
SEQUÊNCIAS HISTÓRICAS



capítulo 2
a reação da nacionalidade






§ 19 – Incompatibilidade – entre o Império e a nação




Tudo isso, feito contra o governo de Pedro I, teve o efeito de malquistá-lo definitivamente com a nação: a Assembleia de 1826 cortou todos os laços entre o imperador e o Brasil. Não se dizia revolucionaria, mas procedia com um tal desassombro, que, reeleita em maioria, esteve pronta a apresentar e discutir um projeto – considerando Pedro I incapaz de governar o Brasil. Não era revolucionária, pois que lutava sobretudo pela realidade da constituição, e, no entanto, servia de voz aos que precipitaram a queda do governo imperial. A oposição republicana batia-se abertamente pela federação; era ideia vencedora entre os liberais, mesmo aqueles que ainda confiavam na monarquia constitucional; isto é, ao lado dos que pediam intransigentemente a república, havia a corrente intermediária – dos que pretendiam resolver a crise com o Império federado. Como todas as soluções de transigência, essa monarquia sobre províncias autônomas seria monstruosa: o Império, com os Braganças, só podia substituir na forma centralizada, expressão do poder imperial sobre a nação. A federação erguia um outro poder, dos governos locais, fórmula de liberdade e de democracia, que tornaria absolutamente dispensável a ossatura férrea da dinastia hereditária. Com isso, porém, a Assembleia, onde se refletiam tais aspirações, e que, condensando-as, lhes dava novo alento; a Assembleia teve a significação de revolucionária. Note-se, ainda, que alguns dos deputados eram francamente republicanos. Por tudo isso, era a propaganda federalista a que mais feria e ofendia os zelos do Império de Pedro I. No vértice da crise – quando buscou o amparo dos mineiros, falando-lhes, lá deixou a nota de inquietação: “...Escrevem sem rebuço, e concitam os povos à federação...” O insucesso, patenteado na frieza e no pouco caso com que foi recebido e tratado, firmaram, então, a resolução de abdicar, coisa que, desde há muito, ele, o imperador, admitia como solução única da situação em que se encontrava. Ora, praticamente, quem é que o levou a essa forma de decisão? Quem eram os seus adversários patentes, e com meios de ação capazes de fazê-lo renunciar ao domínio do Brasil?.. A atitude dos mineiros foi o último, cronologicamente, dos motivos da decisão: 

... Regressou ao Rio de Janeiro, desabusado, desgostoso, e de ânimo abatido. A frieza e falta de respeito com que foi recebido em toda parte, juntas ao mau êxito que tivera a sua proclamação (aos mineiros), completamente o desenganaram, de sorte que várias vezes, no decurso da volta, falou na intenção em que estava de abdicar em favor do filho, e de retirar-se para sempre do Brasil.

Tais são os termos de Armitage, presente no Rio de Janeiro, e que confirmam o êxito definitivo da oposição, condensada na Assembleia dos deputados. Noutra página, esse historiador ainda insiste no fato de que Pedro I já estava disposto, antes de 7 de abril, a retirar-se. É quando refere (sublinhando o verbo), que Barbacena, ex-íntimo e sócio do imperador, dissera aos revolucionários: “Sei que D. Pedro facilmente será induzido a abdicar...” 

Não para simples amostra de erudição, mas para acentuar o valor da ação política desenvolvida na Assembleia dos legítimos representantes do Brasil: torna-se indispensável verificar esse trecho de verdade, porque, posteriormente, os douradores dos Braganças entenderam empanar a vitória de 7 de abril, transformando a confessada derrota e retirada do príncipe estrangeiro em grandeza de alma, e penhor do seu amor a esta pátria. Então, a abdicação teria sido o gesto de magnanimidade de quem se sacrifica para evitar uma luta civil: Othon em face das tropas de Vitellius... É desse teor, entre outros, o biografista Sr. Macedo, e o panegirista Monsenhor Pinto de Campos. O primeiro é o historiador que só conta para elogiar, e para quem todo biografado deve ser um herói. Nessa facilidade de critério, ele investe contra a verdade, contra a própria lógica, e afirma: “... se o imperador quisesse a 6 de abril resistir à revolução, e combatê-la, teria do seu lado pelo menos uma parte dos corpos militares...” Pinto de Campos, constrói a sua história baseando-se num contaram-me:


... que o major Luiz de Lima e Silva, referindo ao imperador o estado de indisciplina das tropas, ofereceu-se para debelar a revolução iminente com o batalhão do imperador e o corpo de artilharia montada; mas Pedro I repeliu a oferta, com a afirmação de que não queria, de modo algum, que por sua causa se derramasse sangue brasileiro...


É muita coragem, no ataque à verdade! O corriqueiro na história, até em Pereira da Silva e equivalentes, é que: falhando o último recurso – do apelo a Vergueiro, abandonado por todos, inclusive, e muito explicitamente pelo seu batalhão; atormentado, irritado, fatigado, Pedro I se decidiu a realizar a velha resolução de último caso, e escreveu a curta e vazia abdicação, que, em pranto, entregou ao Major Frias. Abreu Lima, caramuru insuspeitíssimo, por isso mesmo tanto se irrita contra o exército revoltado, e vocifera, em referência geral: “... Esse mesmo, que o imperador havia mantido com tamanho prejuízo da sua popularidade, e sobre o qual havia depositado mais confiança do que no povo, estava destinado a traí-lo”. O mesmo conceito, com menos dureza, encontra-se em Armitage: “Uma sedição militar... abandonado por todos...”” 

