sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Cinema

UN HOMME ET UNE FEMME 

1966

Anouk AIMÉE, Jean-Louis TRINTIGNANT, Pierre BAROUH

Jean-Louis Duroc (Jean-Louis TRINTIGNANT) é um piloto de corridas. Em Deauville, ele conhece Anne Gauthier (Anouk AIMÉE). Ambos são viúvos inconsoláveis ​​e acabam se apaixonando, um amor apaixonante...





Direção: Claude LELOUCH
Roteiro: Claude LELOUCH e Pierre UYTTERHOEVEN
Música: Francis LAI & Pierre BAROUH

Prêmios:
CANNES: Palma de Ouro
OSCAR: Melhor Filme Estrangeiro
                 Melhor Roteiro Original
GLOBO DE OURO: Melhor Filme Estrangeiro
BAFTA: Melhor Atriz: Anouk AIMÉE


Daqueles momentos 
em que não conseguimos 
separar 
música, 
cinema 
personagens...






0:00 Un Homme Et Une Femme
2:40 Samba Saravah
5:43 Aujourd'hui C'est Toi
7:50 Plus Fort Que Nous
11:33 A 200 A l'Heure



Nicole Croisille et Pierre Barouh
- Plus fort que nous (live 1969)


Com o nosso passado como guia
Devemos ser lúcidos
Mas nossa desconfiança está no fim
O amor é muito mais forte do que nós
Quer esperemos ou nos resignemos
Quando ele quer, ele nos designa
Bem, tinha que ser nosso
O amor é muito mais forte do que nós
Quando você está perto de mim, o que fazer?
O tempo se veste de mistério
E o vento da noite é mais suave
O amor é muito mais forte do que nós
Vivendo livre em um pântano
Ou viva feliz em uma gaiola
Seja como for, ele faz sua escolha sem nós
O amor é muito mais forte do que nós
Nós pensamos que poderia ser o suficiente
Para não gostar de dizer mais
No entanto, tinha que ser nosso
O amor é muito mais forte do que nós
Com o nosso passado como guia
Nós pensamos que poderia ser o suficiente
Devemos ser lúcidos
Para não gostar de dizer mais
Mas nossa desconfiança está no fim
Bem, tinha que ser nosso
O amor é muito mais forte do que nós





Avec notre passé pour guide
On se devrait d'être lucide
Mais notre méfiance est à bout
L'amour est bien plus fort que nous
Qu'on espère ou qu'on se résigne
Quand il le veut, il nous désigne
Voilà, ça devait être à nous
L'amour est bien plus fort que nous
Quand tu es près de moi, qu'y faire?
Le temps s'habille de mystère
Et le vent du soir est plus doux
L'amour est bien plus fort que nous
Vivre libre en un marécage
Ou vivre heureux dans une cage
Qu'importe, il fait son choix sans nous
L'amour est bien plus fort que nous
On croyait qu'il pourrait suffire
Pour ne plus aimer de le dire
Pourtant ça devait être à nous
L'amour est bien plus fort que nous
Avec notre passé pour guide
On croyait qu'il pourrait suffire
On se devrait d'être lucide
Pour ne plus aimer de le dire
Mais notre méfiance est à bout
Voilà, ça devait être à nous
L'amour est bien plus fort que nous

O Sol é para todos: 1ª Parte (7)

Harper Lee

O Sol é para todos


Para o sr. Lee e Alice, em retribuição ao amor e afeto


Os advogados, suponho, um dia foram crianças.
CHARLES LAMB



PRIMEIRA PARTE

7

Jem ficou sério e calado por uma semana. Como Atticus tinha sugerido uma vez, tentei me colocar no lugar de Jem: se eu tivesse ido sozinha à casa dos Radley às duas da manhã, seria morte certa e na tarde seguinte seria meu funeral. Então deixei Jem em paz e tentei não incomodá-lo.
As aulas começaram. O segundo ano era tão ruim quanto o primeiro, só que ainda pior: continuavam mostrando fichas e nos proibindo de ler ou escrever. As risadas frequentes na sala de aula ao lado mostravam o progresso da classe da srta. Caroline. Era a turma de sempre repetindo o primeiro ano e ajudando a manter a ordem. A única coisa boa no segundo ano era que eu saía no mesmo horário de Jem e voltávamos juntos para casa às três da tarde.
Uma tarde, quando cruzávamos o pátio da escola em direção a nossa casa, Jem disse, de repente:

— Preciso contar uma coisa.

Como foi a primeira frase completa que ele disse depois de dias calado, eu o encorajei.

— Sobre o quê?

— Sobre aquela noite.

— Até hoje você não contou nada sobre aquela noite — reclamei.

Jem dispensou minhas palavras com um gesto como se estivesse espantando mosquitos. Ficou em silêncio por um tempo e então disse:

— Quando fui buscar minha calça… que tinha ficado enroscada, porque eu não consegui soltá-la da cerca… Quando fui buscar — Jem respirou fundo —, ela estava dobrada do outro lado da cerca… como se estivesse à minha espera.

— Do outro lado da cerca…

— E tem mais — disse Jem baixando a voz. — Vou mostrar quando chegarmos em casa. Alguém costurou a calça. Não como uma mulher, mas como eu tentaria fazer. Tudo torto. Como se…

—… alguém soubesse que você ia voltar para buscar.

Jem estremeceu.

— Como se alguém tivesse lido os meus pensamentos… e soubesse o que eu ia fazer. Mas ninguém pode saber o que eu vou fazer a não ser que me conheça, não é, Scout?

A pergunta de Jem era uma súplica. Confirmei:

— Ninguém pode saber o que você vai fazer a não ser que more com você, e mesmo assim eu às vezes não sei.

Estávamos passando pela nossa árvore. No buraco no tronco havia uma bola de barbante cinza.

— Não pegue, Jem. Esse lugar é o esconderijo de alguém — eu disse.

— Acho que não, Scout.

— É, sim. Alguém como Walter Cunningham vem aqui no recreio e esconde uma coisa no buraco, e nós passamos e levamos. Olha, vamos deixar aí e esperar uns dias. Se o barbante continuar no mesmo lugar, nós pegamos, certo?

— Certo. Talvez você tenha razão — considerou Jem. — Algum aluno mais novo pode esconder as coisas aqui para os maiores não verem. Nós só achamos coisas durante o período de aulas.

— É, mas não passamos por aqui nas férias de verão.

Fomos para casa. Na manhã seguinte, o barbante cinza estava no mesmo lugar. No terceiro dia, como ainda continuava lá, Jem pegou-o e guardou-o no bolso. Desse dia em diante, passamos a considerar nosso tudo o que achávamos ali.


O segundo ano da escola foi lamentável, mas Jem me garantiu que ia melhorando à medida que eu crescesse, que com ele tinha sido assim, só no sexto ano os professores começaram a ensinar coisas que prestassem. Jem gostou do sexto ano desde o começo: passou por um curto “período egípcio” que me deixou desconcertada. Ele passou um bom tempo tentando andar com um braço dobrado na frente e outro dobrado para trás, pondo um pé atrás do outro, pois dizia que era assim que os egípcios andavam. Observei que, se isso fosse verdade, não sabia como eles conseguiam fazer as coisas. Mas Jem argumentou que os egípcios tinham feito muito mais coisa do que os americanos, inventaram o papel higiênico e a arte de embalsamar, e onde estaríamos hoje sem isso? Atticus disse para eu esquecer os adjetivos e me concentrar nos fatos.
No sul do Alabama as estações do ano não são muito definidas; o verão se estende pelo outono, às vezes o outono não é sucedido pelo inverno, mas se torna uma primavera tardia que se desfaz no verão outra vez. Aquele outono foi longo, mas não fez um frio que exigisse mais do que um casaco leve. Numa amena tarde de outono, Jem e eu vínhamos pelo nosso caminho de sempre quando nosso buraco na árvore nos fez parar mais uma vez. Tinha uma coisa branca lá dentro.
Jem deixou que eu pegasse: eram duas pequenas esculturas em sabão. Uma, de um menino e outra que deveria ser uma menina, com um vestido simples.
Antes de me lembrar que essas coisas de vodu não existem, dei um grito e joguei-as no chão.
Jem pegou-as.

— O que há com você? — berrou e limpou as figuras. — São muito bem-feitas. Nunca vi nenhuma tão boa.

Ele as estendeu para que eu visse. Eram miniaturas quase perfeitas de duas crianças. O menino estava de calças curtas e tinha uma mecha de cabelo caindo sobre as sobrancelhas. Olhei para Jem. Uma mecha caía de seus cabelos repartidos. Eu nunca havia notado.
Jem olhou da figura para mim. A figura tinha franja. Eu também.

— Somos nós — concluiu.

— Quem você acha que fez?

— Alguém sabe esculpir por aqui?

— O sr. Avery.

— O que o sr. Avery faz não conta. Estou falando de esculpir.

O sr. Avery gastava em média uma acha de lareira por semana, que ia desbastando até fazer um palito, que depois punha na boca e mastigava.

— Tem também o velho namorado da srta. Stephanie — lembrei.

— É verdade, mas ele mora no campo. Nunca prestou atenção em nós.

— Vai ver que fica lá na varanda olhando para nós, e não para a srta. Stephanie. Era o que eu faria, se fosse ele.

Jem ficou me olhando por tanto tempo que perguntei qual era o problema, mas ele disse que não era nada. Quando chegamos em casa, Jem guardou as duas figuras no baú.
Menos de duas semanas depois, achamos um pacote inteiro de goma de mascar, que adoramos. Jem esqueceu completamente o fato de que tudo na casa dos Radley devia estar envenenado.
Na semana seguinte, uma medalha reluzia no buraco da árvore. Jem mostrou-a a Atticus, que nos disse que era uma medalha de um concurso de soletrar, que antes de nascermos, as escolas do condado de Maycomb promoviam concursos assim e davam medalhas aos vencedores. Atticus disse que alguém devia ter perdido a medalha, nós tínhamos perguntado pela vizinhança? Jem me deu um discreto chute quando eu ia dizer onde a achamos. Depois, Jem perguntou se Atticus se lembrava de alguém que tivesse ganhado um daqueles concursos, mas ele respondeu que não.
Nosso maior prêmio apareceu quatro dias depois. Era um relógio de bolso parado com uma corrente e um canivete de alumínio.

— Você acha que isso é ouro branco, Jem?

— Não sei. Vou mostrar a Atticus.

Atticus disse que, se aquilo tudo — o relógio, a corrente e o canivete — fosse novo, devia valer uns dez dólares.

— Vocês trocaram com alguém na escola? — ele quis saber.

— De jeito nenhum! — respondeu Jem, tirando o relógio do nosso avô que Atticus deixava-o usar uma vez por semana, desde que tomasse cuidado. Quando ficava com o relógio, Jem parecia pisar em ovos.

— Atticus, se você não se importar, prefiro ficar com este. Vou tentar consertar.

Quando o relógio do nosso avô deixou de ser novidade e levá-lo consigo se tornou uma tarefa penosa, Jem parou de ficar consultando a hora a cada cinco minutos.
Ele fez um bom trabalho, só sobraram uma mola e duas peças bem pequenas, mas o relógio não voltou a funcionar.

— Ah, isso não vai funcionar nunca. Scout…

— O que foi?

— Acha que devemos escrever uma carta para quem está nos dando essas coisas?

