terça-feira, 15 de julho de 2025

MPB: Sutilmente

Skank, Nando Reis

- Sutilmente







E quando eu estiver triste
Simplesmente me abrace

Quando eu estiver louco
Subitamente se afaste

Quando eu estiver fogo
Suavemente se encaixe

E quando eu estiver triste
Simplesmente me abrace

E quando eu estiver louco
Subitamente se afaste

E quando eu estiver bobo
Sutilmente disfarce, yeah
Mas quando eu estiver morto
Suplico que não me mate, não
Dentro de ti
Dentro de ti

Mesmo que o mundo acabe, enfim
Dentro de tudo que cabe em ti
Mesmo que o mundo acabe, enfim
Dentro de tudo que cabe em ti, yeah

E quando eu estiver triste
Simplesmente me abrace

E quando eu estiver louco
Subitamente se afaste

E quando eu estiver bobo
Sutilmente disfarce, yeah
Mas quando eu estiver morto
Suplico que não me mate, não
Dentro de ti
Dentro de ti

Mesmo que o mundo acabe, enfim
Dentro de tudo que cabe em ti
Mesmo que o mundo acabe, enfim
Dentro de tudo que cabe em ti, yeah

Mesmo que o mundo acabe, enfim
Dentro de tudo que cabe em ti
Mesmo que o mundo acabe enfim
Dentro de tudo que cabe em ti, yeah

Compositores: Jose Fernando Gomes Dos Reis / Samuel Rosa De Alvarenga

Letra de Sutilmente © Infernal Producoes Artisticas S/c Ltda, Frege Edicoes Musicais Ltda, Sam Music Edicoes Musicais Ltd, Relicario Producoes Artisticas Ltda

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Sutilmente

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (2a.Parte - Por outro lado)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes

Segunda Parte

Capítulo Segundo

     Por outro lado, Albertine mantinha, reunidas a seu redor, todas as impressões de uma série marítima que me era especialmente cara. Parece-me que poderia, nas duas faces da moça, beijar toda a praia de Balbec. 

- Se na verdade me permite que a beije, preferiria deixar isto para mais tarde e escolher bem o momento. Apenas seria necessário que você então não se esquecesse da permissão. Preciso de um "vale para um beijo", - Preciso assiná-lo? 
- Mas, se eu o cobrasse logo, ainda assim teria outro mais tarde? 
- Você me diverte com seus "vales"; vou lhe passar um de vez em quando. 
- Diga-me outra coisa; você sabe, em Balbec, quando ainda não a conhecia, muitas vezes você tinha um olhar duro, astucioso; pode me dizer em que pensava naqueles instantes? 
- Ah, não tenho a menor lembrança. 
- Olhe, para ajudá-la: um dia a sua amiga Gisele saltou de pés juntos sobre a cadeira em que estava sentado um velho senhor. Tente lembrar-se do que estava pensando nesse momento. 
- Gisele era com quem menos andávamos; ela pertencia ao pequeno grupo, se quiser, mas não inteiramente. Devo ter pensado que ela era vulgar e bem mal-educada.
- Ah! É tudo?

     Bem que eu gostaria, antes de beijá-la, poder invadi-la do mistério que ela possuía para mim na praia antes que a conhecesse, reencontrar nela a região em que vivera antes; pelo menos, no seu lugar, se não a conhecesse, podia insinuar todas as recordações de nossa vida em Balbec, o rumor das ondas rebentando sob a minha janela, os gritos das crianças. Porém, deixando meu olhar deslizar sobre o belo globo róseo de suas faces, cujas superfícies, docemente encurvadas, vinham morrer aos pés das primeiras pregas de seus lindos cabelos negros, que corriam em cadeias movimentadas, erguiam seus contrafortes escarpados e modelavam as ondulações de seus vales, disse comigo:

"Enfim, não tendo conseguido em Balbec, vou saber o gosto da rosa desconhecida que são as faces de Albertine. E, já que os círculos por que podemos fazer atravessar as coisas e os seres, no transcurso da nossa existência, não são muito numerosos, talvez eu possa considerar a minha como de certo modo cumprida quando, tendo feito sair de seu quadro longínquo o rosto florido que havia escolhido entre todos, o tiver trazido para este novo plano onde por fim o conhecerei através dos lábios." Dizia-me isto porque achava que havia um conhecimento pelos lábios; dizia-me que ia conhecer o gosto dessa rosa carnal porque não havia imaginado que o homem, criatura evidentemente menos rudimentar que o ouriço-do-mar ou mesmo a baleia, é no entanto desprovido ainda de um certo número de órgãos essenciais e, principalmente, não possui nenhum que sirva para o beijo. Supre esse órgão ausente por meio dos lábios, pelos quais chega talvez a um resultado um pouco mais satisfatório do que se estivesse reduzido a acariciar a bem amada com uma defesa de cornos. Porém os lábios, feitos para trazer ao paladar o sabor das coisas que os tentam, devem contentar-se, sem compreender seu erro e sem confessar sua decepção, em vagar na superfície e se chocar diante da cerca da face impenetrável e desejada. Aliás, nesse momento, ao próprio contato da carne, os lábios, mesmo na hipótese de que se tornassem mais hábeis e mais bem-dotados, sem dúvida não poderiam degustar com maior intensidade o sabor que a natureza atualmente os impede de alcançar, pois, nessa zona desolada em que não conseguem encontrar seu alimento, acham-se eles sozinhos, já que o olhar e, depois, o olfato os abandonaram há muito. Primeiro, à medida que minha boca principiou a se aproximar das faces que meus olhares lhe tinham proposto que beijasse, estes, desviando-se, viram faces novas; o pescoço, examinado de mais perto e como que à lupa, mostrou nos sulcos da pele uma robustez que modificou o caráter do rosto.