Quanto à manifestação de Luiz de Lima, a mentira foi prontamente repelida, por todos os Limas, inclusive o Luiz: orgulharam-se em afirmar-se realizadores do 7 de Abril. Nem se compreende que fosse de outro modo: naquele momento, os muitos Limas estavam, todos, em posições eminentes sobre a guarnição do Rio de Janeiro; a revolução teve a aquiescência ativa de guarnição militar, que a garantiu, para que não pudesse haver nem tentativa de resistência. E tudo isto se fez sob a influência ostensiva da família Lima e Silva. O próprio Luiz de Lima negou o fato que lhe imputavam, pois que a verdade era toda outra. Empenhados em salvar o trono, mesmo evitando o movimento, os moderados mandaram Francisco de Lima a São Cristóvão para obter que o imperador restabelecesse o ministério parlamentar. Repelindo a insinuação, Pedro I, ordenou a remessa de mais dois batalhões para garanti-lo. Foi quando Lima lhe disse a verdade quanto ao espírito da tropa, quase toda já em marcha para o Campo, e ele caiu no desânimo em que assinou o papel que entregou a Miguel de Frias. Lembremo-nos de que o chefe da família, general comandante das armas de Pedro I, Lima e Silva, foi, desde logo, membro da regência provisória, donde passou para a regência definitiva; ao passo que não se conservavam os companheiros, na regência permanente, ele foi, de fato, o permanente, quando Bráulio e Costa Carvalho desanimaram e abandonaram o posto. Isto é a prova absoluta de que ele fora o chefe militar da revolução. Macedo, ao biografar D. Pedro de Alcântara, julgou legítimo liberalizar-lhe elogios, com sacrifício da verdade; mas, mesmo na sua pena, a realidade transparece, e ele refere fatos e circunstâncias que patenteiam a decisão de abdicar, antes de 7 de abril. Baseado em informações da família Lima e Silva, o biografista garante que, depois de já estar à frente das tropas revoltadas, Francisco Lima e Silva, veio a São Cristóvão para concitar o imperador a que cedesse às exigências do povo e da tropa. Nessa ocasião, Pedro I disse estar decidido a abdicar; Lima e Silva fez protestos de sentimentos monárquicos, e o imperador lhe entregou a sorte dos filhos... O comandante das armas voltou, então, para o Campo de Sant’Ana. Na biografia de Manuel Antônio Galvão, vem referido um incidente em contraprova disto mesmo:


... homem de consciência sã, incapaz de faltar à verdade, Galvão dizia que indo tomar posse da presidência de Minas, encontrara o imperador, que voltava dessa província, desgostoso e meditabundo, e que este confidencialmente lhe dissera, que estava resolvido a abdicar a coroa imperial do Brasil.


Feijó, com o intenso interesse que dava às coisas políticas, e o grande amor à verdade, não hesita em afirmar:


No Brasil o monarca abdicou espontaneamente, porque os remorsos o ralavam: a opinião pública o abandonou: não viu mais meios de conservar-se; descoroçoou, e teve razão. A reunião de 6 de abril no campo de honra apressou talvez somente de alguns dias a abdicação: ela já havia muito estava projetada, segundo afirmam testemunhas auriculares.100

O primeiro imperador foi expelido do Brasil; saiu repudiado pela nação, que, ingênua, foi facilmente iludida e traída. Depois, na reação natural, em vista de decepções e cansaço, pode haver um partido restaurador, sem força efetiva, apesar de revigorado no facciosismo dos Andradas. Depois ainda, esse mesmo cansaço, que já era esgotamento e recaída na infecção, com a forma de uma longa depressão, permitiu o segundo reinado. Nada disto, porém, altera a significação de 7 de Abril: foi uma legítima reivindicação nacional. Sem a vitória de então, se Pedro I tivesse levado a termo natural as suas pretensões, o Brasil teria deixado, inteiramente, de ser expressão do seu passado, e não restaria esperança de que ressuscitássemos as tradições de 1817 e 24. Da mesma sorte: se a revolução de 1831 não tivesse sido frustrada; se fosse levada aos seus desenvolvimentos necessários, é de crer que tivéssemos: alcançado os destinos prenunciados para a nacionalidade que, nos meados do século XVII, se achava vitoriosa sobre a Holanda, e senhora exuberante dos caminhos para o interior do continente.


100 Diogo Feijó, Eugenio Egas, II, 188.



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"Morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."

Cecília Costa Junqueira



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O Brasil nação: vol. I / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 332 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 35).


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Download Acesse:

http://www.fundar.org.br/bbb/index.php/project/o-brasil-nacao-vol-i-manoel-bonfim/


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O Brasil nação - v1: § 20 – O novo malogro - Manoel Bomfim


13. O Guardador de Rebanhos - XIII - Leve - Alberto Caeiro

Fernando Pessoa





XIII - Leve




Leve, leve, muito leve, 
Um vento muito leve passa,
E vai-se, sempre muito leve.
E eu não sei o que penso
Nem procuro sabê-lo








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O Guardador de Rebanhos
Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)
(Fonte: http://www.cfh.ufsc.br/~magno/guardador.htm)


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Leia também:

12. O Guardador de Rebanhos - XII - Os Pastores de Virgílio - Alberto Caeiro


14. O Guardador de Rebanhos - XIV - Não me Importo com as Rimas - Alberto Caeiro

Charles Dickens: Um Conto de Natal 04

Um Conto de Natal


Charles Dickens

04



SEGUNDA ESTROFE 
O primeiro dos três espíritos 


Quando Scrooge despertou, a escuridão era tão profunda que, de seu leito, mal podia distinguir a janela transparente e as escuras paredes do quarto. No momento em que se esforçava para romper a intensa treva que envolvia seus olhos, ouviu bater numa igreja das vizinhanças os quatro quartos. 

Scrooge aguçou os ouvidos para escutar as horas que iam bater. 

Com grande surpresa, o pesado carrilhão deu as seis... as sete... as oito... e assim, ritmadamente, até as doze. 

Meia-noite! 

Eram mais de duas horas quando Scrooge se atirara sobre o leito. Não era possível! O relógio devia estar louco. Alguma coisa devia ter-lhe embaraçado o maquinismo! Meia-noite! 

Scrooge premiu a mola do seu relógio de repetição para verificar a exatidão daquele relógio idiota. A minúscula engrenagem bateu rapidamente as doze vibrações e parou. 

– Vejamos, – disse Scrooge. – É impossível que eu tenha dormido o dia inteiro e uma parte da noite. Acaso terá acontecido alguma coisa ao sol e seja agora meio-dia em vez de meia-noite? 

