terça-feira, 12 de agosto de 2025

Thomas Mann - A Montanha Mágica: “Operationes spirituales” (a)

Thomas Mann

A Montanha Mágica
 
Capítulo VI

“Operationes spirituales” 
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     Leo Naphta era natural de um lugarejo situado nas proximidades da fronteira entre a Galícia e a Volínia. Seu pai, do qual falava com respeito – sentindo evidentemente que já se distanciara bastante do mundo da sua origem para poder julgá-lo com benevolência – seu pai fora schochet, açougueiro ritual. Esse ofício era diferente – e quanto! – daquele que exercia o açougueiro cristão, um mero artífice e comerciante. O pai de Leo não era nem uma nem outra coisa. Era uma autoridade de caráter religioso. Examinado pelo rabino quanto à sua habilidade piedosa, autorizado por ele a abater, em conformidade com os preceitos do Talmude, o gado que a lei de Moisés considerava apto para esse fim, Elia Naphta, cujos olhos cheios de espiritualidade plácida haviam brilhado, segundo a descrição do filho, com um esplendor estelar, revelara ele próprio, em todo o seu ser, o cunho sacerdotal, uma solenidade que relembrava que a função de degolar animais coubera nos tempos antigos aos sacerdotes. Às vezes, Leo, ou Leib, como o chamavam na infância, tinha ocasião de ver o pai desempenhar-se das suas tarefas rituais, o que fazia no pátio, ajudado por um oficial enorme, um rapagão daquele tipo atlético que se encontra entre os judeus. Ao lado desse gigante, o frágil Elia, com a barba loura aparada em forma oval, parecia ainda mais delgado e mais franzino. E contra o animal atado e amordaçado, mas, não aturdido, o pai brandia a grande faca de schochet, abrindo-lhe um profundo talho à altura da vértebra cervical, enquanto o ajudante apanhava, em tigelas que se enchiam rapidamente, o sangue fumegante que brotava do corpo. O menino contemplava esse espetáculo com aquele olhar de criança, que muito além das aparências visíveis penetra até a sua essência, e que o filho de Elia, o dos olhos estelares, deve ter possuído em grau incomum. Sabia Leo que os açougueiros cristãos tinham a obrigação de atordoar os animais com um golpe de maceta ou de machado, antes de matá-los, e que essa prescrição lhes era imposta a fim de evitar ao gado um tratamento torturante e impiedoso. Seu pai, por sua vez, embora muito mais delicado e muito mais sábio do que aqueles lorpas, e ainda dotado de olhos estelares como nenhum deles, procedia conforme a lei, dando o golpe mortal à rês não aturdida e deixando-a derramar o seu sangue até cair exausta. O menino Leib percebia instintivamente que o método desses grosseiros goim era inspirado por uma bondade fácil e profana, e que dessa forma não se prestava ao ato sagrado a mesma honra que ele gozava em virtude do rigorismo solene do rito paterno. O conceito da devoção ligava se, no seu íntimo, ao da crueldade, assim como na sua imaginação o aspecto e o cheiro do sangue a jorrar acompanhavam a ideia do sagrado e do espiritual. Pois compreendia perfeitamente que o pai não se devotara ao seu ofício sanguinário pelo mesmo gosto brutal que talvez determinasse a escolha de robustos rapazes cristãos e do seu próprio ajudante; motivos espirituais haviam-no influenciado, apesar do seu físico frágil, e em harmonia com os seus olhos estelares.
     Com efeito, Elia Naphta era um sonhador e um pensador; não se limitava a estudar a Tora, mas também interpretava a Escritura, cujas máximas discutia com o rabino, altercando com ele não raras vezes. Na região, e não somente entre os seus correligionários, era considerado homem extraordinário, que sabia mais do que os outros, em parte devido à sua piedade, em parte também graças a conhecimentos suspeitos, talvez, e em todo caso contrários, à ordem natural das coisas. Havia nele um quê de irregularidade sectária, algo de um confidente de Deus, de um Baal Chem ou Zaddik, quer dizer, um taumaturgo, tanto mais que realmente curara certa feita uma mulher de uma erupção maligna, e em outra ocasião, um garoto de convulsões, e tudo isso por meio de sangue e de versículos. Mas foi precisamente esse nimbo de uma piedade um tanto ousada, no qual o cheiro de sangue da sua profissão desempenhava o seu papel, que se tornou a causa da sua perdição. Em consequência de um motim e de uma irrupção ,da fúria popular, provocada pela morte não esclarecida de duas crianças cristãs, Elia foi trucidado de forma horrorosa: encontraram-no crucificado, fixo com cravos à porta da sua casa incendiada. Sua esposa, tísica e acamada, abandonou em seguida o país, com os filhos, o menino Leib e seus quatro irmãozinhos, todos se lamentando e gemendo, de braços erguidos ao céu.
     Graças à previdência de Elia, a família não estava inteiramente desprovida de recursos. Encontraram asilo numa cidadezinha do Vorarlberg. Ali a Srª. Naphta se empregou numa fiação de algodão, onde trabalhou enquanto as suas forças lhe permitiram, e os filhos mais velhos frequentaram a escola primária. Mas se a sabedoria ministrada por esse estabelecimento bastava ao talento e às necessidades dos irmãos de Leo, absolutamente não se dava o mesmo com ele. Herdara da mãe o germe da doença pulmonar, e do pai, além da compleição delgada, um discernimento fora do comum, dons intelectuais que desde cedo andavam unidos com instintos altivos, com a ambição do sublime, com a nostalgia angustiosa de formas de vida mais aristocráticas, e lhe infundiam o desejo apaixonado de elevar-se acima da esfera da sua origem. Fora da escola, o adolescente de catorze ou quinze anos formava o seu espírito de modo impaciente e descontrolado, por meio de livros que soube arranjar e com os quais nutria a inteligência. Pensava coisas e manifestava ideias que induziam a mãe a encolher a cabeça entre os ombros e a levantar ao céu as magras mãos espalmadas. Pela sua índole e pelas suas respostas chamou durante o ensino religioso a atenção do rabino distrital, homem pio e erudito, que o escolheu para aluno particular e lhe satisfez a predileção formal com aulas de hebraico e de línguas clássicas, e a ânsia de lógica com ensinamentos matemáticos. Mas a solicitude do homem foi muito mal recompensada. Evidenciou-se cada vez mais nitidamente que ele acolhera uma serpente em seu seio. Repetiram-se as contendas que outrora houvera entre Elia Naphta e seu rabino; não se puseram de acordo; entre o professor e o discípulo surgiram divergências religiosas e filosóficas que se agravavam de forma crescente, e o honrado teólogo muito teve que sofrer em virtude da insubmissão intelectual do jovem Naphta, da sua tendência crítica e cética, do seu espírito de contradição e da sua dialética afiada. Acrescia a isso o fato de que a sutileza e a rebeldia intelectual de Leo acabavam de assumir um caráter revolucionário. O contato com o filho de um deputado socialista do Reichsrat e com o próprio representante popular haviam orientado para a política o espírito do adolescente e imprimido o rumo da crítica social à sua paixão pela lógica. Leo ousou manifestar ideias que fizeram eriçar-se os cabelos do bom talmudista, orgulhoso da sua própria lealdade, e que finalmente desmancharam a amizade entre o professor e o aluno. Numa palavra, as coisas chegaram ao ponto de Naphta ser amaldiçoado pelo seu mestre e definitivamente expulso do seu gabinete de estudos. Isso sucedeu justamente na época em que sua mãe, Rakel Naphta, estava agonizante.
     Também por esse tempo, imediatamente após o transpasse da mãe, Leo travou conhecimento com o Padre Unterpertinger. O jovem de dezesseis anos estava sentado, solitário, num banco do parque de Margaretenkopf, numa colina situada a oeste da cidadezinha, à beira do Ill, donde se descortinava uma vista ampla e alegre sobre o vale do Reno. Achava-se ali, absorto em sombrios e amargos pensamentos quanto ao seu destino e futuro, quando um professor do Instituto Jesuítico Stella Matutina, ao passear pelo parque, sentou-se a seu lado, pôs o chapéu no banco, cruzou as pernas sob a sotaina de padre secular, e após ter lido algumas páginas do seu breviário, entabulou uma conversa que se tornou muito animada e estava fadada a decidir a sorte de Leo. O jesuíta, homem experiente, de trato afável, pedagogo apaixonado, bom psicólogo e hábil pescador de almas, aguçou o ouvido, desde as primeiras frases, articuladas com sarcástica clareza, que o mísero judeuzinho proferia em resposta às suas perguntas. Sentiu nelas o sopro de uma espiritualidade aguda e atormentada, e penetrando mais a fundo, topou com uma sabedoria e uma elegância maliciosa do pensamento que o exterior maltrapilho do rapaz apenas tornava mais surpreendentes. Falaram de Marx, cujo Capital Leo Naphta estudara numa edição popular, e daí passaram para Hegel, do qual ou sobre o qual o jovem também lera o suficiente para formular algumas observações incisivas. Fosse por uma inclinação geral para o paradoxo, fosse devido à intenção de agradar, chamou Hegel de “pensador católico”; quando o padre, sorrindo, lhe perguntou em que se fundava essa opinião, uma vez que Hegel, na sua qualidade de filósofo oficial da Prússia, devia ser considerado lógica e essencialmente como protestante, replicou o jovem que as próprias palavras “filósofo oficial” confirmavam que, no sentido religioso, embora naturalmente não no sentido eclesiástico-dogmático, a sua afirmação da catolicidade de Hegel estava certa. Pois – Naphta gostava muitíssimo dessa conjunção que na sua boca adquiria um caráter triunfal e inexorável e fazia-lhe os olhos relampejar atrás dos óculos, cada vez que tinha oportunidade de inseri-las nas suas deduções – pois o conceito da política se achava psicologicamente ligado ao do catolicismo; formavam eles uma categoria que abrangia tudo quanto era objetivo, operante, ativo, realizador, e produzia efeitos exteriores. A essa categoria opunha-se a esfera pietista, protestante, que tinha a sua origem na mística. No jesuitismo – acrescentou —, tornava-se evidente a natureza política e pedagógica do catolicismo. Essa ordem sempre considerara seu domínio a estadística e a educação. E citou Goethe, que, embora arraigado do pietismo e indiscutivelmente protestante, tinha um forte cunho católico, em virtude do seu objetivismo e da sua doutrina de ação, chegando a defender a confissão auricular e mostrando-se quase jesuíta como educador.
     Não importa que Naphta tivesse dito essas coisas, por acreditar nelas, ou por achá-las espirituosas, ou finalmente na intenção de comprazer ao seu interlocutor, como faz um homem pobre que deve lisonjear e calcula com precisão o que lhe pode ser útil ou prejudicial. Fosse como fosse, o padre preocupou-se menos com o valor verdadeiro dessas palavras do que com a inteligência geral que elas documentavam. A conversa foi continuada, e dentro em pouco o jesuíta conhecia a situação particular de Leo. A entrevista terminou com um convite de Unterpertinger para que Naphta o visitasse no instituto.
     Destarte aconteceu que Naphta pôs os pés no solo do Stella Matutina, cujo nível científica e socialmente elevado desde muito o atraía. E mais do que isso: graças ao rumo que as coisas acabavam de tomar, obteve um novo mestre e protetor, mais disposto do que o anterior a lhe apreciar e estimular a índole; um mentor cuja bondade, fria por natureza, baseava-se no conhecimento do mundo, e em cujo circulo de vida o jovem anelava penetrar. Semelhante a muitos judeus talentosos, Naphta tinha um instinto ao mesmo tempo revolucionário e aristocrático; era socialista e também dominado pelo sonho de participar de uma forma de vida soberba, distinta, exclusiva e ordenada. A primeira manifestação que lhe inspirara a presença de um teólogo católico fora, embora se apresentasse sob a forma de pura análise comparativa, uma declaração de amor à Igreja Romana, que se lhe afigurava como uma potência nobre e espiritual, quer dizer antimaterial, contrária à realidade hostil do mundo, e portanto revolucionária. Essa homenagem era sincera e tinha raízes no fundo do seu ser: como ele próprio explicava, o judaísmo, graças à sua orientação terrena e objetiva, graças ao seu caráter socialista e à sua espiritualidade política, achava-se muito mais próximo da esfera católica, era infinitamente mais congênere dela, do que o protestantismo na sua mania de ensimesmar-se e na sua subjetividade mística. Assim, a conversão de um judeu à religião católica representava, do ponto de vista da Igreja, um processo muito mais fácil do que a de um protestante.
     Separado do pastor da sua comunidade religiosa de origem, órfão, desamparado, e ainda ansioso por respirar um ar mais puro, por gozar o estilo de vida que lhe cabia devido ao seu talento, Naphta, que desde havia algum tempo atingira a idade legal que o capacitava para escolher a sua religião, estava tão impaciente por consumar o ato da conversão, que o seu “descobridor” podia dispensar o menor esforço no sentido de conquistar essa alma, ou melhor, esse cérebro extraordinário, para o mundo da sua confissão. Já antes de receber o sacramento do batismo, Naphta encontrara, através da influência do padre, asilo provisório no Stella Matutina, que lhe garantia o seu alimento material e intelectual. Domiciliou-se ali, abandonando, com a maior equanimidade e com a insensibilidade de um aristocrata do espírito, os seus irmãos mais moços à caridade pública e àquele destino que eles mereciam em virtude dos seus dons medíocres.
     As terras do educandário eram tão extensas quanto os seus edifícios, que podiam abrigar aproximadamente quatrocentos alunos. O conjunto abrangia bosques e prados, meia dúzia de campos de jogo, celeiros, estábulos para centenas de vacas. O instituto era ao mesmo tempo um pensionato, uma granja-modelo, uma academia de esportes, uma escola de sábios e um templo das musas; pois, sem cessar, havia representações teatrais e concertos. A vida era senhoril e claustral. A disciplina, a elegância, a alegria discreta, a espiritualidade, a cultura esmerada, a precisão do variadíssimo programa diário – tudo isso afagava os instintos mais profundos de Leo. O moço transbordava de felicidade. Ministravam-lhe excelentes manjares num vasto refeitório, onde o silêncio era de regra, assim como nos corredores do estabelecimento, em cujo centro um jovem prefeito, sentado numa cátedra elevada, lia em voz alta para os alunos que tomavam a refeição. O zelo que Naphta desenvolvia nos estudos era ardente, e apesar da sua debilidade física fazia toda espécie de esforços para não se deixar superar, à tarde, nos jogos desportivos. A devoção com que todas as manhãs assistia à primeira missa e participava do ofício dominical devia causar prazer aos padres pedagogos. Seu comportamento e suas maneiras satisfaziam-nos da mesma forma. Nos dias de festa, pela tarde, depois de comer doces e beber vinho, ia passear, trajando o uniforme cinzento e verde, com o colarinho engomado, boné e barras nas calças.
     Sentia-se deslumbrado de gratidão diante das considerações com que eram tratados a sua origem, o seu cristianismo recente e a sua situação particular em geral. Ninguém parecia saber que ele se beneficiava de uma bolsa. O regulamento da casa desviava a atenção dos companheiros do fato de ele não ter nem família nem pátria. Quanto à remessa de víveres ou guloseimas existia uma proibição geral. Encomendas que chegavam apesar disso eram repartidas entre todos, e também Leo recebia a sua parte. O cosmopolitismo da instituição impedia que a sua origem racial aparecesse de modo evidente. Existiam ali jovens provenientes de terras longínquas, sul americanos de raça lusa, cujo aspecto era mais “judeu” do que o de Leo, e dessa forma o conceito deixou de subir à tona. O príncipe etíope que entrara ao mesmo tempo que Naphta era até um negro típico, com cabelos lanosos, e contudo sumamente distinto.
     Na classe de retórica, Leo manifestou o desejo de estudar teologia, para que pudesse um dia pertencer à ordem, se é que fosse julgado digno. Isso teve por consequência que a sua bolsa foi transferida do segundo internato, onde o regime era mais modesto, para o primeiro. Agora era servido à mesa por criados, e seu cubículo no dormitório achava-se situado entre o de um nobre silesiano, o Conde von Harbuval e Chamaré, e o do Marquês di Rangoni-Santacroce, de Modena. Passou brilhantemente pelos exames e, fiel aos seus propósitos, abandonou o educandário e mudou-se para o noviciado na vizinha aldeia de Tisis, onde passou a levar a vida de humildade obediente, de subordinação muda e de adaptação religiosa, vida que lhe proporcionava prazeres espirituais no sentido das concepções fanáticas de épocas distantes.
     Nesse meio tempo, a sua saúde sofreu um abalo, menos por causa do rigor da vida de noviço, que não carecia de oportunidades para fortalecer o corpo, do que em virtude de processos que se desenvolviam no seu íntimo. A sutileza e a sagacidade dos processos pedagógicos de que ele era objeto iam ao encontro dos seus talentos particulares, e ao mesmo tempo provocavam-nos. Durante as operações espirituais às quais consagrava os seus dias e ainda parte das suas noites, no curso de todos esses exames de consciência, contemplações, ponderações e introspecções, enredava-se ele, devido a uma paixão maliciosa pela contenda, em milhares de dificuldades, contradições e dúvidas. Leo era o desespero, e também a grande esperança, do diretor dos seus exercícios, a quem cossava dia a dia com sua fúria dialética e sua falta de ingenuidade... “Ad haec quid tu?”, perguntava, com as lentes dos óculos cintilando. E o padre, posto contra a parede, não tinha outro recurso senão recomendar-lhe a prece, para que conseguisse a tranquilidade do coração, ut in aliquem gradum quietis in anima perveniat. Mas, essa “tranquilidade” consistia, quando obtida, num completo embotamento da vida individual e na redução fatal a um mero instrumento, era a paz de um cemitério do espírito, cujos sinistros sinais exteriores Naphta podia muito bem estudar entre os seus companheiros em mais de uma fisionomia de olhar parado, e que ele mesmo nunca lograria alcançar por outro caminho que não o da ruína corporal.
     Fala em favor do nível intelectual dos seus superiores que essas reservas e objeções não diminuíam a estima que Naphta gozava junto deles. O próprio padre provincial chamou-o pelo fim dos dois anos de noviciado, conversou com ele e autorizou-lhe a admissão na ordem. O jovem escolástico, que recebera quatro ordenações inferiores – as do porteiro, do acólito, do leitor e do exorcista – e também fizera os votos “simples”, ficou assim pertencendo definitivamente à Companhia. Partiu para o colégio de Falkenburgh, na Holanda, a fim de se dedicar aos estudos de teologia.
    Tinha então vinte anos, e nos três anos seguintes, sob a influência de um clima prejudicial e de excessivos esforços intelectuais, o mal hereditário realizou tamanhos progressos, que sua permanência no colégio só teria sido possível com perigo de vida. Uma hemoptise que sofreu alarmou os seus superiores, e depois de ele se achar durante semanas inteiras entre a vida e a morte, enviaram o jovem precariamente restabelecido ao lugar donde viera. No mesmo estabelecimento onde fora educado, encontrou Leo uma colocação como prefeito, vigilante dos alunos e professor de humanidades e filosofia. Esse interlúdio fazia parte do regulamento, só que normalmente depois de poucos anos de serviço se voltava ao colégio, para prosseguir e concluir os sete anos de estudos teológicos. Isso não foi dado ao Irmão Naphta. Ele continuava enfermo. O médico e os superiores julgaram que o serviço nesse lugar, com o seu ar saudável, a companhia dos alunos, e as ocupações agrícolas eram o que lhe convinha por enquanto. Naphta recebeu a primeira ordenação superior e obteve assim o direito de cantar a Epístola na missa solene dos domingos – direito que ele não exercia, em primeiro lugar porque lhe faltava por completo o talento musical, e em segundo, por causa da doença, que lhe tornava a voz esganiçada e fazia-a pouco apta para cantar. Não progrediu além do subdiaconato. Não alcançou o diaconato, tampouco a ordenação sacerdotal. Como a hemoptise se repetisse e a febre não desse mostras de ceder, teve que submeter-se, à custa da ordem, a um tratamento prolongado. Instalara-se em Davos, onde se encontrava fazia mais de cinco anos. Mal se podia falar de um tratamento, senão de uma condição fixa da sua existência, que exigia atmosfera rarefeita, e que alguma atividade como professor de latim no ginásio dos enfermos tornava menos penosa...
    Essas coisas, além de outros pormenores, chegavam ao conhecimento de Hans Castorp pela boca do próprio Naphta, quando o visitava na sua cela forrada de seda, ora sozinho, ora acompanhado dos seus comensais Ferge e Wehsal, que apresentara ao seu anfitrião, ou quando o encontrava num passeio e regressava junto com ele até a “aldeia”. Ia conhecendo esses detalhes ao acaso, em fragmentos ou sob a forma de narrativas coesas, e não somente os achava extraordinariamente interessantes, mas também incitava Ferge e Wehsal a considerá-los sob o mesmo prisma, o que de fato acontecia. Verdade é que o primeiro nunca deixava de acrescentar a restrição de não entender de coisas sublimes (uma vez que unicamente a experiência do choque pleural o elevara acima das mais humildes entre as contingências humanas). Wehsal, porem, regozijava-se visivelmente com a carreira afortunada de um homem outrora opresso pelo destino, essa carreira que agora, como para abater qualquer soberba, se via interrompida e parecia encalhar no mal físico que eles tinham em comum.
     Hans Castorp, por sua vez, lamentava essa estagnação e recordava com orgulho e desassossego o honrado Joachim, que num esforço heroico rasgara a rede resistente da retórica de Radamanto e desertara para a sua bandeira, a cuja haste – segundo imaginava o jovem – devia estar agarrado, erguendo três dedos da mão direita para prestar o juramento de fidelidade. Também Naphta tinha uma bandeira à qual jurara, e sob cuja proteção se encontrava, como ele mesmo dizia, ao informar Hans Castorp acerca da organização da ordem; mas, manifestamente, em vista de todas as suas reservas e combinações, era-lhe menos fiel do que Joachim à sua. O civil Hans Castorp, amigo da paz, sempre que escutava o antigo ou futuro jesuíta, sentia, contudo, consolidada a sua opinião de que cada um dos dois devia olhar com simpatia a profissão do outro e perceber o parentesco estreito que existia entre ela e a própria. Eram castas militares, tanto uma como a outra, e isso sob muitos aspectos, o do ascetismo e o da hierarquia, o da obediência e o do pundonor espanhol. Este último desempenhava um papel importantíssimo na ordem de Naphta, que tinha a sua origem na Espanha, e cuja regra de exercícios espirituais, espécie de precursora do regulamento que Frederico da Prússia deu à infantaria, era, na sua forma original, redigida em espanhol. Por isso ocorria frequentemente a Naphta empregar termos espanhóis nas suas narrativas e explicações. Falava então das dos banderas em torno das quais os exércitos se agrupavam para a grande batalha, o do Inferno e o da Igreja, um na região de Jerusalém, chefiado por Cristo, o capitán general de todos os justos, e o outro na planície da Babilônia, onde Lúcifer exercia o cargo de caudillo ou chefe de bando...
     Não era o Instituto Stella Matutina uma verdadeira escola de cadetes, cujos alunos, distribuídos em “divisões”, iam sendo orientados no sentido honroso de uma bienséance militar e clerical, que representava, por assim dizer, uma combinação de “colarinho engomado” e “golilha espanhola”? As ideias da honra e da distinção, que na classe de Joachim desempenhavam tão brilhante papel, com quanta nitidez – assim pensava Hans Castorp – não apareciam naquela que Naphta desgraçadamente tivera de abandonar devido à doença! A crer nele, a ordem compunha se exclusivamente de oficiais ambiciosos, cujo único pensamento era distinguir-se no serviço. (Insignes esse, dizia-se em latim.) Segundo a doutrina e o regulamento do fundador e primeiro geral, o espanhol Loyola, tais homens prestavam serviços maiores, serviços mais grandiosos do que todos aqueles que agiam guiados pela mera razão. Realizavam a sua obra ex superrogatione, indo além do seu dever; não se limitavam a resistir à rebelião da carne (rebellioni carnis), o que não passava, em suma, daquilo que faz todo homem dotado de mediano bom senso, mas também combatiam as tendências para a sensualidade, o egoísmo e o amor às coisas mundanas, até em assuntos que geralmente eram considerados lícitos. Pois agir em detrimento do inimigo (agere contra), quer dizer, atacar, era mais honroso e mais importante do que apenas defender-se (resistere). “Debilitar e desbaratar o inimigo”, rezava o regulamento de campanha, e mais uma vez o seu autor, o espanhol Loyola, estava plenamente de acordo com o capitán general de Joachim, o prussiano Frederico e sua máxima estratégica: “Atacar, atacar! Não dar tréguas ao inimigo! Attaquez donc toujours!”
     Mas o que os mundos de Naphta e de Joachim tinham em comum, antes de mais nada, era a relação com o sangue e o axioma de que não se devia impedir a mão de derramá-lo; nisso, sobretudo, concordavam estritamente, como mundos, como ordens e como classes, e a um amigo da paz parecia notável o que Naphta contava de tipos de monges-guerreiros da Idade Média, que, ascetas até o esgotamento e no entanto ávidos de poder espiritual, não haviam poupado sangue no seu esforço de estabelecer a Cidade de Deus e o reino do sobrenatural; falava dos belicosos templários que julgavam mais meritório morrer na luta contra os infiéis do que na cama, e para os quais matar ou ser morto por amor a Jesus não era crime, senão glória suprema. Ainda bem que Settembrini não estava presente quando Naphta expôs essas ideias! Caso contrário, não teria deixado de fazer o papel de tocador de realejo desmancha-prazeres e de fazer soar a flauta pastoril da paz, não obstante o seu próprio projeto de guerra santa, nacional, civilizadora, contra Viena, que ele absolutamente não rejeitava, ao passo que o sarcasmo e a mordacidade de Naphta castigavam de preferência essa paixão e esse fraco do seu adversário. Cada vez que o italiano se inflamava por esse gênero de sentimentos, o outro lhe opunha um cosmopolitismo cristão, chamando todos os países, e ao mesmo tempo nenhum, de sua pátria e repetindo em voz cortante a frase de um geral da sua ordem, de nome Nickel, segundo o qual o patriotismo era “uma peste e a morte certa do amor cristão”.
     Lógico que era em nome do ascetismo que Naphta tratava de peste o amor à pátria – pois, quanta coisa não encerrava esse termo, aos seus olhos, quanta coisa não contrariava, segundo a sua opinião, a ascética e o reino de Deus! Isso não somente se aplicava ao afeto à família e ao lar, mas também ao apego à saúde e à vida. Era precisamente por eles que Naphta censurava o humanista, quando este encomiava a paz e a felicidade; num tom rixoso, acusava-o de amor carnalis, de amor ao conforto do corpo, commodorum corporis, e declarava à queima-roupa que conceder a menor importância à vida e à saúde demonstrava a impiedade de pequenos burgueses.

