quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

O Cortiço - IX: Ó seu João Romão

O CORTIÇO


Aluísio Azevedo


IX 
.
continuando...

- Ó seu João Romão, se o homem não casa, mande-no-lo pra cá! Temos ainda algumas pequenas que lhe convêm!

- Mas onde está esse ordinário?!

- Saia o canalha! 

- Está fazendo a trouxa! 

- Quer escapar! 

- Não deixe sair! 

- Chame a polícia! 

- Onde está o Alexandre?

   E ninguém mais se entendia. À vista daquela agitação, o vendeiro foi ter com o Domingos.

- Não saia agora, ordenou-lhe. Deixe-se ficar por enquanto. Logo mais lhe direi o que deve fazer.

   E chegando a uma das portas que davam para a estalagem, gritou:

- Vá de rumor! Não quero isto aqui! É safar! 

- Pois então o homem que case! responderam. 

- Ou dê-nos pra cá o patife! 

- Fugir é que não! 

- Não foge! não deixa fugir! 

- Ninguém se arrede!

   E, como a Marciana lhe lançasse uma injúria mais forte, ameaçando-o com o punho fechado, o taverneiro jurou que se ela insistisse com desaforos, a mandaria jogar lá fora, junto com a filha, por um urbano.

- Vamos! Vamos! Volte cada uma para a sua obrigação, que eu não posso perder tempo! 

- Ponha-nos então pra cá o homem! exigiu a mulata velha. 

- Venha o homem! acompanhou o coro. 

- É preciso dar-lhe uma lição! 

- O rapaz casa! disse o vendeiro com ar sisudo. Já lhe falei... Está perfeitamente disposto! E, se não casar, a pequena terá o seu dote! Vão descansados; respondo por ele ou pelo dinheiro!

   Estas palavras apaziguaram os ânimos; o grupo das lavadeiras afrouxou; João Romão recolheu-se: chamou de parte o Domingos e disse-lhe que não arredasse pé de casa antes de noite fechada.

- No mais... acrescentou, pode tratar de vida nova! Nada o prende aqui. Estamos quites. 

- Como? se o senhor ainda não me fez as contas?!... 

- Contas? Que contas? O seu saldo não chega para pagar o dote da rapariga!... 

- Então eu tenho de pagar um dote?!... 

- Ou casar... Ah, meu amigo, este negócio de três vinténs é assim! Custa dinheiro! Agora, se você quiser, vá queixar-se à policia... Está no seu direito! Eu me explicarei em juízo!... 

- Com que, não recebo nada?... 

- E não principie com muita coisa, que lhe fecho a porta e deixo-o ficar às turras lá fora com esses danados! Você bem viu como estão todos a seu respeito! E, se há pouco não lhe arrancaram os fígados, agradeça-o a mim! Foi preciso prometer dinheiro e tenho de cair com ele, decerto! mas não é justo, nem eu admito, que saia da minha algibeira porque não estou disposto a pagar os caprichos de ninguém, e muito menos dos meus caixeiros! 

- Mas... 

- Basta! Se quiser, por muito favor, ficar aqui até à noite, há de ficar calado; ao contrário rua!

   E afastou-se.
   Marciana resolveu não ir ao subdelegado, sem saber que providências tomaria o vendeiro. Esperaria até ao dia seguinte “para ver só!” O que nesse ela fez foi dar uma boa lavagem na casa e arrumá-la muitas vezes, como costumava, sempre que tinha lá as suas zangas.
   O escândalo não deixou de ser, durante o dia, discutido um só instante. Não se falava noutra coisa; tanto que, quando, já à noite, Augusta e Alexandre receberam uma visita da comadre, a Léonie, era ainda esse o principal assunto das conversas.
   Léonie, com as suas roupas exageradas e barulhentas de cocote à francesa, levantava rumor quando lá ia e punha expressões de assombro em todas as caras. O seu vestido de seda cor de aço, enfeitado de encarnado sangue de boi, curto, petulante, mostrando uns sapatinhos à moda com um salto de quatro dedos de altura; as suas lavas de vinte botões que lhe chegavam até aos sovacos; a sua sombrinha vermelha, sumida numa nuvem de rendas cor-de-rosa e com grande cabo cheio de arabescos extravagantes; o seu pantafaçudo chapéu de imensas abas forradas de velado escarlate, com um pássaro inteiro grudado à copa; as suas joias caprichosas, cintilantes de pedras finas; os seus lábios pintados de carmim; suas pálpebras tingidas de violeta; o seu cabelo artificialmente louro; tudo isto contrastava tanto com as vestimentas, os costumes e as maneiras daquela pobre gente, que de todos os lados surgiam olhos curiosos a espreitá-la pela porta da casinha de Alexandre; Augusta, ao ver a sua pequena, a Jujú, como vinha tão embonecada e catita, ficou com os dela arrasados de água.
   Léonie trazia sempre muito bem calçada e vestida a afilhada, levando o capricho ao ponto de lhe mandar talhar a roupa da mesma fazenda com que fazia as suas e pela mesma costureira; arranjava-lhe chapéus escandalosos como os dela e dava-lhe joias. Mas, naquele dia, a grande novidade que Jujú apresentava era estar de cabelos louros, quando os tinha castanhos por natureza. Foi caso para uma revolução na estalagem; a noticia correu logo de número a número, e muitos moradores se abalaram do cômodo para ver a filhita da Augusta “com cabelos de francesa”.
   Tal sucesso pôs Léonie radiante de alegria. Aquela afilhada era o seu luxo, a sua originalidade, a coisa boa da sua vida de cansaços depravados; era o que aos seus próprios olhos a resgatava das abjeções do oficio. Prostituta de casa aberta, prezava todavia com admiração e respeito a honestidade vulgar da comadre; sentia-se honrada com a sua estima; cobria-a de obséquios de toda a espécie. Nos instantes que estava ali, entre aqueles seus amigos simplórios, que a matariam de ridículo em qualquer outro lugar, nem ela parecia a mesma, pois até os olhos lhe mudavam de expressão. E não queria preferências: assentava-se no primeiro banco, bebia água pela caneca de folha, tomava ao colo o pequenito da comadre e, às vezes, descalçava os sapatos para enfiar os chinelos velhos que encontrasse debaixo da cama.
   Não obstante, o acatamento que lhe votavam Alexandre e a mulher não tinha limites; pareciam capazes dos maiores sacrifícios por ela. Adoravam-na. Achavam-na boa de coração como um anjo, e muito linda nas suas roupas de espavento, com o seu rostinho redondo, malicioso e petulante, onde reluziam dentes mais alvos que um marfim.
   Jujú, com um embrulho de balas em cada mão, era carregada de casa em casa, passando de braço a braço e levada de boca em boca, como um ídolo milagroso, que todos queriam beijar.

Continua página 55...
_______________________

Leia também:

O Cortiço - IX: Ó seu João Romão
_______________________

   Aluísio Azevedo (Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo), caricaturista, jornalista, romancista e diplomata, nasceu em São Luís, MA, em 14 de abril de 1857, e faleceu em Buenos Aires, Argentina, em 21 de janeiro de 1913.
   Era filho do vice-cônsul português David Gonçalves de Azevedo e de D. Emília Amália Pinto de Magalhães e irmão mais moço do comediógrafo Artur Azevedo. Sua mãe havia casado, aos 17 anos, com um comerciante português. O temperamento brutal do marido determinou o fim do casamento. Emília refugiou-se em casa de amigos, até conhecer o vice-cônsul de Portugal, o jovem viúvo David. Os dois passaram a viver juntos, sem contraírem segundas núpcias, o que à época foi considerado um escândalo na sociedade maranhense.
   Da infância à adolescência, Aluísio estudou em São Luís e trabalhou como caixeiro e guarda-livros. Desde cedo revelou grande interesse pelo desenho e pela pintura, o que certamente o auxiliou na aquisição da técnica que empregará mais tarde ao caracterizar os personagens de seus romances. Em 1876, embarcou para o Rio de Janeiro, onde já se encontrava o irmão mais velho, Artur. Matriculou-se na Imperial Academia de Belas Artes, hoje Escola Nacional de Belas Artes. Para manter-se fazia caricaturas para os jornais da época, como O Fígaro, O Mequetrefe, Zig-Zag e A Semana Ilustrada. A partir desses “bonecos”, que conservava sobre a mesa de trabalho, escrevia cenas de romances.
   A morte do pai, em 1878, obrigou-o a voltar a São Luís, para tomar conta da família. Ali começou a carreira de escritor, com a publicação, em 1879, do romance Uma lágrima de mulher, típico dramalhão romântico. Ajuda a lançar e colabora com o jornal anticlerical O Pensador, que defendia a abolição da escravatura, enquanto os padres mostravam-se contrários a ela. Em 1881, Aluísio lança O mulato, romance que causou escândalo entre a sociedade maranhense pela crua linguagem naturalista e pelo assunto tratado: o preconceito racial. O romance teve grande sucesso, foi bem recebido na Corte como exemplo de Naturalismo, e Aluísio pôde retornar para o Rio de Janeiro, embarcando em 7 de setembro de 1881, decidido a ganhar a vida como escritor.
   Quase todos os jornais da época tinham folhetins, e foi num deles que Aluísio passou a publicar seus romances. A princípio, eram obras menores, escritas apenas para garantir a sua sobrevivência. Depois, surgiu nova preocupação no universo de Aluísio: a observação e análise dos agrupamentos humanos, a degradação das casas de pensão e sua exploração pelo imigrante, principalmente o português. Dessa preocupação resultariam duas de suas melhores obras: Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890). De 1882 a 1895 escreveu sem interrupção romances, contos e crônicas, além de peças de teatro em colaboração com Artur de Azevedo e Emílio Rouède.
   Em 1895 ingressou na diplomacia, momento em que praticamente cessa sua atividade literária. O primeiro posto foi em Vigo, na Espanha. Depois serviu no Japão, na Argentina, na Inglaterra e na Itália. Passara a viver em companhia de D. Pastora Luquez, de nacionalidade argentina, junto com os dois filhos, Pastor e Zulema, por ele adotados. Em 1910, foi nomeado cônsul de 1ª. classe, sendo removido para Assunção. Buenos Aires foi seu último posto. Ali faleceu, aos 56 anos. Foi enterrado naquela cidade. Seis anos depois, por uma iniciativa de Coelho Neto, a urna funerária de Aluísio Azevedo chegou a São Luís, onde o escritor foi sepultado.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