— Seria ótimo, Jem, podemos agradecer… Que mal pode fazer?

Jem tinha tapado os ouvidos e estava balançando a cabeça de um lado para o outro.

— Eu não entendo, simplesmente não entendo. Não sei por que, Scout. — Ele olhou na direção da sala de estar. — Acho melhor contar para Atticus. Não, melhor não.

— Eu conto a ele para você.

— Não faça isso, Scout. Scout?

— O quê?

Ele tinha estado a ponto de me dizer alguma coisa durante toda a tarde; seu rosto se iluminava e ele se inclinava na minha direção, então mudava de ideia. E mudou de ideia novamente.

— Ah, nada.

— Pronto, vamos escrever a carta — eu disse, colocando um papel e um lápis na frente dele.

— Está bem. “Prezado Senhor…”

— Como você sabe que é um homem? Aposto que é a srta. Maudie. Estou desconfiada disso há um bom tempo.

— Hum… a srta. Maudie não gosta de goma de mascar… — Jem deu uma risada. — Ela às vezes diz cada coisa: um dia, perguntei se queria uma goma de mascar, e ela agradeceu e explicou que grudava no céu da boca e ela não conseguia falar. Não é engraçado? — perguntou Jem.

— É, às vezes ela diz coisas engraçadas. De qualquer forma, ela não teria um relógio de corrente.

— “Prezado Senhor” — prosseguiu Jem. — “Gostamos do”, não, “gostamos de tudo que o senhor deixou na árvore para nós. Sinceramente, Jeremy Atticus Finch.”

— Se assinar assim, ele não vai saber quem você é.

Jem apagou o nome com a borracha e escreveu “Jem Finch”. Embaixo do nome dele, eu assinei “Jean Louise Finch (Scout)”. Jem pôs a carta num envelope.
Na manhã seguinte, a caminho da escola, ele correu na minha frente e parou na árvore. Quando virou na minha direção, estava branco como papel.

— Scout!

Corri até ele. Alguém tinha tapado o buraco com cimento.

— Não chore, Scout… Não chore, não se preocupe — ele murmurou o tempo todo enquanto caminhávamos até a escola.

Quando voltamos para casa, Jem engoliu a comida, correu para a varanda e sentou-se na escada. Fui atrás.

— Ainda não passou — ele disse.

No dia seguinte, Jem ficou de novo na varanda e dessa vez conseguiu o que queria.

— Como vai, sr. Nathan? — cumprimentou.

— Bom dia, Jem e Scout — respondeu o sr. Nathan Radley, ao passar.

— Sr. Radley — chamou Jem.

O sr. Radley se virou.

— Sr. Radley, o senhor colocou cimento no buraco da árvore lá adiante?

— Sim, tapei o buraco.

— Por que fez isso, senhor?

— Aquela árvore está morrendo. Quando adoecem, as árvores precisam ser cimentadas. Você devia saber disso, Jem. Jem não disse mais nada até o final da tarde. Quando passamos pela árvore, ele deu um tapinha no cimento e ficou imerso em pensamentos. Parecia estar de péssimo humor em alguns momentos e preferi manter distância.

Como sempre, naquela tarde fomos encontrar Atticus na volta do trabalho. Estávamos na escada de casa quando Jem disse:

— Atticus, dê uma olhada naquela árvore, por favor.

— Que árvore, filho?

— Aquela da esquina dos Radley, na direção de quem vem da escola.

— Por quê?

— Ela está morrendo?

— Acho que não, filho. Veja as folhas, estão verdes e viçosas, sem manchas marrons…

— Não está nem doente?

— Aquela árvore está tão saudável quanto você, Jem. Por quê?

— O sr. Nathan Radley disse que ela está morrendo.

— Bem, pode ser que esteja. Tenho certeza de que o sr. Radley conhece melhor as árvores dele do que nós.

Atticus nos deixou na varanda. Jem se encostou numa coluna e começou a esfregar os ombros nela.

— Está com coceira, Jem? — perguntei da forma mais gentil possível. Ele não respondeu. — Vamos entrar, Jem — chamei.

— Daqui a pouco eu vou.

Ele ficou lá até o anoitecer e eu o esperei. Quando entramos, vi que ele tinha chorado; estava com o rosto manchado de lágrimas e achei estranho eu não ter ouvido nada.


continua página 050...
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Leia também:

O Sol é para todos: 1ª Parte (7)
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Copyright © 1960 by Harper Lee, renovado em 1988 
Copyright da tradução © José Olympio
Título do original em inglês 
TO KILL A MOCKINGBIRD 
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Um dos romances mais adorados de todos os tempos, O sol é para todos conta a história de duas crianças no árido terreno sulista norte-americano da Grande Depressão no início dos anos 1930. 

Massa e Poder - A Massa (O Pânico)

Elias Canetti


O PÂNICO


Conforme já se observou repetidas vezes, o pânico num teatro constitui uma desagregação da massa. Quanto mais unidas as pessoas se encontravam em função do espetáculo, quanto mais fechada a forma do teatro que exteriormente as mantém coesas, tanto mais violenta a desagregação.

É igualmente possível, contudo, que apenas a encenação não dê ensejo à formação de uma massa genuína. Com frequência, o público não se sente tomado pelo espetáculo, permanecendo reunido apenas porque já está ali. Mas o que a peça não logrou produzir, um incêndio acarretará de imediato. O fogo não é menos perigoso para os homens do que para os animais: trata-se do mais forte e mais antigo símbolo da massa. A percepção da sua presença subitamente intensifica ao máximo o que quer que tenha existido de sentimento de massa no público. Graças ao perigo comum e inequívoco, nasce um medo compartilhado por todos. Assim, por um breve período, o público constitui uma verdadeira massa. Não estivessem as pessoas num teatro, elas poderiam fugir em grupo, qual um bando de animais em perigo, elevando com seus movimentos sincronizados a energia da fuga. Um medo ativo dessa natureza, vivenciado em massa, é a grande experiência coletiva de todos os animais que vivem em bandos e, como bons corredores, se salvam juntos.

No teatro, pelo contrário, a massa tem de desagregar-se do modo mais violento. As portas somente dão passagem a uma única ou a umas poucas pessoas por vez. A energia da fuga transforma-se por si só numa energia do rechaço. Entre as fileiras de poltronas só é possível passar uma pessoa de cada vez; cada um encontra-se absolutamente apartado do outro: as pessoas sentam-se sós, levantam-se sós e têm cada uma o seu lugar. A distância até a porta mais próxima é diferente para cada um. O teatro normal visa fixar as pessoas em suas poltronas e deixar-lhes apenas a liberdade de suas mãos e vozes. O movimento das pernas é, tanto quanto possível, limitado.

A ordem súbita para a fuga que o fogo dá aos homens confronta-se, pois, de imediato, com a impossibilidade do movimento conjunto. A porta que todos precisam atravessar, que todos veem e em que se veem nitidamente apartados dos demais, é a moldura de um quadro que logo os domina. Assim, e justamente no seu auge, a massa é obrigada a desagregar-se com violência. A reviravolta faz-se nítida nas tendências as mais violentas dos indivíduos: todos empurram, batem e pisoteiam selvagemente ao seu redor.

Quanto mais as pessoas lutam “por sua própria vida”, tanto mais claro se torna que lutam contra os outros, que, por toda parte, as estorvam. Estes estão ali feito cadeiras, balaustradas, portas trancadas; a diferença, todavia, é que lutam também. Empurram para cá e para lá, para onde lhes convém — ou, na verdade, para onde estão eles próprios sendo empurrados. Mulheres, crianças e velhos não são poupados: não se diferenciam dos homens. Isso é da própria constituição da massa, na qual todos são iguais; e mesmo não mais se sentindo como massa, o indivíduo está ainda inteiramente circundado por ela. O pânico é uma desagregação da massa no interior dela própria. O indivíduo aparta-se dela e deseja escapar-lhe — escapar da massa que, como um todo, está em perigo. Como, porém, encontra-se ainda fisicamente nela, tem de combatê-la. Entregar-se à massa nesse momento seria a sua ruína, visto que ela própria está ameaçada de arruinar-se. Num tal momento, o indivíduo não se cansa de enfatizar sua singularidade. Com seus golpes e empurrões, ele atrai mais golpes e empurrões. Quanto mais golpes dá e recebe, tanto mais claramente sente-se a si próprio, e tanto mais nitidamente recolocam-se para ele as fronteiras de sua pessoa.

É surpreendente observar o quanto a massa assume o caráter do fogo para aquele que combate em seu interior. Ela nasceu da inesperada visão de uma chama ou do grito: “Fogo!”. E é tal como as chamas que ela joga com aquele que busca escapar. As pessoas que este empurra para longe são, para ele, objetos incandescentes; seu toque é-lhe hostil, assustando-o onde quer que elas lhe toquem o corpo. Quem quer que se interponha no caminho é contaminado por essa disposição genericamente hostil do fogo; a maneira como este se propaga, como vai paulatinamente cercando as pessoas e, por fim, as envolve por completo, assemelha-se bastante ao comportamento da massa, a ameaçá-las por todos os lados. Os movimentos imprevisíveis em seu interior, o braço, o punho, a perna que sobressai, são como as chamas, capazes de, subitamente e por toda parte, erguerem-se em labaredas. Manifestando-se sob a forma de um incêndio numa floresta ou estepe, o fogo é uma massa hostil; todo homem é capaz de senti-lo intensamente. Na condição de símbolo da massa, o fogo penetrou-lhe a economia psíquica, traduzindo-se num seu componente imutável. Aquele enérgico pisotear de homens que tão frequentemente se observa em situações de pânico e que se afigura tão sem sentido nada mais é do que um pisotear o fogo, com o intuito de apagá-lo.

A desagregação pelo pânico somente se deixa evitar na medida em que se prolonga o estado original de medo experimentado homogeneamente em massa. Numa igreja ameaçada, isso é possível: compartilhando do medo, as pessoas rezam para um deus comum, que tem nas mãos a possibilidade de, através de um milagre, extinguir o fogo.

continua página 37...
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Leia também:

Massa e Poder - A Massa (Massa Aberta e Massa Fechada)
Massa e Poder - A Massa (O Pânico)
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.


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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg

Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim

Título original Masse und Macht


"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

Que tal mais uns sambas?

Sambas e mais Sambas...



Você sabe que a maré não está moleza não
E quem não fica dormindo de toca já sabe da situação
Eu sei que dói no coração falar do jeito que falei
Dizer que o pior aconteceu
Pode guardar as panelas que hoje o dinheiro não deu

Dei pinote adoidado, pedindo emprestado e ninguém me emprestou
Fui no Seu Malaquias querendo fiado mas ele negou
Meu ordenado apertado, coitado, engraçado, ele desapareceu
Fui apelar pro cavalo
Joguei na cabeça mas ele não deu

Você sabe que a maré não está moleza não
E quem não fica dormindo de toca já sabe da situação
Eu sei que dói no coração falar do jeito que falei
Dizer que o pior aconteceu
Pode guardar as panelas que hoje o dinheiro não deu

Para encher nossa panela, comadre
Eu não sei como vai ser
Já corri pra todo lado, fiz aquilo que deu pra fazer
Esperar por um milagre, pra ver se resolve essa situação
Minha fé já balançou, eu não quero sofrer mais uma decepção
Você sabe que a maré...