     As últimas aplicações da fotografia que deitam aos pés de uma catedral todas as casas que nos tinham parecido muitas vezes, de perto, quase tão altas como as torres, fazem manobrar sucessivamente, como um regimento, por fileiras, em ordem dispersa, em massas cerradas, os mesmos monumentos, aproximam uma da outra as duas colunas da Piazzetta há pouco tão distantes, afastam a próxima Santa Maria della Salute e, num fundo pálido e degradado, conseguem fazer caber um horizonte imenso sob o arco de uma ponte, no vão de uma janela, entre as folhas de uma árvore situada no primeiro plano e de tom mais vigoroso, dão sucessivamente por moldura, a uma mesma igreja, as arcadas de todas as outras -, não vejo senão isto que possa, assim como o beijo, fazer surgir, daquilo que julgamos algo de aspecto definido, as cem outras coisas que ela também é, visto cada uma estar em relação a uma perspectiva não menos legítima. Em suma, assim como em Balbec, Albertine muitas vezes me parecera diferente, agora, como se, ao acelerar prodigiosamente a rapidez das mudanças de coloração que nos oferece uma pessoa em nossos diversos encontros com ela, eu quisesse fazê-las caber todas em poucos segundos para recriar experimentalmente o fenômeno que diversifica a individualidade de uma criatura e extrair umas das outras, como de um estojo, todas as possibilidades que ela encerra, naquele curto trajeto de meus lábios às suas faces foram dez Albertines que vi; essa única moça, como uma deusa de várias cabeças, quando eu tentava aproximar-me da que vira por último, dava lugar a uma outra. Pelo menos, aquela cabeça, enquanto eu não a tocara, eu a estava enxergando, e um leve perfume vinha dela até mim. Mas infelizmente pois para o beijo, as nossas narinas são tão mal colocadas como nossos lábios, e mal feitas -, de repente meus olhos deixaram de ver, e por sua vez o nariz, esmagando-se, não percebeu mais qualquer aroma; e, sem conhecer mais, por isso, o gosto do rosa desejado, compreendi, por esses indícios detestáveis, que estava afinal beijando as faces de Albertine.  
     Seria porque representávamos (configurada pela revolução de um sólido) a cena inversa da de Balbec, porque eu estava deitado e ela erguida; capaz de esquivar-se a um ataque brutal e de manejar prazer a seu gosto, que ela me deixou agora tomar com tanta facilidade o que havia recusado antes com um ar tão severo? (Sem dúvida, desse ar de antigamente, a expressão de volúpia que seu rosto assumia hoje à aproximação de meus lábios só diferia por um desvio infinitesimal de linhas, mas no qual pode caber toda a distância que há entre o gesto de um homem que liquida com um ferido e o de um que o socorre, entre um retrato sublime e um horroroso.) Sem saber que tinha de fazer as honras e mostrar-me grato pela sua mudança de atitude a algum benfeitor involuntário que, nos últimos meses, em Paris ou em Balbec, trabalhara por mim, pensei que o modo como estávamos colocados fosse o motivo principal daquela mudança. No entanto, foi outro motivo o que me forneceu Albertine; exatamente este:

- Ah, é que naquela ocasião, em Balbec, eu não o conhecia; podia julgar que você tivesse más intenções. 

     Essa explicação me deixou perplexo. Sem dúvida, Albertine falara sinceramente. Uma mulher tem tamanha dificuldade em reconhecer nos movimentos de seus membros, nas sensações experimentadas pelo seu corpo, durante uma conversa íntima com um camarada, a falta desconhecida em que receava que um estranho premeditasse fazê-la cair!
     Em todo caso, fossem quais fossem as modificações ocorridas desde algum tempo em sua vida e que talvez explicassem que cedesse tão facilmente, ao meu desejo momentâneo e puramente físico, aquilo que em Balbec recusara horrorizada ao meu amor, uma outra bem mais espantosa se produziu em Albertine, naquela mesma tarde, logo que suas carícias me trouxeram a satisfação que ela bem deve ter notado e que eu temia viesse a causar-lhe o pequeno movimento de repulsa e pudor ofendido que Gilberte havia tido em caso semelhante, por detrás do bosque de loureiros, nos Champs-Élysées. Ocorreu exatamente o contrário. No momento em que a deitara na minha cama e começara a acariciá-la, Albertine já tomara um aspecto que não lhe conhecia, de boa vontade dócil, de simplicidade quase pueril. Apagando nela todas as preocupações, todas as presunções habituais, o momento que precede o prazer, semelhante nisso ao que se segue à morte, restituíra-lhe aos traços rejuvenescidos como que a inocência dos primeiros anos. E, sem dúvida, toda criatura cujo talento é subitamente posto em jogo torna-se modesta, aplicada e encantadora; sobretudo se, pelo talento, sabe nos dar um grande prazer, ela própria se sente feliz com isso, quer dá-lo o mais completo possível. Mas, nessa nova expressão do rosto de Albertine, havia, mais que desinteresse, consciência e generosidade profissionais, uma espécie de devotamento convencional e repentino; e era mais além da própria infância, era à juventude de sua raça que ela havia regressado. Bem diversa de mim, que desejara unicamente um apaziguamento físico enfim obtido. Albertine parecia achar que teria havido de sua parte certa grosseria em julgar que esse prazer material não fosse acompanhado de um sentimento moral e rematasse alguma coisa. Ela, tão apressada há pouco, agora, sem dúvida por achar que os beijos importam em amor e que o amor está acima de qualquer outro dever, dizia, quando lhe recordava o seu jantar: 