continua pág 292...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
“Operationes spirituales”(a)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

segunda-feira, 11 de agosto de 2025

Cinema Cult: Amarcord

Amarcord (1973) 

FEDERICO FELLINI

"Através dos olhos de Titta, um garoto impressionável, o diretor dá uma olhada na vida familiar, religião, educação e política dos anos 30, quando o fascismo era a ordem dominante. Entre os personagens estão o pai e a mãe de Titta, que estão constantemente batalhando para viver, além de um padre que escuta confissões só para dar asas à sua imaginação anticonvencional."

Amarcord é a contração de me a m'arcord, que no dialeto da Romanha significa: recordo-me.

 
Comédia/Drama




Estrelando: 
Alvaro Vitali | Beppo
Antonino Faà di Bruno | Count of  Lovigna
Aristide Caporale | Giudizio
Armando Brancia | Aurelio Biondi 
Bruno Scagnetti | Ovo
Bruno Zanin | Tita 
Ciccio Ingrassia | Teo
Ferdinando Villella | Fighetta
Ferruccio Brembilla | Fascist
Gennaro Ombra | Biscein
Gianfilippo Carcano | Don Balosa
Giuseppe Ianigro | Titta's Grandfather
Josiane Tanzilli | Volpina
Luigi Rossi | 
Magali Noël | Gradisca
Marcella Di Folco | Prince
Maria Antonietta Beluzzi | Tobacconist
Nando Orfei | Lallo
Nella Gambini | Aldina Cordini
Pupella Maggio | Miranda Biondi
Stefano Proietti | Oliva

Direção: 
Amarcord

Hannah Arendt - Origens do Totalitarismo: Parte II Imperialismo (1.2 - O Poder e a Burguesia)

Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt

Parte II 
IMPERIALISMO

Se eu pudesse, anexaria os planetas. 
Cecil Rhodes 

1. A Emancipação Política da Burguesia

     1.2 - O Poder e a Burguesia
          O que os imperialistas realmente desejavam era a expansão do poder político sem a criação de um corpo político. A expansão imperialista havia sido deflagrada por um tipo curioso de crise econômica: a superprodução de capital e o surgimento do dinheiro "supérfluo", causado por um excesso de poupança, que já não podia ser produtivamente investido dentro das fronteiras nacionais. Pela primeira vez o investimento de poderio não abria o caminho ao investimento de dinheiro, mas a exportação do poder acompanhava os caminhos do dinheiro exportado, seguindo-o de perto, visto que investimentos incontrolados nos países distantes ameaçavam transformar as vastas camadas da sociedade em meros jogadores, mudar toda a economia capitalista de sistema de produção para um sistema de especulação financeira, e substituir os lucros da produção por lucros de comissão. Na década imediatamente anterior à era imperialista, os anos 70 do século XIX, aumentaram de fato — e sem precedentes — as falcatruas, os escândalos financeiros e a jogatina no mercado de ações.
     Os pioneiros desses eventos pré-imperialistas foram aqueles financistas judeus que haviam conseguido fortunas fora do sistema capitalista, após serem necessários para empréstimos internacionalmente garantidos aos Estados-nações em desenvolvimento.[33] Durante séculos, eles ganharam dinheiro em comissões e foram naturalmente os primeiros a serem tentados e convidados a investir no exterior o capital que já não podia ser investido com lucros no mercado doméstico, onde, ademais, o firme estabelecimento do sistema fiscal, que proporcionava aos governos uma situação financeira mais saudável, ameaçava esse grupo com a completa extinção. Os financistas judeus pareciam, de fato, especialmente adequados a operações comerciais de natureza essencialmente internacional.[34] Além do mais, os próprios governos, dos quais alguma forma de auxílio era necessária para investimentos em países distantes, tenderam de início a preferir os tradicionais financistas judeus, muito mais conhecidos, do que os neófitos das finanças internacionais, entre os quais ainda abundavam os aventureiros.
    Depois que os financistas haviam aberto os canais da exportação de capital para a riqueza supérflua, condenada à ociosidade dentro da estreita estrutura da produção nacional, verificou se que os acionistas ausentes não queriam correr os tremendos riscos relativos ao aumento dos seus lucros, embora este fosse igualmente tremendo. Mesmo dispondo da benevolente assistência do Estado, os financistas não eram bastante fortes para proteger-se contra esses riscos: só a força material do Estado poderia fazê-lo.
     Logo que se tornou claro que a exportação de dinheiro teria de ser seguida pela exportação da força do governo, a posição dos financistas em geral, e dos financistas judeus em particular, enfraqueceu consideravelmente, e a liderança das transações e empreendimentos comerciais imperialistas passou gradualmente aos membros da burguesia autóctone. A esse respeito, é muita instrutiva a carreira de Cecil Rhodes na África do Sul: embora recém-chegado, pôde em poucos anos levar a melhor sobre os onipotentes financistas judeus. Na Alemanha, Bleichroeder, que, em 1885, havia ainda sido co-fundador da Ostafri-kanische Gesellschaft (Companhia da África Oriental), foi suplantado, juntamente com o barão Hirsch, pelos futuros gigantes do empreendimento imperialista, a Siemens e o Deutsche Bank, quando a Alemanha iniciou a construção da estrada de ferro de Bagdá, catorze anos mais tarde. De certa forma, a hesitação do governo em delegar poder real aos judeus e a relutância destes em meter-se em negócios com implicações políticas coincidiram tão bem que, a despeito da grande riqueza do grupo judeu, não houve nenhuma luta pelo poder após o término do estágio inicial, quando os lucros provinham de especulações e comissões.
     Vários governos nacionais viam com apreensão a crescente tendência de fazer dos negócios uma questão política e de identificar os interesses econômicos de grupos, mesmo pequenos, com os interesses nacionais. Mas parecia que a única alternativa à exportação do poder era o sacrifício deliberado de grande parte da riqueza nacional. Só a expansão dos instrumentos nacionais de violência poderia racionalizar o movimento de investimentos no estrangeiro e reintegrar na economia da nação as desenfreadas especulações com p capital supérfluo, desviado para um jogo que tornava arriscadas as poupanças. O Estado expandiu o seu poder porque, dada a escolha entre as perdas (maiores do que poderia aguentar a estrutura econômica de qualquer país) e os lucros (maiores do que qualquer povo sonharia obter), só podia escolher estes últimos.
     A primeira conseqüência da exportação do poder foi esta: os instrumentos de violência do Estado, a polícia e o Exército — que na estrutura da nação, existindo ao lado das demais instituições nacionais, eram controlados por elas —, foram delas separados e promovidos à posição de representantes nacionais em países fracos ou não-civilizados. Aqui, em regiões atrasadas, sem indústria e sem organização política, onde a violência campeava mais livre que em qualquer país europeu, as chamadas leis do capitalismo tinham permissão de criar novas realidades. O desejo da burguesia de fazer com que o dinheiro gerasse dinheiro como homens geravam homens não passava de um sonho: o dinheiro tinha de percorrer longo caminho desde o investimento na produção; o dinheiro não gerava dinheiro — os homens é que faziam coisas e dinheiro. O segredo do sucesso estava precisamente no fato de terem sido eliminadas as leis econômicas para não barrarem o caminho à cobiça das classes proprietárias. O dinheiro podia, finalmente, gerar dinheiro porque a força, em completo desrespeito às leis — econômicas e éticas —, podia apoderar se de riquezas. O dinheiro exportado só pôde realizar os desígnios de seus proprietários quando conseguiu estimular e concomitantemente exportar a força. Somente o acúmulo ilimitado de poder podia levar ao acúmulo ilimitado de capital.
     Os investimentos estrangeiros — exportação de capital que havia começado como medida de emergência — tornaram-se característica permanente de todos os sistemas econômicos exportadores da força. O conceito imperialista de expansão, de acordo com o qual a expansão é por si mesma um fim e não um meio temporário, foi introduzido no pensamento político quando se tornou óbvio que uma das mais importantes funções permanentes do Estado-nação seria a expansão do poder. Os administradores da violência, empregados pelo Estado, logo formaram uma nova classe dentro das nações e, embora seu campo de atividade fosse tão distante do país de origem; eles chegaram a exercer importante influência no corpo político doméstico. Como não passavam realmente de funcionários da violência, só podiam pensar em termos de política de força. Foram os primeiros a proclamar, como classe e à base de sua experiência diária, que a força é a essência de toda estrutura política.
     O novo enfoque dessa filosofia política, já imperialista, não está no destaque que ela dava à violência, nem na descoberta de que a força é uma das realidades políticas básicas. A violência sempre foi a ultima ratio na ação política, e a força sempre foi a expressão visível do domínio e do governo. Mas nem uma nem outra constituíram antes o objetivo consciente do corpo político ou o alvo final de qualquer ação política definida. Porque a força sem coibição só pode gerar mais força, e a violência administrativa em benefício da força — e não em benefício da lei — torna-se um princípio destrutivo que só é detido quando nada mais resta a violar.
     Contudo, essa contradição, inerente em todas as consequências políticas de força, parece fazer sentido quando vista no contexto de um processo supostamente permanente sem outro fim ou objetivo a não ser ele próprio. Nesse caso, tudo perde o significado, a não ser a própria força como motor indestrutível e auto alimentador de toda ação política, correspondente à lendária acumulação incessante de dinheiro que gera dinheiro. O conceito de expansão ilimitada como único meio de realizar a esperança de acúmulo ilimitado de capital, que traz um despropositado acúmulo de força, torna quase impossível a fundação de novos corpos políticos — que até a era do imperialismo sempre resultavam da conquista. De fato, sua consequência lógica é a destruição de todas as comunidades socialmente dinâmicas, tanto dos povos conquistados quanto do próprio povo conquistador. Porque, se toda a estrutura política, nova ou velha, desenvolve naturalmente as forças estabilizadoras que se opõem à sua transformação, todos os corpos políticos parecem obstáculos temporários, quando vistos como parte da eterna corrente do acúmulo de poder.
     Os administradores do poder nessa era passada de imperialismo moderado nem ao menos tentaram incorporar os territórios conquistados, mas preservaram a organização política atrasada ali existente, como se mantêm ruínas carentes da vida palpitante; os seus sucessores totalitários, porém, dissolveram e destruíram todas as estruturas politicamente estabilizadas, as suas próprias e as desses outros povos. A mera exportação da violência transformava em senhores os servos — porque eram servos esses administradores — sem lhes dar a mais importante prerrogativa do senhor: a possível criação de algo novo. A concentração monopolista e o acúmulo de violência no país de origem tornavam os servos agentes ativos da destruição dos povos dominados, até que finalmente a expansão totalitária passou a ser uma força destruidora de povos e nações.
     A força tornou-se a essência da ação política e o centro do pensamento político quando se separou da comunidade política à qual devia servir. Ê verdade que isso foi provocado por um fator econômico. Mas a resultante introdução da força como único conteúdo da política, e da expansão como seu único objetivo, dificilmente teria obtido aplauso tão universal, nem a consequente dissolução do corpo político do país teria encontrado tão pouca oposição, se não correspondessem de ir do perfeito aos desejos ocultos e às convicções secretas das classes social e economicamente dominantes. A burguesia, que durante tanto tempo fora excluída do governo pelo Estado-nação e, por sua própria falta de interesse, das coisas públicas, emancipou-se politicamente através do imperialismo.
     O imperialismo deve ser considerado o primeiro estágio do domínio político da burguesia e não o último estágio do capitalismo. Sabe-se muito bem do pouco interesse demonstrado em exercer o poder pelas classes proprietárias pré-burguesas, que se contentavam com qualquer tipo de Estado, desde que lhe pudessem confiar a proteção da sua propriedade. Na verdade, para elas o Estado havia sido sempre uma força policial bem organizada. Essa falsa modéstia, contudo, teve a curiosa consequência de manter toda a classe burguesa fora do corpo político; antes de serem súditos numa monarquia ou cidadãos numa república, eram essencialmente pessoas privadas. Essa privatividade e a preocupação principal de ganhar dinheiro haviam gerado uma série de padrões de conduta que encontram expressão nos provérbios — "nada é tão bem-sucedido como o sucesso", "a força é o direito", "o direito é a conveniência" etc. — que são necessariamente frutos da experiência de uma sociedade competitiva.
     Quando, na era do imperialismo, os comerciantes se tornaram políticos e foram aclamados como estadistas, enquanto os estadistas só eram levados a sério se falassem a língua dos comerciantes bem-sucedidos e "pensassem em termos de continentes", essas práticas e mecanismos privados transformaram-se gradualmente em regras e princípios para a condução dos negócios públicos. É significativo que esse processo de reavaliação, iniciado no fim do século XIX e ainda em vigor, tenha começado com a aplicação de convicções burguesas aos negócios estrangeiros, e só lentamente tenha sido estendido à política doméstica. Assim, as nações interessadas mal perceberam que o desregramento que se introduzia na vida privada, e contra o qual a estrutura política sempre tivera de defender-se a si própria e aos seus cidadãos, estava a ponto de ser promovido ao posto de único princípio político publicamente reconhecido. É importante observar que os modernos adeptos da força estão em completo acordo com a filosofia do único grande pensador que jamais tentou derivar o bem público a partir do interesse privado e que, em benefício deste bem privado, concebeu e esboçou um Commonwealth cuja base e objetivo final é o acúmulo do poder. Hobbes é, realmente, o único grande filósofo de que a burguesia pode, com direito e exclusividade, se orgulhar, embora os seus princípios não fossem reconhecidos pela classe burguesa durante muito tempo. O Leviathan [35] de Hobbes expôs a única teoria política segundo a qual o Estado não se baseia em nenhum tipo de lei construtiva — seja divina, seja natural, seja contrato social — que determine o que é certo ou errado no interesse individual com relação às coisas públicas, mas sim nos próprios interesses individuais, de modo que "o interesse privado e o interesse público são a mesma coisa".[36]
     É difícil encontrar um único padrão moral burguês que não tenha sido previsto pela inigualável magnificência da lógica de Hobbes. Ele pinta um quadro quase completo não do Homem, mas do homem burguês, uma análise que em trezentos anos não se tornou antiquada nem foi suplantada. "A razão (...) é nada mais que cálculo"; "um súdito livre, uma vontade livre (...) [são] palavras (...) sem significado, isto é, um Absurdo". O homem é essencialmente uma função da sociedade e é, portanto, julgado de acordo com o seu "valor ou merecimento (...) seu preço; ou seja, aquilo que se lhe daria pelo uso da sua força". Esse preço é constantemente avaliado e reavaliado pela sociedade, fonte da "estima dos outros", de acordo com a lei da oferta e da procura.
     O poder, segundo Hobbes, é o controle que permite estabelecer os preços e regular a oferta e a procura de modo que sejam vantajosas a quem detém este poder. O indivíduo de início isolado, do ponto de vista da minoria absoluta, compreende que só pode atingir e realizar seus alvos e interesses com a ajuda de certa espécie de maioria. Portanto, se o homem não é realmente motivado por nada além dos seus interesses individuais, o desejo do poder deve ser a sua paixão fundamental. É esse desejo e poder que regula as relações entre o indivíduo e a sociedade e todas as outras ambições, porquanto a riqueza, o conhecimento e a fama são as suas consequências.
     Hobbes mostra que, na luta pelo poder, como na capacidade inata de desejá-lo, todos os homens são iguais, pois a igualdade do homem reside no fato de que cada um, por natureza, tem suficiente potencialidade para matar um outro, já que a fraqueza pode ser compensada pela astúcia. A igualdade coloca todos os homens na mesma insegurança; daí a necessidade do Estado. A raison d'être do Estado é a necessidade de dar alguma segurança ao indivíduo, que se sente ameaçado por todos os seus semelhantes.
     O traço crucial do retrato que Hobbes pinta do homem não está no seu pessimismo realista, porque, se fosse verdade que o homem é um ser como Hobbes o quer, não seria capaz de fundar qualquer corpo político. Na verdade, Hobbes não consegue, nem realmente procura, incorporar definitivamente esse ser numa comunidade política. O Homem de Hobbes não deve qualquer lealdade ao seu país se este for derrotado, e é desculpado de qualquer traição caso venha a ser feito prisioneiro. Aqueles que vivem fora da comunidade (os escravos, por exemplo) não têm nenhuma obrigação para com os que a compõem e podem matar tantos quantos quiserem; mas, ao contrário, "nenhum homem tem a liberdade de resistir à espada da comunidade em defesa de outro homem, culpado ou inocente", o que significa que não existe nem espírito de companheirismo nem responsabilidade entre os homens. O que os mantêm juntos é um interesse comum, como, por exemplo, "algum crime capital, pelo qual todos esperam ser punidos com a morte", tendo neste caso o direito "de se unirem, ajudando-se e defendendo-se uns aos outros. (...) Pois apenas defendem as suas vidas".
     Assim, a participação em qualquer forma de comunidade é para Hobbes temporária e limitada, e essencialmente não muda o caráter solitário e privado do indivíduo (que não tem "prazer, mas, ao contrário, muito desgosto em manter companhia, quando não há força para obrigá-lo a tanto"), nem cria laços permanentes entre ele e seus companheiros. O resultado é a inerente e confessada instabilidade da comunidade — Commonwealth — de Hobbes, cuja própria concepção prevê a sua ulterior dissolução: "quando numa guerra (estrangeira ou intestina) os inimigos obtêm a vitória final (...) então o Commonwealth é dissolvido, e cada homem tem a liberdade de se proteger a si mesmo". Essa instabilidade é surpreendente na teoria de Hobbes, na medida em que o seu objetivo primário é assegurar um máximo de segurança e estabilidade.
     Seria uma grave injustiça a Hobbes e à sua dignidade como filósofo considerar esse retrato do homem como tentativa de realismo psicológico ou verdade filosófica. O fato é que Hobbes não está interessado nem num nem noutra, mas se preocupa exclusivamente com a própria estrutura política e traça as feições do homem em função das necessidades do Leviatã. Para fins de argumento e convicção, apresenta seu esboço político partindo do desejo de poder pelo homem e passando para o plano do corpo político adaptado a essa sede de poder.
