segunda-feira, 29 de abril de 2024

Simon and Garfunkel

Simon and Garfunkel - The Boxer






Música composta em 1968 por Paul Simon e Art Garfunkel para o álbum "Bridge over Troubled Water". Simon disse que a música era sobre ele e a vida difícil que levou nos primeiros anos de carreira.


O Boxeador
The Boxer

Eu sou só um rapaz pobre
I am just a poor boy

Embora raramente minha história seja contada
Though my story's seldom told

Eu tenho desperdiçado meu esforço
I have squandered my resistance

Em troca de um bolso cheio de resmungos
For a pocketful of mumbles

Tais são as promessas
Such are promises


Tudo mentiras e deboches
All lies and jests

Ainda assim, um homem ouve o que quer ouvir
Still, a man hears what he wants to hear

E ignora o resto
And disregards the rest


Quando eu deixei meu lar e minha família
When I left my home and my family

Eu não era mais do que um menino
I was no more than a boy

Na companhia de estranhos
In the company of strangers

Na quietude de uma estação de trem
In the quiet of the railway station

Fugindo amedrontado
Running scared


Mantendo-me escondido
Laying low

Buscando os alojamentos mais baratos
Seeking out the poorer quarters

Onde o povo esfarrapado vai
Where the ragged people go

Procurando os lugares que apenas eles conheceriam
Looking for the places only they would know


Pedindo apenas o salário mínimo
Asking only workman's wages

Eu vim procurando um emprego
I come looking for a job

Mas não recebo ofertas
But I get no offers

Apenas um convite das prostitutas da Sétima Avenida
Just a come on from the whores on 7th Avenue


Eu admito
I do declare

Houve momentos em que estava tão solitário
There were times when I was so lonesome

Que eu tive algum aconchego lá
I took some comfort there


Então, estou separando minhas roupas de inverno
Then I'm laying out my winter clothes

E desejando estar longe, indo para casa
And wishing I was gone, going home

Onde os invernos da cidade de Nova York
Where the New York City winters

Não estão me esgotando
Aren't bleeding me

Me guiando
Leading me

De volta para casa
Going home


No ringue está um boxeador
In the clearing stands a boxer

E um lutador por ofício
And a fighter by his trade

E ele carrega as lembranças
And he carries the reminders

De cada luva que o derrubou
Of every glove that laid him down

Ou o cortou até ele gritar
Or cut him till he cried out

Em sua raiva e vergonha
In his anger and his shame

Estou indo embora, estou indo embora
I am leaving, I am leaving

Mas o lutador ainda permanece
But the fighter still remains


Composição: Paul Simon


A Hora da Estrela - Esqueci de dizer

Clarice Lispector

A Hora da Estrela


continuando...

   Esqueci de dizer que no dia seguinte ao que ele lhe dera o fora ela teve uma ideia. Já que ninguém lhe dava festa, muito menos noivado, daria uma festa para si mesma. A festa consistiu em comprar sem necessidade um batom novo, não cor-de-rosa como o que usava, mas vermelho vivante. No banheiro da firma pintou a boca toda e até fora dos contornos para que os seus lábios finos tivessem aquela coisa esquisita dos lábios de Marylin Monroe. Depois de pintada ficou olhando no espelho a figura que por sua vez a olhava espantada. Pois em vez de batom parecia que grosso sangue lhe tivesse brotado dos lábios por um soco em plena boca, com quebra-dentes e rasga-carne (pequena explosão). Quando voltou para a sala de trabalho Glória riu-se dela:

– Você endoidou, criatura? Pintar-se como uma endemoniada? Você até parece mulher de soldado.

– Sou moça virgem! Não sou mulher de soldado e marinheiro. 

– Me desculpe eu perguntar: ser feia dói?

– Nunca pensei nisso, acho que dói um pouquinho. Mas eu lhe pergunto se você que é feia sente dor.

– Eu não sou feia!!! — gritou Glória. 

   Depois tudo passou e Macabéa continuou a gostar de não pensar em nada. Vazia, vazia. Como eu disse, ela não tinha anjo da guarda. Mas se arranjava como podia. Quanto ao mais, ela era quase impessoal. Glória perguntou-lhe:

– Por que é que você me pede tanta aspirina? Não estou reclamando, embora isso custe dinheiro.

– É para eu não me doer.

– Como é que é? Hein? Você se dói?

– Eu me doo o tempo todo.  

– Aonde?

– Dentro, não sei explicar. 

   Aliás cada vez mais ela não se sabia explicar. Transformara-se em simplicidade orgânica. E arrumara um jeito de achar nas coisas simples e honestas a graça de um pecado. Gostava de sentir o tempo passar. Embora não tivesse relógio, ou por isso mesmo, gozava o grande tempo. Era supersônica de vida. Ninguém percebia que ela ultrapassava com sua existência a barreira do som. Para as pessoas outras ela não existia. A sua única vantagem sobre os outros era saber engolir pílulas sem água, assim a seco. Glória, que lhe dava aspirinas, admirava-a muito, o que dava a Macabéa um banho de calor gostoso no coração. Glória advertiu-a: 

– Um dia a pílula te cola na parede da garganta que nem galinha de pescoço meio cortado, correndo por aí. 

   Um dia teve um êxtase. Foi diante de uma árvore tão grande que no tronco ela nunca poderia abraça-la. Mas apesar do êxtase ela não morava com Deus. Rezava indiferentemente. Sim. Mas o misterioso Deus dos outros lhe dava às vezes um estado de graça. Feliz, feliz, feliz. Ela de alma quase voando. E também vira o disco-voador. Tentara contar a Glória mas não tivera jeito, não sabia falar e mesmo contar o quê? O ar? Não se conta tudo porque o tudo é um oco nada. 
   Às vezes a graça a pegava em pleno escritório. Então ela ia ao banheiro para ficar sozinha. De pé e sorrindo até passar (parece-me que esse Deus era muito misericordioso com ela: dava-lhe o que lhe tirava). Em pé pensando em nada, os olhos moles.
   Nem Glória era uma amiga: só colega. Glória roliça, branca e morna. Tinha um cheiro esquisito. Porque não se lavava muito, com certeza. Oxigenava os pelos das pernas cabeludas e das axilas que ela não raspava. Olímpico: será que ela é loura embaixo também?
   Em relação a Macabéa, Glória tinha um vago senso de maternidade. Quando Macabéa lhe parecia murcha demais, dizia:

– E esse ar é por causa de?

   Macabéa, que nunca se irritava com ninguém, arrepiava-se com o hábito que Glória tinha de deixar a frase inacabada. Glória usava uma forte água-de-colônia de sândalo e Macabéa, que tinha estômago delicado, quase vomitava ao sentir o cheiro. Nada dizia porque Glória era agora a sua conexão com o mundo. Este mundo fora composto pela tia, Glória, o Seu Raimundo e Olímpico — e de muito longe as moças com as quais repartia o quarto. Em compensação se conectava com o retrato de Greta Garbo quando moça. Para minha surpresa, pois eu não imaginava Macabéa capaz de sentir o que diz um rosto como esse. Greta Garbo, pensava ela sem se explicar, essa mulher deve ser a mulher mais importante do mundo. Mas o que ela queria mesmo ser não era a altiva Greta Garbo cuja trágica sensualidade estava em pedestal solitário. O que ela queria, como eu já disse era parecer com Marylin. Um dia, em raro momento de confissão, disse a Glória quem ela gostaria de ser. E Glória caiu na gargalhada:

– Logo ela, Maca? Vê se te manca!

   Glória era toda contente consigo mesma: dava-se grande valor. Sabia que o sestro molengole de mulata, uma pintinha marcada junto da boca, só para dar uma gostosura, e um buço forte que ela oxigenava. Sua boca era loura. Parecia até um bigode. Era uma safadinha esperta mas tinha força de coração. Penalizava-se com Macabéa mas ela que se arranjasse, quem mandava ser tola? E Glória pensava: não tenho nada a ver com ela.

continua pág 68...
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"Clarice Lispector deixou vários depoimentos sobre a sua produção literária. Em alguns, parecia se defender do estranhamento que causava em leitores e críticos.
Ela tinha consciência de sua diferença. Desde pequena, ao ver recusadas as histórias que mandava para um jornal de Recife, pressentia que era porque nenhuma “contava os fatos necessários a uma história”, nenhuma relatava um acontecimento. Sabia também, já adulta, que poderia tornar mais “atraente” o seu texto se usasse, “por exemplo, algumas das coisas que emolduram uma vida ou uma coisa ou romance ou um personagem”.
Entretanto, mesmo arriscando-se ao rótulo de escritora difícil, mesmo admitindo ter um público mais reduzido, ela não conseguiria abrir mão de seu traçado: “Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro”. Ela se afastou dos “escritores que por opção e engajamento defendem valores morais, políticos e sociais, outros cuja literatura é dirigida ou planificada a fim de exaltar valores, geralmente impostos por poderes políticos, religiosos etc., muitas vezes alheios ao escritor”, em nome de uma outra forma de questionar a realidade e nela intervir, através da literatura." 
Clarisse Fukelman, Professora de Literatura Brasileira da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

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Leia também:

A Hora da Estrela - Esqueci de dizer

Día Internacional de la Danza 2024

Día Internacional de la Danza 

2024

Ballet Nacional de España







Hoje é dia de festa! Vamos todos comemorar o Dia Internacional da Dança!
Como foram os ensaios da coreografia que propusemos para o flashmob digital? Deixamos aqui o nosso vídeo com o elenco do Balé Nacional de Espanha.
Esperamos que tenha gostado da coreografia de Miguel Ángel Corbacho.
Agora é sua vez. Nos vemos nas redes.
Feliz Dia Internacional da Dança!