O Sol é para todos: 1ª Parte (10b)

Harper Lee

O Sol é para todos


Para o sr. Lee e Alice, em retribuição ao amor e afeto


Os advogados, suponho, um dia foram crianças.
CHARLES LAMB



PRIMEIRA PARTE

10

continuando...

   Num sábado, Jem e eu resolvemos sair com nossas espingardas para ver se achávamos um coelho ou um esquilo. Uns quinhentos metros depois da casa dos Radley, notei que Jem estava olhando para algo na rua. Ele tinha inclinado a cabeça de lado e estava olhando com o canto do olho esquerdo.

— O que você está olhando? 

— Aquele cachorro velho lá embaixo — ele respondeu.

— É o velho Tim Johnson, não é?

— É. 

   Tim Johnson era o cachorro do sr. Harry Johnson, o motorista do ônibus de Mobile que morava no sul da cidade. Tim era um cachorro castanho, ótimo passarinheiro, e estimado por todos em Maycomb. 

— O que ele está fazendo?

— Não sei, Scout. É melhor irmos para casa.

— Ah, Jem, estamos em fevereiro, não é mês de cachorro louco.

— Não interessa, vou chamar a Cal.

   Corremos para casa e fomos para a cozinha.

— Cal, pode ir com a gente ali na calçada um instante? — perguntou Jem. 

— Para quê? Não posso ir até a calçada toda hora.

— Tem algo errado com um cachorro velho lá longe.

   Calpúrnia deu um suspiro. 

— Não posso fazer curativo em pata de cachorro agora. Tem gaze no banheiro, pega lá e faz você. 

   Jem balançou a cabeça.

— Ele está doente, Cal. Tem algo errado com ele. 

— O que ele está fazendo? Tentando morder o rabo? 

— Não, ele está fazendo assim. 

   Jem abriu e fechou a boca como um peixe de aquário, encolheu os ombros e contorceu-se:

— Ele está se mexendo assim, mas parece que não quer fazer isso.

— Você está inventando história, Jem Finch? — Calpúrnia endureceu a voz. 

— Não, Cal, juro que não. 

— Ele está correndo?

— Não, está andando devagar, bem devagar. Vem vindo para cá. 

   Calpúrnia lavou as mãos e foi para o jardim atrás de Jem.

— Não estou vendo nenhum cachorro — ela disse.

   Ela nos seguiu até depois da casa dos Radley e olhou para onde Jem apontava. Tim Johnson era pouco mais do que uma mancha ao longe, mas estava se aproximando. Ele andava meio desequilibrado, como se as patas da direita fossem menores do que as da esquerda. Parecia um carro atolado num banco de areia.

— Ele está andando torto — disse Jem

   Calpúrnia olhou bem, depois nos agarrou pelos ombros e nos puxou para casa. Fechou a porta, pegou o telefone e pediu à telefonista, bem alto:

— Preciso falar com o escritório do sr. Finch! 

— Sr. Finch, aqui é a Cal — disse, quando ele atendeu. — Juro por Deus que tem um cachorro louco na rua… está vindo para cá, sim, senhor… Sr. Finch, tenho certeza… É o velho Tim Johnson, sim, senhor… sim... sim. 

   Ela desligou o telefone e balançou a cabeça quando perguntamos o que Atticus tinha dito. Depois, bateu no gancho do telefone e pediu: 

— Srta. Eula May, já falei com o sr. Finch, não precisa ligar de novo; será que pode ligar para a srta. Rachel e para a srta. Stephanie e para todo mundo que tem telefone nessa rua e avisar que um cachorro louco vem andando para cá? Por favor!

   Calpúrnia ficou ouvindo a telefonista e retrucou: 

— Eu sei que estamos em fevereiro, srta. Eula May. Mas reconheço um cachorro louco quando vejo um. Por favor, rápido!

   Calpúrnia perguntou a Jem: 

— Os Radley têm telefone? 

Jem procurou na agenda e respondeu que não.

— De todo jeito, eles não saem de casa, Cal. 

— Não importa, vou avisar. 

   Ela correu para a varanda, e Jem e eu fomos atrás:  

— Vocês fiquem em casa! — ela gritou.

   A vizinhança tinha recebido o recado de Calpúrnia. Todas as portas de madeira estavam fechadas. E nem sinal de Tim Johnson. Calpúrnia correu até a casa dos Radley, segurando a saia e o avental acima dos joelhos. Subiu a escada da frente e bateu na porta. Ninguém atendeu, então ela gritou:

— Sr. Nathan, sr. Arthur, tem um cachorro louco vindo para cá! Um cachorro louco está vindo! 

— Ela devia ir para os fundos da casa — sugeri. 

   Jem balançou a cabeça.

— Agora, não faz diferença. 

   Calpúrnia bateu na porta, em vão. Dava a impressão de que ninguém tinha ouvido o aviso dela.
   Quando ela saiu correndo para a varanda dos fundos, um Ford preto chegou na nossa entrada de garagem. Atticus e o sr. Heck Tate saltaram dele. 
   O sr. Heck Tate era o xerife de Maycomb. Era alto como Atticus, porém mais magro. Tinha o nariz comprido, usava botas com reluzentes ilhoses de metal, calças de montaria e jaqueta xadrez. Tinha balas de revólver no cinturão. E carregava um rifle pesado. Quando os dois chegaram na varanda, Jem abriu a porta de casa.

— Fique dentro de casa, filho. Onde ele está, Cal? — perguntou Atticus.

— Já devia ter chegado — Calpúrnia respondeu, apontando para a rua. 

— O cachorro está vindo devagar, não é? — perguntou o sr. Tate. 

— Sim, senhor, está naquela fase que fica se contorcendo, sr. Heck. 

— Vamos atrás dele, Heck? — perguntou Atticus. 

— É melhor esperarmos, sr. Finch. Cachorro louco costuma andar em linha reta, mas nunca se sabe. Espero que ele siga a curva da rua, senão vai dar direto no quintal dos Radley. Vamos aguardar um pouco.

— Acho que ele não vai entrar no quintal dos Radley, não vai conseguir passar pela cerca. Ele provavelmente vai seguir pela rua… — disse Atticus. 

   Eu pensava que cachorros loucos babavam, corriam, pulavam e mordiam o pescoço das pessoas e que só apareciam em agosto. Ficaria mais calma se Tim Johnson tivesse agido dessa forma. 
   Nada é tão assustador quanto uma rua deserta, à espera. As árvores não se mexiam, os pássaros não cantavam, os carpinteiros da casa da srta. Maudie tinham sumido. Ouvi o sr. Tate fungar e assoar o nariz. Depois, apoiou o rifle no braço. Vi o rosto da srta. Stephanie Crawford emoldurado na janela da frente. A srta. Maudie apareceu ao lado dela. Atticus apoiou o pé na trave de uma cadeira e passou a mão lentamente pela coxa.

— Lá vem ele — avisou baixinho. 

continua página 072...
___________________

Leia também:

O Sol é para todos: 1ª Parte (10b)
__________________

Copyright © 1960 by Harper Lee, renovado em 1988 
Copyright da tradução © José Olympio
Título do original em inglês 
TO KILL A MOCKINGBIRD 
__________________

Um dos romances mais adorados de todos os tempos, O sol é para todos conta a história de duas crianças no árido terreno sulista norte-americano da Grande Depressão no início dos anos 1930. 

