domingo, 17 de março de 2024

Sarau... O perseguidor (c) - (Julio Cortázar)

El perseguidor

Julio Cortázar
(1914-1984)

In memorian Ch.

Seja fiel até a morte
Apocalipse , 2,10

Ó, faça-me uma máscara
Dylan Thomas

   continuando...

—Só um minuto e meio para o seu tempo, para o tempo dela, disse Johnny, ressentido. E também por causa do metrô e do meu relógio, malditos sejam. Então como é que estou pensando há um quarto de hora, hein, Bruno? Como você pode pensar um quarto de hora em um minuto e meio? “Juro para você que naquele dia não fumei um pedaço nem uma folha”, acrescenta como um menino dando desculpas. E então aconteceu comigo de novo, agora está começando a acontecer em todos os lugares. Mas — acrescenta com astúcia — só no metrô posso perceber por que viajar de metrô é como estar dentro de um relógio. As estações são os minutos, você entende, é esse seu tempo, agora; mas eu sei que há outro, e estive pensando, pensando...

   Ele cobre o rosto com as mãos e treme. Eu gostaria de já ter ido embora e não sei como me despedir sem deixar Johnny ressentido, porque ele é terrivelmente sensível com os amigos. Se ele continuar assim vai doer, pelo menos com Dédée ele não vai falar dessas coisas.

—Bruno, se eu pudesse viver como naqueles momentos, ou como quando estou jogando e o tempo também muda... Você percebe o que pode acontecer em um minuto e meio... Aí um homem, não só eu, mas aquele e você e todos os meninos poderiam viver centenas de anos, se encontrássemos um jeito poderíamos viver mil vezes mais do que estamos vivendo por causa dos relógios, aquela mania dos minutos e depois de amanhã...

   Sorrio o melhor que posso, entendendo vagamente que ele está certo, mas que aquilo que ele suspeita e o que sinto como sua suspeita será apagado, como sempre, assim que eu estiver na rua e entrar na minha vida cotidiana. Nesse momento tenho certeza de que Johnny está dizendo algo que não vem apenas do fato de ele ser meio louco, mas de que a realidade lhe escapa e o deixa com uma espécie de paródia que ele transforma em esperança. Tudo o que Johnny me diz em momentos como este (e Johnny tem dito coisas semelhantes a mim e a todos os outros há mais de cinco anos) não pode ser ouvido com a promessa de pensar sobre isso novamente mais tarde. Você mal está na rua, é só a memória e não o Johnny quem repete as palavras, tudo vira uma fantasia de maconha, uma patada monótona (porque tem outros que falam coisas parecidas, de vez em quando ouvimos depoimentos parecidos) e depois do espanto vem a irritação, e pelo menos acontece que sinto como se Johnny estivesse brincando comigo. Mas isso sempre acontece no dia seguinte, não quando o Johnny está me contando, porque aí eu sinto que tem alguma coisa que quer ceder em algum lugar, uma luz que está tentando acender, ou melhor, como se fosse preciso quebrar alguma coisa, quebre-o de cima para baixo, como um tronco, colocando uma cunha nele e martelando até o fim. E Johnny não tem mais força para martelar nada, e nem sei que martelo seria necessário para cravar uma cunha, o que também não consigo imaginar.
   Então no final eu saí da sala, mas antes disso aconteceu uma daquelas coisas que tem que acontecer - aquela ou outra parecida - e é que quando eu estava me despedindo de Dédée e virei as costas para Johnny eu senti que alguma coisa estava acontecendo, eu vi nos olhos de Dédée e me virei rapidamente (porque talvez eu tenha um pouco de medo do Johnny, desse anjo que é como meu irmão, desse irmão que é como meu anjo) e eu vi Johnny de repente tirou o cobertor em que estava enrolado, e eu o vi sentado no sofá completamente nu, com as pernas para cima e os joelhos próximos ao queixo, tremendo, mas rindo, nu de cima a baixo no sofá.

—Está começando a esquentar, disse Johnny. Bruno, olha que cicatriz linda eu tenho entre as costelas.