Bastante alarmado com esta ideia, ergueu-se do leito e dirigiu-se para a janela, a tatear, como um cego. A primeira coisa que fez foi passar a manga do roupão pela vidraça, que a neblina embaçava, e mesmo assim quase nada conseguiu distinguir fora. 

A coisa única que pôde verificar é que o nevoeiro continuava espesso, como dantes, e que o frio era demasiado intenso; notou, ainda, que já não se ouviam as idas e vindas das pessoas atarefadas, o que certamente se ouviria, se já estivesse clareando o dia. 

Este fato foi para ele um grande alívio, pois o que seria dele com as suas letras a pagar a três dias da data ao sr. Ebenezer Scrooge ou à sua ordem, se ele não dispusesse de dias para contar o tempo? 

Scrooge tornou a deitar-se, o pensamento vagando sobre o que poderia ter acontecido, mas por mais que quebrasse a cabeça para a decifração de tão complicado enigma, nada conseguiu desvendar. 

Quanto mais ruminava o caso, mais perplexo ficava, e quanto mais se esforçava por não pensar no caso, mais o caso assoberbava o seu pensamento. 

A lembrança do espectro de Marley causava-lhe um profundo tormento. Cada vez que chegava a convencer-se de que, afinal de contas, todo o ocorrido não fora mais que um sonho mau, crac! lá estava seu espírito novamente às voltas com o problema, no próprio ponto de partida, formulando novamente a mesma pergunta: “Era ou não era um sonho?” 

Scrooge permaneceu nesta agonia até o momento em que o carrilhão bateu os três quartos. Foi então que se lembrou, subitamente, de que o espectro lhe havia prenunciado a visita de um espírito quando batesse uma hora da manhã. Nestas condições, resolveu ficar acordado até chegar a uma hora da manhã. Diga-se de passagem que esse foi o melhor caminho a seguir, especialmente levando-se em conta que mais fácil lhe fora chegar até o mundo da lua do que tornar a adormecer. 

Este quarto de hora foi tão interminável, que lhe pareceu, mais de uma vez, ter dormido e deixado passar a hora. 

Finalmente, o carrilhão fez-se ouvir aos seus inquietos ouvidos: 

– Ding, dong! 

– Um quarto... – contou Scrooge, escutando atentamente. 

– Ding, dong! 

– Meia hora. 

– Ding, dong! 

– Três quartos. 

– Ding, dong! 

– A hora! – exclamou Scrooge triunfante. – A hora, e nada! 

Mas é que Scrooge falava antes de ouvir o bater da uma hora da manhã no pesado badalar do carrilhão. E o badalar da uma hora da manhã fez-se ouvir, lúgubre, fúnebre, surdo e melancólico. Imediatamente, uma vivíssima claridade invadiu o aposento de Scrooge, ao mesmo tempo que as cortinas do seu leito foram puxadas por uma mão invisível. 

Porém, não eram as cortinas dos pés nem as da cabeceira do leito de Scrooge, mas as que estavam diante de seus olhos, aquelas para as quais seus olhares estavam voltados. Então Scrooge, sentando-se bruscamente, achou-se frente a frente com o sobrenatural visitante que havia afastado as cortinas do leito. 

Era uma estranha aparição. 

A primeira vista, ter-se-ia a impressão de ver-se uma criança, mas, a um exame mais minucioso, verificava-se que seria antes um velho, um ancião visto através de uma atmosfera sobrenatural, que lhe dava uma aparência longínqua e o reduzia às proporções de uma criança. Seus cabelos, brancos como os de um homem de idade, caíam-lhe pelos ombros; seu rosto, entretanto, não apresentava a menor ruga, e sua tez era de uma deliciosa frescura. Os braços, longos e musculosos, bem como suas mãos robustas, denunciavam extrema força. As pernas e os pés, finamente modelados, estavam nus como os membros superiores. 

O ancião vestia uma túnica de puríssima alvura, apertada à cintura por uma faixa luminosa, que brilhava com refulgente esplendor; à mão, trazia um ramo de azevinho e, em fundo contraste com este símbolo do inverno, sua túnica era toda bordada de flores primaveris. Mas o que apresentava de mais curioso era o facho de luz que se desprendia do ápice de sua cabeça, e graças ao qual todos estes pormenores podiam ser notados. Este fenômeno explicava a presença do grande apagador em forma de chapéu que trazia embaixo do braço, e com o qual devia cobrir-se em seus momentos de tristeza. 

Entretanto, observando-a com mais atenção, Scrooge notou que a aparição apresentava uma particularidade ainda mais extraordinária. Do mesmo modo que sua cintura resplandecia ora num ponto, ora noutro, e que um ponto ainda há pouco luminoso agora estava escuro, todo o seu corpo mudava constantemente de aspecto, mostrando-se ora com um só braço, ora com uma só perna, ou então com vinte pernas, mas sem cabeça, ou então uma cabeça sem corpo. Das várias partes que desapareciam, nem um único contorno ficava visível naquela extrema escuridão em que se envolviam. E no meio de todas estas estranhas metamorfoses, a aparição retomava, de súbito, sua primeira forma, nítida e perfeita como antes. 

– Sois vós o espírito, cuja visita me foi anunciada? – perguntou Scrooge. 

– Sim. 

Aquela voz era doce e agradável, mas singularmente fraca, como se, em vez de estar tão próxima, viesse de muito longe. 

– Então, quem sois vós? – perguntou Scrooge. 

– Sou o fantasma dos Natais passados. 

– Passados desde quando? – interrogou Scrooge, observando o seu talhe delgado. 

– Somente os do teu passado. 

Scrooge sentia um ardente desejo de vê-lo coberto com o chapéu que trazia à mão; se alguém lhe perguntasse qual a razão disto, jamais teria sabido responder. 

– Como? – exclamou o fantasma. – Queres tão depressa extinguir, com as tuas mãos profanas, a fulgurante luz que resplandece em mim? Não te basta seres daqueles cujas paixões me teceram este chapéu e que me forçam tantas e tantas vezes a enterrá-lo até aos olhos? 