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Massa e Poder - A Massa (Massas de Acossamento)

Elias Canetti


MASSAS DE ACOSSAMENTO


   A massa de acossamento forma-se tendo em vista uma meta que se pode atingir rapidamente. Esta é-lhe conhecida e definida com precisão; é-lhe também próxima. Seu objetivo é matar, e ela sabe quem quer matar. Munida de uma determinação sem par, a massa de acossamento lança-se sobre sua meta; é impossível enganá-la. Para que uma tal massa se constitua, basta anunciar a meta e propagar o nome daquele que deve morrer. A concentração no matar é de natureza especial, insuperável por qualquer outra em intensidade. Todos querem participar; cada um quer desferir seu golpe. A fim de poder fazê-lo, comprimem-se todos o mais próximo possível da vítima. Se alguém não logra golpeá-la, ele desejará vê-la sendo golpeada pelos demais. É como se os braços todos saíssem de uma única e mesma criatura. Mas aqueles que acertam têm maior peso e valor. A meta é tudo. A vítima é a meta, mas é também o ponto de máxima densidade: ela reúne em si as ações de todos. Meta e densidade coincidem.
   Uma razão importante para o rápido crescimento da massa de acossamento é a ausência de perigo da empreitada. Esta não oferece perigo algum, pois a superioridade da massa é enorme. A vítima nada lhe pode fazer. Ela foge ou é capturada. Não lhe é possível o contragolpe; indefesa, ela é tão somente vítima. Foi, ademais, abandonada à própria ruína, destinada a essa sorte — ninguém precisa temer sanção alguma por sua morte. O assassinato permitido substitui todos aqueles aos quais se tem de renunciar, aqueles que, uma vez cometidos, ter-se-ia de temer a imputação de pesadas penas. Um tal assassinato — permitido, recomendado, sem perigo algum e partilhado com muitos outros — afigura-se irresistível à grande maioria da humanidade. Há que se notar a esse respeito que a ameaça de morte a que estão sujeitos todos os homens e que, sob os mais variados disfarces, atua permanentemente, ainda que não se lhe perceba a todo momento, torna necessário desviar a morte para os outros. A formação de massas de acossamento atende a essa necessidade.
   A empreitada é tão fácil e desenrola-se com tamanha rapidez que as pessoas precisam apressar-se para chegar a tempo. A pressa, a euforia e a segurança de uma tal massa têm algo de sinistro. Trata-se da excitação de cegos que atingem o auge de sua cegueira quando, subitamente, creem estar enxergando. A massa caminha rumo ao sacrifício e à execução, e o faz com o intuito de, repentinamente e para sempre, livrar-se da morte de todos os que a compõem. Mas o que então se passa com ela é o contrário disso. Em razão da execução — mas somente depois dela —, a massa sente-se mais ameaçada do que nunca pela morte. Assim, desagrega-se e espalha-se numa espécie de fuga. Quanto mais importante era a vítima, tanto maior é o medo da massa. Ela só logra permanecer reunida quando se tem uma série de acontecimentos dessa mesma natureza sucedendo-se com grande rapidez.
    A massa de acossamento é muito antiga; ela remonta à mais primitiva unidade dinâmica que a humanidade conhece: a malta de caça. Das maltas, que são pequenas e também em outros aspectos diferem em muito das massas, falar-se-á mais detidamente adiante. No momento, tratar-se-á apenas de algumas ocasiões gerais que dão ensejo à formação de massas de acossamento.
   Dentre os tipos de morte a que uma horda ou um povo condena o indivíduo podem-se distinguir duas formas principais: a primeira é a expulsão. O indivíduo é abandonado numa situação na qual se vê exposto sem nenhuma defesa a animais selvagens, ou na qual morrerá de fome. A comunidade humana à qual pertencia anteriormente nada mais tem a ver com ele; não lhe é permitido abrigá-lo ou dar-lhe algum alimento. Qualquer contato com ele a macula, tornando ela própria culpada. A solidão, em sua forma mais rigorosa, é aí a punição extrema; a separação do indivíduo de seu próprio grupo constitui um tormento ao qual, sobretudo em contextos primitivos, somente muito poucos logram sobreviver. Uma variação desse isolamento é o abandono aos inimigos. Em se tratando de seres humanos, e ocorrendo sem luta, essa variante é sentida como particularmente cruel e humilhante — como uma morte dupla.
   A segunda forma é a do matar coletivamente. O condenado é conduzido a um campo aberto e apedrejado. Todos participam do ato de matar; atingido pelas pedras de todos eles, o culpado sucumbe. A ninguém delegou-se a tarefa de executor; a comunidade inteira mata. As pedras a representam: elas são a marca de sua decisão e de seu ato. Mesmo nos lugares em que o apedrejamento caiu em desuso, essa tendência do matar conjuntamente persiste. Pode-se compará-la à morte pelo fogo: este age em lugar da multidão que desejava a morte do condenado. Provindas de todos os lados, as chamas atingem a vítima; por toda parte, poder-se-ia dizer, ela é agarrada e morta. Nas religiões infernais, um outro elemento acresce-se a isso. À morte coletiva pelo fogo, que é um símbolo para a massa, vincula-se a ideia da expulsão — isto é, da expulsão para o inferno —, o abandono aos inimigos infernais. As chamas do inferno erguem-se até a terra, agarrando e levando consigo o herege que lhes pertence. O crivar a vítima de flechas e o fuzilamento do condenado à morte por um pelotão de soldados têm no grupo executor os delegados da comunidade. Ao se enterrar pessoas em formigueiros — prática que se conhece da África e de outras partes —, deixa-se às formigas, representando uma numerosa massa, a penosa tarefa desta última.
   Todas as formas de execução pública vinculam-se à antiga prática do matar coletivamente. O verdadeiro carrasco é a massa, que se reúne ao redor do cadafalso. Ela aprova o espetáculo; apaixonadamente, conflui desde longe em sua direção, afim de assistir a ele do começo ao fim. Ela quer que ele aconteça e não aceita de bom grado que a vítima lhe escape. O relato da condenação de Cristo ilustra a essência desse processo. O “Crucificai-o!" parte da massa. É ela o elemento verdadeiramente ativo; em outros tempos, teria ela própria se desincumbido da tarefa e apedrejado Cristo. O julgamento, que em geral se dá diante de um grupo limitado de pessoas, representa a grande multidão que, mais tarde, assiste à execução. A pena de morte, que, pronunciada em nome do direito, soa abstrata e irreal, torna-se real ao ser executada na presença da massa. É, afinal, para ela que a sentença é pronunciada, e quando se diz que o direito é público, é a massa que se tem em mente.
   A Idade Média dota suas execuções de magnífica pompa, e estas se realizam tão vagarosamente quanto possível. Ocorre, por vezes, de a vítima advertir os espectadores com discursos edificantes. Preocupa-se com o destino destes últimos, que não devem fazer o que ela fez. Expõe-lhes aonde é que se chega, levando-se uma vida como a sua. Os espectadores sentem-se bastante lisonjeados com essa preocupação. Pode-se conceder à vítima a derradeira satisfação de, ainda uma vez, figurar diante dos espectadores como um igual, como alguém igualmente bom que, juntamente com eles, abandona e condena sua vida pregressa. O arrependimento de malfeitores ou descrentes diante da morte — arrependimento pelo qual, valendo-se de todos os meios disponíveis, se empenham os sacerdotes — possui, paralelamente à intenção declarada de salvar-lhes a alma, também o sentido de predispor a massa de acossamento à transformação numa futura massa festiva. Todos devem sentir-se fortalecidos em sua bondade e acreditar na recompensa que, em decorrência disso, os espera no além.
   Em tempos revolucionários, aceleram-se as execuções. O verdugo parisiense Samson orgulha-se do fato de seus auxiliares não necessitarem de mais de “um minuto por pessoa”. Pode-se atribuir muito da disposição febril das massas nessas épocas à rápida sucessão de incontáveis execuções. É importante para a massa que o carrasco exiba-lhe a cabeça daquele que foi morto. Esse, e nenhum outro, é o momento da descarga. A quem quer que tenha pertencido tal cabeça, esse alguém foi degradado; no breve momento em que fita a massa, ela se faz uma cabeça como todas as demais. É possível que antes figurasse sobre os ombros de um rei; ainda assim, graças ao fulminante processo de degradação perante os olhos de todos, igualou-se às demais. A massa, que consiste aí de cabeças a olhar fixamente, obtém o sentimento de sua igualdade no momento em que também essa cabeça a fita. Quanto mais poderoso tenha sido o executado, quanto maior a distância que anteriormente o separava da massa, tanto maior será a excitação da descarga. Se era um rei, ou um poderoso de magnitude semelhante, então atuará aí também a satisfação provocada pela inversão. O direito à justiça sangrenta, que tão longamente lhe coube, foi agora exercitado contra ele. Mataram-no os que, antes, ele mandava matar. Não há como superestimar o significado dessa inversão: há um tipo de massa que se forma unicamente em função de uma tal inversão.
   O efeito da cabeça exibida à multidão absolutamente não se esgota na descarga. Na medida em que esta última, com tremenda violência, a reconhece como uma das suas; na medida em que tal cabeça cai, por assim dizer, no meio da multidão e não é mais do que ela; na medida, pois, em que torna as pessoas umas iguais às outras, cada indivíduo vê-se refletido nela. A cabeça cortada constitui uma ameaça. Fitaram-lhe a morte com tamanho apetite que agora não conseguem mais libertar-se dela. Uma vez que tal cabeça pertence à massa, também a própria massa foi atingida por sua morte: misteriosamente enferma e assustada, ela começa a desagregar-se. Como que fugindo dessa cabeça, a massa, então, se dispersa.
   É particularmente veloz a desagregação da massa de acossamento que já obteve sua vítima — um fato do qual têm plena consciência os detentores do poder, quando em perigo. A fim de deter-lhe o crescimento, eles arremessam à massa uma vítima. Muitas execuções políticas já foram ordenadas com esse único propósito. Os porta-vozes de partidos radicais, por outro lado, em geral não percebem que, ao atingir sua meta — a execução pública de um perigoso adversário —, ferem mais fundo a própria carne do que a do partido inimigo. Após uma tal execução, pode ocorrer-lhes de sua massa de adeptos dispersar-se, e de por muito tempo, ou mesmo para sempre, não conseguirem recuperar a antiga força. Mais adiante, na abordagem das maltas e, especialmente, das maltas de lamentação; falar-se-á ainda de outras causas para essa reviravolta.
   A repugnância ao matar coletivamente é de origem assaz moderna. Não se deve superestimá-la. Ainda hoje, pelos jornais, todos participam das execuções públicas. Como tudo, também isso fez-se apenas mais confortável. Sentado tranquilamente em casa, o homem pode, dentre centenas de detalhes, deter-se naqueles que mais o excitam. A aclamação só se dá depois de tudo terminado; nem o mais leve vestígio de culpa turva o prazer. Não se é responsável por coisa alguma: nem pela sentença, nem pelo jornalista que testemunhou-lhe a execução, nem por seu relato, nem mesmo pelo jornal que publicou tal relato. Mas sabe-se mais a respeito do ocorrido do que em tempos passados, quando se tinha de caminhar e permanecer de pé durante horas para, por fim, ver apenas muito pouco. No público formado pelos leitores de jornal conservou-se viva uma massa de acossamento abrandada, mas, em função de sua distância dos acontecimentos, ainda menos responsável; conservou-se aí, é-se tentado a dizê-lo, a sua forma ao mesmo tempo mais desprezível e estável. Como sequer precise reunir-se, ela evita também sua desagregação; a repetição cotidiana do jornal a provê de variedade.