Coreografía: Miguel Ángel Corbacho.
Música: José Suarez.
Grabación y realización video: María Salgado, Isabel Ruiz y Francisco Ruiz.
Elenco: Ballet Nacional de España.

domingo, 28 de abril de 2024

Cinema: O Vento Será Tua Herança

O Vento Será Tua Herança


qualquer semelhança com as teorias da Terra Plana e desejos sobre a Escola Sem Partido não é mera coincidência: a involução da espécie humana




* Para ativar a Legenda em PT-BR apenas clicar no ícone CC que aparece no canto inferior direito.


(O Vento Será Tua Herança 1999 - HDTV 720p) 
Jack Lemmon (February 8, 1925 – June 27, 2001), 76 anos 
George C. Scott (October 18, 1927 – September 22, 1999), 71 anos 
Lane Smith / Tom Everett Scott / Kathryn Morris 
John Cullum / Piper Laurie / Beau Bridges

• Sinopse: Numa cidade marcada pela forte presença da comunidade religiosa, professor é preso por ensinar a Teoria da Evolução de Darwin. O caso vai para o tribunal, onde acontece uma série de inflamados debates ideológicos, que mexem com a localidade e com seus habitantes. Baseado em caso real ocorrido em 1925.

• Direção: Daniel Petrie, Sr.

• Roteiro: Jerome Lawrence (peça), Robert E. Lee (peça), Nedrick Young (roteiro adaptado), Harold Jacob Smith (roteiro adaptado)

• Gênero: Drama/Histórico
• Origem: Estados Unidos
• Duração: 128 minutos
• Tipo: Longa-metragem
• 1999


Pense:
 "cada um tem a sua verdade, essa é a minha verdade", 
geralmente é usada para se falar absurdos

sábado, 27 de abril de 2024

Old jazz

Jazz relaxante

um café
em um lugar relaxante
a boa companhia
de você mesmo
a música
e o seu livro preferido





01 Unforgettable
02 I've Been Waiting All My Life
03 What A Wonderful World
04 My Way
05 Fly Me To The Moon
06 New York, New York
07 You Make Me Feel So Young
08 Cheek to Cheek
09 A Kiss to Build a Dream On
10 Can_t Take My Eyes Off You
11 QUANDO- QUANDO
12 Just The Way You Are
13 The Look Of Love
14 I Wish You Love
15 I Left My Heart In San Francisco
15 I Love You
16 When I fall in love
17 Let's fall in love
18 Don't Know Why
19 Back to Black
20 You Know I'm No Good

O Cortiço - IX: E os elogios não cessavam

O CORTIÇO


Aluísio Azevedo


IX 
.
continuando...

   E os elogios não cessavam:

- Rica pequena!...

- É um enlevo olhar a gente pro demoninho!

- É mesmo uma lindeza de criança!

- Uma criaturinha dos anjos!

- Uma boneca francesa!

- Uma menina Jesus!

   O pai acompanhava-a comovido, mas solene sempre, parando a todo momento, como em procissão, à espera que cada qual desafogasse por sua vez o entusiasmo pela criança. Silenciosamente risonho, com os olhos úmidos, patenteada em todo o seu carão mulato, de bigode que parecia postiço, um ar condolente e estúpido de um profundo reconhecimento por aquela fortuna, que Deus lhe dera à filha, enviando-lhe dos céus o ideal das madrinhas.
   E, enquanto Jujú percorria a estalagem, conduzida em triunfo, Léonie na casa da comadre, cercada por uma roda de lavadeiras e crianças, discreteava sobre assuntos sérios, falando compassadamente, cheia de inflexões de pessoa prática e ajuizada, condenando maus atos e desvarios, aplaudindo a moral e a virtude. E aquelas mulheres, aliás tão alegres e vivazes, não se animavam, defronte dela, a rir nem levantar a voz, e conversavam a medo cochichando, a tapar a boca com a mão, tolhidas de respeito pela cocote, que as dominava na sua sobranceria de mulher loura vestida de seda e coberta de brilhantes. A das Dores sentiu-se orgulhosa, quando Léonie lhe pousou no ombro a mãozinha enluvada e recendente, para lhe perguntar pelo seu homem. E não se fartavam de olhar para ela, de admirá-la; chegavam a examinar-lhe a roupa, revistar-lhe as salas, apalpar-lhe as meias, levantando-lhe o vestido, com exclamações de assombro à vista de tanto luxo de rendas e bordados. A visita sorria, por sua vez comovida. Piedade declarou que a roupa branca da madama era rica nem como a da Nossa Senhora da Penha. E Nenen, no seu entusiasmo, disse que a invejava do fundo do coração, ao que a mãe lhe observou que não fosse besta. O Albino contemplava-a em êxtase, de mão no queixo, o cotovelo no ar. A Rita Baiana levara-lhe um ramalhete de rosas. Esta não se iludia com a posição da loureira, mas dava-lhe apreço talvez por isso mesmo e, em parte, porque a achava deveras bonita. “Ora! era preciso ser bem esperta e valer muito para arrancar assim da pele dos homens ricos aquela porção de jóias e todo aquele luxo de roupa por dentro e por fora!”

- Não sei, filha! pregava depois a mulata, no pátio, a uma companheira; seja assim ou assado, a verdade é que ela passa muito bem de boca e nada lhe falta: sua boa casa; seu bom carro para passear à tarde; teatro toda a noite; bailes quando quer e, aos domingos, corridas, regatas, pagodes fora da cidade e dinheirama grossa para gastar à farta! Enfim, só o que afianço é que esta não está sujeita, como a Leocádia e outras, a pontapés e cachações de um bruto de marido! É dona das suas ações! livre como o lindo amor! Senhora do seu corpinho, que ela só entrega a quem muito bem lhe der na veneta!

- E Pombinha?... perguntou a visita. Não me apareceu ainda!...

- Ah! esclareceu Augusta. Não está ai, foi à sociedade de dança com a mãe.

   E, como a outra mostrasse na cara não ter compreendido, explicou que a filha de Dona Isabel ia todas as terças, quintas e sábados, mediante dois mil-réis por noite, servir de dama numa sociedade em que os caixeiros do comércio aprendiam a dançar.

- Foi lá que ela conheceu o Costa... acrescentou.

- Que Costa?

- O noivo! Então a Pombinha já não foi pedida?

- Ah! sei...

   E a cocote perguntou depois, abafando a voz:

- E aquilo?... Já veio afinal?...

- Qual! Não é por falta de boa vontade da parte delas, coitadas! Agora mesmo a velha fez uma nova promessa a Nossa Senhora da Anunciação... mas não há meio!

   Daí a pouco, Augusta apresentou-lhe uma xícara de café, que Léonie recusou por não poder beber. “Estava em uso de remédios...” Não disse, porém, quais eram estes, nem para que moléstia os tomava.

- Prefiro um copo de cerveja, declarou ela.

   E, sem dar tempo a que se opusessem, tirou da carteira uma nota de dez mil-réis, que deu a Agostinho para ir buscar três garrafas de Carls Berg.
   A vista dos copos, liberalmente cheios, formou-se um silêncio enternecido. A cocote distribuiu-os por sua própria mão aos circunstantes, reservando um para si. Não chegavam. Quis mandar buscar mais; não lho permitiram, objetando que duas e três pessoas podiam beber juntas.

- Para que gastar tanto?... Que alma grande!

   O troco ficou esquecido, de propósito, sobre a cômoda, entre uma infinita quinquilharia de coisas velhas e bem tratadas.

- Quando você, comadre, agora me aparece por lá?... quis saber Léonie.

- Pra semana, sem falta; levo-lhe toda a roupa. Agora, se a comadre tem precisão de alguma... podese aprontar com mais pressa...