     Esse corpo político foi concebido para o uso da nova sociedade burguesa que emergia no século XVII, e esse quadro do homem é um esboço do novo tipo de Homem que se adequava a ele. O Commonwealth é baseado na delegação da força, e não do direito. Adquire o monopólio de matar e dá em troca uma garantia condicional contra o risco de ser morto. A segurança é proporcionada pela lei, que emana diretamente do monopólio de força do Estado (e não é estabelecida pelo homem segundo padrões humanos de "certo" e "errado"). Porque na lei do Estado não existe a questão de "certo" ou "errado", mas apenas a obediência absoluta, o cego conformismo da sociedade burguesa. E, como essa lei flui diretamente do poder que ela torna absoluto, passa a representar a necessidade absoluta aos olhos do indivíduo que vive sob ela.
     Despojado de direitos políticos,, o indivíduo, para quem a vida pública e oficial se manifesta sob o disfarce da necessidade, adquire o novo e maior interesse por sua vida privada e seu destino pessoal. Excluído da participação na gerência dos negócios públicos que envolvem todos os cidadãos, o indivíduo perde tanto o lugar a que tem direito na sociedade quanto a conexão natural com os seus semelhantes. Agora, só pode julgar sua vida privada individual comparando-a com a dos outros, e suas relações com os companheiros dentro da sociedade tomam a forma de concorrência. Numa sociedade de indivíduos, todos dotados pela natureza de igual capacidade de força e igualmente protegidos uns dos outros pelo Estado, que regula os negócios públicos e os problemas de convívio sob o disfarce da necessidade, somente o acaso pode decidir quem vencerá.[37]
     De acordo com os padrões burgueses, aqueles que são automaticamente destituídos de sorte e não têm sucesso são automaticamente excluídos da competição, que é a essência da vida da sociedade. A boa sorte é identificada com a honra e a má sorte com a vergonha. Transferindo ao Estado os seus direitos políticos, o indivíduo delega-lhe também suas responsabilidades sociais: pede ao Estado que o alivie do ônus de cuidar dos pobres, exatamente como pede proteção contra os criminosos. Não há mais diferença entre mendigo e criminoso — ambos estão fora da sociedade. Os que fracassam perdem a virtude que a civilização clássica lhes legou; os que são infelizes já não podem apelar à caridade cristã.
     Hobbes isenta os que são excluídos da sociedade — os fracassados, os infelizes, os criminosos — de qualquer obrigação em relação ao Estado e à sociedade, se o Estado não cuida deles. Podem dar rédea solta ao seu desejo de poder, e são até aconselhados a tirar vantagem de sua capacidade elementar de matar, restaurando assim aquela igualdade natural que a sociedade esconde apenas por uma questão de conveniência. Hobbes prevê e justifica que os prescritos sociais se organizem em bandos de assassinos, como consequência lógica da filosofia moral burguesa.
     Como a força é essencialmente apenas um meio para um fim, qualquer comunidade baseada unicamente na força entra em decadência quando atinge a calma da ordem e da estabilidade; sua completa segurança revela que ela é construída sobre a areia. O poder só é capaz de garantir o status quo adquirindo mais poder; só pode permanecer estável ampliando constantemente sua autoridade através do processo de acúmulo de poder. O Commonwealth de Hobbes é uma estrutura vacilante que está sempre precisando buscar novos esteios de fora; do contrário, ruiria imediatamente para a insensatez do caos de interesses privados de onde surgiu. Hobbes incorpora a necessidade de acumulação de poder à teoria do estado natural, à "condição de guerra perpétua" de todos contra todos, na qual os vários Estados mantêm com relação aos outros a posição que caracterizava os seus súditos antes de se submeterem à autoridade do Commonwealth .[38] Essa perene possibilidade de guerra garante ao Commonwealth uma esperança de permanência, porque torna possível ao Estado aumentar o seu poder à custa de outros Estados.
     Seria errôneo tomar por seu valor aparente a óbvia inconsistência entre o apelo de Hobbes em favor da segurança do indivíduo e a inerente instabilidade do seu Commonwealth. Novamente, ele tenta aqui persuadir, apelar a certos instintos básicos de segurança que, como ele sabia muito bem, podiam sobreviver nos súditos do Leviathan apenas sob a forma de absoluta submissão à força que "os intimida a todos", isto é, um medo esmagador e universal — que não é exatamente o sentimento básico do homem que se julga seguro. O ponto de partida de Hobbes é uma incomparável compreensão das necessidades políticas do novo corpo social da burguesia em ascensão, cuja crença fundamental num processo interminável de acúmulo de propriedade estava a ponto de eliminar toda segurança individual. Hobbes chegou às necessárias conclusões a partir da análise dos padrões de conduta social e econômica quando propôs mudanças revolucionárias na constituição política. Esboçou o novo corpo que corresponderia aos novos anseios e interesses da nova classe. O que realmente conseguiu foi retratar o homem segundo os padrões de conduta da futura sociedade burguesa.
     A insistência de Hobbes quanto ao poder como motor de todas as coisas humanas e divinas (até o reino de Deus sobre os homens "não provém de tê-los criado (...) mas do Poder Irresistível") se devia à proposição, teoricamente indiscutível, de que o infindável acúmulo de propriedade deve basear-se no infindável acúmulo de poder. O correlativo filosófico da instabilidade inerente de uma comunidade baseada na força é a imagem de um processo histórico infindável que, para ser consistente com o constante aumento de poder, envolve inexoravelmente os indivíduos, os povos e, finalmente, toda a humanidade. O processo ilimitado de acúmulo de capital necessita de uma estrutura política de "poder tão ilimitado" que possa proteger a propriedade crescente, tornando-a cada vez mais poderosa. Dado o fundamental dinamismo da nova classe social, é perfeitamente verdadeiro que "ela não pode garantir o poder e os meios de viver bem, que alcança num determinado instante, sem adquirir mais". A coerência dessa conclusão não é absolutamente afetada pelo fato de que, durante cerca de trezentos anos, não houve um soberano que "convertesse esta verdade especulativa em utilidade prática", nem uma burguesia com suficiente consciência política e maturidade econômica para adotar abertamente a filosofia do poder de Hobbes.
     Esse processo de constante acúmulo de poder, necessário à proteção de um constante acúmulo de capital, criou a ideologia "progressista" de fins do século XIX e prenunciou o surgimento do imperialismo. Não a tola ilusão de um crescimento ilimitado de propriedade, mas a compreensão de que o acúmulo de poder era o único modo de garantir a estabilidade das chamadas leis econômicas, tornou irresistível o progresso. A noção de progresso do século XVIII, tal como era concebido na França pré-revolucionária, pretendia que a crítica do passado fosse um meio de domínio do presente e de controle do futuro; o progresso culminava com a emancipação do homem. Mas essa noção tinha pouco ou nada em comum com a infindável evolução da sociedade burguesa, que não apenas não desejava a liberdade e autonomia do homem, mas estava pronta a sacrificar tudo e todos a leis históricas supostamente supra-humanas. "O que chamamos de progresso é [o] vento (...) [que] impele [o anjo da história] irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas enquanto o monte de ruínas diante de si ergue-se até os céus ",[39] Somente no sonho de Marx de uma sociedade sem classes, que, nas palavras de Joyce, faria a humanidade despertar do pesadelo da história, é que surge um vestígio último, embora utópico, do conceito do século XVIII. O negociante de mentalidade imperialista, a quem as estrelas aborreciam porque não podia anexá-las, sabia que o poder organizado como finalidade em si geraria mais poder. Quando o acúmulo de poder atingiu seus naturais limites nacionais, a burguesia percebeu que somente com uma ideologia de expansão e somente com um processo econômico que refletisse o do acúmulo de poder seria possível colocar novamente o motor em funcionamento. Ao mesmo tempo, porém, quando parecia que o verdadeiro moto perpétuo havia sido descoberto, a atitude especificamente otimista da ideologia do progresso foi abalada. Não que alguém duvidasse da irresistibilidade do processo, mas muitos começaram a perceber aquilo que havia assustado a Cecil Rhodes: que a condição humana e os limites do globo eram um sério obstáculo a um processo que, de um lado, não podia parar nem estabilizar-se e que, por outro lado, só podia provocar uma série de catástrofes destruidoras, quando atingisse esses limites.
     Na época imperialista, a filosofia do poder tornou-se a filosofia da elite, que logo descobriu, e estava pronta a admitir, que a sede de poder só podia ser saciada pela destruição. Foi esta a causa essencial do seu niilismo (especialmente conspícuo na França do início do século XX e na Alemanha da década de 20), que substituía a superstição do progresso pela superstição da ruína, e pregava a aniquilação automática com o mesmo entusiasmo com que os fanáticos do progresso automático haviam pregado a irresistibilidade das leis econômicas.
     Hobbes, o grande idolatra do Sucesso, tinha levado três séculos para ser bem sucedido. Isso foi em parte devido à Revolução Francesa, que, com a sua concepção do homem como legislador e citoyen, quase havia conseguido evitar que a burguesia desenvolvesse inteiramente sua noção de história como processo necessário. Mas em parte foi devido também às implicações revolucionárias do Commonwealth, seu intrépido rompimento com a tradição ocidental, coisas que Hobbes não deixou de apontar.
     Todo homem e todo pensamento que não é útil, e não se conforma ao objetivo final de uma máquina cujo único fim é a geração e o acúmulo de poder, é um estorvo perigoso. Hobbes achava que os livros dos "antigos gregos e romanos" eram tão "prejudiciais" quanto o ensinamento cristão do "Summum bonum (...) como é pronunciado nos livros dos velhos filósofos moralistas", ou a doutrina de que "tudo o que um homem faz contra a sua consciência é pecado", e de que as "leis são as regras do justo e do injusto". A profunda suspeita alimentada por Hobbes em relação a toda a tradição ocidental de pensamento político não nos surpreende, se lembrarmos que ele procurava nada menos que justificar a Tirania, que, embora houvesse ocorrido muitas vezes na história do Ocidente, nunca havia sido homenageada com um fundamento filosófico. Hobbes confessa orgulhosamente que o Leviatã é realmente um governo permanente de tirania: "a palavra Tirania significa nem mais nem menos que a palavra Soberania. (...) Acho que tolerar o ódio declarado à Tirania é tolerar o ódio à comunidade em geral".
     Por ser filósofo, Hobbes já podia perceber na ascensão da burguesia todas aquelas qualidades antitradicionalistas da nova classe, que iriam levar três séculos para desenvolver-se por completo. Seu Leviathan não se perdia em especulações ociosas a respeito de novos princípios políticos nem da velha busca da razão que governa a comunidade dos homens; era estritamente um "cálculo das consequências", que advêm da ascensão de uma nova classe na sociedade, cuja existência está essencialmente ligada à propriedade como um mecanismo dinâmico produtor de mais propriedade. O chamado acúmulo de capital que deu origem à burguesia mudou o próprio conceito de propriedade e riqueza: estes já não eram mais considerados como resultado do acúmulo e da aquisição, mas sim o seu começo; a riqueza tornou-se um processo interminável de se ficar mais rico. A classificação da burguesia como classe proprietária é apenas superficialmente correta, porquanto a característica dessa classe é que todos podem pertencer a ela, contanto que concebam a vida como um processo permanente de aumentar a riqueza e considerem o dinheiro como algo sacrossanto que de modo algum deve ser usado como simples instrumento de consumo.
     Contudo, a propriedade em si é sujeita ao uso e ao consumo e, portanto, diminui constantemente. A forma mais radical — e a única segura — de posse é a destruição, pois só possuímos para sempre e com certeza aquilo que destruímos. Os donos de propriedade que não consomem, mas continuamente procuram aumentar as suas posses, esbarram com um limite muito inconveniente: o fato lamentável de que os homens morrem. A morte é o verdadeiro motivo pelo qual a propriedade e a aquisição jamais podem tornar-se um princípio político verdadeiramente válido. Um sistema social baseado essencialmente na propriedade não pode levar a outra coisa senão à destruição final de toda a propriedade. A finitude da vida pessoal é um desafio tão sério à propriedade como fundamento social quanto os limites do globo são um desafio à expansão como fundamento do sistema político. Por transcender os limites da vida humana, o crescimento automático e contínuo da riqueza além das necessidades e possibilidades de consumo pessoais, que é a base da propriedade individual, vira assunto público e sai da esfera da simples vida privada. Os interesses privados, que, por sua própria natureza, são temporários, limitados pela duração natural da vida do homem, podem agora fugir para a esfera dos negócios públicos e pedir-lhes emprestado aquele tempo infinito necessário à acumulação contínua. Isso parece criar uma sociedade muito parecida com a das formigas e das abelhas, onde "o bem comum não difere do bem privado; e naturalmente inclinadas para o benefício privado, consequentemente procuram o benefício comum".
     Como, porém, os homens não são formigas nem abelhas, tudo não passa de uma ilusão. A vida pública assume um aspecto enganador quando aparenta constituir a totalidade dos interesses privados, como se esses interesses pudessem criar uma qualidade nova pelo simples fato de serem somados. Todos os chamados conceitos liberais de política (isto é, todas as noções políticas pré-imperialistas da burguesia) — como a concorrência sem limites, regulada por um secreto equilíbrio que provém, de modo misterioso, da soma total das atividades concorrentes; a busca de um "esclarecido interesse próprio" como virtude política; o progresso limitado baseado na simples sucessão dos acontecimentos — têm isto em comum: simplesmente adicionam vidas privadas e padrões de conduta pessoais e apresentam o resultado como leis de história, de economia ou de política. Mas os conceitos liberais, embora expressem a instintiva suspeita da burguesia e a sua inata hostilidade com relação aos negócios públicos, são apenas uma acomodação temporária entre os velhos padrões de cultura ocidental e a crença da nova classe na propriedade como princípio dinâmico e automotivo. Os velhos padrões cedem à medida que a riqueza, crescendo automaticamente, passa realmente a substituir a ação política.
     Embora nunca inteiramente reconhecido, Hobbes foi o verdadeiro filósofo da burguesia, porque compreendeu que a aquisição de riqueza, concebida como processo sem fim, só pode ser garantida pela tomada do poder político, pois o processo de acumulação violará, mais cedo ou mais tarde, todos os limites territoriais existentes. Previu que uma sociedade que havia escolhido o caminho da aquisição contínua tinha de engendrar uma organização política dinâmica capaz de levar a um processo contínuo de geração de poder. E, através de simples voo da imaginação, pôde até esboçar tanto os principais traços psicológicos do novo tipo de homem que se encaixaria em tal sociedade, quanto a tirania da sua estrutura política. Previu como necessária a idolatria do poder que caracteriza esse novo tipo humano, e pressentiu que ele se sentiria lisonjeado ao ser chamado de animal sedento de poder, embora na verdade a sociedade o forçasse a renunciar a todas as suas forças naturais, suas virtudes e vícios, e fizesse dele o pobre sujeitinho manso que não tem sequer o direito de se erguer contra a tirania e que, longe de lutar pelo poder, submete-se a qualquer governo existente e não mexe um dedo nem mesmo quando o seu melhor amigo cai vítima de uma raison d'état incompreensível.
     Assim, um Commonwealth baseado no poder acumulado e monopolizado de todos os seus membros individuais torna a todos necessariamente impotentes, privados de suas capacidades naturais e humanas. Degrada o indivíduo à condição de peça insignificante na máquina de acumular poder, livre para consolar-se, se quiser, com pensamentos sublimes a respeito do destino final dessa máquina, construída de forma a ser capaz de devorar o mundo, se simplesmente seguir a lei que lhe é inerente.
     O objetivo final de destruição desse Commonwealth é pelo menos indicado na interpretação filosófica da igualdade humana como "igual capacidade" de matar. Vivendo com as outras nações "numa condição de guerra perpétua, sempre à beira do combate, com suas fronteiras armadas e canhões assestados contra os vizinhos", não tem outra lei de conduta senão "a que melhor leve ao [seu] benefício", e gradualmente devorará as estruturas mais fracas até que chegue a uma última guerra "que dê a todos os homens a vitória ou a morte".
     Com "vitória ou morte", o Leviatã pode realmente suplantar todas as limitações políticas provenientes da existência de outros povos e envolver toda a terra em sua tirania. Mas, quando vier a última guerra e todos os homens tiverem recebido seu quinhão, nenhuma paz final terá sido estabelecida na terra: a máquina de acumular poder, sem a qual a expansão contínua não teria sido possível, precisará de novo material para devorá-lo em seu infindável processo. Se o último Commonwealth vitorioso não puder anexar os planetas, só poderá passar a devorar-se a si mesmo, para começar novamente o infinito processo da geração de poder.