continua página 78...
____________________

Leia também:

Massa e Poder - A Massa (Massa Aberta e Massa Fechada)
Massa e Poder - A Massa (Massas de Acossamento)
____________________


ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
_______________________

Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Memórias - 07: minha querida amiga

No se puede hacer la revolucion sin las mujeres

Livro Dois

baitasar

Memórias

07 – minha querida amiga

aliás, no andar de cima do sobrado, todos os espaços para seu uso privado – a casa de banho e o quarto amplo e iluminado – foram urbanizados para uso geral, tanto quanto a passagem longa e estreita como um desfiladeiro que comunicava o quarto dos pequenos, maiores e do casal, Don Juan, no olvides llevar la colcha de Angélika a la lavanderia...

o misto quente espichou o olhar cobiçoso até a mulher erguida da cama, Ainda existe a lavanderia da Buena Salud?

dona Manuela, desfilando para os olhos de gula do esposo, respondeu preguiçosa,  Creo que se mudó a Buena Esperanza...

o espelho reflete a chama daquele olhar comilão, sua pele vibra e clama um querer que não se acalma, inflama, sempre quis sentir-se a estrela desejada, a mais brilhante do universo, a silhueta alada na dança, gostosa, livre e provocante

aquele olhar de cobiça são ondas no mar, seduzem sem precisar falar, cada faísca um convite aquecendo como o sol beijando sua pele ardendo, cada olhar que toca é o desejo se fazendo presente

aquele mundo aos seus pés se rende

força que cresce firme e entesada, um fogo que arde e se vê, rompendo laços, desejada sem amarras

mais do que contornos é saber da própria essência, a confiança que transforma todo o espaço em sua presença, um poema vivo, música em movimento, doce elixir

aquele aroma era motivo da celebração daquele momento

Tchau, mamá!

ah, o poder oculto daquelas vozes, Adiós, queridos! Adiós, mis queridas hijas!

a relação entre mães e filhos é complexa e misteriosa, não consigo decifrar esse amor, frequentemente acreditamos que detêm o poder sobre os filhos moldando seu futuro e tomando decisões sobre suas vidas, mas, sempre existe um porém, há um poder oculto que quase sempre é subestimado, a influência sutil e profunda que os filhos exercem sobre suas mães

pais podem parecer poderosos e autoritários aos olhos dos filhos, mães carinhosas e amorosas, mas paulatinamente podem ser moldados e transformados pelas experiências, perspectivas e amor incondicional que trazem para suas vidas

filhos têm a capacidade de ensinar, desafiar e decompor seus pais e mães mais do que podem imaginar

minha querida amiga, assim como eu, você não tem filhos, eu já quase os tive, creia que a alegria de um filho pode iluminar o dia de uma mãe, enquanto seu sofrimento pode mergulhá-la nas profundezas da angústia

as escolhas e ideais dos filhos desafiam as crenças arraigadas dos pais e mães, forçando-os a reconhecer suas posições e a crescer, até mesmo nas pequenas coisas do dia-a-dia, escolhas que fazem tendo em mente o bem estar das filharada, nos sacrifícios silenciosos feitos em nome do amor e na incessante vontade de verem seus filhos florescerem

hoje estou cheia de lugares comuns, evidências desbussoladas dessa dança constante de influência mútua, onde o poder de molar, ensinar e transformar é compartilhado de maneira sutil e poderosa em conta gotas, apesar de toda sabedoria e experiência que pais e mães podem possuir, não esqueça, minha querida amiga, pais e mães também têm muito a aprenderem com seus filhos, por mais que neguem isso

Esperem por mim!

Adiós, Aryani!

Beijinho, mamá!

don Juan e as crianças entravam na perua e saiam

uma furgoneta estranha

sem janelas

pensei que com certeza seria mais apropriada para o transporte de pequenas cargas com aquela porta dupla na traseira, uma entrada e saída da carga de filhos

depois que a miuçalha entrava e as portas eram fechadas não se ouvia mais nada, tampouco se percebia que o alarido daquelas vozinhas não era o reparte de leite, mas a prole Gonçalves Lara partindo para seus destinos

___________________

Leia também:

Livro Um:
Memórias - 01: a lua cheia
Memórias - 35: não lembro das despedidas
Livro Dois:
Memórias - 01: Don Juan Pietro Gonçalves Lara
Memórias - 02: fatos e mentiras
Memórias - 03: siempre ha sido así
Memórias - 04: ¡Hijo-de-puta!
Memórias - 05: El hombre es así
Memórias - 06: rusgas e rezingas, rastros do aprendizado
Memórias - 07: minha querida amiga

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Cinema: A PRIMEIRA NOITE DE UM HOMEM

Simon & Garfunkel 


- Mrs. Robinson

"- Sra. Robinson, você está tentando me seduzir, não está ? " pergunta Ben à Sra. Robinson.






1- A MÚSICA

Mrs. Robinson foi escrita exclusivamente para o filme "A primeira noite de um homem". Ficou em primeiro lugar na Billboard hot 100 por três semanas consecutivas e rendeu dois Grammys para Simon & Garfunkel em 1968, nas categorias: melhor gravação do ano e melhor performance vocal do pop contemporâneo e foi eleita como uma das maiores canções de cinema da América do século XX.

Na verdade, a música "Mrs. Robinson " foi escrita em referência a Eleanor Roosevelt, que foi a primeira-dama dos Estados Unidos de 1933 a 1945. Ela participou de grandes eventos, como a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial - e foi reconhecida por suas contribuições para a Presidência. As letras contemplativas carregam um significado profundo. 
'The Sound of Silence', surge para a ocasião de forma magnífica para acompanhar a odisseia de Ben da adolescência à idade adulta.
Esse é o próprio vazio que define Ben de muitas maneiras. 
Ele é abençoado com todos os luxos da vida, mas anseia por aquela parte esquiva que o completará. 
Além de 'Mrs. Robinson' também foram tocadas no filme as músicas "Scarborough Fair / Canticle" e 'The Sound of Silence', dos mesmos autores.