- Mas, ora, isto não quer dizer nada, tenho tempo de sobra.  

     Parecia constrangida em erguer-se imediatamente, depois de tudo o que acabara de fazer, constrangida pelo decoro, como Françoise quando julgara, sem ter sede, dever aceitar com satisfação decente o copo de vinho que Jupien lhe oferecera, não se atrevendo a sair logo depois de ter bebido o último gole, mesmo que a chamasse algum dever imperioso. Albertine e esta era talvez, com uma outra que mais tarde se verá, uma das razões que, sem eu saber, me haviam feito desejá-la era uma dessas encarnações da camponesinha francesa cujo modelo está em pedra em Saint-André-des-Champs. De Françoise, que no entanto deveria tornar-se em breve sua inimiga mortal, reconheci nela a cortesia para com o hóspede e o estranho, a decência, o respeito pela cama.
     Françoise, que, após a morte da minha tia, julgava poder falar apenas num tom compungido, teria achado chocante, nos meses que precederam o casamento da filha, que esta, passeando com o noivo, não lhe desse o braço. Albertine, imobilizada junto a mim, dizia-me: 

- Você tem lindos cabelos, olhos muito bonitos; você é gentil.

     Como lhe dissesse, ao observar-lhe que já era tarde: 

- Não acredita em mim? ela me respondeu, o que talvez fosse verdade, mas somente desde dois minutos e durante algumas horas:
- Sempre acredito em você.

     Falou-me de mim, da minha família, do meu ambiente social. Disse: 

- Oh, sei que seus pais conhecem pessoas importantes. Você é amigo de Robert Forestier e Suzanne Delage. -

     No primeiro minuto, esses nomes não me disseram absolutamente nada. Mas de súbito me lembrei que de fato brincara com Robert Forestier nos Champs-Élysées, e que depois jamais voltara a vê-lo. Quanto a Suzanne Delage, era a sobrinha-neta da Sra. Blandais, e eu deveria uma vez ter ido a uma aula de dança em casa de seus pais, onde chegaria mesmo a ter um papel numa comédia de salão. Mas o medo de rir feito um louco e de botar sangue pelo nariz me impediram de comparecer, de modo que nunca mais voltara a vê-la. Quando muito, julgara ter compreendido outrora que a governanta de pluma dos Swann tinha estado em casa de seus pais, mas talvez se tratasse apenas de uma irmã dessa governanta, ou de uma amiga. Garanti a Albertine que Robert Forestier e Suzanne Delage tinham pouco a ver com a minha vida. 

- É possível, mas suas mães são amigas; isto permite situar você. Várias vezes cruzo com Suzanne Delage na Avenida de Messiney ela é muito chique. -

     Nossas mães só se conheciam na imaginação da Sra. Bontemps que, tendo sabido que outrora eu brincara com Robert Forestier, ao qual, parece, recitava versos, concluíra daí que éramos ligados por relações de família. Ela jamais deixava, segundo me disseram, passar o nome de mamãe sem exclamar: 

- Ah, sim, é o ambiente dos Delages, dos Forestiers, etc. -, dando a meus pais um ponto a favor que eles não mereciam.