- Então é bom mandar-me toalhas e lençóis... Camisas de dormir, é verdade! também tenho poucas.

- Depois d’amanhã está tudo lá.

   E a noite ia-se passando. Deram dez horas. Léonie, impaciente já pelo rapaz que ficara de ir buscá-la, mandou ver se ele por acaso estaria no portão, à espera.

- É aquele mesmo que veio da outra vez com a comadre?...

- Não. É um mais alto. De cartola branca.

   Correu muita gente até à rua. O rapaz não tinha chegado ainda. Léonie ficou contrariada.

- Imprestável!... resmungou. Faz-me ir sozinha por ai ou incomodar alguém que me acompanhe!

- Por que a comadre não dorme aqui?... lembrou Augusta. Se quiser, arranja-se tudo! Não passará bem como em sua casa, mas uma noite corre depressa!...

   Não! não era possível Precisava estar em casa essa noite: no dia seguinte pela manhã iriam procurá-la muito cedo.
   Nisto chegou Pombinha com Dona Isabel. Disseram-lhes logo à entrada que Léonie estava em casa do Alexandre, e a menina deixou a mãe um instante no número 15 e seguiu sozinha para ali, radiante de alegria. Gostavam-se muito uma da outra. A cocote recebeu-a com exclamações de agrado e beijou-a nos dentes e nos olhos repetidas vezes.

- Então, minha flor, como está essa lindeza! perguntou-lhe, mirando-a toda.

- Saudades suas... respondeu a moça, rindo bonito na sua boca ainda pura.

   E uma conversa amiga, cheia de interesse para ambas, estabeleceu-se, isolando-as de todas as outras. Léonie entregou à Pombinha uma medalha de prata que lhe trouxera; uma tetéia que valia só pela esquisitice, representando uma fatia de queijo com um camundongo em cima. Correu logo de mão em mão, levantando espantos e gargalhadas.

- Por um pouco que não me apanhas... continuou a cocote na sua conversa com a menina. Se a pessoa que me vem buscar tivesse chegado já, eu estaria longe. - E mudando de tom, a acarinhar-lhe os cabelos: - Por que não me apareces!... Não tens que recear: minha casa é muito sossegada... Já lá têm ido famílias!...

- Nunca vou à cidade... É raro! suspirou Pombinha.

- Vai amanhã com tua mãe; jantam as duas comigo...

- Se mamãe deixar... Olha! ela ai vem. Peça.

   Dona Isabel prometeu ir, não no dia seguinte, mas no outro imediato, que era domingo. E a palestra durou animada até que chegou, daí a um quarto de hora, o rapaz por quem esperava Léonie. Era um moço de vinte e poucos anos, sem emprego e sem fortuna, mas vestido com esmero e muito bem apessoado. A cocote, logo que o viu aproximar-se, disse baixinho à menina:

- Não é preciso que ele saiba que vais lá domingo, ouviste?

   Jujú dormia. Resolveram não acordá-la; iria no dia seguinte.
   Na ocasião em que Léonie partia pelo braço do amante, acompanhada até o portão por um séquito de lavadeiras, a Rita, no pátio, beliscou a coxa de Jerônimo e soprou-lhe à meia voz:

- Não lhe caia o queixo!...

   O cavouqueiro teve um desdenhoso sacudir d’ombros.

- Aquela pra cá nem pintada!

   E, para deixar bem patente as suas preferências, virou o pé do lado e bateu com o tamanco na canela da mulata.

- Olha o bruto!... queixou-se esta, levando a mão ao lugar da pancada. Sempre há de mostrar que é galego!

Continua página 57...
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Leia também:

O Cortiço - IX: E os elogios não cessavam
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   Aluísio Azevedo (Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo), caricaturista, jornalista, romancista e diplomata, nasceu em São Luís, MA, em 14 de abril de 1857, e faleceu em Buenos Aires, Argentina, em 21 de janeiro de 1913.
   Era filho do vice-cônsul português David Gonçalves de Azevedo e de D. Emília Amália Pinto de Magalhães e irmão mais moço do comediógrafo Artur Azevedo. Sua mãe havia casado, aos 17 anos, com um comerciante português. O temperamento brutal do marido determinou o fim do casamento. Emília refugiou-se em casa de amigos, até conhecer o vice-cônsul de Portugal, o jovem viúvo David. Os dois passaram a viver juntos, sem contraírem segundas núpcias, o que à época foi considerado um escândalo na sociedade maranhense.
   Da infância à adolescência, Aluísio estudou em São Luís e trabalhou como caixeiro e guarda-livros. Desde cedo revelou grande interesse pelo desenho e pela pintura, o que certamente o auxiliou na aquisição da técnica que empregará mais tarde ao caracterizar os personagens de seus romances. Em 1876, embarcou para o Rio de Janeiro, onde já se encontrava o irmão mais velho, Artur. Matriculou-se na Imperial Academia de Belas Artes, hoje Escola Nacional de Belas Artes. Para manter-se fazia caricaturas para os jornais da época, como O Fígaro, O Mequetrefe, Zig-Zag e A Semana Ilustrada. A partir desses “bonecos”, que conservava sobre a mesa de trabalho, escrevia cenas de romances.
   A morte do pai, em 1878, obrigou-o a voltar a São Luís, para tomar conta da família. Ali começou a carreira de escritor, com a publicação, em 1879, do romance Uma lágrima de mulher, típico dramalhão romântico. Ajuda a lançar e colabora com o jornal anticlerical O Pensador, que defendia a abolição da escravatura, enquanto os padres mostravam-se contrários a ela. Em 1881, Aluísio lança O mulato, romance que causou escândalo entre a sociedade maranhense pela crua linguagem naturalista e pelo assunto tratado: o preconceito racial. O romance teve grande sucesso, foi bem recebido na Corte como exemplo de Naturalismo, e Aluísio pôde retornar para o Rio de Janeiro, embarcando em 7 de setembro de 1881, decidido a ganhar a vida como escritor.
   Quase todos os jornais da época tinham folhetins, e foi num deles que Aluísio passou a publicar seus romances. A princípio, eram obras menores, escritas apenas para garantir a sua sobrevivência. Depois, surgiu nova preocupação no universo de Aluísio: a observação e análise dos agrupamentos humanos, a degradação das casas de pensão e sua exploração pelo imigrante, principalmente o português. Dessa preocupação resultariam duas de suas melhores obras: Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). De 1882 a 1895 escreveu sem interrupção romances, contos e crônicas, além de peças de teatro em colaboração com Artur de Azevedo e Emílio Rouède.
   Em 1895 ingressou na diplomacia, momento em que praticamente cessa sua atividade literária. O primeiro posto foi em Vigo, na Espanha. Depois serviu no Japão, na Argentina, na Inglaterra e na Itália. Passara a viver em companhia de D. Pastora Luquez, de nacionalidade argentina, junto com os dois filhos, Pastor e Zulema, por ele adotados. Em 1910, foi nomeado cônsul de 1ª. classe, sendo removido para Assunção. Buenos Aires foi seu último posto. Ali faleceu, aos 56 anos. Foi enterrado naquela cidade. Seis anos depois, por uma iniciativa de Coelho Neto, a urna funerária de Aluísio Azevedo chegou a São Luís, onde o escritor foi sepultado.

Memórias - 16: um costume secular

No se puede hacer la revolucion sin las mujeres

Livro Dois

baitasar

Memórias

16 – um costume secular

naquela casa, ninguém sabia das histórias entre cristãos e judeus ou cristãos e mulçumanos ou mulçumanos e judeus, menos sabiam das lutas entre romanos e bárbaros, não compreendiam as histórias do holocausto nem ouviram falar sobre fascismo, desconfiavam que seu povo estava diminuindo em quantidade, mas as dominações, as revelações, as traições, as cruzadas, não eram assunto conhecido, Mariá ainda não sabia do inferno nem do céu nem da serpente e da maçã, nem escutava histórias de bruxas queimadas em fogueiras, mortes decretadas por homens com medo da magia das mulheres, mortes em nome da igreja, tamanho embaraço em nome da cruz, do pai, do filho e do espírito santo, da pia batismal e da água benta, amém, mas já sabia do medo do comunismo

eu, muito menos, sabia disso tudo, mas conhecia o extermínio rigoroso en la Montaña, as outras histórias se vai conhecendo aqui e ali, desde que se queira escutar

cheguei, naquela casa, por minha necessidade de sumir de la Montaña, e porque dona Manuela havia discursado exausta das suas tarefas de dona-de-casa sem qualquer ajuda, havia anunciado um basta vigoroso, Se quieres seguir con travassuras de luna llena y tardes locas, búscate outra criada ¡porque yo ya estoy hasta con cuidar de esta casa yo sola! Ni siquiera Anadyr me ayuda, ¡prefere las vacas! Qué mujer más infeliz será para casarse...

depois do silêncio da oração de agradecimento vinham conversas e comentários daquela manhã, dona Manuela servia a todos com seus sabores preferidos

tudo em ordem e oração à vida na família

Hoje, a vaca leiteira Feição fez de novo, puxou conversa antes de derramar o leite das tetas. Ela gosta de prosa, acredita que uma boa conversa deixa o leite mais saboroso.

todos acharam graça daquela história da Anadyr, a vaca leiteira falante

E sobre o quê vocês conversaram, perguntou Angélyca

Ela queria saber do seu bezerro.