—Cubra-se, ordenou Dédée, envergonhada e sem saber o que dizer. Nós nos conhecemos muito bem e um homem nu nada mais é do que um homem nu, mas de qualquer forma Dédée ficou constrangida e eu não sabia como evitar dar a impressão de que o que Johnny estava fazendo me chocava. E ele sabia disso e ria com toda a sua boca grande, mantendo obscenamente as pernas levantadas, o pênis pendurado na beirada da cadeira como um macaco no zoológico, e a pele das coxas com manchas estranhas que me deixavam infinitamente enojado. . Então Dédée pegou o cobertor e rapidamente o envolveu em volta dele, enquanto Johnny ria e parecia muito feliz. Despedi-me vagamente, prometendo voltar no dia seguinte, e Dédée me acompanhou até o patamar, fechando a porta para que Johnny não ouvisse o que ela ia me contar.

—Está assim desde que voltamos da turnê pela Bélgica. Ele jogou tão bem em todos os lugares e eu estava muito feliz.
 
—Eu me pergunto de onde ela tirou as drogas, eu disse, olhando nos olhos dela.

—Não sei. Ele bebe vinho e conhaque quase o tempo todo. Mas ele também fumou, embora menos do que lá...

   Lá estão Baltimore e Nova York, são os três meses no hospital psiquiátrico de Bellevue e a longa temporada em Camarillo.

—Johnny realmente tocou bem na Bélgica, Dédée?

—Sim, Bruno, acho que está melhor do que nunca. As pessoas eram malucas e os caras da orquestra me disseram isso muitas vezes. De repente, coisas estranhas aconteciam, como sempre com Johnny, mas felizmente nunca na frente do público. Eu acreditei... mas veja, agora está pior do que nunca.

   Pior do que em Nova York? Você não o conheceu naqueles anos.
   Dédée não é estúpida, mas nenhuma mulher gosta que lhe falem do seu homem quando ele ainda não estava na sua vida, fora o fato de agora ela ter de o aturar e o que era antes não passa de palavras. Não sei como contar a ele e nem confio totalmente nele, mas no final eu decido.

— Imagino que tenham ficado sem dinheiro.

—Temos esse contrato para começar depois de amanhã, disse Dédée.

—Você acha que conseguirá gravar e se apresentar em público?

—Ah, sim, disse Dédée, um pouco surpresa. Johnny pode tocar melhor do que nunca se o Dr. Bernard acabar com a gripe. A questão é o sax.

—Eu vou cuidar disso. Aqui está, Dédée. Só que... Seria melhor se Johnny não soubesse.

—Bruno…

   Com um gesto, e começando a descer as escadas, interrompi as palavras imagináveis, a gratidão inútil de Dédée. Separado dela por quatro ou cinco passos, foi mais fácil para mim contar a ela.

—Não há razão no mundo para fumar antes do primeiro concerto. Deixe-o beber um pouco, mas não lhe dê dinheiro para o resto.

   Dédée não respondeu nada; embora eu tenha visto como suas mãos dobravam e dobravam as notas, até que desaparecessem. Pelo menos tenho certeza de que Dédée não fuma. A sua única cumplicidade pode nascer do medo ou do amor. Se Johnny se ajoelhar, como vi em Chicago, e implorar chorando... Mas é um risco como tantos outros com Johnny, e no momento haverá dinheiro para comida e remédios. Na rua levantei a gola da capa de chuva porque começava a chuviscar e respirei até doer os pulmões; Pareceu-me que Paris tinha um cheiro limpo, como pão quente. Só agora percebi o cheiro do quarto de Johnny, o corpo de Johnny suando debaixo do cobertor. Entrei num café para beber um conhaque e lavar a boca, talvez também a memória que insiste e insiste nas palavras de Johnny, nas suas histórias, na sua maneira de ver o que não vejo e no fundo não quero ver . Comecei a pensar depois de amanhã e foi como uma paz de espírito, como uma ponte bem colocada do balcão até a frente.