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[33] Quanto a este item e ao que se segue, ver o capítulo 2.
[34] É interessante que todos os primeiros observadores do crescimento imperialista acentuam com ênfase esse elemento judaico, ao passo que ele mal aparece na literatura mais recente. Especialmente digna de nota, porquanto muito fiel em sua observação e muito honesta em sua análise, foi a maneira como J. A. Hobson tratou o assunto. No primeiro ensaio que escreveu a respeito, "Capitalism and imperialism in South África", em Contemporary Review, 1900, ele dizia: "A maioria dos [financistas] eram judeus, pois os judeus são os financistas internacionais par excellence e, embora falem inglês, a maioria é de origem continental. (...) Foram para lá [para o Transvaal] em busca de dinheiro, e aqueles que vieram mais cedo e ganharam mais geralmente já se retiraram, deixando suas garras econômicas na carcaça da presa. Aferraram-se ao Rand (...) da mesma forma como estão prontos a se aterrarem a qualquer outro lugar da terra. (...) São principalmente especuladores financeiros, que lucram não com os frutos genuínos da indústria, mesmo que seja a indústria alheia, mas com a construção, promoção e manipulação financeira de companhias". Contudo, no estudo posterior de Hobson, Imperialism, os judeus nem são mencionados: entre um trabalho e outro, havia se tornado óbvio que a influência e o papel dos judeus fora temporária e algo superficial. (Quando ao papel dos financistas judeus na África do Sul, ver o capítulo 7.)
[35] Todas as citações que se seguem e às quais corresponda uma nota são do Leviathan.
[36] É muito significativo que essa identificação de interesses coincida com a alegação totalitária de haver abolido as contradições entre os interesses públicos e os individuais (ver o capítulo 12). Contudo, não se deve esquecer que Hobbes estava interessado principalmente em proteger os interesses privados, alegando que, corretamente interpretados, eles eram também os interesses do corpo político, ao passo que, ao contrário, os regimes totalitários proclamam a não-existência da privatividade.
[37] A promoção do acaso à posição de árbitro final da vida iria atingir o seu ponto mais alto no século XIX. Como resultado, surgiu um novo gênero de literatura, a novela, que acompanhou o declínio do drama. Pois o drama perdeu o seu sentido num mundo sem ação, enquanto a novela podia tratar adequadamente os destinos de seres humanos que eram quer vitimas da necessidade, quer favoritos da sorte. Balzac demonstrou todo o alcance do novo gênero e chegou a apresentar as paixões humanas como o destino do homem, sem vício nem virtude, nem razão, nem livre arbítrio. Só a novela em sua completa maturidade, tendo interpretado e reinterpretado toda a gama dos temas humanos, podia pregar o novo evangelho da paixão do homem pelo seu próprio destino, que teve papel tão importante entre os intelectuais do século XIX. Através dessa paixão, o artista e o intelectual tentavam traçar uma distinção entre si mesmos e os outros, proteger-se contra a desumanidade da boa e da má sorte, e desenvolveram todos os dons da sensibilidade moderna — pronta para o sofrimento, a compreensão, o desempenho de determinado papel —, tão desesperadamente necessária à dignidade humana, que exige que um homem seja pelo menos uma vítima, se não puder ser outra coisa.
[38] A noção liberal de um Governo Mundial baseia-se, como todas as noções liberais de poder político, no mesmo conceito de indivíduos que se submetem a uma autoridade central que "os intimida a todos", exceto que, no caso, as nações tomam o lugar dos indivíduos. O Governo Mundial deve sobrepujar e eliminar a política autêntica, que consiste na justaposição de povos diferentes vivendo uns com os outros em pleno exercício do seu próprio poder.
[39] Walter Benjamin, em Über den Begriff der Geschichte [Sobre o conceito da história] (publicado pelo Institut für Sozialforschung, Nova York, 1942, mimeografado). Os próprios imperialistas conheciam muito bem as implicações do seu conceito de progresso. O autor que escrevia sob o pseudônimo de A. Carthill, funcionário inglês que havia servido na Índia e que é bem representativo da época, disse: "Deve-se sempre ter pena daqueles que são esmagados pelo carro triunfal do progresso" (op. cit., p. 209).