     Aliás, as noções sociais de Albertine eram de uma total estupidez. Julgava os Simonnets com dois “nn” inferiores não apenas aos Simonets com um “n” só, mas a todas as outras pessoas possíveis. Que alguém tenha o mesmo nome que a gente, sem ser da nossa família, é um grande motivo para desdenhá-lo. Certamente, existem exceções.
     Pode acontecer que dois Simonnets (apresentados um ao outro numa dessas reuniões onde se tem necessidade de falar de qualquer coisa e onde, aliás, sentimo-nos cheios de disposições otimistas, por exemplo no cortejo de um enterro que vai para o cemitério), vendo que se chamam do mesmo modo, procurem, com benevolência recíproca, e sem resultado, saber se têm algum parentesco. Mas isto é só uma exceção. Muitos homens são pouco honrados, mas nós ignoramos ou não nos preocupamos com tal. Mas, se a homonímia faz com que nos remetam cartas a eles destinadas, ou vice-versa, começamos a desconfiar, muitas vezes justificadamente, do quanto eles valem. Receamos confusões, prevenimo-las com um esgar de nojo se nos falam deles. Lendo no jornal o nosso nome, que eles trazem, parece-nos que o usurparam. Os pecados dos outros membros do corpo social nos são indiferentes. Descarregamo-los mais pesadamente sobre nossos homônimos. O ódio que sentimos pelos outros Simonnets é tão mais intenso por não ser individual, mas por transmitir-se hereditariamente. Ao cabo de duas gerações, a gente se lembra apenas da careta insultante que os avós tinham para com os outros Simonnets; ignoramos a sua causa; não ficaríamos espantados ao saber que aquilo principiou com um assassinato. Até o dia frequente em que, entre uma Simonnet e um Simonnet que absolutamente não têm qualquer parentesco, tudo isso acaba em casamento.
     Não só Albertine me falou de Robert Forestier e de Suzanne Delage, mas espontaneamente, por um dever de confidência, criado pela aproximação dos corpos, ao menos no começo, durante uma primeira fase e antes que tenha engendrado uma duplicidade especial e o segredo para com o mesmo ser, Albertine me contou, sobre sua família e um tio de Andrée, uma história da qual se recusara, em Balbec, a me dizer uma só palavra, mas achava que não devia mais ter segredos comigo. Agora, mesmo que sua melhor amiga lhe tivesse dito algo contra mim, ela se sentiria no dever de contar-me. Insisti para que voltasse para casa; Albertine acabou saindo, mas tão confusa, por mim, devido à minha grosseria, que quase ria para me desculpar, como uma dama a cuja casa comparecemos de paletó, que nos aceita assim, mas sem que isso lhe seja indiferente.

- Está rindo? - disse-lhe. 
- Não rio, estou sorrindo - respondeu com ternura. - Quando irei revê-lo? - acrescentou, como se não admitisse que aquilo que acabáramos de fazer, visto que de costume é o coroamento, não fosse ao menos o prelúdio de uma grande amizade, de uma amizade preexistente e que devíamos descobrir, confessar, e que só ela poderia explicar aquilo a que nos entregáramos. 
- Já que me autoriza a tanto, quando puder, mandarei buscá-la. 

     Não tive coragem de lhe dizer que queria subordinar tudo à possibilidade de ver a Sra. de Stermaria.

- Ai de mim! Será de improviso, nunca sei por antecipação - disse-lhe. - Seria possível mandar buscá-la na tarde em que eu estiver livre? 
- Em breve será bem possível, pois terei uma entrada independente da de minha tia. Mas neste momento é impraticável. Em todo caso, virei ao ocaso amanhã ou depois de amanhã, à tarde. Só me receba se puder. 

     Chegando à porta, espantada porque eu não a havia precedido, estendeu-me o rosto, achando que não havia necessidade alguma de um grosseiro desejo físico para que agora nos beijássemos. Como as curtas relações que tínhamos tido juntos eram pouco dessas a que às vezes conduzem uma intimidade absoluta e uma escolha de coração, Albertine julgara dever improvisar e acrescentar momentaneamente, aos beijos que havíamos trocado na cama, o sentimento de que esses beijos teriam sido o emblema para um cavaleiro e sua dama, tais como os podia conceber um jogral gótico.
     Quando me deixou a jovem picarda, que o imagista de Saint-André-des-Champs teria podido esculpir em seu pórtico, Françoise me trouxe uma carta que me encheu de alegria, pois era da Sra. de Stermaria, que aceitava jantar comigo na quarta-feira. Da Sra. de Stermaria, ou seja, para mim, mais que da Sra. de Stermaria real, daquela em que eu havia pensado o dia inteiro antes da chegada de Albertine. É esse o terrível engano do amor, que nos faz brincar com uma mulher não do mundo exterior, mas com uma boneca no interior do nosso cérebro, a única, aliás, que podemos ter sempre à nossa disposição, a única que possuiremos, que o arbítrio da lembrança, quase tão absoluto como o da imaginação, pode também ter feito diferente da mulher real como da Balbec real fora para mim a Balbec sonhada; criação fictícia à qual, pouco a pouco, para nosso sofrimento, forçaremos a mulher real a se assemelhar.
     Albertine me atrasara tanto que a comédia acabava de terminar, quando cheguei à casa da Sra. de Villeparisis; e, pouco interessado em ir de encontro à onda de convidados que se escoava comentando a grande novidade, a separação, que diziam ser já coisa liquidada, entre o duque e a duquesa de Guermantes, e esperando o momento de poder saudar a dona da casa, estava sentado numa poltrona vazia no segundo salão quando, do primeiro, onde sem dúvida estivera sentada na primeira fila, vi sair, majestosa, ampla e alta, num longo vestido de cetim amarelo, ao qual estavam aplicadas em relevo imensas papoulas negras, a duquesa. Sua vista já não me perturbava. Certo dia, pondo as mãos na minha testa (como era seu hábito quando receava me fazer mal), e dizendo-me:

"Não continues com tuas saídas para encontrar a Sra. de Guermantes, és o motivo de troça da casa. Além disso, vê como a tua avó está passando mal, na verdade tem coisas mais sérias a fazer do que te postares no caminho de uma mulher que zomba de ti", de um só golpe, como um hipnotizador que nos faz regressar de um país longínquo onde imaginávamos estar, e nos reabre os olhos, ou como o médico que, apelando para nosso sentimento do dever da realidade, cura-nos do mal imaginário que alimentávamos minha mão me havia despertado de um sonho longo demais. O dia seguinte fora dedicado a dar um último adeus a esse mal a que eu renunciava; tinha cantado, chorando, durante horas inteiras, o "Adeus" de Schubert:

- Adeus, vozes estranhas Te chamam para longe, celeste irmã dos Anjos.