Scrooge declarou respeitosamente não ter tido a menor intenção de ofender o espírito e afirmou não lembrar-se jamais de o ter forçado, em toda a sua vida, a “usar” aquele chapéu. Em seguida, atreveu-se a perguntar-lhe o que o trazia ali. 

– Tua felicidade, – respondeu a aparição. 

Scrooge declarou-se profundamente agradecido, mas não deixou de pensar que uma noite de repouso teria concorrido mais eficazmente para este resultado. 

O espírito pareceu ler seu pensamento, pois no mesmo instante falou: 

– Tua salvação, se preferes. Ouve-me! 

Assim falando, estendeu a mão para Scrooge e tomou-o levemente pelo braço. 

– Levanta-te, e vem comigo. 


**** 


Teria sido inútil a Scrooge responder que nem o tempo, nem aquele momento eram propícios para um passeio a pé; que sua cama estava tão quentinha e que o termômetro estava muitos graus abaixo de zero; que, além disso, estava vestido apenas com o roupão, com o boné de noite e de chinelos, e que, para rematar, estava muito gripado. 


A pressão exercida pela mão do espírito, porém, tão doce como se fora a de uma mulher, era de todo irresistível. Assim, pois, Scrooge levantou-se, mas vendo que o espírito se dirigia para a janela, tocou-lhe a túnica e falou com voz súplice: 

– Oh, senhor! Sou apenas um mortal e posso cair! 

– Deixa-me apenas segurar-te por aqui, – disse o espírito pondo a mão sobre o coração de Scrooge, e serás capaz de enfrentar muitos outros perigos. 

Ditas estas palavras, ambos passaram através da parede e acharam-se logo numa estrada orlada de campos. A cidade havia-se evanescido, não restando dela um único traço; do mesmo modo, haviam desaparecido a noite e o nevoeiro, fazendo agora um tempo hibernal claro e frio, com a terra coberta pela neve. 

– Bondade divina! – exclamou Scrooge juntando as mãos. Foi aqui que fui criado! Aqui foi que passei a minha infância! 

O espírito envolveu-o num olhar benévolo. Embora tivesse posto a mão apenas um instante sobre o coração do velho, este julgou sentir ainda o calor daquele contato. Flutuavam no ambiente mil perfumes amigos, cada um dos quais evocava uma multidão de pensamentos, de esperanças, de alegrias e pesares passados, de muitos anos atrás . 

– Tens os lábios trêmulos, – observou o fantasma –, e o que estou vendo em tuas faces? 

Scrooge, com voz rouquenha, o que estava fora dos seus hábitos, respondeu que era uma verruga, e declarou que estava disposto a seguir o espírito para onde quer que fosse. ! 

– Reconheces o caminho? – perguntou o espírito. 

– Oh, se o reconheço! – respondeu Scrooge com emoção; – poderia andar por ele de olhos fechados! 

– É estranho que o tenhas esquecido durante tantos anos, – observou o espírito. – Vamos adiante. 

Ambos prosseguiram, e Scrooge ia reconhecendo à cada casa, cada árvore, cada poste. Logo a seguir, apareceu um pequeno povoado, com sua igrejinha, sua ponte e o rio sinuoso. Avistaram, então, na entrada, vários rapazes montados em hirsutos pôneis, e que se comunicavam alegremente com outros jovens montados em carriolas camponesas. 

Toda esta juventude transbordava de vida e de entusiasmo, e suas vozes enchiam o campo de uma música tão alegre que o ar cristalino parecia todo entrar em vibração. 

– São apenas sombras do passado, – disse o espírito; – elas não podem perceber a nossa presença. 

À medida que os alegres cavaleiros se aproximavam, Scrooge reconhecia-os e chamava-os pelo nome. 

Por que lhe causava tanta satisfação a presença daqueles amigos? Por que lhe batia tão descompassadamente o coração e se lhe iluminavam os olhos ao vê-los passar? Por que se sentia tão cheio de alegria ao ouvir estes rapazes trocarem mútuas felicitações e votos de feliz Natal, quando se despediam nas encruzilhadas para regressarem a suas casas? Que significava para Scrooge um “Feliz Natal”? Que vá para o diabo o "Feliz Natal"! Que proveito havia ele tirado do Natal? 

– A escola não está de todo deserta, – disse o espírito; – um menino solitário, abandonado pelos seus, ainda ali está. 

Scrooge declarou que bem o sabia, e reprimiu um soluço. 

Deixando a estrada principal, entraram por uma vereda, que Scrooge bem conhecia. Ao cabo de poucos instantes, chegaram a uma grande construção de tijolos vermelhos, encimada por um pequeno campanário. A casa devia ter sido importante, mas teria passado por diversos reveses, pois suas vastas dependências pareciam abandonadas, com suas paredes úmidas e emboloradas, os pisos fendidos e as portas abaladas. As aves domésticas cacarejavam à solta no pasto, e o mato havia invadido as cocheiras. 

Dentro, nem o mais ligeiro vestígio do seu antigo esplendor. Penetrando no silencioso vestíbulo, Scrooge e o espírito entreviram, pelas portas abertas, frias e escuras dependências parcamente mobiliadas. Casavam-se o cheiro de mofo, que flutuava no ar, e a nudez geral do ambiente, à ideia de que ali deviam levantar-se ainda com o escuro e talvez não pudessem alimentar-se quanto desejariam.