**FIM**

As Armas Secretas , 1959

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Você também pode ler:

Sarau... O perseguidor (c) - (Julio Cortázar)
Sarau... O perseguidor (b) - (Julio Cortázar)

sábado, 16 de março de 2024

Tina The Best

Tina Turner
 
- The Best 







I Don't Wanna Lose You
Eu Não Quero Te Perder

Oh
Oh, oh

Mulheres de uma certa idade
Elas aprendem a confiar e seu trabalho é analisar respostas
Tendo jogado o jogo da sedução
Ela não perde tempo, porque tudo o que ela quer é
Devoção real e honesta
Daquelas que ele não consegue esconder
Embora eu mal saiba o seu nome
Eu sei sobre o amor e eu sei que

Eu não quero te perder
Eu nem sequer quero dizer adeus, oh, não
Eu só quero me apegar a esse
Amor verdadeiro, amor verdadeiro

Mulheres que cometeram erros
Têm um pouquinho de medo
Elas não gostam de se arriscar
Ela jogará o jogo da paciência
Ela nunca se impressiona com aqueles avanços masculinos
Eu sei que acabei de te conhecer
Amor, eu já devia saber
Mas quando você me olha desse jeito
Há algo aqui dentro que é tão certo

Eu não quero te perder
Eu nem sequer quero dizer adeus, oh, não
Eu só quero me apegar a esse
Amor verdadeiro, amor verdadeiro

Eu não quero te perder
E eu quero sempre me sentir desse jeito, oh, sim
Porque toda vez que estou com você, eu sinto
Amor verdadeiro, amor verdadeiro

Me diga que você é honesto
Você não está fingindo
Vamos fazer um acordo
Porque meu coração está dependendo de você, oh
Oh, amor

Eu não quero te perder
Eu nem sequer quero dizer adeus, oh, não
Eu só quero me apegar a esse
Amor verdadeiro, amor verdadeiro

Eu não quero te perder
E eu quero sempre me sentir desse jeito, oh, sim
Porque toda vez que estou com você, eu sinto
Amor verdadeiro, amor verdadeiro (amor verdadeiro)

Eu não quero te perder
Eu nem sequer quero dizer adeus, oh, não
Eu só quero me apegar a esse
Amor verdadeiro, amor verdadeiro

(Eu não quero te perder) eu não quero te perder
E eu quero sempre me sentir desse jeito, oh, sim
Porque toda vez que estou com você, eu sinto
Amor verdadeiro, amor verdadeiro

Composição: Graham Lyle / Albert Hammond Jr.







Tina Turner & Eros Ramazzotti 
- Cose Della Vita - Ao Vivo Munich 1998






Mad Max: Beyond Thunderdome 
• We Don't Need Another Hero 
Tina Turner





o começo...


Ike & Tina Turner 
- Proud Mary live on Italian TV 1971





um breve resumo...


Assim Foi 
A VIDA De TINA TURNER 
| A Rainha Do Rock






Greatest Hits Full Album 
- Tina Turner Best Songs Playlist





TINA TURNER 
- A incrível trajetória de vida e a canção THE BEST 
| Por Dentro Da Canção #45





TINA: A VERDADEIRA HISTÓRIA DE TINA TURNER (1993) 
- DUBLADO



Memórias - 10: família e vacas

No se puede hacer la revolucion sin las mujeres

Livro Dois

baitasar

Memórias

10 – família e vacas

Juanito foi o único dos filhos e filhas que ficou para tocar o negócio de espremer e puxar tetas do velho Caraca quando uma das mãos do pai endureceu torta, adoecimento conhecido como desgraça de um lado só

o homem deitou alinhado, acordou velho e desarrumado, um dos lados deformado, justamente o lado que mais usava

por algum motivo acharam que deveriam benzer, mesmo desconfiando de tudo, algum mau jeito ou golpe de ar, até quem sabe, praga de um dos filhos, chamaram dona Lothária para benzimento

chegou com um galho de arruda atrás da orelha, toda vestida de simplicidade, voz arrastada e áspera, perguntou de alguma queda, Só se foi da cama, respondeu Juanito, Não é bastante pra tanto estrago... alguma batida ou golpe de ar, Não, dona Lothária, ele deitou reto e acordou torto da boca, da mão e do pé.

deu para ver que estava desconsertada e sem entender do porquê daquele entortamento súbito, a ansiedade só fazia aumentar, Vô benzê... mais cura não prometo, vai sê benzedura pra num piorá o aleijume que já tá bem ruim.

aquela benzedura foi só pra ninguém dizer que nada foi feito ou tentado, tudo que era gente sabia, mesmo sem entender tudo, que o velho tinha dado meia volta na vida