2- O FILME:

Um filme perfeito! Dustin Hoffman deu uma aula de interpretação. Ana Bancroft interpretou com uma aura de sedução incrível. Katharine Ross se mostrou uma atriz muito promissora. 
O filme ganhou quatro Oscar no ano de 1968 e ocupa um lugar reverenciado na história do cinema americano. Uma obra-prima contundente sobre o problema de terminar a escola e, finalmente, ter que se tornar um adulto, queira você ou não. 
Benjamin é um dos personagens mais identificáveis de todos os tempos - impulsivo, ansioso, apenas tentando agradar a todos e, ao fazer isso, nunca agradando a si mesmo. 
Mostra a iniciação sexual de Benjamin, que se dá a partir de um turbulento relacionamento com uma mulher mais velha, casada e que, no filme, tem o dobro da idade do rapaz. É momento de delicadeza e também de incerteza na vida do protagonista que, de volta para a casa dos pais, não sabe muito bem o que fazer ou o que quer da vida. Sua existência se resume às horas em que fica na piscina e se alternar com os encontros fortuitos com a Sra. Robinson.
A película ainda hoje é considerada um clássico; apresenta o nervosismo e a inexperiência de um homem jovem diante da iminência de fazer sexo com uma mulher bem mais velha. Mostra a confusão
mental estabelecida na figura de Benjamin, suas inseguranças e incertezas. Em uma cena, Benjamin aparece como uma figura "pequena", diante da curvatura da perna da mulher que lhe pretende seduzir. É um filme de amadurecimento, sobre pessoas buscando ser felizes em um mundo cheio de inseguranças, de poucas perspectivas e de gritantes conflitos geracionais.






3- A SRA. ROBINSON:

A Sra. Robinson é um enigma; um momento calmo como o oceano da tarde, o outro um forte vendaval em uma noite de tempestade. Os tons indiscriminados com que a brilhante Anne Bancroft pinta a Sra. Robinson são gloriosos e dignos de imenso elogio.
Olhando atentamente com um cigarro queimado pela metade e olhos ansiosos, a introdução da sra. Robinson à vida de Ben não apenas mostra uma fase de transição na vida de Ben, mas também dá ao espectador algo para esperar; ela permite a progressão da história e atua como a ponte do Ben da adolescência à idade adulta.
Benjamin era uma vítima dos caprichos da Sra. Robinson e uma presa da autoridade draconiana de seus pais.
A Sra. Robinson marca uma mudança fundamental na personalidade de Ben. Ela é revelada como um semblante endurecido da outrora exuberante e vivaz beldade do passado. Através de sua conversa com Ben naquela noite no hotel, somos informados de seu passado rebelde e das consequências que ela terá que enfrentar nos dias de hoje. A gravidez pós-adolescente não é uma ocorrência rara, mas costuma colocar a sua vítimas em posições terríveis.
Anne Bancroft foi uma atriz americana, que se tornou um ícone de beleza e sensualidade nos anos 1960. Vencedora do Oscar de melhor atriz pela sua atuação no filme The Miracle Worker, sua estrela na Calçada da Fama está localizada no número 6368 da Hollywood Bulevar.







Ponte Sobre Águas Turbulentas
Bridge Over Troubled Water

Quando estiver cansada
When you're weary
Sentindo-se pequena
Feeling small
Quando as lágrimas estiverem nos seus olhos
When tears are in your eyes
Eu as secarei todas
I will dry them all


Estou ao seu lado
I'm on your side
Quando os tempos ficarem difíceis
When times get rough
E os amigos desaparecerem
And friends just can't be found
Como uma ponte sobre águas turbulentas
Like a bridge over troubled water
Eu me estenderei
I will lay me down
Como uma ponte sobre águas turbulentas
Like a bridge over troubled water
Eu me estenderei
I will lay me down


Quando você estiver para baixo
When you're down and out
Quando você estiver na rua
When you're on the street
Quando a noite cair de forma tão impiedosa
When evening falls so hard
Eu te consolarei
I will comfort you


Estarei ao seu lado
I'll take your part
Quando a escuridão chegar
When darkness comes
E o sofrimento te rondar
And pain is all around
Como uma ponte sobre águas turbulentas
Like a bridge over troubled water
Eu me estenderei
I will lay me down
Como uma ponte sobre águas turbulentas
Like a bridge over troubled water
Eu me estenderei
I will lay me down


Continue, garota
Sail on, silver girl
Siga em frente
Sail on by
Chegou a sua hora de brilhar
Your time has come to shine
Todos os seus sonhos estão a caminho
All your dreams are on their way


Veja como brilham
See how they shine
Se você precisar de um amigo
If you need a friend
Estarei vindo logo atrás
I'm sailing right behind
Como uma ponte sobre águas turbulentas
Like a bridge over troubled water
Eu acalmarei a sua mente
I will ease your mind
Como uma ponte sobre águas turbulentas
Like a bridge over troubled water
Eu acalmarei a sua mente
I will ease your mind

Composição: Paul Simon



Simon & Garfunkel foi uma dupla norte-americana de folk composta pelos cantores e compositores Paul Simon e Art Garfunkel. Eles formaram o grupo Tom & Jerry em 1957 e com o nome emplacaram seu primeiro sucesso com o single "Hey, Schoolgirl". A dupla alçou fama em 1965 como Simon & Garfunkel na esteira do sucesso de "The Sound of Silence".

Seu relacionamento por vezes conturbado fez com que seu último álbum, Bridge Over Troubled Water, fosse adiado várias vezes devido a desentendimentos artísticos, o que acabou resultando na separação da dupla em 1970. Este foi seu álbum de maior sucesso, alcançando o primeiro lugar de vendas em diversos países, incluindo os Estados Unidos, e recebendo a certificação de platina óctupla da Recording Industry Association of America. Desde então eles têm se reunido esporadicamente, a ocasião mais famosa sendo para um concerto no Central Park que atraiu mais de 500,000 pessoas, fazendo deste o sétimo evento musical mais assistido na história da música.



A Primeira Noite De Um Homem 
Dublagem Herbert Richers
Trailer




quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Memórias do Cárcere - Viagens 16