E o que você respondeu, foi a vez do Crespo perguntar curioso

Eu respondi que ele estava bem, crescendo forte, prometi que à tardinha levaria ele para mamar nas suas tetas

Mamá, eu posso ver?

Eso depende de tu padre, Aryani. Ahora, vamos a comer.

Nunca vi uma vaca que fala, saiu do seu silêncio, Chiado, o caçula dos varões

Ya basta... vamos a comer...

Isso é porque tu nunca vai na vacaria, foi a vez de todos à mesa ouvirem o Calssado 

a voz assobiada do Chiado retrucou, Não vou porque tenho a escola...

dona Manuela não conseguiu evitar aquele trabalho nas mãos da Anadyr e Calssado, mas não permitia que nenhuma outra das suas crias visitasse a vacaria, Estas vacas no negarán a los niños y niñas la possibilidad de una infancia sana y la oportunidad de recibir una educación adecuada, Essa foi a minha educação... com as vacas leiteiras. Não está satisfeita com o que tenho para oferecer a ti e nossos filhos?, No hablo de ti. Hablo de nuestros hijos y hijas, del direcho a jugar, aprender y crecer de una forma que se adapte a niños y niñas. ¡Repites a tu padre!, Não estou a repetir meu pai!, Pues hazlo de outra manera.

Chega dessa conversa, vocês escutaram sua mãe... vamos comer.

as formalidades daquela casa à mesa eram homilia de agradecimento, preocupação determinada dos lugares de cada filho, cada filha, e a distribuição das comidas por dona Manuela

sem algazarras discordantes

primeiro o pai

apenas, torno a repetir, minha querida amiguinha, estou a contar o que a memória me lembra daqueles dias provisórios

não reconheço no transitório a eternidade, é na morte que se encontra o verdadeiro poder, morrer é um poder definitivo sobre todos

esse jeito de pensar me atrai

as memórias da morte esmagam as lembranças da vida e determinam os lugares de cada um de nós na continuação em nome do pai e da memória de si mesma, envelhecer sem lembranças é um preanuncio da morte 

os lugares à mesa sempre eram preenchidos naturalmente, um costume secular

um mandamento tradicional em que as criaturas que vinham ao mundo infantil o primeiro diploma era ao sentar à mesa sem a cadeirinha para crianças

uma a uma, elas esperavam sua chance de crescerem

a teta

as fraldas

a chupeta

a mamadeira

o engatinhar

os primeiros passinhos

as primeiras palavras

o penico, Es todo tan rápido, don Juan... 

cada um com as suas manias e tudo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo

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Memórias - 10: família e vacas
Memórias - 16: um costume secular

sexta-feira, 26 de abril de 2024

O Sol é para todos: 1ª Parte (10c)

Harper Lee

O Sol é para todos


Para o sr. Lee e Alice, em retribuição ao amor e afeto


Os advogados, suponho, um dia foram crianças.
CHARLES LAMB



PRIMEIRA PARTE

10

continuando...

   Tim Johnson apareceu, andando sem rumo pela rua, no lado da curva paralelo à casa dos Radley.

— Olha só para ele — cochichou Jem para mim. — O sr. Heck disse que cachorro louco anda em linha reta, mas ele mal consegue permanecer na rua. 

— Ele parece muito doente — constatei.

— Se alguma coisa passar na frente, ele ataca.

   O sr. Tate pôs a mão na testa e se inclinou para a frente. 

— Ele está louco mesmo, Sr. Finch.

   Tim Johnson vinha desnorteado, sem brincar nem cheirar as plantas, parecia que tinha uma meta e era controlado por uma força invisível que o mandava na nossa direção. Podíamos vê-lo estremecer como um cavalo espantando moscas; abria e fechava a boca, mas vinha na nossa direção. 

— Ele está procurando um lugar para morrer — disse Jem. 

   O sr. Tate virou-se para nós: 

— Ele não vai morrer, Jem, longe disso.

   Tim Johnson chegou à rua lateral que passava em frente à casa dos Radley e, com o que lhe restava de discernimento, pareceu decidir que direção ia tomar. Deu alguns passos hesitantes e parou diante do portão dos Radley. Então tentou dar meia-volta, mas não conseguiu.
   Atticus disse:

— Ele está na linha de tiro, Heck. É melhor abatê-lo logo, antes que entre na rua lateral, sabe Deus quem pode estar lá agora. Entre em casa, Cal. 

   Calpúrnia abriu a porta telada, trancou-a, abriu de novo e ficou com a mão no trinco. Tentou colocar o corpo na frente de Jem e eu, mas nós olhamos por baixo dos braços dela. 

— Atire nele, sr. Finch.

   O sr. Tate entregou o rifle para Atticus. Jem e eu quase desmaiamos.

— Não perca tempo, Heck. Atire — disse Atticus. 

— Sr. Finch, tem que ser um tiro certeiro.

   Atticus balançou a cabeça, firme: 

— Não fique aí parado, Heck! O cachorro não vai esperar o dia todo... 

— Pelo amor de Deus, sr. Finch, olhe onde ele está! Se eu errar o tiro, ele vai entrar direto na casa dos Radley! Você sabe que não sou bom atirador. 

— Há trinta anos não pego numa arma…

   O sr. Tate quase jogou o rifle em cima de Atticus: 

— Confio mais na sua pontaria — ele disse. 

   Atordoados, Jem e eu vimos nosso pai pegar o rifle e ir para o meio da rua. Ele andava rápido, mas para mim parecia alguém nadando embaixo d’água: o tempo transcorria com uma lentidão torturante. 
   Quando Atticus tirou os óculos, Calpúrnia murmurou: 

— Meu bom Jesus, ajude esse homem — e pôs as mãos no rosto. 

   Atticus colocou os óculos na testa, mas eles escorregaram e caíram na rua. No silêncio, ouvi as lentes se quebrarem. Atticus coçou os olhos e o queixo, aguçou a vista. 
   Tim Johnson estava no portão dos Radley e, com o que lhe restava das ideias, decidiu o que fazer. Ia finalmente retomar a rota original e subir a nossa rua. Deu dois passos para a frente, então parou e levantou a cabeça. Seu corpo se enrijeceu.
   Com movimentos tão rápidos que pareceram simultâneos, Atticus apoiou o rifle no ombro e atirou.
   O rifle rangeu. O corpo de Tim Johnson deu um solavanco, se revirou e caiu na calçada, um monte de carne marrom e branca. Ele nem viu o que o atingiu. 
   O sr. Tate pulou da varanda e correu para a casa dos Radley. Parou na frente do cachorro, agachou-se, virou para trás e bateu com o dedo na testa sobre o olho esquerdo. 

— Seu tiro acertou um pouco à direita, sr. Finch. 

— Minha pontaria sempre foi assim — concordou Atticus. — Eu preferia usar uma espingarda. 

   Ele se abaixou para pegar os óculos no chão, triturou a lente quebrada com a sola do sapato, foi até o sr. Tate e ficou observando o corpo de Tim Johnson. 
   As portas das casas foram se abrindo uma por uma e, aos poucos, tudo voltou à vida. A srta. Maudie desceu a escada com a srta. Stephanie Crawford. 
   Jem estava paralisado. Belisquei-o para que ele se mexesse, mas, quando Atticus nos viu saindo de casa, ordenou: 

— Fiquem onde estão.

   Quando o sr. Tate e Atticus voltaram para o nosso jardim, o sr. Tate estava sorrindo. 

— Vou mandar Zeebo recolher o corpo — disse ele. — Ainda está com boa pontaria, sr. Finch. Dizem que isso a pessoa nunca perde.

   Atticus ficou calado. 

— Atticus — chamou Jem.

— Sim?

— Nada. 

— Eu vi, Finch-tiro-certeiro! 

   Atticus virou-se e deu de cara com a srta. Maudie. Os dois se olharam sem dizer nada e Atticus entrou no carro do xerife.

— Venha cá — disse para Jem. — Não quero que cheguem perto do cachorro, entendeu? Ele é tão perigoso morto quanto vivo. 