01 - Pôxa (Gilson de Souza)
02 - Retalhos de Cetim (Benito de Paula)
03 - Moça Criança (Agepê)
04 - Tristeza Pé no Chão (Clara Nunes)
05 - Desafio (Luiz Américo)
06 - Sufoco (Alcione) 
07 - Os Meninos da Mangueira (Ataulpho Jr.)
08 - Ai Que Saudades da Amélia (Noite Ilustrada)
09 - 1800 Colinas (Beth Carvalho)
10 - Nem Ouro Nem Prata (Ruy Maurity)
09 - Meu limão, meu limoeiro (Wilson Simonal)
10 - Trem das Onze (Adoniran Barbosa)
11 - Triste Madrugada (Jair Rodrigues)
12 - Canta Canta Minha Gente (Martinha da Vila)
13 - Pode Guardar as Panelas (Paulinho da Viola)
14 - No Silêncio da Madrugada (Luiz Ayrão)
15 - Turbilhão (Toquinho e Vinícius) 
16 - Esperanças Perdidas (Originais do Samba) 
17 - Propagas (Roberto Ribeiro) 
18 - O Ouro e a Madeira (Conjunto Nosso Samba) 
19 - Naquela Mesa (Sérgio Bittencourt e Elizeth Cardoso)
20 - Súplica (João Nogueira) 
21 - Judia de Mim (Zeca Pagodinho)


Súplica

O corpo a morte leva
A voz some na brisa
A dor sobe pr'as trevas
O nome a obra imortaliza
A morte benze o espírito
A brisa traz a música
Que na vida é sempre a luz mais forte
Ilumina a gente além da morte
Vem a mim, oh, música
Vem no ar
Ouve de onde estás a minha súplica
Que eu bem sei talvez não seja a única
Vem a mim, oh, música
Vem secar do povo as lágrimas
Que todos já sofrem demais
E ajuda o mundo a viver em paz

Composição: João Nogueira / Paulo César Pinheiro

quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Memórias do Cárcere - Viagens 8

Memórias do Cárcere

Graciliano Ramos



Volume I 

 Editora Record 

PRIMEIRA PARTE 

VIAGENS 


8


CLAREOU o dia, lá embaixo as manchas esquisitas sobressaíram, ganharam contornos, afinal surgiram dois canhões apontando o céu. Realmente não me seria possível dizer se eram canhões, obuses ou morteiros; duas peças de artilharia, de nome incerto e descalibradas, limitavam o portão e produziam bom efeito decorativo, sugeriam força. Esta verificação me satisfez. Passara a noite intrigado, e agora, alheio ao despertar do quartel, apenas reparava no insignificante pormenor, como se o resto não tivesse importância.Nem vi capitão Mata erguer-se. Quando me afastei da janela, o homem se escovava e lavava, retomando a alegria comunicativa e barulhenta da véspera. Éramos antípodas Enquanto me ocupava numa única miudeza, ele apreendia muitas, relacionava-as e alcançava rápido o conjunto; falava em demasia, sem se incomodar com os meus silêncios, de ordinário informando, quase nunca fazendo uma pergunta; e devia estranhar a minha valise de dois palmos, pois a sua mala grande e pesada era um armazém, tinha tudo: agulhas, botões, linha, canivetes, lixa. Nunca vi pessoa mais precavida. Nem mais econômica. Tinha necessidades muito escassas, não fumava, e enquanto vivemos juntos creio que se absteve de qualquer despesa. De nenhum modo se julgava humilhado, suponho: naquela segurança, naquele bom humor sempre a mexer-se parecia exercer uma função militar e necessária. Acabando as lavagens e as penteadelas matinais, notei-lhe a observação:

– O comandante chegou.

– Como é que o senhor sabe? estranhei.

Ora! muito fácil: tinha ouvido a corneta. Como o toque me passara despercebido, imaginei-o a divagar.
Admitindo, porém, que ele tivesse considerado um som, tirado consequência dele, não me interessava esclarecer-me a respeito da presença do comandante àquela hora. Julguei isto e enganei-me: ao cabo de meia hora entrou na sala e apanhou-me de surpresa um velho calmo, polido, ar de fria dignidade, o rosto magro. As estrelas, o gesto, o apuro, identificaram-no – e diante dele o meu companheiro entesou-se em posição de sentido. O homenzinho cumprimentou-nos, examinou o aposento, quis saber se nos faltava alguma coisa e permaneceu de pé junto à mesa uns três ou cinco minutos, os minutos aplicáveis à nossa situação, dizendo com lhaneza palavras da hospitalidade regulamentar. Referiu-se à má qualidade da alimentação e desculpou-se.

– Oh! Comandante! Não se preocupe. Tudo está bem. – Não senhor. A comida é ruim, sem exagero. Vai achá-la muito ruim. Tenha paciência: é a que usamos. Não seria difícil mandar buscar outra no restaurante, mas isto é irregular.

Mortificaram-me aquelas minúcias sobre matéria insignificante, desejei mudança de assunto, em vão; o negócio culinário encheu quase toda a pequena entrevista.

– Enfim, como os senhores estão aqui de passagem, podem aguentar uns dias de maus tratos.

Aludiu outra vez, num vago oferecimento, às coisas que nos faltavam, despediu-se e retirou-se. Bem. Tínhamos uma indicação: estávamos ali de passagem. Para onde? Não nos atreveríamos a perguntar isso: a cortesia solene e burocrática revelava claramente que seguíamos os trâmites normais e o despacho viria no momento preciso. Certo o comandante não era responsável pela nossa estada no quartel; julgava-a talvez perturbadora. Mas achava-se no dever de nos visitar pela manhã e dizer algumas frases de pessoa educada. Agradecíamos. Quem era o responsável então? Provavelmente havia muitos, tantos que a responsabilidade se diluía – e ali, trancados, não divisávamos ninguém. Trouxeram-nos uma bandeja. Tomei o leite e o café, mastiguei um pedaço de pão, constrangido, sem notar nessa primeira refeição as deficiências da cozinha, mencionadas em excesso. Levantava-me quando entrou um moço grave, de olhos vivos ligeiramente estrábicos, fumando por uma longa piteira.

– Capitão Lobo.

Passeando da mesa para a janela e da janela para a mesa, deu-nos esclarecimentos:

– Os senhores ficam alojados aqui. Na sala vizinha há um oficial preso. Os senhores prometem não comunicar-se com ele.

Olhei a porta cerrada, o tabique baixo. Facilmente estabeleceríamos comunicação, mas que nos interessava isso, se nem sabíamos quem estava do outro lado? Faríamos sem custo a promessa, mas capitão Lobo não se importou com ela: não nos perguntou se prometíamos, afirmou que prometíamos e encerrou a questão. Esteve meia hora a conversar com volubilidade, afirmativo, às vezes sublinhando a frase com movimentos enérgicos. Não ria, não sorria: as ideias deviam parecer-lhe coisas terrivelmente sérias. Parava para escutar. atento, aprovando ou desaprovando com a cabeça, retomava depois o discurso e o passeio, ambos em linha reta. Curioso que apenas se movesse da mesa para a janela, onde fazia uma ligeira parada, e da janela para a mesa, onde novamente se detinha. Era como se a mesa constituísse uma barreira e o separasse da porta: os seus passos percorriam exatamente metade da sala. Também a fala tinha pequenas pausas, correspondentes àquelas estações, embora

a. o interlocutor se mantivesse calado. Não me animaria a convidá-lo a sentar-se, pois ele figurava
b. o dono da casa, mas puxei uma cadeira, desembaracei-a da roupa e da valise ali postas na

véspera, joguei à cama estes objetos. Ele fingiu não perceber o oferecimento mudo e continuou o exercício invariável.

O comandante se conservara de pé cinco minutos. Agora colaborando na palestra longa, convencia-me de que esses homens não se sentavam na minha presença para eu não me resolver a sentar-me diante deles. Esta certeza me levava a usar cautela, medir as palavras – ea conversa se reduzia quase a um solilóquio.
Impossível qualquer aproximação. Pouco inclinado a desabafos, certamente não ia expandir-me a um desconhecido, talvez disposto a analisar-me. De minha parte observava-o e a observação não me induzia a desconfiança. A linguagem clara, modos francos, às vezes estabanados, a exceder os limites da polidez comum, diziam-me que ali se achava um homem digno. O gesto rijo martelava a ideia, o olho brilhante, ligeiramente oblíquo, donde parecia desprender-se uma faísca de insensatez, fixava-se na gente, insensível e frio. Devia ser um tormento para criaturas dissimuladas suportar aquela dureza metálica de verruma. Não deixou de fumar um instante: deitava fora a ponta de cigarro, introduzia outro na piteira comprida em excesso. Súbito parou o monólogo, ofereceu-nos toalhas e convidou-nos a acompanhá-lo. Atravessamos um corredor, descemos uma pequena escada, chegamos ao pátio interno, paramos, abriu uma porta:

– Os senhores usam este banheiro. Só este.

Chamou um tipo graduado, com duas ou três divisas, e concluiu:

– Podem vir aqui acompanhados por um sargento ou cabo. Adeus.

Eu queria saber se havia inconveniência na compra de alguns troços miúdos que me faltavam. Não havia nenhuma. – Dê as suas encomendas ao faxina. Até amanhã. Entrei, e à porta ficaram capitão Mata e o sujeito das fitas. Lá dentro havia um aparelho sanitário, uma banheira, dois ou três chuveiros. Depois de me banhar, Mata substituiume – e passeei algum tempo no pátio, vigiado pelo guarda, vendo rapazes atirarem bolas a cestas presas ao muro. Em seguida regressamos à sala. Dei ao faxina uma pequena lista de coisas necessárias: papel, lápis, cuecas, lenços, fósforos. cigarros, muitos cigarros e fósforos, pois isto se consumia com grande rapidez. Pedi também um rolo de esparadrapo e iodo: um abscesso debaixo da unha do indicador começava a latejar e doer muito. E tentei acomodar-me àquela monotonia. Cheguei uma cadeira à janela, mergulhei no romance de José Geraldo, consegui ler umas cinqüenta páginas e entendê-las. Mas entendia pouco, a atenção fraquejava, os olhos se desviavam da folha para os dois canhões ornamentais. Além disso capitão Mata me interrompia com freqüência oferecendo-me observações. Tinha entrado rapidamente em contato com soldados e oficiais, falando a gíria deles, usando truques do ofício, informara-se de casos que lhe pareciam interessantes e se apressava a comunicar-me. Sabia que Sebastião Hora, o advogado Nunes Leite e diversos operários se recolhiam numa prisão de sargentos, situada numa esquina próxima. O indivíduo preso na sala contígua à nossa era Xavier, tenente embrulhado em Maceió, com alguns inferiores do 20.º Batalhão. Avizinhando-se do meu companheiro, estrelas e fitas, para mim símbolos mortos, num instante se humanizavam. Os rostos se abriam, sinais imperceptíveis ao observador comum traziam revelações. Por outro lado certas arrogâncias passavam carrancudas no alpendre, atirando-nos de soslaio olhadelas rancorosas.