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (2a.Parte - Entretanto, eu olhava para Robert)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes

Segunda Parte

Capítulo Segundo

     Entretanto, eu olhava para Robert e pensava numa coisa. Havia nesse café, e conhecera eu na vida, muitos estrangeiros, intelectuais, artistas de todo tipo, resignados ao riso que provocavam a sua capa pretensiosa, suas gravatas à 1830 e, bem mais ainda, seus movimentos desajeitados chegando mesmo a provocar esse riso para mostrar que não se preocupavam com essas coisas, e que eram pessoas de real valor intelectual e moral e de profunda sensibilidade. Desagradavam os judeus principalmente, os judeus não assimilados bem entendido, não era o caso dos outros; às pessoas que não podem suportar uma aparência estranha, adoidados (como Bloch a Albertine). Geralmente, logo se reconhecia que, se tinham contra si os cabelos muito compridos, o nariz e os olhos grandes demais; os gestos bruscos e teatrais, seria pueril julgá-los por isso, pois tinham muito talento e coração e, sob esse aspecto, eram pessoas de quem se poderia gostar profundamente. Quanto aos judeus em particular, eram poucos aqueles cujos pais não fossem de uma generosidade de coração, de uma largueza de espírito, de uma sinceridade que, em comparação, a mãe de Saint-Loup - e o duque de Guermantes fariam reles figura moral devido à sua secura; sua religiosidade superficial, que bradava apenas contra os escândalos, sua apologia familiar de um cristianismo que findava infalivelmente (pelas vias imprevistas da inteligência estimada com exclusividade) num colossal casamento por dinheiro. Mas, enfim, no caso de Saint-Loup, fosse qual fosse o modo como os defeitos dos pais se combinassem numa criação nova de qualidades, reinava a mais atraente abertura de espírito e de coração. E então - é preciso dizê-lo para a glória imortal da França, quando tais qualidades se encontram num francês puro, seja da aristocracia ou do povo, elas florescem; seria muito dizer que se desvanecem, pois a medida e a restrição nelas persistem com uma graça que o estrangeiro, por mais estimável que seja, não nos apresenta. É claro que os outros também possuem qualidades intelectuais e morais, e, se é obrigatório atravessar primeiro o que desagrada, o que choca e o que faz sorrir, não são menos preciosas.
     Mas de qualquer modo é uma bela coisa, talvez exclusivamente francesa, que o que é belo a critério da equidade, o que vale segundo o espírito e o coração, seja primeiro um encanto para os olhos, colorido com graça, cinzelado com justeza, realize igualmente na sua matéria e em sua forma a perfeição interior. Eu olhava para Saint-Loup e dizia comigo que era uma bela coisa quando não há desgraça física para servir de vestíbulo às graças interiores, e que as asas do nariz são delicadas e de um desenho perfeito como as asas das borboletinhas que pousam nas flores das campinas, nos arredores de Combray; e que o verdadeiro opus francigenum, cujo segredo não se perdeu desde o século XIII e que não pereceria com as nossas igrejas, não são tanto os anjos de pedra de Saint-André-des-Champs como os pequenos franceses, nobres, burgueses ou campesinos, de rosto esculpido com aquela delicadeza e sinceridade, que permaneceram tão tradicionais como no pórtico famoso, mas ainda criadoras.
     Depois de ter se afastado por um instante para vigiar ele próprio o fechamento da porta e a encomenda do jantar (insistiu muito para que pedíssemos carne de vaca, pois as de galinha sem dúvida não estavam muito boas), o dono do estabelecimento voltou para nos dizer que o Senhor príncipe de Foix gostaria que o Senhor marquês lhe permitisse vir jantar numa mesa perto. 