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Leia também:

Charles Dickens: Um Conto de Natal 01
Charles Dickens: Um Conto de Natal 02
Charles Dickens: Um Conto de Natal 03
Charles Dickens: Um Conto de Natal 05

domingo, 25 de dezembro de 2016

Série Ballet - Béjart Ballet Lausanne

Brel et Barbara



ah, o corpo... quanto pecado e quanta graça humana









Brel Barbara Bejart









La valse à mille temps










Jacques Brel
La Valse à Mille Temps 
(1961)











La valse à mille temps

Au premier temps de la valse
Toute seule tu souris déjà
Au premier temps de la valse
Je suis seul mais je t'aperçois

Et Paris qui bat la mesure
Paris qui mesure notre émoi
Et Paris qui bat la mesure
Me murmure murmure tout bas

{refrain:}

Une valse à trois temps
Qui s'offre encore le temps
Qui s'offre encore le temps
De s'offrir des détours
Du côté de l'amour
Comme c'est charmant
Une valse à quatre temps
C'est beaucoup moins dansant
C'est beaucoup moins dansant
Mais tout aussi charmant
Qu'une valse à trois temps
Une valse à quatre temps
Une valse à vingt ans
C'est beaucoup plus troublant
C'est beaucoup plus troublant
Mais beaucoup plus charmant
Qu'une valse à trois temps
Une valse à vingt ans
Une valse à cent temps
Une valse à cent ans
Une valse ça s'entend
A chaque carrefour
Dans Paris que l'amour
Rafraîchit au printemps
Une valse à mille temps
Une valse à mille temps
Une valse a mis le temps
De patienter vingt ans
Pour que tu aies vingt ans
Et pour que j'aie vingt ans
Une valse à mille temps
Une valse à mille temps
Une valse à mille temps
Offre seule aux amants
Trois cent trente-trois fois le temps
De bâtir un roman
Au deuxième temps de la valse
On est deux tu es dans mes bras
Au deuxième temps de la valse
Nous comptons tous les deux une deux trois
Et Paris qui bat la mesure
Paris qui mesure notre émoi
Et Paris qui bat la mesure
Nous fredonne fredonne déjà

{refrain}

Au troisième temps de la valse
Nous valsons enfin tous les trois
Au troisième temps de la valse
Il y a toi y a l'amour et y a moi
Et Paris qui bat la mesure
Paris qui mesure notre émoi
Et Paris qui bat la mesure
Laisse enfin éclater sa joie.




*****


Ao primeiro tempo da valsa
Estou só e te vejo lá
Teu sorriso
No teu rosto está
O salão bate o compasso
O compasso em todo salão
No salão abre-se o espaço
Ao bater do meu coração

Uma valsa ao violão
Melhor não dançar não
Melhor não dançar não
Melhor ter tua mão
Dentro da minha mão
A valsa ao violão
A valsa canção
Com certa lentidão
Com certa lentidão
Precisa distinção
Exige atenção
Circunspecção

Uma valsa alemã
A cada evolução
A cada evolução
O calcanhar no chão
Parece um batalhão
Do exército alemão

Uma valsa em Paris
Uma valsa em Paris
Uma valsa em Paris
Em comemoração
Em noite de verão
Viva a revolução

Uma valsa de Strauss
Uma valsa de Strauss
Uma valsa de Strauss
Faz bem ao coração
Faz mal ao coração
É uma declaração

Uma valsa de Strauss
Uma valsa de Strauss
Uma valsa de Strauss
Nos traz outra emoção
Nos traz outra emoção
Dentro dum turbilhão

No segundo tempo da valsa
Eu já sei que é minha vez
Em tirar-te
Em tempo de valsa
E cantar contigo
Um, dois, três

No salão bate o compasso
Em compassos todo o salão
No salão abre-se o espaço
Pra meus braços
E meu coração

Uma valsa ao violão
Melhor não dançar não
Melhor não dançar não
Melhor ter tua mão
Dentro da minha mão
A valsa ao violão
A valsa canção
Com certa lentidão
Com certa lentidão
Precisa de atenção
Distinção
Circunspecção

Uma valsa alemã
A cada evolução
A cada evolução
O calcanhar no chão
Parece um batalhão
Do exército alemão

Uma valsa em Paris
Uma valsa em Paris
Uma valsa em Paris
Em comemoração
Em noite de verão
Viva a revolução

Uma valsa de Strauss
Uma valsa de Strauss
Uma valsa de Strauss
Faz bem ao coração
Faz mal ao coração
É uma declaração

Uma valsa de Strauss
Uma valsa de Strauss
Uma valsa de Strauss
Nos traz outra emoção
Nos traz outra emoção
Dentro dum turbilhão

No terceiro tempo da valsa
Somos três
A valsar com ardor
No terceiro tempo da valsa
Valsa tú, valsas eu
Valsa o amor

E o salão
O salão
Todo em compassos
Em compassos
Todo o salão
E só tu estás
Nos meus braços
Nos meus braços
E meu coração

Uma valsa ao violão
Melhor não dançar não
Melhor não dançar não
Melhor ter tua mão
Dentro da minha mão
A valsa violão
A valsa canção
Com certa lentidão
Com certa lentidão
Precisa de distinção
Exige-se atenção
Circunspecção

Uma valsa alemã
A cada evolução
A cada evolução
O calcanhar no chão
Parece um batalhão
Do exército alemão

Uma valsa em Paris
Uma valsa em Paris
Uma valsa em Paris
Em comemoração
Em noite de verão
Viva a revolução

Uma valsa de Strauss
Uma valsa de Strauss
Uma valsa de Strauss
Faz bem ao coração
Faz mal ao coração
É uma declaração

Uma valsa de Strauss
Uma valsa de Strauss
Uma valsa de Strauss
Nos traz outra emoção
Nos traz outra emoção
Dentro dum turbilhão



********



Na primeira hora da valsa
Sozinho você já rato
primeira vez valsa
Eu estou sozinho, mas eu vejo você
E que bate Paris
Paris que mede a agitação
E Paris que bate
me sussurro sussurro sussurro

uma valsa em três vezes
que ainda tem tempo
Quem ainda tem tempo
de pagar desvios
Como encantadora
Uma valsa a quatro vezes
Isto é muito menos dançar
Isto é muito menos dançar
Mas, assim como encantadora
Isso leva de três para dançar o tango waltz
a quatro vezes
uma valsa a vinte anos
é muito mais perturbador
é muito mais perturbador
Mas muito mais charmoso
Isso leva de três para dançar o tango waltz
aos vinte
Uma valsa cem vezes
Uma valsa cem anos
Uma valsa isso significa

a cada encruzilhada em Paris que amam
primavera
uma valsa
uma valsa tem tempo
a partir de vinte espera
para você ter vinte
E há anos que tenho vinte anos
Uma valsa
Uma valsa
Uma oferta valsa
só para os amantes
trezentos e trinta e três vezes o tempo
para construir um romance

no segundo tempo
é dois valsa é você em meus braços
na segunda momento da valsa
esperamos que tanto um
Paris que bate
Paris que mede nossa
Medimos zumbido já cantarola