– Integralistas, afirmava seguro capitão Mata. Admirava-me da conclusão precipitada e acabava admitindo-a. Eram possivelmente integralistas aqueles viventes miúdos, de rostos inexpressivos, quase microcéfalos. Esse caso me insinuou, a respeito da disciplina militar, uma opinião, talvez falsa, que ainda hoje conservo. Nela o rigor é superficial, imagino. Indispensável estarem os sapatos cuidadosamente engraxados, os fuzis brilhantes à custa de lixa e azeite, os colarinhos mais ou menos limpos, todos os botões metidos nas casas, os espinhaços tesos. As pernas direitas devem mover-se simultaneamente, depois as pernas esquerdas, e nenhum dedo se afasta dos outros na continência. É preciso olhar vinte passos em frente, e os passos, em conformidade com a marcha, têm o mesmo número de centímetros. Certo, há outros deveres, mas desse gênero, tendentes à mecanização do recruta. Decoradas certas fórmulas, aprendidos os movimentos indispensáveis, pode o soldado esquecer obrigações, até princípios morais aprendidos na vida civil. O essencial é ter aparência impecável. Desapareceu-lhe o cinturão? Falta grave, embora ele em vão remexa os miolos para saber como a desgraçada correia se sumiu. É obrigado a apresentar-se com ela na formatura. Com ela ou com outra qualquer. Nesse ponto convém desapertar, isto é, agarrar o cinturão do vizinho, que, sendo inábil, será punido, pois o maior defeito do soldado é ser besta. Desenvolvem-se a dissimulação, a hipocrisia, um servilismo que às vezes oculta desprezo ao superior, se este se revela incapaz de notar a fraude ou tacitamente lhe oferece conivência. As minhas observações foram completadas pelos informes do capitão Mata, que, percebendo-me a ignorância, desvendava paciente mistérios simples. Divergimos à hora do almoço, mas logo chegamos a acordo. Diante da bandeja, recuei: diabo, a comida era pavorosa, o comandante tinha razão. Impossível que na mesa dos oficiais pusessem aqueles pratos medonhos.

– Como não? replicou Mata com a boca cheia. A alimentação deles é esta, não tenha dúvida. E está muito boa. Aconselhou-me depois seriamente a engolir aquilo, porque a abstinência poderia ser tomada como desfeita. Consentiu afinal em receber três quartos da minha ração, devorou tudo, enquanto me resignava a mastigar pedaços de carne preta desenxabida, o feijão-preto, duas bananas pretas. De fato ignoro se a bóia era tão ruim como parecia: dois dias de jejum quase completo me embotavam o paladar: a garganta seca se contraía; difícil ingerir a massa desagradável. – Isto deve ser rancho de tropa. Os oficiais não comem semelhante horror.

Novamente o meu companheiro dissentiu – e afirmou que estávamos sendo tratados com muita consideração. Passou a tarde recitando versos, contando anedotas, rindo, mexendo-se, cantarolando, abreviando as horas com a excessiva alegria desarrazoada. Aproveitava-me dos momentos de pausa folheando as brochuras. Decidi ler as três simultaneamente. Marcava a página lida com um fósforo e pegava outro volume. Decerto não havia ali complicações, mas achava-me cada vez mais obtuso, nem chegava a entender bem as pilhérias do capitão.
A noitinha, olhando o jantar, de novo me assaltou a repugnância. Nada me preocupava em excesso. Considerava o futuro, se não com serenidade, pelo menos com indiferença. Contudo o enorme fastio não findava e o apetite do capitão me produzia invencível enjôo. Vinha talvez daí a impossibilidade alarmante de fixar atenção na leitura. E a perda de memória também. As lembranças me apareciam juntas, confusas, sumiam-se de repente, deixando-me no interior dolorosos sulcos negros. Esses hiatos sucediam-se, afastavam-me da realidade, com certeza me davam ar esquisito e vago. Que estaria dizendo o capitão? Porque se animava e se mexia tanto? Ria-me às vezes como um idiota, alheio e distante, receando que ele percebesse a minha fraqueza mental. Além disso a vista escurecia, manchas dançavam-me diante dos olhos, dificultavam-me a leitura. Aquilo devia ser efeito da idade. Envelhecia, provavelmente envelhecia muito depressa. Quando me soltassem, ver-me-ia forçado a trabalhar com óculos. Trabalhar. Trabalhar em quê? Achava-me vazio, imprestável. Desânimo, burrice. Lá fora não conseguiria fazer nada.


continua página 38....
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Leia também:

Memórias do Cárcere - Viagens 8
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Graciliano Ramos de Oliveira (Quebrangulo, 27 de outubro de 1892 – Rio de Janeiro, 20 de março de 1953) foi um romancista, cronista, contista, jornalista, político e memorialista brasileiro do século XX, mais conhecido por sua obra Vidas Secas (1938).
Em setembro de 1915, motivado pela morte dos irmãos Otacília, Leonor e Clodoaldo e do sobrinho Heleno, vitimados pela epidemia de peste bubônica, volta para o Nordeste, fixando-se junto ao pai, que era comerciante em Palmeira dos Índios, Alagoas. Neste mesmo ano casou-se com Maria Augusta de Barros, que morreu em 1920, deixando-lhe quatro filhos.
Foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios em 1927, tomando posse no ano seguinte. Apoiado pelo governador do estado e impulsionado por ser um nome de fora da política, foi eleito em um pleito de uma candidatura só. Ficou no cargo por dois anos, renunciando a 10 de abril de 1930. Segundo uma das autodescrições, "Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas." Os relatórios da prefeitura que escreveu nesse período chamaram a atenção de Augusto Frederico Schmidt, editor carioca que o animou a publicar Caetés (1933).
Entre 1930 e 1936. viveu em Maceió, trabalhando como diretor da Imprensa Oficial, professor e diretor da Instrução Pública do estado. Em 1934, havia publicado São Bernardo, e quando se preparava para publicar o próximo livro, foi preso após a Intentona Comunista de 1935. Foi levado para o Rio de Janeiro e ficou preso por onze meses, sendo liberado sem ter sido acusado de nada ou julgado. Em Memórias do Cárcere recorda a prisão que sofrera seis anos antes.

Milonga: Se Dice de Mi

Tita Merello


Se dice de mí
Milonga 1943
Música: Francisco Canaro
Letra: Ivo Pelay
Canta: Tita Merello



Criticam se eu já perdi a linha,
Eles notam se eu vou, se eu venho ou se eu fui.
Muitas coisas são ditas
mas se o pacote não interessar,
porque eles perdem a cabeça
cuidando de mim







Se dice de mí,
se dice de mí.
Se dice que soy fiera,
que camino a lo malevo,
que soy chueca y que me muevo
con un aire compadrón,
que parezco Leguisamo,
mi nariz es puntiaguda,
la figura no me ayuda
y mi boca es un buzón.

Si chlarlo con Luis, con Pedro o con Juan,
hablando de mí os hombres están.
Critican si ya, la linea perdí,
se fijan si voy, si vengo o si fi.

Se dicen muchas cosas,
mas si el bulto no interesa,
porque pierden la cabeza
ocupándose de mí.
Yo se que muchos me desprecian compañía
y suspiran y se mueren cuando piensan en mi amor.
Y más de uno se derrite si suspiro
y se quedan si los miro resoplando como un ford.

Si fea soy,
pongámosle,
que de eso aun no me enteré,
en el amor, yo solo sé
que a más de un gil, dejé a pie.

Podrá decir, podrán hablar,
y murmurar, y rebuznar,
mas la fealdad que dios me dio,
mucha mujer me la envidió
y no diran que me engrupí
porque modesta siempre fui.
Yo soy así

Y ocultan de mí,
ocultan que yo tengo,
unos ojos soñadores,
ademas otros primores
que producen sensación.
Si soy fiera se que, en cambio,
tengo un cutis de muñeca,
los que dicen que soy chueca,
no me han visto en camisón.
Los hombres de mí critican la voz,
el modo de andar, la pinta, la tos.

Critican si ya la linea perdí,
se fijan si voy, si vengo, o si fui.
Se dicen muchas cosas,
mas si el bulto no interesa,
porque pierden la cabeza
ocupandose de mí.

Yo se que hay muchos me desprecian compañía,
y suspiran y se mueren cuando piensan en mi amor.
Y más de uno se derrite si suspiro
y se quedan si los miro resoplando como un ford.
Si fea soy, pongamosle,
que de eso aun no me enteré
en el amor, yo sólo se,
que a más de un gil, deje de a pie.

Podrán decir, podrán hablar,
y murmurar, y rebuznar,
mas la fealdad que dios me dio,
mucha mujer me la envidió.
Y no dirán que me engrupí
porque modesta siempre fui.
Yo soy así.


Ballet Nacional de España - Ensayos de Electra.

DÍA INTERNACIONAL DEL FLAMENCO 2019.

BNE

Desde que a Unesco declarou o flamenco Patrimônio Imaterial da Humanidade em 2010, o Dia Internacional do Flamenco é comemorado em 16 de novembro. No Balé Nacional da Espanha o celebramos todos os dias, mas hoje (16 nov 2019) o fazemos especialmente ao ritmo do alboreá.






Ensayos de Electra.
Coreografía: Antonio Ruz y Olga Pericet.
Canción: Ifigenia se llama la novia. Música popular. Letra de Alberto Conejero.
Cantaora: Sandra Carrasco.
Bailarines: Sara Arévalo, Esther Jurado, Carlos Sánchez, bailrines principales, solistas y cuerpo de baile.
Músicos: Diego Losada, Pau Vallet, Víctor Márquez, Roberto Vozmediano.
Vídeo: Jesús Ávila (Departamento Audiovisuales BNE).


Jazz Bar

ON THE SUNNY SIDE OF THE STREET


Bar Colombia, Sant Andreu 
Joan Chamorro, 
Andrea Motis, 
Sept. 2019


Na tarde de sábado do 6º Jazzing Festival, setembro de 2019, houve um show no Bar Colombia no centro da cidade de Sant Andreu (distrito de Barcelona, Espanha) com Joan Chamorro, Andrea Motis, Carla Motis e Josep Traver mais alguns dos Sant Andreu Jazz Band incluindo Joan Marti, Alba Armengou, Elia Bastida, Alba Esteban, Pablo Ruiz e Anastasia Ivanova (sua convidada de Moscou) apresentando aqui 'On the Sunny Side of the Street'.








O Apanhador no Campo de Centeio - 2: Cada um deles

O Apanhador no Campo de Centeio

J.D. Salinger

2

Cada um deles tinha seu próprio quarto e tudo. Deviam andar beirando os setenta anos, ou até mais. No entanto, apesar da idade, sentiam prazer em qualquer coisinha, ainda que, naturalmente, fosse um prazer meio besta. Sei que parece maldade falar assim deles, mas não é por maldade que eu falo. O negócio é que costumava pensar um bocado no velho Spencer, e, se a gente pensasse muito nele, começava a imaginar por que cargas d'água ele ainda continuava a viver. Já estava todo torto, empenado, e, na sala de aula, sempre que deixava cair um pedaço de giz, um sujeito qualquer da primeira fila tinha que se levantar para apanhar o giz do chão. Na minha opinião, um troço desses é realmente doloroso. Mas se a gente pensasse nele apenas o suficiente, em vez de ficar pensando demais, acabava vendo que, afinal de contas, ele não estava se arranjando tão mal. Por exemplo, um domingo em que eu e outros sujeitos tínhamos ido à casa dele tomar chocolate, ele nos mostrou uma manta, toda velha e usada, que tinha comprado de um índio navajo no Parque de Yellowstone. Via-se que o velho Spencer tinha vibrado com aquela compra. É isso que eu queria dizer: tem gente velha pra chuchu, como o velho Spencer, que fica na maior felicidade só porque comprou um cobertor. A porta do quarto estava aberta, mas bati assim mesmo só para bancar o educado e tudo. Do corredor, podia ver onde ele estava, sentado numa baita poltrona de couro, todo enrolado naquele cobertor que eu acabei de falar. Olhou na minha direção quando bati.