     E depois, tudo acabado. Terminei com minhas saídas matutinas, e tão facilmente, que extraí então o prognóstico, que mais tarde veremos ter sido falso, de que me habituaria com facilidade, no decurso da existência, a deixar de ver uma mulher. E, quando, logo depois, Françoise me contou que Jupien, desejoso de aumentar seus negócios, procurava uma loja no bairro, querendo eu encontrar-lhe uma (também feliz da vida, a flanar pela rua que já do meu leito ouvia gritar luminosamente como uma praia, de ver, sob a cortina de ferro erguida das leiterias, as pequenas leiteiras de alvas mangas), pude recomeçar minhas saídas. De resto, com maior liberdade; pois tinha consciência de não mais fazê-las com a finalidade de ver a Sra. de Guermantes: como uma mulher, que toma infinitas precauções quando tem um amante e que, desde o dia em que rompeu com ele, deixa suas cartas ao acaso, com o risco de revelar ao marido o segredo de uma falta com que deixou de se assustar ao mesmo tempo que cessou de cometê-la. 
     O que me dava pena era saber que quase todas as casas eram habitadas por gente infeliz. Aqui, a mulher chorava sem parar porque o marido a enganava. Ali, dava-se o contrário. Além, uma mãe trabalhadora, moída de pancadas por um filho bêbado, procurava ocultar seus sofrimentos aos olhos dos vizinhos. Uma metade inteira da humanidade chorava. E, quando a conheci, vi que era tão exasperante que me perguntei se o marido ou a mulher é que tinham razão, e seriam adúlteros apenas porque a genuína felicidade lhes fora recusada e se mostravam leais e gentis para com qualquer pessoa que não fosse a esposa ou o marido. Em breve, já não tinha sequer a desculpa de ser útil a Jupien para continuar minhas romarias matinais. Pois soube se que o marceneiro do nosso pátio, cuja oficina era separada da loja de Jupien somente por um tabique delgado, ia ser despedido pelo gerente porque dava marteladas muito barulhentas. Jupien não podia esperar nada melhor, as oficinas possuíam um subsolo, onde ele poderia guardar os trabalhos de madeira, e que se comunicava com a nossa adega. Jupien colocaria ali o seu carvão, arrancaria o tabique e disporia de uma loja única e ampla. Além disso, como achasse muito elevado o aluguel que o Sr. de Guermantes cobrava, deixava que visitassem o local para que, desanimado por não encontrar locatário, o duque se resignasse a lhe fazer um abatimento, e então Françoise, tendo reparado que, mesmo após a hora das visitas, o porteiro deixava encostada a porta da loja a alugar, logo farejou um ardil do porteiro para atrair a noiva do lacaio dos Guermantes (ali estes achariam um recanto de amor) e a seguir surpreendê-los.
     Fosse como fosse, embora não tendo mais de procurar uma loja para Jupien, continuei a sair antes do almoço. Muitas vezes, nessas saídas, encontrei o Sr. de Norpois. 
     Ocorria que, conversando com um colega, ele me lançava um olhar que, depois de me examinar da cabeça aos pés, se desviava para seu interlocutor sem sequer me sorrir nem saudar, como se absolutamente não me conhecesse. Pois entre esses diplomatas importantes, olhar de uma certa maneira não tem por finalidade nos fazer saber que nos viram, e sim que não nos viram e que têm a falar assuntos sérios com o colega. Menos discreta comigo era uma mulher alta, com quem cruzara seguidamente perto de casa. Pois, embora não a conhecesse, ela se virava para mim, esperava-me inutilmente diante das vitrines, sorria-me como se fosse me beijar, fazia o gesto de se entregar. Retomava o ar glacial para comigo se encontrava algum conhecido seu. Desde há muito, nessas andanças matinais, conforme o que eu tivesse a fazer, mesmo que fosse para comprar o jornal mais insignificante, escolhia o caminho mais direto, sem lastimar se estava fora do percurso habitual dos passeios da duquesa e se ao contrário, dele fazia parte, sem escrúpulos e sem dissimulação porque já não me parecia o caminho proibido onde eu arrancaria a uma ingrata o favor de vê-la a seu pesar. Mas eu não imaginara que a minha cura, dando-me relativamente à Sra. de Guermantes uma atitude normal, ao mesmo tempo realizaria a mesma obra no tocante a ela e tornaria possível uma amabilidade e uma amizade que já não me importavam mais. Até então os esforços do mundo inteiro reunidos para me aproximarem dela teriam sido em vão diante da má sorte que lança um amor infeliz. Fadas mais poderosas que os homens decretaram que, em tais casos, nada poderá servir até o dia em que tivermos dito sinceramente em nosso coração as palavras: 

"Já não amo." 