Juanito saiu, foi desabafar com suas vacas, desconfiava que tudo estava mudando com jeito de não voltar atrás

embora não abandonasse da ideia das benzeduras, o médico da vila não lhe deu nenhum alento que algo feito pudesse desentortar o que já estava torto, percebeu que a vida apontava novos caminhos que devia trilhar, escutava vozes das suas vacas na cabeça, elas estavam à sua volta, fechou os olhos para ver com o coração

o tempo foi acomodando a vida, dia após dia, o velho Caraca parecia forte e quase cheio de vida, mas bastava desviar atenção para direita e ele se mostrava como alguém que se perdia para algum propósito casual, olhar enviesado pelo canto mais apropriado, a mão sem força para espremer e puxar, conformada com a moldura de garra, a perna dura com pé apontando à esquerda

o crepúsculo passou espreitar a vida como um bêbado desalinhado, a pálpebra do olho erguida pela metade, boca e olhar perdidos da forma de prontidão, língua confusa e pastosa, sem a conversa consistente com suas vacas, foi assim que os gritos do velho cessaram

daquela voz poderosa ficara apenas o rosnar indefeso dos gatinhos, como um sussurro sem malícia em meio ao caos, perdera aparência ameaçadora, na verdade, ficara inofensivo, e até mesmo frágil

o braço se contraiu para dentro de si mesmo, a mão e as pinças ficaram em desenho de concha, não apertavam mais os úberes nem levavam à boca o fumo de palha, para esse serviço deixou no seu lado uma índia velha e cansada para reclamar, montava o seu palheiro e oferecia acesso na mão boa

passou a viver uma vida desencantada em algum canto do casarão com sua teimosia e vício de defumar seu fumo de corda

a velha índia afastada dos seus quefazeres montava guarda ao lado do velho, usava as mãos para acender no velho a chama do fumo de corda enrolado e mijado, trocava palha de milho e fraldas, os panos que o velho Caraca passou usar no meio das pernas

o palheiro se recusava abandonar, repetia que sempre que soprava fumaça estranhos poderes surgiam, plantas cresciam mais rápido, curava ferimentos e até mesmo afugentava criaturas perigosas do mato

com o passar das histórias de boca em boca, os poderes do velho Caraca se espalharam pelo tambo, algumas vacas passaram a temê-lo, outras se maravilhavam com suas novas habilidades para proteger o mato, ajudar as vacas que precisavam ajuda

foi tornando-se uma lenda entre o gado

apesar dos avisos dos médicos para parar de fumar, continuou fumando seu palheiro e se afumentando nas mãos da velha índia, repetia que seus poderes com as vacas estavam diretamente ligados ao seu fumo de corda, Esses doutores não sabem de nada, tudo enganação.

sua teimosia combinada com o fumo, fez dele um personagem para ser esquecido através das gerações, o fumante teimoso com poderes mágicos de conversar com vacas, um mito entortado

a perna continuava durona de não se dobrar, caminhar passou a ser um gesto desumano de equilíbrio e acidentes

o velho havia perdido harmonia das coisas simples, perdeu o fio prumo e o poder do chicote que lançava no ar, lambia o chão ao lado dos filhos sempre que algum guri enfraquecia ou parava de apertar e puxar tetas, Por que o descansado parou? A teta não derrama sozinha!

pararam os gritos e estalos no chão, restaram as fraldas, babeiros e a índia velha

um a um, os filhos e filhas que restavam no tambo foram embora, doze resistiram de um total de vinte e um até a idade de fugirem para o mundo, bem antes, cada um dos filhos do velho Caraca aprendeu começar e terminar suas tarefas nos estábulos da vacaria

todo dia, o chicote convencia qualquer vontade em contrário e deixava suas marcas no chão

o filho que lhe sobrou jurou, Papá... filho meu jamais vai conhecer golpe de trança de couro!

Assim, seja, amém...

depois, o velho ficava quieto

não sabia mais o que lhe responder, nada parecia lhe interessar além do palheiro na boca e trocar as fraldas

Papá, desconfio que a vida é só família e vacas...

E a Pátria, Juanito! E a Pátria..., levou a mão desgarrada até o canto da boca, sentia a baba melosa escorrendo

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Memórias - 10: família e vacas