- Quem é? - gritou de lá - Caulfield? Entre, rapaz -. Fora da sala de aula ele estava sempre gritando. Isso às vezes me enchia um pouco.

Foi só entrar e fui ficando logo meio arrependido de ter ido. Ele estava lendo a revista Atlantic Monthly, havia pílulas e remédios espalhados por todo canto e o quarto inteiro cheirava a vick-vaporub. Era um bocado deprimente. Já não morro de amores por gente doente, mas o negócio era ainda mais deprimente porque o velho Spencer estava usando um roupão tão velho e surrado que parecia já ter nascido dentro dele. De qualquer maneira, não me agrada muito ver um sujeito velho de pijama ou roupão. Fica sempre aparecendo o peito, todo ossudo e encalombado. E as pernas. Perna de gente velha na praia é sempre branca e sem cabelo.

- Como vai o senhor? - eu disse. - Recebi seu bilhete e quero lhe agradecer. (Ele tinha me mandado um bilhete pedindo que eu aparecesse para dizer adeus antes das férias de Natal, mas era tudo porque eu não ia voltar mesmo.) – O senhor nem precisava escrever, vinha mesmo aqui me despedir.

- Senta aí, meu filho - disse o velho Spencer, mostrando a cama.

Sentei e fui tratando de perguntar: - O senhor melhorou da gripe?

- Meu filho, se me sentisse um pouquinho melhor ia ter que chamar um médico - Pronto, foi o que bastou. Teve o maior acesso de riso. Afinal, se endireitou e disse:

- Por que é que você não foi ao jogo? Pensei que hoje fosse o dia da grande partida.

- É hoje, sim. Estive lá, mas acontece que estou voltando agorinha mesmo de Nova York com a equipe de esgrima. (Puxa, a cama dele era dura como uma pedra.)

Ele aí começou a ficar sério pra diabo. Eu sabia que ia ser assim.

- Quer dizer que você vai nos deixar, não é?

- É, sim senhor, acho que sim.

Nesse instante, ele começou com aquele negócio de balançar a cabeça. Duvido que haja alguém que sacuda mais a cabeça que o velho Spencer. A gente ficava sem saber se ele balançava a cabeça porque estava pensando muito, ou se era apenas porque já estava ficando gagá.

- O que é que o Doutor Thurmer lhe disse, meu filho? Soube que vocês tiveram uma boa conversinha.

- É, tivemos sim. Uma conversa e tanto. Acho que fiquei mais de duas horas no escritório dele.

- E o que foi que ele disse a você?

- Ah... esse negócio de que a Vida é um jogo e tudo mais. E que a gente precisa jogar de acordo com as regras. Ele até que foi simpático, quer dizer, não subiu pelas paredes nem nada. Só ficou falando que a Vida é um jogo e tudo. O senhor sabe.

- E a vida é um jogo, meu filho. A vida é um jogo que se tem de disputar de acordo com as regras.

- Sim, senhor, sei que é. Eu sei.

Jogo uma ova. Bom jogo esse. Se a gente está do lado dos bacanas, aí sim, é um jogo - concordo plenamente. Mas se a gente está do outro lado, onde não tem nenhum cobrão, então que jogo é esse? Qual jogo, qual nada.

- O Doutor Thurmer já escreveu para seus pais?

- Disse que ia escrever segunda-feira.

- E você, por acaso, já se comunicou com eles?

- Não senhor, não me comuniquei porque acho que vou vê-los na quarta-feira de noite, quando chegar em casa.

- E como é que você acha que eles vão receber a notícia?

- Bem... vão ficar um bocado aborrecidos, lá isso vão. Acho que esse já é o quarto colégio em que estive. (Sacudi a cabeça. Eu costumo sacudir a cabeça um bocado.) - Puxa! - disse. Eu também vivo dizendo "Puxa!", em parte porque tenho um vocabulário horroroso, e em parte porque às vezes me comporto como se fosse um garoto. Naquele tempo eu tinha dezesseis anos - estou com dezessete agora - mas de vez em quando me comporto como se tivesse uns treze. E a coisa é ainda mais ridícula porque tenho um metro e oitenta e cinco e já estou cheio de cabelos brancos. Estou mesmo. Um lado da minha cabeça - o direito - tem milhões de cabelos brancos desde que eu era um garotinho. Apesar disso, às vezes me comporto como se tivesse doze anos. É o que todo mundo diz, principalmente meu pai. Até certo ponto é verdade, mas não é totalmente verdade. As pessoas estão sempre pensando que alguma coisa é totalmente verdadeira. Eu nem ligo, mas tem horas que fico chateado quando alguém vem dizer para me comportar como um rapaz da minha idade. Outras vezes, me comporto como se fosse bem mais velho - no duro - mas aí ninguém repara. Ninguém nunca repara em coisa nenhuma.

O velho Spencer começou a sacudir a cabeça de novo. Começou também a limpar o nariz. Fingiu que estava só coçando, mas enfiou mesmo o dedão lá dentro. Acho que ele pensou que não fazia mal, porque só eu estava no quarto. Não que eu me importasse, só que é um bocado desagradável ficar olhando alguém limpar o nariz. Aí ele disse:

- Tive o privilégio de conhecer seu pai e sua mãe quando eles tiveram aquela conversinha com o Doutor Thurmer algumas semanas atrás. São excelentes pessoas.

- É sim, eles são muito bons.

Excelente. Se há uma palavra que eu odeio é essa. Falsa como quê. Só de ouvir me dá vontade de vomitar.
Então, de repente, o velho Spencer ficou com cara de quem tinha uma coisa especial, algo de verdadeiramente fabuloso, para me dizer. Endireitou-se todo na poltrona e virou mais para o meu lado. Mas não passou de um rebate falso. Só fez mesmo apanhar o Atlantic Monthly do colo e tentar jogá-lo em cima da cama, ao meu lado. Só tem que errou. Por uns cinco centímetros, mas errou. Levantei, apanhei a revista do chão e pus sobre a cama. De uma hora para outra me deu uma vontade danada de dar o fora. Estava para chegar um sermão daqueles. Isso eu ainda aguentava, mas ter de ouvir o sermão sentindo cheiro de vick-vaporub e vendo o velho Spencer de pijama e roupão, tudo ao mesmo tempo, isso também já era demais. Mas o negócio começou mesmo.

- O que é que há com você, rapaz? - disse o velho Spencer, com uma voz um bocado severa, o que não era muito do estilo dele. - Quantas matérias você tinha neste semestre?

- Cinco.

- Cinco. E está sendo reprovado em quantas?

- Quatro. (Mexi a bunda na cama, um pouquinho para o lado. Era a cama mais dura em que eu já havia sentado em toda a minha vida.) - Passei em Inglês - disse - já tinha estudado esse troço todo de literatura quando estava no Colégio Whooton. Quer dizer, não tinha quase nada para fazer em Inglês, a não ser escrever umas redações de vez em quando.

Ele nem estava me escutando. Quase nunca prestava atenção quando a gente dizia alguma coisa.

- Reprovei-o em História porque você não sabia absolutamente nada.

- Eu sei disso, Professor. O senhor não podia fazer nada.

- Absolutamente nada - repetiu. Isto é um troço que me deixa maluco, quando uma pessoa repete a mesma coisa, desse jeito, depois que a gente já concordou na primeira vez. Ele aí disse pela terceira vez: - Mas absolutamente nada. Duvido mesmo que você tenha aberto o livro uma única vez durante todo o ano. Então, abriu ou não abriu? Vamos, rapaz, diga a verdade.

- Bem, dei umas lidas de vez em quando - respondi-lhe. Não queria magoar o velho, ele era biruta por História.

- Deu umas lidas, não foi? - disse ele com uma voz sarcástica pra chuchu. - Sua prova está ali, em cima da cômoda. Bem no alto da pilha. Traga ela aqui, por favor.

Era mesmo um golpe sujo, mas fui até lá e entreguei a folha a ele - não tinha mesmo outra saída. Sentei outra vez na cama de cimento. Puxa, ninguém pode imaginar como eu estava arrependido de ter ido até lá me despedir do velho. Pegou na prova como se fosse titica ou coisa que o valha.

- Estudamos os Egípcios de 4 de novembro a 2 de dezembro. Você mesmo escolheu os egípcios como tema de dissertação. Você se importa de ouvir o que escreveu?

- Não precisa, não senhor.

Mas ele começou a ler assim mesmo. Ninguém consegue parar um professor quando eles resolvem fazer alguma coisa. Vão fazendo de qualquer maneira.

Os egípcios eram uma raça antiga de caucasianos que habitava uma das regiões do norte da África. A África, como todos sabem, é o maior continente do hemisfério oriental.

Eu tinha que ficar lá sentado, ouvindo aquela baboseira toda. Era mesmo sujeira dele.

Os egípcios são extremamente interessantes para nós, nos dias de hoje, por várias razões. A ciência moderna ainda gostaria de saber quais os ingredientes secretos que os egípcios empregavam quando embrulhavam os mortos, para que seus rostos não apodrecessem ao longo dos séculos sem fim. Esse interessante enigma permanece ainda, no século XX, como um desafio à ciência moderna.

Parou de ler e pôs a prova no colo. Eu estava começando a ficar com uma raiva danada dele. - Sua dissertação, se é que devemos chamá-la assim, acaba aqui - disse ele naquela voz sarcástica. Ninguém imaginaria que um cara tão velho pudesse ser tão sarcástico e tudo. - Entretanto, você escreveu-me um bilhetinho no pé da página.

- Eu sei, Professor - fui dizendo bem depressa para ver se ele não começava a ler também aquilo. Mas ninguém podia fazer ele parar. O homem estava mais aceso que um buscapé.

Caro Professor Spencer (começou a ler em voz alta): Isto é tudo o que sei sobre os egípcios.
Não consigo me interessar muito por eles, embora suas aulas tivessem sido muito interessantes. Mas o senhor não precisa se incomodar se eu for reprovado; fui mesmo ao pau em todas as matérias, menos Inglês. Respeitosamente, Holden Caulfield.

Baixou a droga do papel e olhou para mim como se tivesse acabado de me dar uma surra danada num jogo de pingue-pongue ou coisa parecida. Acho que nunca poderei perdoar o velho por ter lido aquela porcaria toda em voz alta. Eu não teria lido para ele, se fosse ele quem tivesse escrito aquele bilhete nojento para que ele não se sentisse mal por ter de me reprovar.

- Você me culpa por tê-lo reprovado, rapaz?

- Não senhor, claro que não! -. Bem que ele podia parar de me chamar de rapaz o tempo todo.

Quando tinha acabado, tentou jogar a prova em cima da cama. Só que errou outra vez, naturalmente. Tive que me levantar de novo, catar o papel do chão e pôr em cima do Atlantic Monthly. É chato ter que fazer isso de dois em dois minutos.

- Que faria você em meu lugar? Diga a Verdade, rapaz.