     Ficara querendo mal a Saint-Loup por não me ter levado à casa de sua tia. Porém, tanto quanto qualquer pessoa, ele não era capaz de quebrar um encanto. Enquanto amava a Sra. de Guermantes, as provas de gentileza que recebia de outrem, os cumprimentos, tudo isso não fazia sofrer, não só porque não vinham dela, mas porque ela não saberia deles. Ora, mesmo que ela soubesse, isso não teria sido de nenhuma utilidade. Até nos detalhes de uma afeição, uma ausência, a recusa de um jantar, um rigor involuntário, inconsciente, servem mais que todos os cosmos e as roupas mais belas. Haveria arrivistas, se se ensinasse neste setor a arte de ser arrivista.
     No momento em que ela atravessava o salão onde eu estava sentado, com o pensamento cheio da lembrança de amigos que eu não conhecia e que ela ia talvez reencontrar dali a pouco em um outro sarau, a Sra. de Guermantes me viu na poltrona, verdadeiro indiferente que tentava apenas ser amável, quando, enquanto amava, tanto e tão inutilmente havia tentado assumir um ar de indiferença; ela esquinou, veio até mim e, recobrando o sorriso da noite da ópera e que o sentimento penoso de ser amada por alguém a quem não amava não mais podia apagar: 

- Não, não se incomode; permita-me que me sente por um instante a seu lado? -disse-me, juntando graciosamente a sua saia imensa que sem isto teria ocupado toda a poltrona. 

     Mais alta que eu, e aumentada ainda de todo o volume de seu vestido, era eu quase roçado por seu admirável braço despido em torno ao qual uma penugem imperceptível e inumerável fazia fumegar, perpetuamente, como que um vapor dourado, e pelos cachos louros dos cabelos que me enviavam o seu aroma. Não dispondo de espaço, ela não podia virar-se facilmente para mim e, obrigada a olhar para diante mais que para o meu lado, assumia uma expressão doce e sonhadora, como num retrato. 

- Tem notícias de Robert? - indagou. 

     A Sra. de Villeparisis passou nesse momento. 

- Muito bem! O senhor chega numa bela hora, pelo muito que o vemos...  

     E notando que eu falava com sua sobrinha, talvez imaginando que éramos mais ligados do que pensava: 

- Mas não quero atrapalhar a sua conversa com Oriane - acrescentou (pois os bons ofícios da alcoviteira fazem parte dos deveres de uma dona de casa). - Não quer vir jantar quarta-feira com ela?

     Era o dia em que eu devia jantar com a Sra. de Stermaria. Recusei: 

- E sábado?

     Voltando minha mãe no sábado ou no domingo, seria pouco gentil não ficar para jantar todas as noites com ela; portanto, recusei de novo. 

- Ah, o senhor não é um homem fácil de se ter em casa.
- Por que nunca vai me visitar? - perguntou a Sra. de Guermantes quando a Sra. de Villeparisis se afastou para felicitar os artistas e enviar à diva um buquê de rosas, cujo único valor estava na mão que o oferecia, pois só custara vinte francos. (Aliás, era este o seu prêmio máximo quando só cantara uma vez. As que prestavam seu concurso em todas as matinês e vesperais recebiam rosas pintadas pela marquesa.) - É aborrecido vê-lo apenas na casa dos outros. Já que não quer jantar comigo na casa de minha tia, por que não vir jantar em minha casa? 

     Algumas pessoas que se haviam demorado o mais possível, sob qualquer pretexto, e que por fim saíam, vendo a duquesa sentada a conversar com um rapaz, num móvel tão estreito que nele só cabiam duas pessoas, pensaram que tinham sido mal informados, que era o duque e não a duquesa quem pedia a separação, e por minha causa; e apressaram-se a espalhar a novidade. Eu estava em melhores condições que ninguém para conhecer a falsidade daquilo. Mas surpreendia-me que, nesses períodos difíceis em que se realiza uma separação, ainda não consumada, a duquesa, em vez de se isolar, convidasse justamente alguém que conhecia tão pouco. Tive a suspeita de que o duque fora o único a não querer que ela me recebesse e que, agora que a abandonava, já não via obstáculos a que ela se cercasse de pessoas que lhe agradavam. 

Thomas Mann - A Montanha Mágica: Da Cidade de Deus e da redenção pelo mal (b)