- Mas elas estão todas ocupadas - respondeu Robert, vendo as mesas que bloqueavam a minha. 
- Quanto a isso, não quer dizer nada - retrucou o patrão -; se for agradável ao senhor marquês, ser-me-ia bem fácil pedir a essas pessoas que mudassem de lugar. São coisas que é possível fazer pelo Senhor marquês! 
- Mas quem decide és tu - disse-me Saint-Loup - Foix é um bom rapaz, não sei se te aborrecerá. É menos idiota que muitos. -

     Respondi a Robert que certamente ele me agradaria, mas que, como na ocasião estava jantando com ele e sentia-me muito feliz por isso, gostaria que estivéssemos a sós. 

- Ah, o Senhor príncipe tem uma capa muito bonita - disse o patrão enquanto nós deliberávamos. 
- Sim, conheço-a - respondeu Saint-Loup.

     Eu queria contar a Robert que o Sr. de Charlus fingira para a cunhada que não me conhecia e lhe perguntar qual poderia ser o motivo dessa dissimulação, mas fui impedido pela chegada do Sr. de Foix. Tendo vindo para saber se o seu pedido fora aceito, percebemos que estava parado a dois passos de nós. Robert nos apresentou, mas não escondeu ao amigo que, tendo de conversar comigo, preferia que nos deixasse em paz. O príncipe se afastou, acrescentando à saudação de despedidas que me fez um sorriso que designava Saint-Loup e parecia desculpar-se, com a decisão deste, por uma apresentação breve que desejaria mais longa. Mas nesse momento Robert, parecendo tocado por uma ideia súbita; afastou-se com seu camarada, depois de me haver dito: 

- Fica sentado e começa a jantar, que já volto - e desapareceu na salinha.

     Aborreci-me ao ouvir os jovens chiques, a quem não conhecia, contarem as histórias mais ridículas e maledicentes sobre o jovem grão-duque herdeiro de Luxemburgo (ex-conde de Nassau), que me conhecera em Balbec e dera provas bastante delicadas de simpatia durante a doença de minha avó. Um pretendia que ele dissera à duquesa de Guermantes: 

- Exijo que todos se levantem quando minha mulher passar e que a duquesa teria respondido (o que não apenas era desprovido de espírito, mas de exatidão, visto que a avó da jovem princesa fora sempre a mulher mais honesta do mundo): 
- Se é preciso que a gente se levante quando passar a tua mulher, isso era diferente no caso da avó dela, pois com ela os homens se deitavam. -

     Depois tagarelavam que, tendo ido visitar naquele ano, em Balbec, sua tia a princesa de Luxemburgo, e tendo parado no Grande Hotel, queixara-se ao gerente (meu amigo) de que não tinham hasteado a flâmula de Luxemburgo por sobre o molhe. Ora, essa flâmula era menos conhecida e de menos emprego que as bandeiras da Inglaterra ou da Itália, e foram necessários vários dias para conseguirem uma, para vivo descontentamento do jovem grão-duque. Não acreditei numa só palavra dessa história, mas prometi a mim mesmo, que quando fosse a Balbec, interrogar o gerente do hotel de modo a ter certeza de que era pura invenção.
     À espera de Saint-Loup, pedi ao dono do restaurante que me trouxesse pão. 

- Imediatamente, senhor barão - disse ele, solícito. 
- Não sou barão - respondi com ar de tristeza em vez de rir. 
- Oh, perdão, senhor conde!

     À espera de Saint-Loup, pedi ao dono do restaurante que me trouxesse pão. 

- Imediatamente, senhor barão - disse ele, solícito.
- Não sou barão - respondi com ar de tristeza em vez de rir.  
- Oh, perdão, senhor conde! 

     Não tive tempo de fazer ouvir um segundo protesto, depois do qual certamente me tornaria "Senhor marquês", pois tão depressa como anunciara, Saint-Loup reapareceu na entrada, tendo à mão a grande vicunha do príncipe, pelo que compreendi que ele a havia pedido me manter abrigado. Fez-me de longe um sinal para que eu não me levantasse, avançou; seria preciso avançar mais a minha mesa ou que eu trocasse de lugar para que ele pudesse sentar-se. Logo que entrou na grande sala, Saint-Loup subiu rapidamente para as banquetas de veludo que faziam a volta ao longo da parede e onde, além de mim, estavam sentados apenas três ou quatro rapazes do Jockey, conhecidos dele, que não tinham encontrado lugar na salinha. Entre as mesas, estavam estendidos fios elétricos a uma certa altura; sem se embaraçar com eles, Saint Loup saltou-se com destreza, como um cavalo de corrida por sobre um obstáculo; confuso porque ele se desempenhava assim unicamente por minha causa e com o objetivo de evitar-me um movimento bem simples, eu estava ao mesmo tempo maravilhado com a segurança com que meu amigo cumpria aquele exercício de acrobacia; e não era o único; pois, ainda que o tivessem mediocremente apreciado caso partisse de um freguês menos aristocrático e menos generoso, o dono e os garçons se mostravam fascinados como conhecedores na pesagem; um garçom, como que paralisado, ficara imóvel com um prato que os convivas ao lado esperavam; e, quando Saint Loup, tendo que passar por trás de seus amigos, grimpou sobre o rebordo do encosto, onde avançou equilibrando-se, romperam discretos aplausos no fundo da sala. Enfim, tendo chegado onde eu estava, estacou de súbito com a precisão de um chefe diante da tribuna de um soberano e, inclinando-se, estendeu-me com ar de cortesia e submissão a capa de vicunha, que logo após, estando sentado a meu lado, sem que eu tivesse de fazer um só movimento, arrumou sobre minhas espáduas, como um xale quente e leve. 

- Olha, antes que me esqueça - disse Robert -, meu tio Charlus tem algo para te dizer. Prometi que te levaria à casa dele amanhã à noite. 
- Ia justamente falar nele. Mas amanhã à noite vou jantar na casa da tua tia Guermantes. 
- Sim, há uma tremenda comilança amanhã na casa de Oriane. Não estou convidado. Mas meu tio Palamede gostaria que lá não fosses. Não podes te desconvidar? Em todo caso, vai à casa do tio Palamede depois. Creio que ele faz questão de te ver. Vejamos, podes muito bem estar lá às onze horas. Onze horas, não te esqueças, encarrego-me de avisá-lo. Ele é muito suscetível. Se não fores, vai embirrar contigo. Sempre terminam cedo na casa de Oriane. Aliás, preciso falar com Oriane por causa do meu posto em Marrocos, de onde gostaria de me transferir. Ela é tão gentil para essas coisas e consegue tudo com o general de Saint-Josep, de quem depende isso. Mas não lhe fale neste assunto. Já me dirigi à princesa de Parma; as coisas correrão por si mesmas. Ah, o Marrocos é muito interessante. Teria muito o que te falar sobre ele. Há pessoas muito finas por lá. Sente-se a igualdade da inteligência. 
- Não achas que os alemães podem ir à guerra por causa disso? 
- Não; aquilo os aborrece, e no fundo é muito justo. Mas o imperador é pacífico. Os alemães estão sempre nos fazendo acreditar que desejam a guerra para nos forçar a ceder. Confira o pôquer. O príncipe de Mônaco, agente de Guilherme II, vem dizer-nos confidencialmente que a Alemanha se lançará sobre nós se não cedermos. Então cedemos. Mas, se não cedêssemos, não haveria nenhum tipo de guerra. Basta pensares que coisa cósmica seria uma guerra hoje. Seria mais catastrófica do que Crepúsculo dos Deuses, apenas duraria menos tempo.

     Falou-me da amizade, da predileção, da nostalgia (muito embora, todos os viajantes do seu tipo, fosse partir outra vez no dia seguinte, em alguns meses, que devia passar no campo, e devesse voltar só durante quarenta e oito horas a Paris, antes de voltar a Marrocos, ou a outra parte; as palavras que assim lançou no calor do coração que eu tinha naquela noite acendiam neste um suave devaneio. Nossas raras conversações íntimas, e sobretudo esta, desde então fizeram época na minha memória tanto para ele, como para mim, esta foi a noite da amizade.
     No entanto, a que eu entendia naquele momento (e, devido a isso, não sem algum remorso) não era de modo nenhum, como temia, a que lhe agradaria inspirar. Ainda repleto de prazer que tinha tido ao vê-lo avançar em ligeiro galope e atingir graciosamente a meta, sentia que esse prazer decorria de que cada um dos movimentos desenrolados ao longo da parede, sobre a banqueta, tinha o seu significado, sua causa, na natureza individual talvez do próprio Saint-Loup; porém mais ainda naquela que, por nascimento e educação, havia herdado de sua raça. Uma certeza de gosto na ordem, não do belo, mas das maneiras, e que em presença de uma nova circunstância fazia com que o homem elegante apreendesse logo como no caso de um músico a quem pedem que toque um trecho musical que desconhece o sentimento, o movimento que a circunstância reclama, e a ela adaptar o mecanismo, a técnica que melhor lhe convém, permitindo depois a esse gosto agir sem o freio de nenhuma outra consideração, que teria paralisado a tantos jovens burgueses, não só pelo receio de parecerem ridículos aos olhos dos outros) faltando às conveniências, como de serem julgados solícitos em excesso aos de seus amigos, e que em Robert era substituído por um desdém que certamente ele jamais experimentara no coração, mas que recebera por herança em seu corpo, submetendo os modos de seus ancestrais a uma familiaridade que eles achavam não poder senão encantar e lisonjear aquele a quem ela se dirigia; enfim, uma nobre liberalidade que, não levando em conta tantas vantagens materiais (os gastos em profusão naquele restaurante tinham acabado por fazer dele, aqui como em outros locais, o freguês mais em moda e o grande favorito, situação que acentuava a solicitude para com ele, não só dos empregados da casa mas também de toda a juventude mais brilhante), fazia-o espezinhá-las, como aquelas banquetas de púrpura efetiva e simbolicamente pisoteadas, semelhantes a um caminho suntuoso que só agradava ao meu amigo na medida em que lhe permitia vir até mim com mais graça e rapidez; tais eram as qualidades, todas essenciais à aristocracia, que, por trás daquele corpo, não opaco e obscuro como teria sido o meu, mas límpido e significativo, transpareciam como, através de uma obra de arte, a força industriosa e eficiente que a criou, e tomavam os movimentos daquela corrida ligeira que Robert desenvolvera ao longo da parede, tão inteligíveis e cativantes como os dos cavaleiros esculpidos num friso.