A gente podia ver que ele estava realmente sentido por ter de me reprovar. Por isso, resolvi entrar com uma conversinha mole. Disse a ele que eu era mesmo um preguiçoso e tudo. Que eu, no lugar dele, teria feito a mesma coisa e que a maioria das pessoas não imagina como é difícil ser professor - em resumo, a maior embromação. Toda a velha conversinha fiada.
Mas o gozado é que, enquanto ia metendo a conversa mole, eu estava pensando no laguinho do Central Park, aquele que fica lá pro lado sul. Imaginava se ele estaria gelado quando eu voltasse para casa e, se estivesse, para onde teriam ido os patos. Estava pensando para onde iam os patos quando o lago ficava todo gelado, se alguém ia lá com um caminhão e os levava para um jardim zoológico ou coisa que o valha, ou se eles simplesmente iam embora voando.
Até que tenho sorte, poder ficar dizendo aquilo tudo ao velho Spencer e, ao mesmo tempo, pensar naqueles patos. Não é preciso pensar muito quando se fala com um professor. De repente, entretanto, ele interrompeu minha conversa fiada. Ele estava sempre interrompendo a gente.

- Como é que você está se sentindo em relação a isso tudo, rapaz? Gostaria muito de saber, muito mesmo.

- O senhor quer dizer, esse negócio de ser expulso do Pencey e tudo? -. Bem que ele podia cobrir o peito encalombado. Não era uma vista das mais agradáveis.

- Se não me engano, você também teve umas dificuldades no Colégio Whooton e no Elkton Hills, não é? -. Além da vozinha sarcástica, ele falava agora com uma pontinha de maldade.

- Em Elkton Hills, não. Lá não tive dificuldade nenhuma, não fui reprovado nem nada. Só que resolvi ir embora...

- Pode-se saber por quê?

- Por quê? Bem, é uma estória muito comprida, Professor. Quer dizer, é um bocado complicada.

Eu não estava era com vontade de discutir o assunto com ele. De qualquer jeito, não ia mesmo me compreender, estava fora do alcance dele. Uma das razões mais importantes para minha saída do Elkton Hills foi que o colégio estava entupido de hipócritas. Só isso, tinha um cretino em cada canto. Por exemplo, tinha o diretor, um tal Sr. Haas, que era o filho da mãe mais fingido que já vi. Dez vezes pior que o velho Thurmer. Nos domingos, por exemplo, o Haas saía apertando a mão dos pais dos alunos que tinham ido ao colégio visitar os filhos. Aí era simpático pra burro e tudo mais. Exceto se os pais de algum garoto fossem meio esquisitos. Era preciso ver o que ele fazia com os pais de meu colega de quarto. Se a mãe de um menino fosse meio gordona ou suburbana, ou se o pai fosse um desses sujeitos que usam ternos com ombreira ou sapatos de duas cores, aí então o velho Haas dava-lhes um simples aperto de mão, um sorriso hipócrita e passava adiante para conversar, às vezes durante quase meia hora, com os pais de outro aluno qualquer. Não tolero um troço desses, fico maluco de raiva. Uma coisa dessas me deprime tremendamente. Eu odiava aquela droga daquele colégio.
O velho Spencer perguntou alguma coisa, mas não ouvi. Estava pensando no velho Haas.

- O que, Professor?

- Você não sente nenhum remorso por deixar o Pencey?

- Ah, sinto sim, de verdade... Mas não muito. Pelo menos até agora não. Acho que a coisa ainda não me tocou de fato. É preciso algum tempo para que um troço me atinja realmente. Só estou pensando agora em voltar para casa quarta-feira. Sei que não tenho jeito mesmo.

- Você não se preocupa nem um pouco com o seu futuro, rapaz?

- Me preocupo, sim, evidentemente. Pensei um bocado no assunto. Mas não muito, eu acho. Não muito.

- Pois você ainda vai se preocupar. Vai mesmo, rapaz. Você vai se preocupar quando já for tarde demais.

Não gostei de ouvi-lo dizer isso. Era como se eu estivesse morto ou coisa que o valha. Deprimente pra burro.

- É, acho que sim - respondi.

- Eu gostaria de pôr um pouco de juízo nesta sua cabeça, rapaz. Estou tentando ajudá-lo. Estou tentando ajudá-lo, tanto quanto posso.

E estava mesmo, isso a gente podia ver. Mas o caso é que vivíamos em mundos diferentes.

- Sei que o senhor está tentando me ajudar, Professor. Muito obrigado. No duro, estou muito agradecido ao senhor -. Aí tratei de me levantar da cama. Puxa, não aguentava ficar sentado ali mais dez minutos, nem que fosse para salvar minha vida. - Acontece que eu preciso ir andando, agora. Tenho uma porção de troços no ginásio e preciso apanhar tudo para levar pra casa.

Ele olhou para mim e começou a sacudir a cabeça outra vez, com aquele olhar muito sério no rosto. De repente senti uma pena danada do velho. Mas não podia continuar ali, do jeito que nós estávamos em mundos diferentes, do jeito que ele continuava a errar a cama toda vez que jogava alguma coisa em cima dela, com aquele roupão velho e triste, o peito de fora, o cheiro penetrante de vick-vaporub enchendo o quarto todo...

- Olha, Professor. Não se preocupe por minha causa. No duro. Tudo vai acabar bem. Só que agora estou atravessando uma crise. Todo mundo tem suas crises e tudo, não é?

- Não sei, rapaz. Não sei

Fico danado quando alguém me responde assim.

- Não, é assim mesmo. Todo mundo tem suas fases. No duro, Professor. Não se preocupe por minha causa.

Pus a mão no ombro dele, assim meio sem jeito.

- Não quer tomar uma xícara de chocolate quente antes de ir embora? A patroa teria...

- Não quer tomar uma xícara de chocolate quente antes de ir embora? A patroa teria...

- Bem que gostaria, no duro, mas o negócio é que tenho de ir andando. Tenho que ir direto ao ginásio. Mas, obrigado, Professor. Muito obrigado.

Aí trocamos um aperto de mão e essa coisa toda. O troço me deixou triste pra diabo.

- Vou escrever para o senhor. Agora vê se o senhor fica logo bom dessa gripe.

- Adeus, rapaz.

Depois que fechei a porta e fui andando para a sala ele ainda gritou alguma coisa para mim, mas não pude entender direito. Tenho certeza quase absoluta que ele gritou "boa sorte!". Espero que não. Tomara que não tenha sido isso. Eu nunca gritaria "boa sorte" para ninguém. Se a gente pensa um pouquinho na coisa, vê que um troço desses soa um bocado mal.


continua na página 08...
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Leia também: 

 O Apanhador no Campo de Centeio - 1: Se querem mesmo ouvir
 O Apanhador no Campo de Centeio - 2: Cada um deles
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Ulisses - Parte 1 (1b): Gritos jovens de vozes endinheiradas

Ulisses

James Joyce

Parte 1

1


continuando...

Gritos jovens de vozes endinheiradas nos aposentos de Clive Kempthorpe. Caraspálidas: eles estouram de rir, um apertando a mão do outro. Ó, eu vou expirar! Dê a notícia gentilmente a ela, Aubrey! Eu vou morrer! Com tiras rasgadas da camisa dele açoitando o ar ele salta e cambaleia em volta da mesa, com as calças arriadas até os calcanhares, perseguido por Ades do Magdalen College com a tesoura de alfaiate. Uma cara de bezerro assustado enfeitada de marmelada. Eu não quero que tirem minhas calças! Não se faça de tolo comigo!
Gritos escapando da janela aberta assustando o pátio à noite. Um jardineiro surdo, vestindo um avental, com a máscara de Matthew Arnold, empurra sua ceifadeira no gramado sombrio observando atentamente as partículas saltitantes da relva.
Para nós... novo paganismo... omphalos.

– Deixe ele ficar – disse Stephen. – Não há nada de errado com ele a não ser à noite.

– Então o que é? – perguntou Buck Mulligan impacientemente. – Bote pra fora. Eu sou muito franco com você. O que é que você tem contra mim agora?

Eles pararam, olhando em direção ao promontório abrupto de Bray Head que jazia na água como o focinho de uma baleia adormecida. Stephen retirou seu braço tranquilamente.

– Você quer que eu lhe diga? – perguntou ele.

– Quero, o que é? – respondeu Buck Mulligan. – Eu não me lembro de nada.

Ele olhou para o rosto de Stephen enquanto falava. Uma brisa ligeira passou pela sua testa, abanando suavemente seu cabelo louro despenteado e revolvendo os pontos prateados de ansiedade em seus olhos.
Deprimido por sua própria voz, Stephen disse:

– Você se lembra do primeiro dia em que eu fui à sua casa depois da morte de minha mãe?

Buck Mulligan franziu a testa rapidamente e disse:

– O quê? Onde? Eu não consigo me lembrar de nada. Eu me lembro apenas de ideias e sensações. Por quê? Em nome de Deus o que aconteceu?

– Você estava preparando o chá – disse Stephen – e eu cruzei o patamar para pegar mais água quente. Sua mãe e algum visitante saíram da sala de estar. Ela perguntou a você quem estava em seu quarto.

– E daí? – disse Buck Mulligan. – O que é que eu disse? Eu esqueci.

– Você disse – respondeu Stephen –, Ó, é apenas Dedalus cuja mãe morreu como um animal.

Um rubor que o tornou mais jovem e mais atraente subiu às faces de Buck Mulligan.

– Eu disse isso? – perguntou. – Muito bem. Que mal há nisso?

Ele sacudiu nervosamente seu constrangimento para fora de si.

– E o que é a morte – perguntou –, a de sua mãe ou a sua ou a minha mesmo? Você só viu sua mãe morrer. Eu os vejo estourar todo dia no Mater Misericordiae e no Richmond e serem retalhados até as tripas na sala de dissecção. É uma coisa brutal e nada mais. Simplesmente não importa. Você não quis se ajoelhar para rezar por sua mãe em seu leito de morte quando ela lhe pediu. Por quê? Porque você tem aquele maldito traço jesuíta em você, só que injetado de forma errada. Para mim é tudo uma zombaria e aliás brutal. Os lóbulos cerebrais dela não estão funcionando. Ela chama o médico sir Peter Teazle e arranca flores douradas da colcha. Faça a vontade dela até que tudo termine. Você contrariou seu último desejo e no entanto fica amuado comigo porque eu não me lamurio como as carpideiras contratadas de Lalouette. Um absurdo! Suponho que eu tenha dito isso. Eu não tive intenção de ofender a memória de sua mãe.

Ele tinha ele próprio falado com atrevimento. Stephen, protegendo as feridas escancaradas que as palavras haviam deixado em seu coração, disse bastante friamente:

– Eu não estou pensando na ofensa à minha mãe.

– Em que então? – perguntou Buck Mulligan.

– Na ofensa a mim – respondeu Stephen.

Buck Mulligan rodou em seus calcanhares.

– Ó, criatura impossível! – exclamou ele.

Ele saiu caminhando rapidamente em volta do parapeito. Stephen ficou de pé em seu posto, olhando por cima do mar calmo em direção ao promontório. Mar e promontório ficaram escuros. Pulsações batiam em seus olhos, velando sua visão, e ele sentiu febre em suas faces.
Uma voz chamava alto de dentro da torre:

– Você está aí em cima, Mulligan?

– Estou indo – respondeu Buck Mulligan.