Thomas Mann

A Montanha Mágica
 
Capítulo VI

Da Cidade de Deus e da redenção pelo mal 
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     A conversa continuou a ocupar-se da Pietà, porque Hans Castorp, com olhares e palavras, se agarrava ao assunto, dirigindo-se ao Sr. Settembrini e procurando, por assim dizer, pô-lo em contato crítico com aquela obra de arte. Entretanto, a fisionomia do humanista denotava com toda a clareza o horror que lhe causava esse adorno do quarto, quando se voltou para olhá-lo; pois ao sentar-se dera as costas ao canto onde se achava a escultura. Por demais cortês para dizer tudo o que pensava, limitou-se a criticar os erros nas proporções e na anatomia do grupo, infidelidades à verdade natural, que estavam longe de comovê-lo, por não terem a sua origem na incapacidade de um artista primitivo, senão que documentavam a má vontade, um princípio fundamentalmente hostil. Nesse ponto, Naphta concordou com ele maliciosamente. Sem dúvida não se podia falar de inabilidade técnica. Tratava-se, sim, de um consciente ato do espírito que se emancipava da natureza, cuja desprezibilidade era proclamada, no sentido religioso, pela enérgica negação do menor respeito a ela. Mas Settembrini declarou que o menosprezo da natureza e de seu estudo era incompatível com a humanidade e, em oposição à absurda falta de forma, cultivada pela Idade Média e pelas épocas que a imitavam, pôs-se a encomiar em palavras eloquentes a herança greco-romana, o Classicismo, a forma, a beleza, a razão e a alegria piedosamente fundada na natureza, que eram os únicos chamados a melhorar a causa do homem. Nisso interveio Hans Castorp, perguntando o que se devia pensar, nesse caso, de Plotino, o qual expressara a vergonha que sentia de seu corpo, e de Voltaire, que em nome da razão se revoltara contra o escandaloso terremoto de Lisboa. Absurdo? Aquilo também era absurdo, mas refletindo bem podia-se chegar à opinião de que no absurdo se revelava a honestidade do espírito, e a absurda hostilidade da arte gótica contra a natureza era, em última análise, tão honesta quanto a atitude de Plotino e de Voltaire, já que nela se expressava igual emancipação do fado e do fato, e o mesmo orgulho indócil que se recusava a abdicar diante do poder estúpido que representava a natureza...
     Naphta soltou uma risada, que lembrou muito o mencionado prato rachado e terminou num acesso de tosse. Settembrini disse com distinção: 

– O senhor prejudica o nosso anfitrião mostrando tanto espírito, e dessa forma demonstra a sua falta de gratidão pelos excelentes doces. Será que o senhor tem queda para a gratidão? Refiro-me àquele tipo de gratidão que consiste em fazermos um bom uso dos presentes que recebemos...

     Ao ver que Hans Castorp ficou envergonhado, o italiano acrescentou com a maior amabilidade: 

– O senhor é conhecido como maganão, meu caro engenheiro. Seu jeito de zombar amistosamente da verdade em absoluto não me faz desesperar do amor que tem a ela. O senhor sabe muito bem que somente pode ser qualificada de honesta aquela sublevação do espírito contra a natureza, que visa à dignidade e à beleza do homem, e não a outra que tem, senão por finalidade, pelo menos por consequência, o seu aviltamento e a sua humilhação. O senhor tampouco ignora quantas atrocidades desumanas, quanta intolerância sanguinária produziu a época à qual aquele artefato que se acha atrás de mim deve a sua existência. Basta que eu lhe chame à memória esse tipo horroroso do juiz de hereges, por exemplo a sinistra figura de um Conrado de Marburgo, e o infame furor dos sacerdotes contra tudo quanto se opusesse à tirania do sobrenatural. O senhor está longe de reconhecer a espada e a fogueira como instrumentos do amor aos homens... 
–... a cujo serviço – interrompeu-o Naphta – trabalhou a máquina por meio da qual a Convenção expurgou o mundo de maus cidadãos. Todos os castigos da Igreja, inclusive a fogueira, inclusive também a excomunhão, foram impostos para salvar as almas da pena eterna, o que não se pode dizer do entusiasmo exterminador dos jacobinos. Permito-me observar que toda justiça penal e capital que não brote da fé no além é uma sandice bestial. E quanto ao aviltamento do homem, sua história coincide exatamente com a do espírito burguês. O Renascimento, a Época das Luzes, as ciências naturais e a economia política do século XIX não se esqueceram de ensinar nada, absolutamente nada, que fosse próprio para favorecer esse aviltamento, começando pela nova astronomia, em virtude da qual o centro do universo, o magnífico cenário onde Deus e o Diabo disputavam a posse da criatura por ambos almejada, foi transformado num insignificante planetazinho, e que pôs um fim provisório à grandiosa posição do homem no cosmo, sobre a qual se fundava a astrologia.
– Provisório?
 
     Quando Settembrini fez essa pergunta, ameaçadoramente, havia na sua expressão qualquer coisa de um inquisidor ou juiz de hereges que espera que a pessoa interrogada se comprometa com palavras abertamente criminosas. 

– Com efeito. Para algumas centenas de anos – confirmou Naphta friamente. – Se não nos enganam todos os sinais, estamos na iminência de uma reabilitação da escolástica, também nesse ponto. O processo já se acha em pleno andamento. Copérnico será derrotado por Ptolomeu. A teoria heliocêntrica encontra cada vez maior oposição espiritual, e as empresas inspiradas por essa resistência provavelmente surtirão êxito. A ciência sentirá a necessidade filosófica de restituir à Terra todas as honras que o dogma eclesiástico lhe queria reservar. 
– Mas como? Oposição espiritual? Necessidade filosófica? Surtir êxito? Que sorte de voluntarismo manifesta-se em tudo isso? E onde fica a pesquisa incondicional? E o conhecimento puro? Onde fica a verdade, senhor, que anda intimamente ligada à liberdade, e cujos mártires, longe de insultarem a Terra; como acha o senhor, permanecerão o eterno adorno deste astro?  