— Está bem. Atticus… — Jem começou a dizer.

— O que é, filho? 

— Nada. 

— O que houve com você, menino, perdeu a fala? — perguntou o sr. Tate, sorrindo para Jem. — Você não sabia que o seu pai…

— Não diga nada, Heck. Vamos voltar para a cidade — disse Atticus. 

   Quando foram embora, Jem e eu fomos para a escada da srta. Stephanie e ficamos esperando Zeebo aparecer com o caminhão de lixo. 
   Jem estava confuso e a srta. Stephanie perguntou: 

— Ai, ai, ai, quem ia pensar que um cachorro louco ia aparecer em fevereiro? Vai ver que não estava louco, só parecia louco. Não quero nem ver a cara de Harry Johnson quando chegar de Mobile e souber que Atticus Finch matou o cachorro dele. Vai ver que o cão só estava cheio de pulgas…

   A srta. Maudie disse que a srta. Stephanie não ia dizer isso se Tim Johnson ainda estivesse andando pela rua, que descobririam logo o que o cachorro tinha, porque mandariam a cabeça dele para ser examinada em Montgomery. 
   Jem conseguiu se manifestar, meio desconexo. 

— Você viu, Scout? Viu ele parado lá? De repente, ele ficou calmo, parecia que a arma era uma extensão do corpo dele… Foi tão rápido… Eu preciso fazer dez minutos de pontaria para acertar alguma coisa…

   A srta. Maudie deu um sorriso malicioso. 

— Então, srta. Jean Louise, ainda acha que seu pai não sabe fazer nada? Ainda tem vergonha dele? — perguntou.

— Não — respondi, envergonhada. 

— Esqueci de dizer no outro dia que, além de tocar harpa de boca, Atticus Finch era o tiro mais certeiro do condado de Maycomb. 

— Tiro certeiro... — repetiu Jem.

— Isso mesmo, Jem Finch. Acho que agora você vai mudar de opinião. Aliás, sabia que, quando era jovem, o apelido dele era Tiro Certeiro? Lá em Finch’s Landing, quando ele era garoto, se desse quinze tiros e acertasse catorze pombos, reclamava que tinha desperdiçado munição.

— Ele nunca falou sobre isso — resmungou Jem.

— Nunca, não é? 

— Não, senhora. 

— Não sei por que ele não caça mais — eu disse. 

— Acho que eu sei — disse a srta. Maudie. — Se o pai de vocês tem alguma qualidade, é o bom coração. Atirar bem é um dom divino, um talento, precisa praticar para se aperfeiçoar, mas atirar é diferente de tocar piano ou coisas assim. Acho que ele deixou a espingarda de lado quando viu que Deus tinha lhe dado uma vantagem injusta em relação às outras coisas vivas e resolveu só atirar quando fosse necessário, como hoje. 

— Acho que ele devia se orgulhar — eu disse. 

— As pessoas sensatas nunca se orgulham dos próprios talentos — avaliou a srta. Maudie. 

   Vimos Zeebo chegar com o caminhão. Pegou um forcado na carroceria, tirou o corpo de Tim Johnson da rua e jogou-o no caminhão, depois despejou um líquido onde o corpo tinha ficado na rua. 

— Não se aproximem daqui por um tempo — Zeebo gritou para nós. 

   Quando fomos para casa, eu disse a Jem que na segunda-feira teríamos uma novidade para contar na escola. Jem virou-se para mim e avisou: 

— Não diga nada sobre isso, Scout. 

— O quê? Claro que vou falar sobre isso. Nem todo mundo tem um pai que é o tiro mais certeiro do condado de Maycomb. 

   Jem disse:

— Se ele quisesse que soubéssemos, teria contado. Se tivesse orgulho disso, teria dito alguma coisa. 

— Vai ver que esqueceu — sugeri. 

— Não, Scout, você não ia entender. Atticus é velho mesmo, mas não me importo se ele não consegue fazer algumas coisas… Não dou a mínima se ele não souber fazer nada…

   Jem pegou uma pedra e jogou-a, exultante, na garagem. Correu para buscá-la e gritou para mim: 

— Atticus é um cavalheiro, exatamente como eu! 

continua página 075...
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Leia também:

O Sol é para todos: 1ª Parte (10c)
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Copyright © 1960 by Harper Lee, renovado em 1988 
Copyright da tradução © José Olympio
Título do original em inglês 
TO KILL A MOCKINGBIRD 
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Um dos romances mais adorados de todos os tempos, O sol é para todos conta a história de duas crianças no árido terreno sulista norte-americano da Grande Depressão no início dos anos 1930. 

quinta-feira, 25 de abril de 2024

Massa e Poder - A Massa (Massas de Fuga)

Elias Canetti


MASSAS DE ACOSSAMENTO


   A massa de fuga constitui-se a partir da ameaça. É próprio dela que todos fujam, que todos sejam arrastados por ela. O perigo de que se sente ameaçada é o mesmo para todos. Ele se concentra num determinado lugar e não faz distinções: pode ameaçar os habitantes de uma cidade, todos os que professam uma mesma crença ou todos os falantes de uma única e mesma língua.
   As pessoas fogem juntas porque assim fogem melhor. A excitação é a mesma: a energia de um intensifica a dos outros, e as pessoas compelem-se todas adiante, na mesma direção. Enquanto estão juntas, sentem o perigo distribuído por todos. Uma noção antiquíssima crê que o perigo atacará em um único ponto. Enquanto o inimigo se apodera de um, os outros todos poderão escapar. Os flancos da fuga apresentam-se abertos, mas alongados como são é inconcebível que o perigo ataque todos ao mesmo tempo. Em meio a tantas pessoas, ninguém supõe que venha a ser ele a vítima. Uma vez que todos se movem rumo à salvação, cada um sente-se inteiramente impregnado da possibilidade de obtê-la.
   O que mais chama a atenção na fuga em massa é precisamente a força de sua direção. A própria massa transformou-se inteiramente em direção, por assim dizer — uma direção que significa longe do perigo. Uma vez que importa apenas a meta, na qual se está salvo — isto é, o percurso específico até lá, e nada mais —, as distâncias anteriormente existentes entre os homens são irrelevantes. Criaturas bastante singulares e opostas, que jamais se aproximaram uma da outra, podem aí subitamente reunir-se. É certo que, na fuga, não se anulam as suas diferenças, mas anulam-se nela todas as distâncias que as separavam. De todas as formas da massa, a de fuga é a mais abrangente. Contudo, o quadro desigual que ela oferece não é produzido apenas pela participação de absolutamente todos, mas faz-se ainda mais confuso pelas velocidades bastante diversas de que os homens são capazes em sua fuga. Dentre eles há jovens e velhos, fortes e fracos, pessoas levando consigo cargas maiores ou menores. A variedade desse quadro pode confundir um observador externo. Ela é casual e — comparada à força avassaladora da direção — absolutamente insignificante.
   A energia da fuga multiplica-se na medida em que cada participante reconheça os demais: ele pode impeli-los adiante, mas não empurrá-los para o lado. No momento em que passa a preocupar-se apenas consigo próprio e a sentir os que o circundam tão somente como um obstáculo, o caráter da fuga em massa altera-se completamente, transformando-se em seu oposto: ela se transforma em pânico, uma luta de cada um contra todos os demais que lhe barram o caminho. Na maioria das vezes, uma tal reviravolta ocorre quando a direção da fuga é reiteradamente perturbada. Basta que se obstrua o caminho da massa para que ela irrompa em outra direção. Obstruindo-se lhe seguidamente o caminho, ela logo não saberá mais que rumo tomar. Confundir-se-á em sua direção, o que fará com que sua consistência se modifique. O perigo, que até então produzira um efeito acelerador e unificador, coloca uns como inimigos dos outros, de modo que cada um tentará salvar-se por si só.
   Contrariamente ao pânico, porém, a fuga em massa extrai sua energia de sua coesão. Enquanto ela não se deixar dispersar por coisa alguma, enquanto persistir em seu caráter irrompível, qual uma portentosa torrente que não se subdivide, também o medo que a impele permanecerá suportável. Tão logo ela se põe em marcha, uma espécie de exaltação caracteriza a fuga em massa: a exaltação do movimento conjunto. Ninguém se encontra menos em perigo do que o outro, e embora cada um corra ou cavalgue a não mais poder, a fim de  pôr-se em segurança, cada um tem o seu lugar no todo — um lugar que reconhece e ao qual, em meio à agitação geral, se aferra.
   No decorrer da fuga, que pode estender-se por dias ou semanas, muitos ficam para trás — seja porque sua força os abandonou ou porque o inimigo os atingiu. Cada um que cai constitui um estímulo para que os outros prossigam. A sorte que o vitimou excetuou os demais. O atingido é um sacrifício oferecido ao perigo. Por mais importante que tenha sido para alguém em particular, como companheiro de fuga, na condição daquele que caiu ele se faz importante para todos. Sua visão dá nova força aos exaustos. Ele era mais fraco que eles; era a ele que o perigo visava. O isolamento desse seu ficar para trás, o isolamento no qual os demais ainda o veem por um breve instante, aumenta para estes o valor de sua coesão. Nunca é demais enfatizar o significado para a consistência da fuga daquele que tombou.
   O término natural da fuga é o alcance de sua meta. Em segurança, a massa volta a dissolver-se. O perigo, porém, pode também ser aniquilado em sua fonte. Decreta-se uma trégua, e a cidade da qual se fugiu já não está mais em perigo. Se antes haviam fugido em conjunto, agora as pessoas retornam separadamente; apresentam-se novamente tão apartadas quanto antes. Contudo, há ainda uma terceira possibilidade, a que se pode chamar o escoar-se da fuga na areia. A meta encontra-se demasiado distante; o meio é hostil; os homens têm fome, tornam-se fracos e exaustos. Em vez de um único, centenas, milhares jazem no chão. Essa desintegração física estabelece-se paulatinamente, e o movimento inicial mantém-se por um tempo infinitamente longo. Os homens arrastam-se adiante, tendo já desaparecido qualquer perspectiva de salvação. De todas as formas da massa, a de fuga é a mais tenaz; seus últimos integrantes permanecem juntos até o instante derradeiro.
   Exemplos de fuga em massa efetivamente não faltam. Nossa época fez-se novamente bastante farta nesse fenômeno. Até os acontecimentos da última guerra, ter-se-ia pensado primeiramente no destino da Grande Armada de Napoleão, por ocasião de sua retirada da Rússia. Trata-se do exemplo mais grandioso: a composição desse exército de homens de tantas e tão diversas línguas e países, o inverno terrível, a distância gigantesca, que tinha de ser percorrida a pé pela maioria — conhece-se em todos os seus detalhes essa retirada que tinha, necessariamente, de degenerar numa fuga em massa. — A fuga de uma metrópole foi provavelmente vivenciada pela primeira vez, nas proporções em que se deu, em 1940, quando os alemães se aproximavam de Paris. O famoso “êxodo” não durou muito tempo, uma vez que logo se estabeleceu a trégua. Contudo, a intensidade e a amplitude desse movimento foram tais que ele se converteu para os franceses na principal lembrança relacionada à massa da última guerra.
   Não cabe enumerar aqui os exemplos de tempos mais recentes. Sua lembrança apresenta-se fresca ainda na mente de todos. Importante afigura-se, porém, destacar que a fuga em massa era já, desde sempre, conhecida dos homens, mesmo quando estes viviam ainda em grupos bastante reduzidos. Ela desempenhou um papel em sua imaginação antes mesmo de ser-lhes numericamente possível. Basta lembrar aquela visão de um xamã esquimó: “O espaço celeste está repleto de seres nus que vagam pelo ar. Seres humanos, homens nus, mulheres nuas que voam, atiçando a tempestade e a nevasca. Ouvis o zunido? O vento lá em cima zune feito o bater de asas de pássaros enormes. Esse é o medo dos seres humanos nus, a fuga dos seres nus!”.
   