Memórias do Cárcere

Graciliano Ramos


Volume I 
 Editora Record 
PRIMEIRA PARTE 

VIAGENS 

16


       CAPITÃO Mata consultou o jornal, estudou o movimento do porto e decidiu que viajaríamos para o sul. Insensatez. Tinham-nos jogado para o norte; de repente, sem razão concebível, atiravam-nos em sentido contrário. Corridas de automóvel, doze horas a rolar num trem, quinze dias de repouso forçado para ouvir as ameaças de um general. E meia-volta: andar para o sul, depois de ter andado para o norte. Ausência de interrogatório, nenhum vestígio de processos. Porque se comportavam daquele jeito? Pareciam querer apenas demonstrar-nos que podiam deixar-nos em repouso, em seguida enviar-nos para um lado ou para outro. Exatamente como se estacássemos no exercício militar, depois volvêssemos à direita ou à esquerda, em obediência à voz do instrutor. Porque a direita? Porque à esquerda? O sargento não sabe: indicou uma direção por ser preciso variar: fazia dois minutos que marchávamos em linha reta e não devíamos continuar assim, indefinidamente.
   Haverá proceder mais estúpido? Estúpido, na verdade. Mas não tencionam apenas revelar-nos a própria estupidez: querem possivelmente forçar-nos a entender que nos podem tornar estúpidos, executar ações inúteis, divagar como loucos, ir andando certo e sem mais nem mais torcer caminho, mergulhar os pés num atoleiro. Um, dois, um, dois. Se as nossas cabeças funcionavam, é bom que deixem de funcionar e nos transformemos em autômatos: um, dois, um, dois. Dentro em pouco o sargento exigirá meia-volta e tornaremos – um, dois, um, dois – a meter os sapatos na lama. Ou reclamará marcha acelerada. Não perceberemos o sentido dela, naturalmente, mas teremos de executá-la, pois isto é a nossa obrigação. Claro. Não estamos aqui para discutir. Temos superiores, eles pensarão por nós. Talvez não pensem, mas é como se pensassem: as estrelas, a voz grossa, de papo, bobagens ditas a repórteres em doidas entrevistas, emprestam-lhes autoridade.
   Afinal íamos ser transferidos para o sul. Que lugar nos destinavam? Rio de Janeiro, Bahia, São Paulo? Ou qualquer cidadezinha do interior? Quando lhes desse na veneta, mandar-nos-iam fazer meia-volta, desembarcar-nos-iam no Amazonas, obrigar-nos-iam à convivência dos jacarés. Nenhuma lógica nessas reviravoltas, nenhum senso. Arranha-céus ou seringueiras e tartarugas. Estúpido. Nada nos chamava ali ou acolá. Os nossos interesses se fixavam no nordeste, o sangue e as observações – os filhos, a terra plana, poeirenta e infecunda. Tudo pobre. Não seria mais conveniente obrigarem-nos a cavar açudes ou ensinar bê-a-bá aos meninos empalamados? Os nossos músculos renderiam pouco, os nossos cérebros entorpecidos eram como limões secos; com esforço espremeríamos da carne e dos nervos alguma coisa – e enfim teríamos a certeza de não sermos uns miseráveis parasitas imóveis. Onde estava a nossa utilidade? Para que servíamos? Saltar da cama pela manhã, escovar os dentes, pentear os cabelos, ouvir dois minutos, em pé, o interrogatório do comandante, dar as respostas adequadas; em seguida papaguear meia hora com o excelente capitão Lobo, contrariá-lo. Que proveito achavam nisso? Lá fora tínhamos funções, representávamos de qualquer modo certo valor. Pelo menos julgávamos representar. Agora nos faltava o mínimo préstimo, e o pior é que sabíamos isto. Arrastávamos as pernas ociosas; uma vez por dia deixávamos a gaiola, – um, dois, um, dois – alcançávamos o banheiro, o limite do mundo; regressávamos à sonolência e à imobilidade. Conversas repetidas, graças e anedotas repetidas, o abandono de hábitos sociais indispensáveis. Permaneceremos civilizados vestindo pijama, calçando chinelos, deixando a barba crescer, palitando os dentes com fósforo? Pouco a pouco vamos caindo no relaxamento. Erguemos a voz, embrutecemos, involuntariamente expomos a rudeza natural. Ignoramos que isto acontece, suprimem-nos meios de comparação – e quando voltarmos estaremos transformados. Afinal a transferência não era ruim: quebrava a monotonia.
   Uma viagem ao sul por conta do governo. Quando me soltassem, aguentar-me-ia na cidade grande, readaptar-me-ia, mudaria de ofício no fim da vida. Afirmava isto a mim mesmo sem muita convicção, tentando inocular-me gotas de confiança. Um governador de Alagoas me dissera anos atrás: –“Você. escrevendo literatura de ficção, morre de fome. Os romances lhe renderão duzentos mil-réis por mês. Faça artigos sobre economia e ganhará contos.” É verdade que esse amigo se dedicara à mamona, ao algodão, às galinhas, enchera com estatística diversas resmas – e isto lhe trouxera escassa vantagem. Não me capacitava de que as letras dele fossem bem pagas, na livraria ou no jornal, mas as minhas deviam ser mais baratas. Duzentos mil-réis por mês, bela perspectiva. Dois romances quase desconhecidos, o terceiro inédito, um conto, vários produtos inferiores – de fato isso me daria duzentos mil-réis mensais. E não me sentia capaz de progresso; talvez nem chegasse a fazer coisa igual. Esforçava-me por julgar que a mudança me desentorpeceria, me sacudiria. Ao cabo de vinte e quatro horas achar-me-ia alojado na segunda classe. Haviam-nos tratado bem até aquele momento: o vagão-restaurante da Great Western, automóveis, uma prisão de oficiais, gestos e palavras corteses. Era como se fôssemos sujeitos importantes. Mas certamente havia equívoco na classificação: perceberiam que não estávamos no lugar próprio e mandar-nos-iam descer um degrau. Pensava assim e resistia em convencer-me de qualquer rebaixamento: nenhum motivo para não nos darem um camarote de primeira classe.
   As minhas reflexões sobre esse ponto foram interrompidas por uma bola de papel que, arremessada por cima do tabique, veio cair no meio do quarto. Apanhamo-la, abrimo-la, desamarrotamo-la: uma carta enviada pelo oficial preso na saleta vizinha. Poderíamos dar resposta? Vieram-me escrúpulos: tínhamos combinado, logo ao amanhecer da vida nova, não falar ao homem detido além da parede baixa, certamente cumprindo pena disciplinar. Nenhuma relação haveria entre nós, claro: a promessa nada me custava. Ignorava o nome dele, a figura, o sentimento e o pensamento. Porque infringiria o convênio? Tínhamos ficado em silêncio duas semanas, indiferentes ao que sucedia ali perto, a alguns passos. Súbito nos chegava um apelo: alguém sentia o peso da solidão e, pressentindo a nossa partida, esvaziava o espírito numa folha de papel, desordenadamente. Numerosos lugares-comuns a respeito da liberdade. A que liberdade aludia Xavier? Era tenente do exército e chamava-se Xavier. Referir-se-ia à liberdade, em geral, ou pensaria na dele próprio, encolhida em alguns metros de soalho, olhos vigiando portas e janelas? A comunicação era bastante vaga. Relendo-a, julguei perceber que estávamos embrulhados pelas mesmas razões. Desumanidade e grosseria deixar de enviar algumas linhas ao rapaz. Refletindo, lembrei-me de que não nos tínhamos obrigado. Capitão Lobo apenas afirmara que nos comprometíamos. Uma ordem, somente. Se decidíssemos transgredi-la? De qualquer modo havia acordo tácito – e aí notei pela primeira vez um dos horrores sutis em que é fértil a cadeia: pretendem forçar-nos, sob palavra, a ser covardes. A princípio não distinguimos a cilada. –“Está ali um sujeito com “quem o senhor não se pode entender.”–“Perfeitamente.„ Aceitamos a imposição sem divisar nenhuma inconveniência. Mais tarde um infeliz nos abre a alma e hesitamos em solidarizar-nos com ele. Haverá maior covardia? Obedeceremos à frase a que não demos a necessária atenção ou escutaremos a voz interior? Naquele caso, para ser franco, não existiu em mim voz interior. E, além da primeira interdição, duas outras me vieram impossibilitar a correspondência com Xavier. Que espécie de resposta lhe daria? A literatura dele, confusa, estendia-se em conceitos banais, polvilhados de patriotismo. Naturalmente essa verbiagem não achava ressonância cá dentro, pois tenho horror aos patriotas, aos hinos e aos toques de corneta. Sem dúvida essas coisas são indispensáveis, por enquanto, mas isto não me levava a gostar delas. Horríveis. Enorme preguiça me endurecia a munheca; a burrice persistia; desânimo, longos bocejos; a leitura emperrava, entre cochilos; as observações das notas chochas pingavam a custo, pareciam mijadinhas blenorrágicas. Ora, nesse estado, não me seria fácil garatujar chavões em bilhetes. O derradeiro impedimento se ligava à prudência. Quem seria Xavier? Segundo o escrito, um indivíduo atrapalhado por ideais semelhantes aos meus. Mas esses ideais não se especificavam e talvez nem existissem nele.
   Existiriam em mim? Não sou de ideais, aborreço empolas. O que eu desejava era a morte do capitalismo, o fim da exploração. Ideal? De forma nenhuma. Coisa inevitável e presente: o caruncho roia esteios e vigas da propriedade, de pouco serviam os meus livros e as divagações de Xavier. De qualquer maneira rebentaria uma revolução de todos os demônios, seríamos engolidos por ela. Haveria, porém, a certeza de que o vizinho pensava nisso, esperava o cataclismo? Não havia: tratava-se de um patriota, e essa gente me inspira desconfiança. Se o tenente estivesse ali para fiscalizar-me, apanhar-me em falta? Se lhe houvessem ditado a carta e aguardassem o nosso comportamento, além do tabique? Por esses motivos ou por outros ignorados, achava-me indisposto a confabular.
   Em capitão Mata não havia os mesmos receios, as mesmas inibições. Pessoa de caserna, devia saber que a ordem se contenta com as aparências. Se ele fosse apanhado em flagrante, certo não conseguiria eximir-se da culpa; operando à socapa, com mão de gato, era como se a culpa não existisse. As obrigações não passavam de formalidades: tolice exagerá-las, transformá-las em casos de consciência. Além disso capitão Mata escrevia com rapidez notável, admitia sem aversão a prosa de Xavier e, usando linguagem mais ou menos correta, disfarçava perfeitamente a vacuidade dos períodos sonoros. Afinal conhecia o rapaz, se não me engano, e o temor de perfídia se eliminava. O certo é que abriu a mala, apanhou o bloco de papel e forjou uma regular mensagem, com boa dose de entusiasmo e civismo. Direitinho um orador de comício.
   Introduziu a lengalenga por baixo da porta. Minutos depois recebemos uma réplica sem pé nem cabeça. E assim decorreu o dia: bilhetes de um lado para o outro. A sentinela se distraía observando a inofensiva brincadeira. Se um intruso surgisse no alpendre, ela daria aviso. Evidentemente a proibição só se fizera para ser violada.

continua página 74....
_________________

Leia também:

Memórias do Cárcere - Viagens 16
_________________

Graciliano Ramos de Oliveira (Quebrangulo, 27 de outubro de 1892 – Rio de Janeiro, 20 de março de 1953) foi um romancista, cronista, contista, jornalista, político e memorialista brasileiro do século XX, mais conhecido por sua obra Vidas Secas (1938).
Em setembro de 1915, motivado pela morte dos irmãos Otacília, Leonor e Clodoaldo e do sobrinho Heleno, vitimados pela epidemia de peste bubônica, volta para o Nordeste, fixando-se junto ao pai, que era comerciante em Palmeira dos Índios, Alagoas. Neste mesmo ano casou-se com Maria Augusta de Barros, que morreu em 1920, deixando-lhe quatro filhos.
Foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios em 1927, tomando posse no ano seguinte. Apoiado pelo governador do estado e impulsionado por ser um nome de fora da política, foi eleito em um pleito de uma candidatura só. Ficou no cargo por dois anos, renunciando a 10 de abril de 1930. Segundo uma das autodescrições, "Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas." Os relatórios da prefeitura que escreveu nesse período chamaram a atenção de Augusto Frederico Schmidt, editor carioca que o animou a publicar Caetés (1933).
Entre 1930 e 1936. viveu em Maceió, trabalhando como diretor da Imprensa Oficial, professor e diretor da Instrução Pública do estado. Em 1934, havia publicado São Bernardo, e quando se preparava para publicar o próximo livro, foi preso após a Intentona Comunista de 1935. Foi levado para o Rio de Janeiro e ficou preso por onze meses, sendo liberado sem ter sido acusado de nada ou julgado. Em Memórias do Cárcere recorda a prisão que sofrera seis anos antes.


terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Makarenko - Poema Pedagógico Livro 1(a): Operações de caráter interno

Poema Pedagógico


Antón S. Makarenko


Livro Um

Capítulo 4

Operações de caráter interno

   Em fevereiro, desapareceu da minha gaveta um maço inteiro de dinheiro - aproximadamente seis meses do meu ordenado.
   No meu quarto, naquele tempo, localizavam-se o escritório, a sala dos professores, a contadoria e o caixa, pois eu acumulava, na minha pessoa, todos esses cargos. O maço de notinhas novinhas sumiu da gaveta trancada sem sinal de qualquer arrombamento.
   À noite, contei isso aos rapazes e pedi que devolvessem o dinheiro. Eu não podia provar o furto, e era possível facilmente me acusar de desvio de fundos. os rapazes escutaram taciturnos, e se dispersaram. Depois da reunião, quando eu ia para minha ala, no pátio escuro fui abordado por dois rapazes: Taranêts e Gud. 
   Gud era um moço miúdo e ágil.

- Nós sabemos quem pegou o dinheiro - sussurrou Taranêts -, só que não pode falar na frente de todos: não sabemos onde ele escondeu. E, se contarmos, ele se manda e leva o dinheiro.

- Quem pegou?

- Foi um aí...

   Gud olhava para Tara de soslaio, ao que parecia não aprovando inteiramente a sua política. Ele resmungou:

- Precisava era quebrar-lhe as fuças... que conversa fiada é essa?

- E quem é que lhe vai às fuças? - retrucou Taranêts - Será você? Se ele te pega de jeito...

- Não, assim não dá.

   Taranêts insistia na conspiração. Dei de ombros:

- Está bem. como queiram.

   E fui dormir.
   De manhã Gud encontrou o dinheiro na cavalariça. Alguém o jogara pela janela estreita da cavalariça e as notas voaram e se espalharam por todo o lugar. Gud, tremendo de tanta alegria, veio a mim correndo com as mãos cheias de notas amarrotadas.
   Gud dançava pela colônia de tanta alegria, todos os garotos estavam radiantes e vinham correndo para o meu quarto olhar para mim. Só Taranêts andava de cabeça orgulhosamente empinada. Não interroguei nem a ele nem a Gud sobre os acontecimentos que se seguiram à nossa conversa.
   Dois dias depois, alguém arrancou os cadeados do portão e surrupiou algumas libras de banha - toda a nossa riqueza em gorduras. Levou também o cadeado. E no dia seguinte arrancaram a janela da despensa - e sumiram as balas preparadas para os festejos da Revolução de Fevereiro e algumas latas de graxa para as rodas, que nos eram tão preciosas quanto dinheiro vivo.
   Kaliná Ivánovitch até emagreceu durante aqueles dias. Ele aproximava o rosto empalidecido de cada colonista, soprava-lhe nos olhos a fumaça da sua makhórka e insistia:

- Mas julguem vocês próprios! Pois se é tudo para vocês, seus filhos duma cadela, vocês roubam de si mesmos, parasitas!

   Taranêts sabia mais do que todos, mas se mantinha reservado, por alguma razão não entrava nos seus cálculos esclarecer esse assunto. Os colonistas se expressavam à vontade, mas entre eles prevalecia um interesse puramente esportivo. De maneira alguma eles queriam aceitar o ponto de vista de que os roubados eram justamente eles próprios.
   No dormitório eu gritava irado:

- Vocês o que é que são? São gente ou...

- Somos larápios - ouviu-se de um catre distante.

- Somos bandidos!

- Mentira! Que espécie de bandidos são vocês? Vocês não passam de ladrõezinhos pés-de-chinelo que furtam de si mesmos. Fiquem agora sem banha, o diabo que os carregue! E nas festas, sem balas. Ninguém vai nos dar mais nada. Danem-se!

- Mas o que é que podemos fazer, Anton Semiónovitch? Nós não sabemos quem roubou. Nem o senhor sabe nem nós sabemos.

   Aliás, eu mesmo compreendia desde o começo que as minhas conversas eram inúteis. O ladrão era um dos mais velhos, que todos temiam.
   No dia seguinte, acompanhado de dois rapazes, fui fazer gestões para arranjar uma nova ração de banha. Deram-nos também uma partida de balas, embora nos xingassem bastante por não termos conseguido conservar as outras. À noite relatávamos com minúcias as nossas andanças. Finalmente, a banha foi trazida para a colônia e guardada no porão. Logo na primeira noite a banha foi roubada.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Marcel Proust - O Tempo Recuperado (As coisas eram de tal modo as mesmas)

em busca do tempo perdido

volume VII
O Tempo Recuperado



continuando...

   As coisas eram de tal modo as mesmas que retomavam muito naturalmente as palavras de outrora: "bem pensantes, mal pensantes". E, como pareciam diferentes, como os antigos partidários da Comuna tinham sido anti-revisionistas, os maiores dreyfusistas queriam mandar fuzilar todo mundo, contando com o apoio dos generais, como estes, no tempo do Caso Dreyfus, tinham sido contra Galliffet.
   A essas reuniões a Sra. Verdurin convidava algumas senhoras um tanto recentes, conhecidas pelas joias, e que nas primeiras vezes compareciam com vestidos berrantes e grandes colares de pérolas, que Odette, possuidora de um colar igualmente admirável, de cuja exibição ela própria havia abusado, olhava com severidade, agora que andava de "uniforme de guerra", à imitação das damas do Faubourg. Mas as mulheres sabem adaptar-se. Depois de três ou quatro vezes, elas se davam conta de que os vestidos que haviam considerado elegantes eram precisamente proscritos pelas pessoas que o eram, punham de lado os vestidos resplandecentes e se resignavam à simplicidade.
   Uma das estrelas do salão era o "Em-apuros", que, apesar dos gostos esportivos, conseguira ser considerado inapto. Tornara-se, para mim, de tal modo o autor de uma obra admirável, sobre a qual eu estava sempre meditando, que somente por acaso, quando estabelecia uma corrente transversal entre duas séries de recordações, é que me lembrava que ele fora o causador da saída de Albertine de minha casa. E mesmo assim, essa corrente transversal ia dar, no que diz respeito aos restos das reminiscências de Albertine, num caminho inteiramente abandonado a vários anos de distância. Pois eu nunca pensava nela. Era um caminho de recordações, um rumo que jamais seguia. Ao passo que as obras de "Em-apuros" eram mais recentes e esse rumo de lembranças permanentemente frequentado e utilizado pelo meu espírito.
   Devo dizer que as relações com o marido de Andrée não eram agradáveis, e que a amizade que lhe devotasse sofria muitas decepções; naquela ocasião já estava muito doente e procurava evitar as fadigas de que esperasse extrair nenhum prazer. E só incluía nestas os encontros com quem ainda não conhecia, e que sua ardente imaginação sem dúvida lhe reatava como tendo uma possibilidade de serem diferentes dos outros. Quanto aos conhecidos, sabia muito bem como eram, e não lhe pareciam valer a pena um cansaço perigoso, talvez mortal. Em suma, era um amigo muito ruim. Restava seu gosto pelas novas pessoas se pudesse encontrar algo da sua audácia frequente de outrora, em Balbec, nos esportes, no jogo, em todos os excessos.
   Quanto à Sra. Verdurin, a todo instante queria apresentar-me à Andrée sem poder admitir que eu já a conhecesse. Aliás, Andrée raramente comparecia com o marido. Era, para mim, uma amiga adorável e sincera; fiel à estética; fiel ao marido, em reação contra os balés russos, dizia do marquês de Polignac:

- Sua cama é decorada por Bakst. Como é que se pode dormir lá dentro? Eu preferiria Dub'' -

   De resto, os Verdurin, devido ao progresso fatal do esteticismo que acatava a comer a própria cauda, afirmavam não suportar o modem style (além do mais, era muniquense) nem os apartamentos brancos, e só apreciavam os velhos móveis franceses em ambiente sombrio.
   Vi muitas vezes Andrée por esse tempo. Não sabíamos o que dizer um ao outro, e uma vez pensei naquele nome de Juliette que subira do fundo da recordação de Albertine como uma flor misteriosa. Misteriosa naquela época, mas que hoje não evocava mais nada. Apesar de falar sobre tantos assuntos indiferentes, calei-me a tal respeito; não que fosse menos indiferente que os outros, mas porque existe uma espécie de supersaturação das coisas em que pensamos demais. Talvez fosse verdadeiro o período em que eu via naquilo tantos mistérios. Mas, esses períodos não hão de durar para sempre, não devemos sacrificar a saúde, a fortuna, na descoberta de mistérios que um dia deixarão de nos interessar.
   Por esse tempo, causou grande espanto, visto que a Sra. Verdurin ter em casa quem quisesse, vê-la fazer indiretamente gentilezas a alguém que perdera inteiramente de vista, Odette. Achavam que esta nada acrescentaria ao brilhante meio em que se transformara o pequeno clã dos Verdurin. Mas a separação prolongada, ao mesmo tempo que acalma os rancores, desfaz às vezes a amizade. E, além disso, o fenômeno que leva não só os agoniza pronunciarem somente nomes que lhes foram familiares outrora, mas os faz se comprazerem nas recordações da infância, esse fenômeno tem o seu equivalente social. Para ter êxito na empreitada de fazer Odette retornar à sua casa, a Sra. Verdurin não se utilizou, é claro, dos "ultras", mas dos frequentadores menos que tinham conservado um pé num e noutro salão. Dizia-lhes:

- Não sei porque não a vemos aqui. Talvez esteja zangada, eu não. Afinal, que foi que lhe fiz? Foi na casa da rainha que ela conheceu seus dois maridos. Se quiser voltar, saiba que as portas lhe estão abertas.-

   Tais palavras, que deveriam ter magoado o orgulho da patroa caso não fossem ditadas por sua imaginação, foram repetidas, mas sem sucesso. A Sra. Verdurin esperou Odette, sem vê-la regressar, até que certos acontecimentos, que veremos mais adiante, conseguiram, por outros motivos, o que não obtivera a embaixada, todavia zelosa, dos inconstantes. Tanto são poucas as conquistas fáceis quanto as derrotas definitivas.
   A Sra. Verdurin dizia:

- É desolador, vou telefonar à Bontemps a fim de que tome providências para amanhã. Já "empastelaram" de novo o final do artigo de Norpois e apenas porque ele insinuou que tinham posto empecilho "no desvio". -

   Pois a estupidez da moda fazia com que as pessoas julgassem ponto de honra empregar expressões correntes, e ela julgava mostrar-se "da moda", assim como uma burguesa ao dizer, a propósito do Sr. de Bréauté, do Sr. de Agrigento ou do Sr. de Charlus:

- Quem? Babal de Bréauté, Grigri, Mémé de Charlus? -

   Aliás, as duquesas faziam o mesmo, tendo igual prazer em falar "no desvio", pois, se o seu nome fala à imaginação dos plebeus um tanto poetas, elas se exprimem de acordo com a categoria intelectual, bastante burguesa, a que pertencem. As classes intelectuais nada têm a ver com o nascimento.
   Todos esses telefonemas da Sra. Verdurin, aliás, tinham os seus inconvenientes. 
   Embora tenhamos esquecido de dizê-lo, o "salão" Verdurin, se permanecia em espírito e em verdade, transportara-se momentaneamente a um dos maiores hotéis de Paris, pois a falta de carvão e de luz tornara mais difíceis as recepções dos Verdurin na antiga residência, muito úmida, dos embaixadores de Veneza. O novo salão, entretanto, não era desagradável. Como em Veneza o espaço, diminuto por causa da água, determina a forma dos palácios, como um palmo de jardim em Paris encanta mais que um parque na província, a exígua sala de jantar da Sra. Verdurin no hotel formava uma espécie de losango de paredes de alvura brilhante, onde se projetavam, como numa tela, todas as quartas-feiras, e quase todos os dias, todas as pessoas mais variadas e mais interessantes, as mulheres mais elegantes de Paris, encantadas por poderem usufruir do luxo dos Verdurin, que, com sua fortuna, iam gastando, numa época em que os mais ricos reduziam as despesas para não tocar nos seus rendimentos. A forma dada às recepções se modificara, sem que deixassem de encantar Brichot, que, à medida que as relações dos Verdurin se estendiam, mais prazeres novos, acumulados como surpresas num sapatinho de Natal, encontrava em sua companhia. Por fim, em certos dias, sendo os convivas tão numerosos que a sala de jantar do apartamento se tornava pequena demais, servia-se o jantar na enorme sala do térreo, onde os fiéis, fingindo hipocritamente lastimar a intimidade do andar superior - como outrora a necessidade de convidar os Cambremer fazia com que a Sra. Verdurin dissesse que se aborreceriam - entulhavam no fundo, fazendo um grupo à parte, como antigamente no trenzinho, por serem objeto de contemplação e inveja dos ocupantes das mesas. Sem dúvida, nos tempos normais de paz, uma nota mundana, sub-reptícia enviada ao Fígaro ou ao Gaulois, teria comunicado a mais pessoas do que poderia conter a sala de jantar do Majestic, que Brichot jantara com a duquesa Duras. Mas desde a guerra, tendo os cronistas mundanos suprimido esse de informações (eles se desforravam nos enterros, nas citações e nos franco-americanos), a publicidade só podia existir por meio desse expediente hostil e restrito, digno das eras primitivas e anterior à descoberta de Gutenberg visto à mesa da Sra. Verdurin. Depois do jantar, subia-se para os salões e então os telefonemas começavam. Mas, naquela época, muitos dos grandes que estavam cheios de espiões que anotavam as notícias transmitidas por com uma indiscrição, felizmente corrigida apenas pela inexatidão dos seus nomes, sempre desmentidos pelos acontecimentos. 
   Antes da hora em que terminavam os chás, ao cair da tarde, no céu claro, viam-se ao longe pequenas manchas escuras que, no crepúsculo poderiam tomar por mosquitos ou passarinhos. Assim, quando se via uma andorinha muito ao longe, era possível confundi-la com uma nuvem. Mas e imaginar que essa nuvem é sólida, imensa e resistente. Assim, estava eu como por aquela mancha escura no céu estival, que não era nem mosquito nem passarinho, mas um aeroplano tripulado por homens que velavam sobre Paris. (A ação dos aeroplanos que tinha visto com Albertine no nosso último passeio de Versalhes, não entrava em nada nessa emoção, pois a lembrança desse passeio se me tornara indiferente.)
   À hora do jantar, os restaurantes estavam cheios; e, se, passando nestes eu via um pobre soldado de licença, livre por seis dias do risco permanente da morte, e prestes a voltar para as trincheiras, deter seus olhos, por um instante, nas vidraças iluminadas, sofria como no hotel de Balbec, quando os pescadores observavam-me a comer, porém sofria ainda mais por saber que a miséria do soldado era maior que a dos pobres, pois abrangia todas as misérias, sendo mais ainda por ser mais resignada, mais nobre, e conhecia o sacudir filosófico de cara sem ódio, com o qual, pronto para retornar à guerra, ele murmurava, aos embusqués ao se acotovelarem para conservar em suas mesas: "Nem se diria que guerra por aqui."

*[Embusqués: gíria militar francesa, que designava o soldado que, tendo um emprego civil, era dispensado do serviço de caserna e do alistamento militar. (N. do T)]* 

   Depois, às nove e meia, quando ninguém tivera tempo de terminar o jantar, apagavam-se bruscamente todas as luzes, em obediência às ordens da polícia, e a nova arremetida dos embusqués, arrancando os soberanos aos lacaios do restaurante, onde eu havia jantado com Saint-Loup numa noite na qual a licença ocorrera às nove e trinta e cinco minutos, numa misteriosa penumbra de quarto onde se projeta a lanterna mágica, de sala de espetáculos que serve para exibir os filmes de um desses cinemas para os quais iam precipitar-se os que jantavam, homens e mulheres. Mas, depois dessa hora, para aqueles que, como eu, na noite da qual estou falando, jantavam em casa e saíam para ver os amigos. Paris era, ao menos em certos bairros, ainda mais escura que a Combray da minha infância; as visitas que se faziam, assumiam um ar de visitas de vizinhos no campo.

O Tempo Recuperado (As coisas eram de tal modo as mesmas)