Uma valsa em três vezes
Quem ainda tem tempo
Quem ainda tem tempo
de pagar desvios
no lado do amor
Como encantadora
Uma valsa a quatro vezes
isso é muito menos dançar
isso é muito menos dançar
mas igualmente encantador
que a-passo três valsa para dançar o tango

a quatro vezes valsa vinte anos
é muito mais perturbador
Isto é muito mais preocupante
Mas muito mais charmoso
que a-passo três valsa para dançar o tango

a vinte por cento do tempo de valsa
uma valsa cem anos
a valsa isso significa

a cada encruzilhada em Paris que o amor

Atualiza a primavera Uma valsa
Uma valsa tempo
uma valsa tem tempo
a partir de vinte espera
por que você tem vinte anos
E eu tenho vinte anos
uma valsa
uma valsa
uma valsa
só oferecem aos amantes
trezentos e trinta e três vezes o tempo
para construir um romance

no terceiro momento da valsa
Nós Valsons, finalmente, todos
lá está você amor e não há me
E Paris que bate
Paris que mede a agitação
E Paris que bate
finalmente deixar sua alegria

um de três etapas valsa
Quem ainda tem tempo
Quem ainda tem tempo
de pagar desvios
Como encantador 
a valsa 
Isto é muito menos dançar
Isto é muito menos dançar
Mas, assim como encantadora
que um três-passo de valsa
a quatro vezes valsa ao tango

Isto 20 anos é muito mais preocupante
é muito mais perturbador
Mas muito mais charmoso
que três para tango
Uma valsa aos vinte
Uma valsa cem vezes
Uma valsa cem anos
Uma valsa isso significa
em cada encruzilhada
em Paris amor

Atualiza a mola uma valsa
uma valsa
uma valsa tem tempo
a partir de vinte espera
há anos que você tem vinte anos
E eu tenho vinte anos
Uma valsa
Uma valsa
Uma valsa
só oferecem aos amantes
trezentos e trinta e três vezes o

Lalalaala, lalalaa
Lalalaala, Lala!



****


Quanto mais procuro tradução para esta valsa mais diferentes traduções encontro. Então, desisti... é como tentar traduzir o ballet o champagne os vinhos os amores a quentura do estômago a fervura dos nervos a tremura dos sentidos o suor das mãos o calor do olhar o mistério e a resistência do berimbau... ah, o corpo... quanto pecado e quanta graça humana nos artelhos dos pés




Reggae É Amor 02 - Is This Love?

Bob Marley




Is this love, is this love, is this love







I want to love you, and treat you right,
I want to love you, every day and every night,
We'll be together, with a roof right over our heads,
We'll share the shelter, of my single bed,
We'll share the same room, yeah! For Jah provide the bread.


Is this love, is this love, is this love,
Is this love that I'm feelin'?
Is this love, is this love, is this love,
Is this love that I'm feelin'?

I want to know, want to know, want to know now!
I got to know, got to know, got to know now!

I, I'm willing and able,
So I throw my cards on your table!

I want to love you, I want to love and treat, love and treat you right,
I want to love you every day and every night,
We'll be together, yeah! With a roof right over our heads,
We'll share the shelter, yeah, oh now! of my single bed,
We'll share the same room, yeah! For Jah provide the bread.

Is this love, is this love, is this love,
Is this love that I'm feelin'
Is this love, is this love, is this love,
Is this love that I'm feelin'?
Whoa! Oh yes I know, yes I know, yes I know now!

Oh yes I know, yes I know, yes I know now!
I, I'm willing and able,
So I throw my cards on your table!
See, I want to love ya, I want to love and treat ya,
love and treat ya right.

I want to love you every day and every night,
We'll be together, with a roof right over our heads!
We'll share the shelter, of my single bed,
We'll share the same room, yeah! Jah provide the bread.
We'll share the shelter, of my single bed



Compositore: Bob Marley










Isso é amor?


Eu quero amá-la e tratá-la direito
Eu quero amar você a cada dia e cada noite
Estaremos juntos com um teto bem em cima das nossas cabeças
Nós iremos compartilhar o refúgio da minha cama de solteiro
Iremos partilhar o mesmo quarto, sim, porém Jah proverá o pão


É amor, é amor, é amor
É amor que estou sentindo?
É amor, é amor, é amor
É amor o que estou sentindo?


Eu quero saber, quero saber, quero saber agora
Eu tenho de saber, tenho que saber, tenho que saber agora
Eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, estou disposto e capaz
Então eu jogo minhas cartas em sua mesa


Eu quero amá-la, eu quero amá-la e tratá-la, amá-la e tratá-la direito
Eu quero amar você a cada dia e cada noite
Estaremos juntos com um teto bem em cima das nossas cabeças
Nós iremos compartilhar o refúgio da minha cama de solteiro
Iremos compartilhar a mesma sala sim, porém Jah proverá o pão


É amor, é amor, é amor
É amor o que estou sentindo?
É amor, é amor, é amor
É amor o que estou sentindo?
Wo-o-o-oah!