continua página 82...
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Leia também:

Massa e Poder - A Massa (Massa Aberta e Massa Fechada)
Massa e Poder - A Massa (Massas de Fuga)
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

Memórias do Cárcere - Viagens 17

Memórias do Cárcere

Graciliano Ramos


Volume I 
 Editora Record 
PRIMEIRA PARTE 

VIAGENS 

17


       CHAMARAM-NOS, ingressamos na confusão dos corredores, subimos, descemos, viramos esquinas, chegamos ao portão do quartel, juntamo-nos aos nossos vizinhos da prisão dos sargentos. Apenas reconheci dois: Sebastião Hora, bastante apreensivo, e Manuel Leal, empregado no balcão de d. Maroca Prado no meu tempo de colégio, depois caixeiro-viajante, um rapaz moreno, de olhos vivos, arrasado em poucos anos. Essa criatura tivera negócio comigo em época de prosperidade; sumira-se e, ao cabo de longa ausência, reaparecia, com rugas e cabelos brancos, em medonha decadência, transportando a bagagem pesada. Examinei o resto do grupo, notei a falta do advogado Nunes Leite. Bem, certamente haviam percebido que a dureza do regime carcerária não convinha a natureza tão sensível. Chamou-me a atenção um negro coberto de calombos, que se espalhavam nas mãos, no rosto luzidio, davam ao sujeito a aparência de um pé de jabuticaba As outras figuras passaram despercebidas: com certeza me achava preocupado, incapaz de observar direito.
   A saída fizeram-nos entrar num caminhão, onde se arrumavam caixotes, as nossas maletas, numerosos troços miúdos. Os oficiais, os automóveis de luxo, as conversas amáveis tinham-se evaporado Dávamos um salto para baixo, sem dúvida, mas por muito que sondasse o terreno, não me era possível adivinhar onde iríamos cair. A nossa escolta se compunha de tipos silenciosos, mal-encarados. Não vi as divisas do comandante; devia ser cabo: naquela mistura de homens, trouxas e caixões, aos solavancos, espremidos como galinhas em jacás, não seríamos confiados a sargento. Alguns presos bazofiavam, riam, procurando ambientar-se; os risos e as bazófias esmoreciam, sem ressonância, dominados pelo barulho do motor. as pilhérias tinham estridências lúgubres.
   Partimos. Ignoro se chegamos logo ao destino, se nos demoramos a rolar nas ruas estreitas, que não nos despertavam curiosidade. Certamente ninguém se lembrava de observar o trajeto e consultar relógio. Tínhamos vivido num quartel do exército, separados: talvez nos houvessem oferecido tratamento diverso para semear discórdia. Reuniam-nos agora, transferiam-nos à polícia – e os ressentimentos iam explodir. Devia ser essa a razão do afastamento, embora só a tenhamos percebido muito depois. Naquela hora, sacolejados no carro de molas duras, entre fuzis ameaçadores e carrancas, éramos um pequeno rebanho apático. A vontade e o entendimento murchavam; ditos espaçados, vestígios da ruidosa despreocupação do começo. soavam falso como rachar de vidros.
   Alcançamos o porto, descemos, segurando maletas e pacotes, alinhamo-nos e, entre filas de guardas, invadimos um navio atracado, percorremos o convés, chegamos ao escotilhão da popa, mergulhamos numa escadinha. Tinha-me atarantado e era o último da fila. Ao pisar o primeiro degrau, senti um objeto roçar-me as costas: voltei-me, dei de cara com um negro fornido que me dirigia uma pistola para-bellum. Busquei evitar o contato, desviei-me; o tipo avançou a arma, encostou-me ao peito o cano longo, o dedo no gatilho. Certamente não dispararia à toa: a exposição besta de força tinha por fim causar medo, radicalmente não diferia das ameaças do general. Ridículo e vergonhoso. Um instante duvidei dos meus olhos, julguei-me vítima de alucinação. O ferro tocava-me as costelas, impelia-me, os bugalhos vermelhos do miserável endureciam-se, estúpidos. Em casos semelhantes a surpresa nem nos deixa conhecer o perigo: experimentamos raiva fria e impotente, desejamos fugir à humilhação e nenhuma saída nos aparece. Temos de morder os beiços e baixar a cabeça, engolir a afronta. Nunca nos vimos assim entalados, ainda na véspera estávamos longe de supor que tal fato ocorresse. O absurdo se realiza e não vamos discuti-lo. Irrisório, na verdade. No atordoamento, no assombro imenso, temos a impressão de que não nos toca a roupa um tubo de aço, mas um pouco de lama. Exatamente: lama. Aquilo decorreu num ápice: o tempo necessário para voltar-me, enxergar o instrumento, a cara tisnada e obtusa, procurar afugentar a intimidação, verificar a inutilidade do gesto, virar-me de novo. Alguns segundos.
   Avancei, um bolo na garganta, o coração a estalar, venci a pequena distância que me separava dos companheiros. Chegamos ao fim da escada, paramos à entrada de um porão, mas durante minutos não compreendi onde me achava. Espaço vago, de limites imprecisos, envolto em sombra leitosa. Lá fora anoitecera; ali duvidaríamos se era dia ou noite. Havia luzes toldadas por espesso nevoeiro: uma escuridão branca. Detive-me, piscando os olhos, tentando habituar a vista. Erguendo a cabeça, via-me no fundo de um poço, enxergava estrelas altas, rostos curiosos, um plano inclinado, próximo, onde se aglomeravam polícias e um negro continuava a dirigir-me a pistola. Era como se fôssemos gado e nos empurrassem para dentro de um banheiro carrapaticida. Resvaláramos até ali, não podíamos recuar, obrigavam-nos ao mergulho. Simples rebanho, apenas, rebanho gafento, na opinião dos nossos proprietários, necessitando creolina. Os vaqueiros, armados e fardados, se impacientavam.
   Desviando-me deles, tentei sondar a bruma cheia de trevas luminosas. Ideia absurda, que ainda hoje persiste e me parece razoável: trevas luminosas. Havia muitas lâmpadas penduradas no teto baixo, ali ao alcance da mão, aparentemente, mas eram como luas de inverno, boiando na grossa neblina.
   Arrisquei alguns passos, maquinalmente, parei meio sufocado por um cheiro acre, forte, desagradável, começando a perceber em redor um indeciso fervilhar. Antes que isto se precisasse, confuso burburinho anunciou a multidão que ali se achava. Agora já não éramos pequeno rebanho a escorregar num declive: constituíamos boiada numerosa; à ideia do banheiro carrapaticida sucedeu a de um vasto curral. Certamente a perturbação visual durou um instante, mas ali de pé, sobraçando a valise, a abanar-me com o chapéu de palha, tentando reduzir o calor, afastar o cheiro horrível, mistura de suor e amoníaco, um pensamento me assaltou, fez-me perder a noção do tempo. Que homens eram aqueles que se arrumavam encaixados, tábuas em cima, embaixo, à frente, à retaguarda, à esquerda, à direita? Imaginei-os criminosos e vagabundos. Os contornos das pessoas e das coisas lentamente se precisavam. Aglomeração incalculável, aglomeração desordeira Uma figura amável vista de relance não abalou esta certeza O homem louro, tranquilo, gordinho, se levantou da rede, acolhedor, fumando cachimbo, disse-nos palavras que não entendi. Impossível fixar a atenção em qualquer ponto, a memória se embotava, observações imperfeitas se atabalhoavam desconexas, deixando largos espaços obscuros. Outras pessoas me falaram, inutilmente. O cachimbo do homem louro trouxe-me ao espírito uma relação – e contentou-me verificar que não me havia tornado completamente imbecil. A fumaça dos cachimbos e dos cigarros enchia o ar, produzia a garoa em que os focos luminosos nadavam. De repente ouvi gritos. Um rapaz veio lá do fundo, acercou-se dos policiais, gesticulando, esgoelando-se:

 – Companheiros, vão separar-nos. Desembarco. Se não nos tornarmos a ver, ficam vocês sabendo o lugar da minha morte. Adeus.

– Adeus, Valadares, responderam algumas vozes.

   O rapaz subiu a escada e sumiu-se. No calor horrível, senti um arrepio. Apesar da firmeza espetacular daquela despedida fúnebre, continuei a julgar que me haviam reunido a criminosos e instintivamente me achegava ao grupo escasso de alagoanos. Só havia ali duas pessoas conhecidas, as outras se diluíam no fumaceiro, mas o transporte no caminhão e o arremesso à furna medonha ligavam-nos em destino comum. Vivêramos uma quinzena próximos e impossibilitados de comunicar; até a saudação à passagem deles no alpendre ficava sem resposta. Impossível identificá-los. Talvez me houvessem deixado no espírito sinais fisionômicos. Não me capacitava disto, e apenas as jabuticabas esquisitas, as excrescências vistas uma hora antes tornavam reconhecível a cara inexpressiva do negro. Avançamos à toa, evitando corpos úmidos. No zunzum de feira nenhuma frase perceptível; os meus pés machucavam coisas moles, davam-me a impressão de pisar em lesmas. O terrível fedor sufocava-me, a quentura de fornalha punha-me brasas na pele, e a certeza de encontrar-me cercado de imundícies levava-me a proteger a valise, resguardá-la debaixo do braço. Aguentar-me-ia em semelhante lugar? Conseguiria resistir?

– Já se viu numa situação como esta? – Nunca, respondeu Mata furioso.

   Sempre manifestara despreocupação, afirmara que estávamos bem e era tolice esperar coisa melhor, referira-se com minúcias a prisões anteriores: nenhuma lhe havia deixado mossa. Vira-se em dificuldades sérias, nada ignorava; nos momentos de aperto sabia tirar vantagem de insignificâncias, mudava os obstáculos em . utilidades. Consultando-o, desejava certificar-me de que não havia motivo para alarme e o porão ignóbil estava previsto. A negativa indignada acabava de aniquilar-me. Evidentemente eu não suportaria a temperatura de caldeira; sentia-me num banho a vapor, o colarinho empapava-se, a camisa aderia ao peito e às costelas, as meias afundavam num charco ardente, do rosto caíam gotas sem descontinuar. Abanava-me com o chapéu e arfava. Não era a degradação moral que me oprimia. Tinha capitão Mata alcançado bem a minha pergunta? A cólera dele desalentava-me a nova interrogação. Nem me sentia humilhado, no atordoamento; não buscava saber se me restariam forças na alma dentro da realidade inconcebível. A alma fugia-me, na verdade, e inquietava-me adivinhar que a resistência física ia abandonar-me também, de um momento para outro: jogar-me-ia sobre as tábuas sujas, acabar-me-ia aos poucos, respirando amoníaco, envolto em pestilências. Algumas horas depois atirar-me-iam na água o cadáver. Inquirindo o oficial, pretendia insinuar-me coragem, supor, baseando-me na experiência alheia, que a vida ali era possível. Experimentei com a resposta verdadeira decepção, realmente insensata. Pois não via muitos indivíduos, talvez centenas de indivíduos, no curral flutuante? Escapou-me a observação e lá fui ziguezagueando num labirinto de redes, altas, baixas, do solo ao teto, a emaranhar-se, a balançar com o movimento do navio.
   Alguém cochichou-me, atraiu-me a um canto; ouvi o nome de Miguel Bezerra, um moço de casquete, moreno e magro, que se pôs a falar com abundância. No começo não entendi o que ele dizia, recordo somente uma declaração repetida: 

– Não somos comunistas. 

   Bem, eu os supunha vagabundos; surgiam-me dúvidas agora.

– Donde vêm os senhores?

   Tinham embarcado no Rio Grande do Norte. – Mas não somos comunistas.

– Perfeitamente.

   Porque a insistência? Entrei a conversar – e logo duas surpresas me assaltaram Miguel parecia alegre, as minhas palavras soavam-me aos ouvidos como se fossem pronuncia das por outra pessoa. Doidice rir em semelhante inferno. Ou então me sensibilizara em demasia, os horrores que estivera a desenvolver tinham existência fictícia. Possivelmente o meu enjoo e a raiva do capitão Mata provinham da mudança repentina: se nos houvessem feito percorrer escalas, não nos abalaríamos tanto. Lembro-me de ter afirmado isto mentalmente. De qualquer modo nos arranjaríamos, chegaríamos a um porto. Assim falava no interior e dizia coisas diferentes,: pausadas, maquinais; pareciam gravadas num disco de vitrola. Deviam ter significação, pois o diálogo se prolongou, mas não me seria possível reproduzi-lo. A declaração inicial voltava com frequência:

– Não somos comunistas.

   Porque inocentar-se? A certeza de que estavam ali os revoltosos de Natal acirrou-me a curiosidade, embora não me arriscasse a pedir informações ao desconhecido cauteloso.
   Duas mulheres achegaram-se, uma branca, nova, bonita, uma pequena cafuza de olhos espertos. Fiquei sabendo que a primeira se chamava Leonila e era casada com Epifânio Guilhermino.
   
– Esta é a nossa amiga Maria Joana. Se o senhor tiver negócio com ela, pode procurá-la no camarote lá do fim. 