Ele se voltou para Stephen e disse:

– Olhe para o mar. O que lhe importam as ofensas? Acabe com Loyola, Kinch, e desça. O saxônico quer suas fatias finas de bacon da manhã.

Sua cabeça parou ainda por um momento no topo da escada, ao nível do telhado.

– Não fique desanimado com tudo isso o dia todo – disse ele. – Eu sou inconsequente. Desista de sua meditação ressentida.

Sua cabeça sumiu mas a lengalenga de sua voz ao descer ressoou para fora da escada.

E basta de virar para o lado e meditar
Sobre o mistério amargo do amor
Pois Fergus comanda as carruagens de bronze.


Sombras-do-bosque flutuavam silenciosamente através da paz da manhã vindas do topo da escada em direção ao mar que ele contemplava. Dentro da praia e ao largo o espelho das águas esbranquiçadas, repelidas por pés apressados com calçados leves. Seio branco do mar sombrio. Os acentos entrelaçados, dois a dois. Dedos dedilhando as cordas da harpa, incorporando seus acordes entrelaçados. Ondabranca ligada às palavras bruxuleando na maré sombria.
Uma nuvem começou a cobrir o sol lentamente, totalmente, toldando a baía de um verde mais profundo. Ela jazia abaixo dele, a tigela de líquido amargo. A canção de Fergus: eu a cantei sozinho na casa, abafando os acordes longos e melancólicos. A porta dela estava aberta: ela queria ouvir a minha música. Silencioso com respeito e piedade eu fui para o lado de sua cama. Ela estava chorando em seu leito miserável. Por essas palavras, Stephen: mistério amargo do amor.
Aonde agora?
Os segredos dela: antigos leques-de-plumas, carnês de baile enfeitados, impregnados de almíscar, um berloque de contas de âmbar em sua gaveta trancada. Uma gaiola pendurada na janela ensolarada da casa dela quando ela era menina. Ela ouviu o velho Royce cantar na pantomima de Turko o Terrível e riu com os outros quando ele cantou:
Eu sou o rapaz
Que é capaz
De invisibilidade.
Alegria fantásmica, embrulhada longe: perfumada-de-almíscar.
E basta de virar para o lado e meditar.
Embrulhada longe na memória da natureza com os brinquedos dela. Lembranças invadem seu cérebro ruminante. O copo da água da torneira da cozinha quando ela se aproximara do sacramento. Uma maçã sem o miolo, cheia de açúcar mascavo, assando para ela na beira da lareira numa noite escura de outono. Suas unhas bem modeladas avermelhadas pelo sangue dos piolhos espremidos das camisas dos filhos.
Num sonho, silenciosamente, ela viera até ele, seu corpo gasto dentro de suas largas roupas tumulares exalando um odor de cera e pau-rosa, seu sopro, curvado sobre ele com mudas palavras secretas, um fraco odor de cinzas molhadas.
Seus olhos vidrados, fitando de dentro da morte, para sacudir e subjugar minha alma. Só em mim. A velafantasma para iluminar sua agonia. Luz espectral sobre o rosto torturado. Seu sopro rouco estrepitando alto com horror, enquanto todos rezavam de joelhos. Os olhos dela sobre mim para me derrubar. Liliata rutilantium te confessorum turma circumdet: iubilantium te virginum chorus excipiat.
Espírito maléfico! Devorador de cadáveres!
Não, mãe! Me deixe em paz me deixe viver.

– Olá, Kinch!

A voz de Buck Mulligan cantou de dentro da torre. Ela se aproximou escada acima, chamando novamente. Stephen, tremendo ainda com o clamor de sua alma, ouviu correr a luz quente do sol e as palavras amigáveis no ar atrás de si.

– Dedalus, desça como um bom molenga. O café-da-manhã está pronto. Haines está se desculpando por nos ter acordado ontem à noite. Está tudo bem.

– Estou indo – disse Stephen, se virando.

– Faça isso, por Jesus – disse Buck Mulligan. – Por mim e por todos nós.

Sua cabeça desapareceu e reapareceu.

– Eu contei para ele o seu símbolo da arte irlandesa. Ele disse que é muito inteligente. Arranque uma libra dele, está bem? Ou melhor, um guinéu.

– Eu recebo esta manhã – disse Stephen.

– A grana da escola? – disse Buck Mulligan. – Quanto? Quatro libras? Empreste-nos uma.

– Se você quiser – disse Stephen.

– Quatro reluzentes soberanos – exclamou Buck Mulligan encantado. – Vamos tomar uma bebedeira gloriosa para espantar até os druidas druídicos. Quatro onipotentes soberanos.

– Quatro reluzentes soberanos – exclamou Buck Mulligan encantado. – Vamos tomar uma bebedeira gloriosa para espantar até os druidas druídicos. Quatro onipotentes soberanos.

Ó, vamos ter momentos divertidos
Com uísque, cerveja e vinho bebidos!
Na coroação,
No dia da coroação!
Ó, vamos ter momentos divertidos
No dia da coroação!


Luz solar quente se alegrando acima do mar. A tigela de barbear de níquel brilhava, esquecida, sobre o parapeito. Por que eu a levaria para baixo? Ou então a deixaria ali o dia todo, amizade esquecida?
Ele se encaminhou para ela, segurou-a nas mãos por um tempo, sentindo seu frescor, cheirando a baba viscosa da espuma de barba na qual estava enfiado o pincel. Assim também eu carreguei o turíbulo de incenso então em Clongowes. Eu sou um outro agora e no entanto o mesmo. Um servo também. Um servidor de um servo.
Na sala de estar abobadada e sombria da torre a figura vestida de penhoar de Buck Mulligan se movia rapidamente de um lado para o outro em volta da lareira, ocultando e revelando seu brilho amarelo. Dois raios suaves de luz caíram cruzando o chão lajeado vindos das elevadas barbacãs: e no encontro de seus raios uma nuvem de fumaça-de-carvão e exalações de gordura frita flutuavam, dando voltas.

– Nós vamos sufocar – disse Buck Mulligan. – Haines, abra aquela porta, por favor?

Stephen pôs a tigela de barbear no armário. Uma figura alta se ergueu da rede em que estivera sentada, foi até o vão da porta e abriu as portas internas.

– Você tem a chave? – perguntou uma voz.

– Dedalus a tem – disse Buck Mulligan. – Meu Jesusinho, estou sufocado!

Ele uivou, sem levantar os olhos do fogo:

– Kinch!

– Está na fechadura – disse Stephen, avançando.

A chave rangeu estridentemente ao rodar duas vezes e, quando a porta pesada foi escancarada, uma luz bem-vinda e um ar claro entraram. Haines ficou no vão da porta, olhando para fora. Stephen arrastou sua aprumada valise para a mesa e se sentou para esperar. Buck Mulligan atirou a fritura na travessa ao seu lado. Em seguida ele carregou a travessa e o bule grande de chá para a mesa, pousou-os nela pesadamente e suspirou de alívio.

– Eu estou derretendo – disse ele – como a vela observou quando... Mas, psiu! Nem mais uma palavra sobre o assunto! Kinch, acorde! Pão, manteiga, mel. Haines, venha. A boia está pronta. Abençoa-nos, Senhor, e a estas tuas dádivas. Onde está o açúcar? Ó, Cristo, não há leite.

Stephen apanhou o pão e o pote de mel e a manteigueira do armário. Buck Mulligan se sentou com súbito mau humor.

– Que espécie de hospedaria é esta? – disse ele. – Eu disse que ela viesse depois das oito.

– Nós podemos tomá-lo preto – disse Stephen sedento. – Há um limão no armário.

– Ó, dane-se você com suas noções peculiares de Paris! – disse Buck Mulligan. – Eu quero leite de Sandycove.

Haines veio da porta e disse calmamente:

– A mulher está vindo com o leite.

– As bênçãos de Deus recaiam sobre você! – exclamou Buck Mulligan, saltando da cadeira. – Sente-se. Sirva o chá aí. O açúcar está no saco. Olhe, eu não posso continuar me atrapalhando com esses malditos ovos.

Ele cortou os três ovos na travessa e atirou cada um deles nos três pratos, dizendo:

In nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti.

Haines se sentou para servir o chá.

– Eu estou dando dois tabletes de açúcar para cada um de vocês – disse ele. – Mas, nossa, Mulligan, você faz um chá forte, não?

Cortando fatias grossas de pão, Buck Mulligan disse com uma voz engabeladora de velha:

– Quando eu faz chá eu faz chá, como dizia a velha mãe Grogan. E quando eu faz água eu faz água.

– Por Deus, isto é chá – disse Haines.

Buck Mulligan continuou cortando e engabelando:

Eu também, Sra. Cahill – disse ela. – Por Deus, mulher – disse a Sra. Cahill –, Deus mandou dizer para você não fazer os dois no mesmo bule.

Ele entregou bruscamente de cada vez aos seus companheiros de confusão uma fatia grossa de pão, espetada em sua faca.

– Isso é o povo para o seu livro, Haines – disse ele com muita veemência. – Cinco linhas de texto e dez páginas de notas sobre o povo e os peixesdeuses de Dundrum. Impressos pelas feiticeiras irmãs no ano do vento forte.

Ele se voltou para Stephen e perguntou numa bela voz intrigada, erguendo as sobrancelhas:

– Você se lembra, irmão, se o bule de chá da mãe Grogan é mencionado no Mabinogion ou nos Upanixades?

– Tenho dúvidas – disse Stephen seriamente.

– Tem mesmo? – disse Buck Mulligan no mesmo tom. – Suas razões, por favor?

– Eu imagino – disse Stephen enquanto comia – que isso nunca existiu nem dentro nem fora de Mabinogion. Acredita-se que mãe Grogan era parenta de Mary Ann.

Buck Mulligan sorriu encantado.

– Encantador! – disse ele com uma voz doce afetada, mostrando seus dentes brancos e piscando os olhos com prazer. – Você acha que era? Que encanto!

Então subitamente com todos os traços anuviados, ele resmungou com uma voz enrouquecida e irritante enquanto cortava de novo vigorosamente o pão:

Pois a velha Mary Ann
Ela não liga a mínima.
Mas, arregaçando seu saiote...


Ele entupiu sua boca com a fritura e mastigou e zuniu.

continua na página 25...
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Ulisses - Parte 1 (1b): Gritos jovens de vozes endinheiradas 
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Joyce, James 
Ulisses [recurso eletrônico] / James Joyce ; tradução Bernardina da Silveira Pinheiro ; [seleção, elaboração e tradução das notas de capítulos Flavia Maria Samuda]. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2010. Romance irlandês.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Ulisses - Parte 1 (1a): Majestoso, o gorducho Buck Mulligan

Ulisses

James Joyce

Parte 1

1


Majestoso, o gorducho Buck Mulligan apareceu no topo da escada, trazendo na mão uma tigela com espuma sobre a qual repousavam, cruzados, um espelho e uma navalha de barba. Um penhoar amarelo, desamarrado, flutuando suavemente atrás dele no ar fresco da manhã. Ele ergueu a tigela e entoou:

Introibo ad altare Dei.

Parado, ele perscrutou a escada sombria de caracol e gritou asperamente:

– Suba, Kinch! Suba, seu temível jesuíta!