Oh sim eu sei, sim eu sei, sim eu sei agora
Oh sim eu sei, sim eu sei, sim eu sei agora
Eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, estou disposto e capaz
Então eu jogo minhas cartas em sua mesa


Veja eu quero te amar, quero amar e tratar-te, amar-te e tratar-te bem
Eu quero amar você a cada dia e cada noite
Estaremos juntos com um teto bem em cima das nossas cabeças
Nós iremos compartilhar o refúgio da minha cama de solteiro
Iremos compartilhar a mesma sala sim, porém Jah proverá o pão
Nós iremos compartilhar o refúgio da minha cama de solteiro




Charles Dickens: Um Conto de Natal 03

Um Conto de Natal


Charles Dickens

03



PRIMEIRA ESTROFE 
O espectro de Marley 


Contemplar em silêncio estes olhos fixos vítreos era para Scrooge uma provação acima de suas forças. O que lhe parecia igualmente horrível era a atmosfera infernal que envolvia o fantasma. Scrooge não podia senti-la por si próprio, mas reconhecia claramente a sua presença porque, muito embora o espectro se conservasse imóvel, sua cabeleira, as borlas de suas botas e as abas do seu casaco não paravam de agitar-se, como se fossem movidas pelo cá- lido sopro de uma fornalha. 

– Está vendo este palito? – disse Scrooge, voltando vivamente à carga, pela mesma razão exposta e para desviar de sobre si, ainda que fosse por apenas um segundo, o olhar vítreo da aparição. 

– Vejo, – respondeu o fantasma. 

– Mas você não está olhando para ele, – observou Scrooge. 

– Mas estou vendo, – disse o fantasma. 

– Pois bem! – continuou Scrooge –, basta que eu o engula para ser perseguido, até o fim dos meus dias, por uma legião de espíritos imaginários, todos nascidos do meu estômago. Tolices! Posso afirmar-lhe. Tudo tolices! 

A estas palavras, o fantasma soltou um tremendo urro e agitou com tal violência as suas cadeias, fazendo um barulho tão sinistro e pavoroso, que Scrooge foi obrigado a agarrar-se à poltrona para não desmaiar. Mas seu espanto recrudesceu ainda mais quando o fantasma, retirando o lenço que lhe envolvia a cabeça, como se o sufocasse o calor, deixou cair sobre o peito o maxilar inferior. 

Scrooge lançou-se de joelhos, escondendo o rosto entre as mãos. 

– Misericórdia! – exclamou ele. Ó pavorosa aparição, por que me vem atormentar? 

– Miserável criatura, tão apegada aos bens da terra! Acreditas em mim, agora? 

– Sim, – balbuciou Scrooge –, creio! Sou obrigado a crer! Mas por que vagam os espíritos sobre a terra, e por que me vêm eles perturbar? 

– Deus exige de cada homem, – respondeu o espectro –, que o espírito que o anima se consubstancie com as almas de seus semelhantes no decurso de sua longa viagem pela vida. Assim, pois, aquele que viver só para si durante a existência, é condenado a viver errante pelo espaço após a morte – ó miserável destino! – para assistir, já agora impotente, a todas as coisas em que, durante a vida, poderia ter tomado parte para sua felicidade e a de seu próximo. 

Novamente o espectro deu um grito, ao mesmo tempo que agitava as cadeias e retorcia as mãos transparentes. 

– Você está acorrentado! – disse Scrooge com voz trêmula. – Diga-me por quê. 

– Estou acorrentado com as cadeias que forjei para mim mesmo durante a vida. Forjei-a elo por elo, palmo a palmo. Trago-a agora por minha livre vontade, e é de livre vontade que a tenho usado. Estás estranhando o modelo? 

Scrooge tremia cada vez mais. 

– Desejas saber, prosseguiu o fantasma, o peso e o comprimento da cadeia que trazes em torno da tua cintura? Há sete anos, precisamente numa noite de Natal, ela era tão comprida e tão pesada quanto esta. Desde então tens trabalhado muito nela. Neste momento, é uma corrente de considerável dimensão. 

Scrooge deitou um olhar febril para o soalho, como se já se visse enlaçado por cinqüenta ou sessenta metros de corrente de ferro. Mas nada viu. 

– Jacob, – disse ele com voz suplicante, meu velho Jacob Marley! Diga-me ainda alguma coisa! Dê-me um pouco de conforto, um pouco de esperança! 

– Já não posso confortar ninguém, – respondeu o fantasma. O consolo e a esperança vêm de outra fonte, Ebenezer Scrooge. São trazidos por outros mensageiros e para outros homens, não para ti. Além do mais, não posso conversar tanto quanto eu desejara. O que me é permitido dizer-te ainda é pouca coisa, pois não tenho permissão para descansar, nem para deter-me, nem para demorar-me onde quer que seja. Noutros tempos, meu espírito não saía jamais do nosso escritório, estás me compreendendo? Nunca, durante minha vida, meu espírito se resolveu a afastar-se dos estreitos limites do nosso covil de negociatas. Eis por que tenho diante de mim tantas e tão penosas viagens. 

Scrooge tinha o hábito de meter as mãos nos bolsos, quando refletia; e foi assim que, enquanto meditava sobre as últimas palavras do fantasma, dirigiu-lhe a palavra, mas sem erguer os olhos e sempre ajoelhado. 

– É preciso que você tenha sido bem lento, Jacob! – observou ele com voz onde transparecia o homem de negócios ao mesmo tempo humilde e obsequioso. 

– Bem lento! – repetiu o espectro. 

– Você morreu há sete anos, – disse Scrooge pensativo, e todo esse tempo perambulando? 

– Todo o tempo, – disse o espectro; sem repouso e sem trégua, com a eterna tortura do remorso. 

– Viaja com rapidez? – perguntou Scrooge. 

– Nas asas do vento. 

– Você deve ter percorrido muitos países durante estes sete anos, – disse Scrooge. 

A estas palavras, o espectro deu ainda um grito e sacudiu as suas correntes com um tal fragor, que cortou ruidosamente o profundo e gélido silêncio da noite. 

– Oh, um desgraçado prisioneiro, acorrentado e carregado de ferros! – exclamou o fantasma –, por ter olvidado que todo homem deve associar-se à grande obra da humanidade, prescrita pelo Onipotente, e perpetuar o progresso. Por não saber que uma alma verdadeiramente cristã, que trabalha generosamente dentro de sua esfera, por muito pequena que seja, sempre achará que sua vida mortal é demasiado breve para realizar todo o bem que ela vê por fazer-se em redor de si. Por não saber que uma eternidade de lágrimas não pode reparar uma vida mal vivida!... Pois bem, era assim que eu vivia, era assim que eu vivia! 