   Maria Joana desdenhou a pilhéria, sem se escandalizar, mostrou os dentes alvos, contraiu num sorriso infantil as pálpebras oblíquas E afastaram-se em silencio. Em frente a uns beliches toscos haviam estendido cobertas, e ali as infelizes criaturas se torravam, no mormaço invariável. Coitadas. Envergonhei-me do desânimo que me invadira. Notaria alguém vestígios dele?
   Uma dualidade, talvez efeito da cadeia, principiava a assustar-me: a voz e os gestos a divergir de sentimentos e ideias cá dentro, uma confusão, borbulhar de água a ferver Por fora, um sossego involuntário, frieza, quase indiferença. A fala estranha me saía da garganta seca.

continua página 80....
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Memórias do Cárcere - Viagens 17
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Graciliano Ramos de Oliveira (Quebrangulo, 27 de outubro de 1892 – Rio de Janeiro, 20 de março de 1953) foi um romancista, cronista, contista, jornalista, político e memorialista brasileiro do século XX, mais conhecido por sua obra Vidas Secas (1938).
Em setembro de 1915, motivado pela morte dos irmãos Otacília, Leonor e Clodoaldo e do sobrinho Heleno, vitimados pela epidemia de peste bubônica, volta para o Nordeste, fixando-se junto ao pai, que era comerciante em Palmeira dos Índios, Alagoas. Neste mesmo ano casou-se com Maria Augusta de Barros, que morreu em 1920, deixando-lhe quatro filhos.
Foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios em 1927, tomando posse no ano seguinte. Apoiado pelo governador do estado e impulsionado por ser um nome de fora da política, foi eleito em um pleito de uma candidatura só. Ficou no cargo por dois anos, renunciando a 10 de abril de 1930. Segundo uma das autodescrições, "Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas." Os relatórios da prefeitura que escreveu nesse período chamaram a atenção de Augusto Frederico Schmidt, editor carioca que o animou a publicar Caetés (1933).
Entre 1930 e 1936. viveu em Maceió, trabalhando como diretor da Imprensa Oficial, professor e diretor da Instrução Pública do estado. Em 1934, havia publicado São Bernardo, e quando se preparava para publicar o próximo livro, foi preso após a Intentona Comunista de 1935. Foi levado para o Rio de Janeiro e ficou preso por onze meses, sendo liberado sem ter sido acusado de nada ou julgado. Em Memórias do Cárcere recorda a prisão que sofrera seis anos antes.

quarta-feira, 24 de abril de 2024

Makarenko - Poema Pedagógico Livro 1(b): Operações de caráter interno

Poema Pedagógico


Antón S. Makarenko


Livro Um

Capítulo 4

Operações de caráter interno

    Eu até fiquei contente com essa circunstância. Esperava que pronto, agora começará a falar o interesse geral, coletivo, e obrigará a todos a se interessarem pelo caso dos roubos com zelo maior. Com efeito, todos os rapazes ficaram tristes, mas zelo não apareceu nenhum, e quando passou a impressão, o interesse esportivo tomou conta novamente de todos: quem seria esse que trabalhava tão agilmente?
   Mais alguns dias, sumiu da cavalariça o arreio do Malích, e nós não podíamos sequer ir até a cidade. Tivemos de andar pela aldeia vizinha e pedir uma emprestada para os primeiros dias.
   Os furtos já aconteciam todos os dias. De manhã se descobria que neste ou naquele lugar faltava alguma coisa: machados, serrotes, vasilhames, lençóis, arreios, gêneros. Tentei não dormir à noite, andava pelo pátio com o revólver, mas mais do que duas, três noites, é claro, não consegui aguentar. Pedi a Óssipov que ficasse de plantão por uma noite, Mas ele ficou tão apavorado que não falei mais nisso.
   Entre os rapazes, eu suspeitava de muitos, incluindo também Gud e Taranêts. Prova, entretanto, eu não tinha nenhuma, e tive de conservar minhas suspeitas em segredo.
   Zadoróv ria às gargalhadas e brincava:

- O que é que o senhor pensava, Anton Semiónovitch: isto aqui é uma colônia de trabalho – trabalhe, trabalhe, e nada de divertimento? Espere só, isto ainda vai piorar bem! E o que o senhor vai fazer com aquele que for apanhado?

- Vou pô-lo na cadeia.

- Bem, Isso ainda não é nada. Pensei que o senhor IA bater nele.

Certa vez, alguém saiu para o pátio de noite, todo vestido:

- Vou andar um pouco com o senhor.

- Cuidado para que os ladrões não se encarnicem contra você.

- Não, eles bem sabem que o senhor está de guarda, hoje eles não vão roubar, de qualquer jeito. E daí, o que é que tem isso?

- Mas confesse, Zadórov, Que você tem medo deles.

- De quem? Dos ladrões? Claro que tenho medo. Mas não se trata de eu ter medo, o senhor tem de concordar, Anton Semiónovitch: o caso é que de certa forma não fica bem delatar.

- Mas se é de vocês mesmos que eles roubam.

- De mim, o quê? Não há nada de meu por aqui.

- Mas vocês todos vivem aqui.

- Que vida é essa, Anton Simiónovitch? Isso então é vida? Não vai dar em nada esta sua colônia. O senhor se debate à toa. Vai ver só, eles vão roubar tudo e se mandar. O senhor faria melhor se contratasse alguns guardas e lhes desse alguns fuzis.

- Isso não, não vou contratar guardas nem lhes darei fuzis.

- Mas por quê? - espantou-se Zadórov.

- Os guardas têm de ser pagos, e nós já somos pobres demais. E o mais importante é que vocês mesmos têm de ser os donos.

   A ideia de que era preciso contratar guardas era compartilhada por muitos colunistas. No dormitório teve lugar um autêntico debate sobre o assunto.
   Anton Brátchenko, o melhor representante do segundo grupo de colunistas, argumentava:

- Quando há um guarda de plantão, ninguém vai sair para roubar. E se sair, apesar de tudo, é caso de aplicar lhe uma descarga de sal naquela parte. Quando ele andar salgadinho durante um mês, vai perder a vontade de roubar.

   Respondia lhe Kóstia Vietkóvski, um garoto bonito cuja especialidade “em liberdade” era realizar buscas e apreensões com ordens falsificadas. Durante essas buscas, desempenhava papéis secundários, os papéis principais pertenciam aos adultos. O próprio Kóstia - isso ficou registrado no seu dossiê - nunca roubou nada, ele se empolgava exclusivamente com o lado estético da operação. E sempre se referia aos ladrões com desprezo. Fazia bastante tempo que eu já reparava na índole sutil desse menino. O que mais me espantava era facilidade com que ele se relacionava com os rapazes mais truculentos e era autoridade amplamente reconhecida em questões políticas. Kóstia argumentava:

- Anton Semiónovitch tem razão. Nada de guardas! Por enquanto ainda não compreendemos, mas logo compreenderemos todos que não se pode roubar dentro da colônia. Mesmo agora, muitos já estão compreendendo. Nós vamos logo montar guarda nós mesmos. Certo, Burún? – dirigiu-se inesperadamente a Burún.

   Em fevereiro, a nossa despenseira deixou o seu emprego na colônia - eu conseguir a sua transferência para um hospital qualquer. Num certo domingo, o Malích foi levada até sua porta e todos os seus amiguinhos e participantes de chás filosóficos puseram-se ativamente a colocar dentro do trenó as suas numerosas sacolas e valises. A boa velhinha, balançando-se pacificamente no alto das suas riquezas, partiu ao encontro da sua nova vida à mesma velocidade de dois km por hora.
   Malích voltou tarde, mas junto com ele voltou a velhinha e se precipitou aos gritos e soluços no meu quarto: fora roubada até o último filme. Seus amigos e ajudantes carregaram todas as suas sacolas, valises e maletas não só para o trenó, mas também para outros lugares - foi um assalto declarado. Acordei imediatamente Kaliná Ivánovitch, Zadórov e Taranêts, e realizamos uma busca geral em toda a colônia. Foi roubada tanta coisa, que não deu tempo de esconder bem tudo. Entre os arbustos, no sótãos dos armazéns, sob os degraus da porta de entrada, e mesmo debaixo das camas e atrás dos armários foram encontrados todos os tesouros da despenseira. A velhinha era rica de verdade: encontramos cerca de uma dúzia de toalhas de mesa novas, muitos lençóis e toalhas de rosto, colheres de prata, vasinhos, uma pulseira, brincos e muitas miudezas de toda espécie.
   A velhinha chorava no meu quarto, e o quarto ai aos poucos se enchendo de detidos - seus ex-amigos e simpatizantes.
   No começo, eles negaram tudo, nossa eu dei uns berros com eles e os horizontes clarearam. Verificou-se que os principais assaltantes não eram os amigos da velhinha. Estes se limitaram algumas lembranças, como um guardanapo de chá ou um açucareiro. Ficou esclarecido que o ativista principal em todo esse episódio fora Burún. Essa descoberta espantou a muitos, e a mim principalmente. Burún, desde o primeiro dia, parecia o mais equilibrado de todos, estava sempre sério, era contidamente social, e na escola era o que estudava melhor, com a mais tensa atenção e interesse. O que me deixou estupefato foi o ímpeto e a competência das suas ações: ele escondera fardos inteiros dos bens da velha. Não restava dúvida de que todos os roubos anteriores na colônia foram obras das suas mãos. 
  Finalmente eu chegar à fonte do mal! Coloquei Burún diante do tribunal popular, o primeiro julgamento na história da nossa colônia.


Operações de caráter interno (b)