"Ah! -teria pensado Robert -, vale a pena que eu tenha passado a juventude a desprezar meu nascimento, a enaltecer unicamente a justiça e o espírito, a escolher, fora dos amigos que me eram impostos, companheiros canhestros e mal vestidos, se possuíam eloquência, para que o único ser que aparecesse em mim, de que guardem preciosa lembrança, seja não aquele que a minha vontade, esforçando-se e merecendo, moldou à minha semelhança, mas um ser que não é obra minha, que nem mesmo sou eu, que sempre desprezei e busquei vencer? Vale a pena que eu tenha amado meu amigo preferido como amei, para que o maior prazer que ele ache em mim seja o de descobrir algo de muito mais geral que eu próprio, um prazer que não é absolutamente, como ele diz e não pode sinceramente crê-lo, um prazer de amizade, mas um prazer intelectual e desinteressado, uma espécie de prazer de arte?" Eis o que hoje temo que Saint-Loup haja pensado algumas vezes. Ele se enganou neste caso.
     Se não tivesse amado, como o fez, alguma coisa mais elevada que a elasticidade inata de seu corpo, se não estivesse, desde tanto tempo, isolado do orgulho nobiliárquico, haveria mais aplicação e pesadume na sua própria agilidade, uma vulgaridade importante em suas maneiras. Como à Sra. de Villeparisis fora preciso muita seriedade para que ela conferisse à sua conversação e suas memórias o sentimento da frivolidade, que é intelectual, assim também, para que o corpo de Saint-Loup fosse habitado por tanta aristocracia, seria preciso que esta houvesse desertado de seu pensamento, levantado para os mais altos fins e, reabsorvida em seu corpo, nele se fixasse em linhas nobres e inconscientes. Por isso a sua distinção de espírito não era destacada de uma distinção física, que não seria completa se faltasse a primeira.
     Um artista não tem necessidade de exprimir diretamente seu pensamento em sua obra para que esta lhe reflita a qualidade; pode-se dizer até que o louvor mais alto de Deus está na negação do ateu, que acha a criação perfeita o bastante para prescindir de um criador. E bem sabia eu, também, que não era somente uma obra de arte o que admirava nesse jovem cavaleiro, desenrolando ao longo da parede o friso de sua corrida; o jovem príncipe (descendente de Catherine de Foix, rainha de Navarra e neta de Carlos VII), que ele acabava de deixar em meu benefício, a situação de nascimento e de fortuna que ele inclinava diante de mim, os ancestrais desdenhosos e desenvoltos que sobreviviam na segurança, na agilidade e na polidez com as quais acabava de dispor em torno a meu corpo friorento a capa de vicunha, tudo isso não seria como amigo mais antigo do que eu em sua vida, pelos quais eu julgaria devêssemos estar sempre separados, e que, ao contrário, ele os sacrificava a mim devido a uma escolha que só se pode fazer nas alturas da inteligência, com aquela liberdade soberana de que os movimentos de Robert eram a imagem e na qual se realiza a amizade perfeita? Do que a familiaridade de um Guermantes em lugar da distinção que tinha em Robert, porque nele o desdém hereditário não passava de roupagem, transformada em graça inconsciente, de uma verdadeira humildade moral - houvesse revelado de soberba vulgar, eu pudera conscientizá-lo, não no Sr. de Charlus, em quem os defeitos de caráter que até então não compreendia bem se haviam superposto aos hábitos aristocráticos, mas no duque de Guermantes. No entanto, também este, no conjunto vulgar que tanto desagradara à minha avó, quando o conhecera antigamente na casa da Sra. de Villeparisis, oferecia partes de grandeza antiga e que me foram sensíveis quando fui jantar em sua casa, no dia seguinte à noitada que passei com Saint-Loup.
     Não me haviam aparecido, nem nele nem na duquesa, quando os vira pela primeira vez em casa de sua tia, assim como também não vira no primeiro dia as diferenças que separavam a Berma de suas companheiras, ainda que nesta as particularidades fossem infinitamente mais captáveis do que nas pessoas da sociedade, visto que se tornam mais marcantes à medida que os objetos são mais reais, mais concebíveis pela inteligência. Mas enfim, por mais leves que sejam as nuanças sociais (e ao ponto que, quando um pintor verídico feito Sainte-Beuve quer assinalar sucessivamente as nuanças existentes entre os salões da Sra. Geoffrin, da Sra. Récamier e dá Sra. de Boigne, eles surgem todos tão semelhantes que a principal verdade que, contra a vontade do autor, ressalta de seus estudos, é a nulidade da vida de salão), entretanto, em virtude do mesmo motivo que em relação a Berma, quando os Guermantes se me tornaram indiferentes, e a gotinha dá sua originalidade não mais foi vaporizada pela minha imaginação, pude recolhê-la, por imponderável que fosse.
     Não tendo a duquesa me falado do marido, na recepção em casa de sua tia, eu me indagava se, com os rumores de divórcio que corriam ele compareceria ao jantar.
     Mas logo me inteirei completamente, pois, entre os lacaios que se mantinham de pé na antecâmara e que (visto que então deviam considerar-me um pouco feito os filhos do ebanista, isto é, talvez com mais simpatia do que a seu patrão, mas como incapaz de ser recebido em casa dele) deviam especular sobre as causas dessa revolução, vi deslizar o Sr. de Guermantes, que vigiava a minha chegada para me receber à porta e me tirar ele próprio o meu sobretudo. 

- A Sra. de Guermantes vai ficar satisfeitíssima - disse-me num tom habilmente persuasivo. Permita-me que o livre de seus trastes (achava a um tempo bonachão e cômico falar a linguagem do povo). Minha mulher temia um pouco uma deserção de sua parte, embora o senhor nos tivesse reservado o dia. Desde hoje de manhã dizíamos um ao outro: "Verá como ele não vem." Devo dizer que a Sra. de Guermantes estava mais certa do que eu. Não é fácil contar com o senhor, e eu estava convencido de que nos faltaria com a palavra.

     O duque era tão mau marido, tão brutal até, conforme diziam, que a gente lhe era grato, como se é grato aos malvados por sua doçura, por essas palavras "Senhora de Guermantes", com as quais dava a impressão de estender sobre a duquesa uma asa protetora para que formasse um todo só com ele. Entrementes, tomando-me familiarmente pela mão, assumiu o dever de me guiar e introduzir nos salões. Essa ou aquela expressão corrente pode agradar na boca de um camponês, caso mostre a sobrevivência de uma tradição local, o vestígio de um acontecimento histórico, talvez ignorados daquele que lhes faz alusão; da mesma forma, aquela cortesia do Sr. de Guermantes, e que ele iria me testemunhar durante toda a reunião, encantou me como um resto de hábitos várias vezes seculares, hábitos em especial do século XVII. As pessoas dos tempos antigos nos parecem infinitamente longe de nós. Não nos animamos a supor lhes intenções profundas além do que expressam formalmente; ficamos espantados quando encontramos um sentimento mais ou menos idêntico ao que experimentamos em um herói de Homero ou numa engenhosa e fingida tática de Aníbal durante a batalha de Canas, quando ele deixou seu flanco ser invadido para envolver o adversário de surpresa; dir-se-ia que nos representamos o poeta épico e o general tão afastados de nós como um animal visto no jardim zoológico. O mesmo se dá com certos personagens da corte de Luís XIV, quando encontramos sinais de cortesia nas cartas escritas por eles a algum homem de categoria inferior e que não lhes pode ser útil em nada; tais cartas nos deixam surpresos, pois nos revelam de súbito, entre os grãos-senhores, todo um universo de crenças que eles jamais exprimiam diretamente, ruas que os governavam, e em especial a crença de que é preciso, por delicadeza, fingir certos sentimentos e exercer com o maior escrúpulo determinadas funções de amabilidade.
     Este afastamento imaginário do passado é talvez um dos motivos que permitem compreender que até mesmo grandes escritores tenham achado uma beleza genial nas obras de medíocres mistificadores como Ossiaçu. Sentimo-nos tão espantados de que bardos longínquos possam ter ideias modernas, que nos maravilhamos se, no que julgamos ser um velho canto gaélico, encontramos uma ideia que só teríamos considerado engenhosa num contemporâneo. Um tradutor talentoso não tem mais que acrescentar a um autor antigo que ele reconstitui com maior ou menor fidelidade, exceto que, assinados por um nome contemporâneo e publicados à parte, pareceriam apenas agradáveis: e logo atribui uma comovedora grandeza ao seu poeta que, desse modo, dedilha o teclado de vários séculos. Esse tradutor só seria capaz de escrever um livro medíocre, se tal livro fosse publicado como um original seu. Dado como sendo tradução, parece uma obra-prior. O passado não só não é fugaz como também permanece parado. Só meses após o começo de uma guerra é que as leis votadas sem pressa podem agir eficazmente sobre ela; é apenas uns quinze anos depois de um crime, que permanecia obscuro, que um magistrado pode ainda encontrar elementos que servirão para esclarecê-lo; depois de séculos e séculos, o sábio que estuda, numa região longínqua, a toponímia e os costumes dos habitantes poderá ainda colher entre eles uma determinada lenda, anterior ao cristianismo e já incompreendida, se não mesmo esquecida, nos tempos de Heródoto e que, no apelativo dado a uma rocha, num rito religioso, permanece no meio do presente como uma emanação mais densa, estável, imemorial. Também havia uma emanação da vida da corte, bem menos antiga, se não nas maneiras frequentemente vulgares do Sr. de Guermantes pelo menos no espírito que as dirigia. Eu deveria apreciá-la ainda, como um aroma antigo, quando o encontrei um pouco mais tarde no salão, pois nos fora até lá de imediato. Deixando o vestíbulo, eu dissera ao Sr. de Guermantes que desejava muito ver os seus Elstirs. 

- Estou às suas ordens. Então, o Sr. Elstir é um de seus amigos? Estou muito penalizado, pois conheço-o um pouco, é um homem amável, o que os nossos pais chamavam um bom homem; eu deveria ter-lhe pedido que me fizesse a fineza de vir e convidá-lo para jantar. Ele certamente ficaria muito lisonjeado por passar a noite em sua companhia. -

     Muito pouco ancien régime, quando assim se esforçava por sê-lo; o duque voltava a sê-lo em seguida, sem querer. Tendo indagado se desejava que me mostrasse esses quadros, conduziu-me afastando-se graciosamente diante de cada porta, desculpando-se quando, para me mostrar o outro, era obrigado a passar adiante, pequena encenação que, desde os tempos em que Saint-Simon narra que um antepassado dos Guermantes, deu as honras do palácio com os mesmos escrúpulos no cumprimento dos deveres frívolos do gentil-homem devia, antes de chegar até nós, ter sido representada por muitos outros Guermantes para muitas outras visitas. E, como eu dissera ao duque preferir ficar a sós diante dos quadros por um momento, ele se afastou discretamente dizendo que o encontrasse mais tarde no salão.

continua na página 187...
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Leia também:

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Volume 3
O Caminho de Guermantes (2a.Parte - Entretanto, eu olhava para Robert)
Volume 4
Volume 5
Volume 7