– Entretanto, Jacob, – balbuciou Scrooge, que começava a tomar para si mesmo as palavras do espectro –, você foi sempre um excelente homem de negócios. 

– Os negócios! – gemeu o fantasma retorcendo as mãos. – A humanidade, o bem comum, a indulgência, a caridade, a misericórdia, a benevolência, esses deviam ter sido os meus negócios! 

O espectro ergueu suas cadeias com a extremidade do braço, como se visse nelas a causa do seu inútil desespero, deixando-a em seguida cair pesadamente ao chão. 

– Quando chega esta época do ano, – prosseguiu ele –, meus sofrimentos redobram. Por que fui eu tão insensato para ter passado no meio da multidão dos meus semelhantes, sempre com os olhos voltados para o chão, sem jamais erguê-los para aquela bendita estrela, que um dia conduziu os magos para uma pobre choupana? Não haveria outras pobres choupanas, aonde a luz me pudesse ter guiado a mim também? 

Scrooge tremia como vara verde, ouvindo o espectro falar daquele modo. 

– Ouve-me, – gritou o fantasma. Meus minutos são contados. 

– Estou ouvindo! – disse Scrooge –, mas tenha pena de mim. Eu lhe peço Jacob, não faça muitos rodeios! 

– Seria difícil dizer por que é que estou aparecendo diante de ti sob forma visível. Aliás, por mais de uma vez já me sentei a teu lado, invisivelmente. 

Esta revelação foi assustadora. Scrooge, estremecendo, enxugou a testa banhada de suor. 

– Mas não é esse o meu maior suplício, – continuou o espectro. – Vim esta noite para avisar-te de que ainda te resta uma esperança, uma oportunidade de escapar a um destino semelhante ao meu. É uma esperança, uma oportunidade que eu venho trazer-te, Ebenezer. 

– Oh, mil vezes obrigado! – exclamou Scrooge. – Você foi sempre um bom amigo para mim. 

– Vais ser visitado por mais três espíritos, – continuou o fantasma. 

O semblante de Scrooge tornou-se tão lívido como o do próprio espectro. 

– É essa, então, a esperança ou a oportunidade de que você me falou, Jacob? – perguntou ele com a voz débil. 

– Exatamente. 

– Eu... Eu preferia que isso não acontecesse. 

– Se não receberes a visita deles, podes perder a esperança de escapar a um destino igual ao meu. Aguarda a visita do primeiro espírito amanhã ao bater da uma hora. 

– Não seria melhor que viessem todos juntos, para acabar mais depressa com isso? – sugeriu Scrooge. 

– O segundo aparecerá na noite seguinte, à mesma hora, e o terceiro na outra noite, ao bater a última badalada da meia-noite. Não esperes tornar a ver-me, e não te esqueças, no teu próprio interesse, de conservar a lembrança de tudo que se passou entre nós. 

Dito isto, o espectro apanhou seu lenço sobre a mesa e o amarrou, como antes, em torno da cabeça. Scrooge só o notou, quando ouviu o seco estalido que produziram os dois maxilares ao se encontrarem. Arriscando um olho, viu seu visitante sobrenatural em pé diante dele, ereto, as cadeias enroladas no braço. A aparição afastou-se, de costas, e, à medida que se distanciava, a janela abria-se progressivamente até que, quando o espectro a alcançou, ela estava completamente aberta. 

O espectro fez sinal a Scrooge que se aproximasse. 

Quando estiveram apenas a dois passos um do outro, o espectro ergueu o braço. Scrooge deteve-se. 

Deteve-se, menos para obedecer ao fantasma do que por um sentimento de surpresa e de medo, pois que, simultaneamente ao gesto do fantasma, começava a ouvir estranhos e confusos ruídos por toda a casa, vozes plangentes que se misturavam umas às outras, onde se confundiam remorsos e desesperos. 

Após ter escutado um instante, o espectro passou pela janela, juntou-se ao fúnebre cortejo e desapareceu na gé- lida escuridão. Scrooge, tomado de incoercível curiosidade, chegou à janela e, então, presenciou um estranho espetáculo. 


**** 


O ar estava povoado de almas perdidas, que perambulavam e rodopiavam interminavelmente, soltando gemidos, e cada uma delas trazia uma corrente, como o espectro de Marley. Alguns destes fantasmas, talvez os membros de algum mau governo, estavam amarrados juntos. Nenhum estava livre. 

Scrooge notou entre eles alguns de seus antigos conhecidos, entre os quais um velho fantasma de colete branco, com quem tivera freqüentes relações. 

Em seu tornozelo, estava amarrado um cofre-forte descomunal, e Scrooge notou que a visão de uma mendiga acocorada ao pé de uma sacada, com seu bebê ao colo, lhe arrancava tristes lamentações de pena por não poder socorrê-la. 

Percebia-se, claramente, que o maior tormento destes infelizes era o ardente desejo de praticar o bem sobre a terra, justamente agora que essa possibilidade lhes havia escapado para sempre. 

Scrooge não poderia dizer se todos aqueles fantasmas se dissiparam no intenso nevoeiro, ou se foi o nevoeiro que os envolveu. O certo é que todos desapareceram ao mesmo tempo dentro da noite, e o espaço ficou silencioso e ermo, como no momento em que ele voltara para casa. 

Fechada novamente a janela, Scrooge examinou cuidadosamente a porta por onde o fantasma havia entrado. Estava fechada com dupla volta, e os ferrolhos estavam intactos. 

Scrooge ia dizer: Tolices, mas não foi além da primeira sílaba. Apoderara-se dele uma incoercível necessidade de repouso, fosse, talvez, devido às fadigas e às emoções do dia, fosse pela sua fuga ao mundo dos espíritos e pela sinistra conversa que tivera com o espectro, ou talvez mesmo pelo adiantado da hora. 

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