Solenemente ele avançou para a plataforma de tiro. Olhou à volta e seriamente abençoou três vezes a torre, o terreno à volta e as montanhas que despertavam. Em seguida, avistando Stephen Dedalus, ele se inclinou em direção a ele e fez cruzes rápidas no ar, gorgolejando na garganta e sacudindo a cabeça. Contrariado e sonolento, Stephen Dedalus apoiou os braços no último degrau da escada e olhou friamente para o rosto sacolejante e gorgolejante que o abençoava, para a cabeça equina e os cabelos claros sem tonsura, tingidos e matizados como carvalho descorado.
Buck Mulligan espreitou por um instante por baixo do espelho e depois cobriu a tigela rapidamente.

– De volta pro quartel! – disse implacavelmente.

E acrescentou em tom sacerdotal:

– Pois isto, meus bem-amados, é a verdadeira cristina: corpo e alma e sangue e feridas. Música lenta, por favor. Fechem os olhos, senhores. Um momento. Um pequeno problema com esses corpúsculos brancos. Silêncio, todos.

Ele olhou de soslaio para cima e soltou um longo e lento assobio de chamada, depois fez por um momento uma pausa em atenção enlevada, com seus dentes iguais e brancos brilhando aqui e ali pontilhados de ouro. Crisóstomo. Dois fortes assobios estridentes responderam através da calma.

– Obrigado, meu velho – gritou vivamente. – Isto é o bastante. Desligue a corrente, está bem?

Saltou fora da plataforma de tiro e olhou seriamente para o seu observador, juntando em volta das pernas as dobras soltas de seu penhoar. A cara rechonchuda e sombria e a queixada oval e taciturna lembravam um prelado, patrono das artes na Idade Média. Um sorriso agradável desabrochou em seus lábios.

– A ironia das coisas! – disse ele alegremente. – Seu nome absurdo, um grego antigo!

Ele apontou com o dedo num gesto amigável e se encaminhou para o parapeito rindo consigo mesmo. Stephen Dedalus se aproximou, acompanhou-o e a meio caminho cansado se sentou na beira da plataforma de tiro, observando-o enquanto ele apoiava o espelho no parapeito, molhava o pincel na tigela e passava a espuma na face e no pescoço.
A voz alegre de Buck Mulligan prosseguia.

– Meu nome também é absurdo: Malachi Mulligan, dois dátilos. Mas soa helênico, não soa? Saltitante e radioso como o próprio cervo. Nós precisamos ir a Atenas. Você vem se eu conseguir que a tia me dê vinte libras?

Ele pôs o pincel de lado e, rindo com prazer, gritou:

– Será que ele vem? O jesuíta subnutrido!

Parando, ele começou a fazer a barba com cuidado.

– Diga-me, Mulligan – falou Stephen tranquilamente.

– Sim, meu anjo?

– Quanto tempo Haines vai ficar nesta torre?

Buck Mulligan mostrou um rosto barbeado por cima do ombro direito.

– Meu Deus, ele não é horrível? – disse francamente. – Um saxão enfadonho. Ele não acha que você seja um cavalheiro. Meu Deus, esses malditos ingleses! Estourando de dinheiro e indigestão. Porque ele vem de Oxford. Você sabe, Dedalus, você tem o verdadeiro estilo de Oxford. Ele não consegue entender você. Ó, meu nome para você é o melhor: Kinch, a lâmina-de-faca.

Ele raspou cautelosamente o queixo.

– A noite inteira ele esbravejou em sonho a respeito de uma pantera negra – disse Stephen. – Onde é que está o estojo da arma dele?

– Um miserável lunático! – disse Mulligan. – Você ficou apavorado?

– Fiquei – Stephen disse energicamente e com um medo crescente. – Aqui no escuro com um homem que eu não conheço esbravejando e ameaçando aos gemidos atirar numa pantera negra. Você salvou homens de afogamento. Porém eu não sou um herói. Se ele ficar aqui eu estou fora.

Buck Mulligan franziu a testa ao olhar para a espuma em sua navalha. Ele saltou de seu poleiro e começou a dar apressadamente uma busca nos bolsos de sua calça.

– Droga! – bradou guturalmente.

Ele veio para a plataforma de tiro e, enfiando a mão no bolso superior de Stephen, disse:

– Faça-nos empréstimo de seu traponasal para limpar minha navalha.


Stephen suportou que ele puxasse para fora e exibisse erguido por uma das pontas um lenço amarrotado e sujo. Buck Mulligan limpou a lâmina da navalha cuidadosamente. Em seguida, lançando um olhar por cima do lenço, disse:

– O traponasal do bardo! Uma nova cor artística para os nossos poetas irlandeses: verdemeleca. A gente quase pode sentir o gosto, não é?

Ele subiu no parapeito novamente e lançou um olhar à volta por sobre a baía de Dublin, com seu cabelo louro de carvalho pálido ligeiramente alvoroçado.

– Ó Deus! – disse tranquilamente. – Não é que o mar é aquilo que Algy chama de uma grande e doce mãe? O mar verdemeleca. O mar escroto compressor. Epi oinopa ponton. Ah, Dedalus, os gregos! Eu preciso lhe ensinar. Você precisa os ler no original. Thalatta! Thalatta! Ele é a nossa grande e doce mãe. Venha ver.

Stephen se levantou e se encaminhou para o parapeito. Apoiando-se nele olhou para a água embaixo e para o barco-correio desafogando a entrada da enseada de Kingstown.

– Nossa mãe toda-poderosa! – disse Mulligan.

Ele voltou abruptamente do mar para o rosto de Stephen seus olhos cinzentos inquisitivos.

– A tia acha que você matou a sua mãe – disse ele. – É por isso que ela não quer me deixar ter nada a ver com você.

– Alguém a matou – disse Stephen sombriamente.

– Que droga, Kinch, você podia ter se ajoelhado quando sua mãe agonizante pediu – disse Buck Mulligan. – Eu sou hiperbóreo tanto quanto você. Mas pensar em sua mãe rogando no seu último suspiro que você se ajoelhasse e rezasse por ela. E você recusou. Existe alguma coisa sinistra em você...

Ele se interrompeu e passou espuma de novo ligeiramente na face. Um sorriso tolerante crispou seus lábios.

– Mas um mímico encantador! – murmurou consigo mesmo. – Kinch, o mais encantador de todos os mímicos!

Seriamente e em silêncio ele fez a barba com tranquilidade e cuidado.
Stephen, com o cotovelo repousando no granito pontudo, encostou a palma abaixo da sobrancelha e olhou para a extremidade da manga de seu casaco preto lustroso que começava a puir. Uma dor, que ainda não era a dor do amor, agitou seu coração. Silenciosamente, em sonho, ela viera até ele após a sua morte, seu corpo gasto dentro de largas roupas tumulares marrons, exalando um odor de cera e pau-rosa, seu sopro, que se curvara sobre ele, mudo, reprovador, um fraco odor de cinzas molhadas. Através do punho puído ele viu o mar saudado como uma grande e doce mãe pela voz bem alimentada ao seu lado. A orla da baía e o horizonte continham uma massa líquida verde opaca. Uma tigela de porcelana ficara ao lado do leito de morte dela contendo a bile que parecia uma lesma verde arrancada de seu fígado apodrecido em seus ataques de vômito e de altos gemidos.
Buck Mulligan limpou novamente sua navalha de barba.

– Ah, pobre corpodecão! – disse ele com voz branda. – Eu preciso te dar uma camisa e alguns traposnasais. Como está a calça de segunda mão?

– Ela está caindo bastante bem – respondeu Stephen.

Buck Mulligan atacou a concavidade abaixo de seu lábio inferior.

– A ironia disso tudo – disse ele satisfeito. – Devia ser calça-de-segunda-perna. Só Deus sabe que alcoólatra sifilítico se desfez dela. Eu tenho uma com uma listra fina cinzenta. Você vai ficar elegante nela. Não estou brincando, não, Kinch. Você fica bonitão quando está bem vestido.

– Obrigado – disse Stephen. – Se ela for cinzenta eu não posso usar.

– Ele não pode usá-la – falou Buck Mulligan para o seu rosto no espelho. – Etiqueta é etiqueta. Ele mata a mãe mas não pode usar calça cinzenta.

Ele dobrou a navalha cuidadosamente e com batidinhas leves apalpou o rosto sentindo com os dedos a pele macia.
Stephen virou seu olhar do mar para o rosto gorducho com seus olhos expressivos azul-enfumaçados.

– Aquele camarada que eu encontrei no Ship ontem à noite – disse Buck Mulligan – disse que você tem p.g.i. Ele está lá em Dottyville com Connolly Norman. Paralisia geral do insano!

Ele fez o espelho rodopiar em semicírculo no ar para lançar a notícia bem longe sob a luz do sol agora radioso sobre o mar. Seus lábios crispados e barbeados riram assim como as pontas dos seus dentes brancos cintilantes. O riso se apoderou de todo o seu tronco forte e compacto.

– Olhe para você – disse ele –, seu bardo pavoroso!

Stephen inclinou a cabeça para a frente e examinou o espelho, fendido por uma rachadura tortuosa, estendido para ele. Cabelo em pé. Como ele e outros me veem. Quem escolheu este rosto para mim? Este corpo de cão que tem de se livrar de vermes. Ele também me pergunta o mesmo.

– Eu o surrupiei do quarto da criada – disse Buck Mulligan. – Ela bem o merece. A tia sempre fica com empregadas feiosas para Malachi. Não o conduza à tentação. E seu nome é Ursula.

Rindo de novo, ele afastou o espelho dos olhos perscrutadores de Stephen.

– A raiva de Caliban por não ver seu rosto no espelho – disse ele. – Se Wilde ao menos estivesse vivo para ver você!

Recuando e apontando, Stephen disse com amargor:

– Ele é um símbolo da arte irlandesa. O espelho rachado de uma criada.

Buck Mulligan enfiou subitamente seu braço no de Stephen e caminhou com ele em volta da torre, com sua navalha e espelho estalando em seu bolso onde ele os metera.

– Não é justo implicar com você desse jeito, Kinch, não é? – disse ele amavelmente. – Deus sabe que você tem muito mais talento do que qualquer um deles.

Aparado o golpe novamente. Ele teme o bisturi da minha arte como eu temo o da dele. A pena fria de aço.

– Espelho rachado de uma criada! Diga isso para o cara bovinooxfordiano lá embaixo e arranque dele um guinéu. Ele está tresandando de dinheiro e acha que você não é um cavalheiro. O velho dele fez sua grana vendendo jalapa para os Zulus ou numa outra sórdida falcatrua. Meu Deus, Kinch, se você e eu pudéssemos ao menos trabalhar juntos nós poderíamos fazer alguma coisa pela ilha. Helenizá-la.

O braço de Cranly. Seu braço.

– E pensar em você tendo de mendigar desses porcos. Eu sou o único que sabe o que você é. Por que você não confia mais em mim? O que você tem na cabeça contra mim? É Haines? Se ele fizer algum barulho aqui eu chamarei Seymour e nós faremos um banzé com ele pior do que aquele que fizeram com Clive Kempthorpe.



continua na página 20...
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Leia também:

Ulisses - Introdução
Ulisses - Parte 1 (1a): Majestoso, o gorducho Buck Mulligan
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Joyce, James 
Ulisses [recurso eletrônico] / James Joyce ; tradução Bernardina da Silveira Pinheiro ; [seleção, elaboração e tradução das notas de capítulos Flavia Maria Samuda]. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2010. Romance irlandês.