     O Sr. Settembrini tinha uma maneira vigorosa de interrogar. Estava sentado, muito ereto, e deixava cair sobre o pequeno Naphta as suas palavras honestas. Pelo fim levantou a voz poderosamente, manifestando assim a mais absoluta certeza de que a resposta do seu adversário só poderia consistir num silêncio consternado. Enquanto falava, segurava entre os dedos um pedacinho de bolo. Depois, porém, depositou-o no prato, pois ao cabo de todas essas perguntas não tinha vontade de trincá-lo.
     Naphta retrucou com uma calma desagradável: 

– Meu amigo, não existe conhecimento puro. É indiscutível a legitimidade da concepção eclesiástica da ciência, que se pode resumir nas palavras de Santo Agostinho: “Creio para que possa conhecer”. A fé é o órgão do conhecimento, e o intelecto é secundário. A sua ciência incondicional não passa de um mito. Há sempre uma fé, um conceito do mundo, uma ideia, numa palavra: uma vontade, e cabe à razão explicá-la e comprová-la. Em todos os casos, chega-se ao “Quod erat demonstrandum”. A simples ideia da prova contém, psicologicamente considerada, um elemento muito voluntarista. Os grandes escolásticos dos séculos XII e XIII eram unânimes na convicção de que na filosofia não podia ser verdade o que era falso perante a teologia. Deixemos de lado a teologia, se o senhor assim o quiser; mas uma humanidade que não reconhecesse que nas ciências naturais não pode ser verdade o que é falso perante a filosofia não seria humanidade. A argumentação do Santo Ofício ante Galileu rezava que sua tese era filosoficamente absurda. Não pode haver argumentação mais incisiva. 
– Ora, ora! Os argumentos do nosso pobre e grande Galileu mostraram-se mais sólidos. Não, professore, falemos seriamente! Diante destes dois jovens atentos responda-me à seguinte pergunta: acredita o senhor em uma verdade, na verdade objetiva, científica, que a lei suprema de toda moralidade nos manda procurar, e cujos triunfos sobre a autoridade formam a gloriosa história do espírito humano?

     Hans Castorp e Joachim voltaram os seus rostos de Settembrini para Naphta, o primeiro mais rapidamente do que o segundo. 

– Tal triunfo – replicou Naphta – não é possível, porque a autoridade é o próprio homem, seu interesse, sua dignidade, sua salvação, e entre ela e a verdade não pode existir nenhum antagonismo. Elas coincidem. 
– A verdade seria, por conseguinte... 
– Verdadeiro é o que convém ao homem. Nele se acha resumida toda a natureza; em toda a natureza, apenas ele foi criado, e toda a natureza foi feita só para ele. Ele representa a medida das coisas, e sua salvação é o critério da verdade. Um conhecimento teórico que carecesse da relação prática com a ideia da salvação do homem seria de tal maneira desprovido de interesse que deveríamos negar-lhe todo valor como verdade e não poderíamos admiti-lo. Os séculos cristãos achavam-se completamente de acordo a respeito da irrelevância das ciências naturais para o homem. Lactâncio, a quem Constantino, o Grande, escolheu como preceptor de seus filhos, perguntou com toda a franqueza que classe de bem-aventurança obteria por conhecer o lugar onde nasce o Nilo, ou por saber os disparates que os físicos dizem com referência ao céu. Será que o senhor pode refutá-lo? Se a filosofia platônica foi preferida a qualquer outra, é porque não se preocupava com o conhecimento da natureza e sim com o conhecimento de Deus. Posso lhes garantir que a humanidade está a ponto de reencontrar o caminho que leva a esse ponto de vista, e de perceber que a tarefa da ciência verdadeira não é correr atrás de conhecimentos ímpios, mas eliminar, por princípio, o que é nocivo ou apenas irrelevante sob o prisma da ideia; numa palavra: cabe-lhe dar provas de instinto, comedimento e capacidade de escolher. É pueril pensar que a Igreja tenha defendido as trevas contra a luz. Ela teve três vezes razão ao proscrever a busca incondicional do conhecimento das coisas, isto é, uma busca que despreze tomar em consideração o elemento espiritual, o objetivo da conquista da salvação. E o que mergulhou o homem nas trevas e o enterrará cada vez mais são precisamente as ciências naturais, incondicionais e afilosóficas. 
– O senhor acaba de ensinar um pragmatismo – retrucou Settembrini – que basta transportar para o plano político para lhe pôr em evidência o caráter pernicioso. É bom, é verdadeiro, é justo o que convém ao Estado. Sua salvação, sua dignidade, seu poder representam o critério ético. Muito bem! Isso abre as portas a qualquer crime, e a verdade humana, a justiça individual, a democracia que se arranjem... 
– Sugiro o emprego de um pouquinho de lógica – tornou Naphta. – Ou Ptolomeu e a escolástica têm razão, e o mundo é finito quanto ao tempo e ao espaço. Nesse caso, a divindade é transcendental; a oposição entre Deus e o mundo existe, e também o homem é um ser dualista: o problema de sua alma consiste no antagonismo entre o físico e o metafísico, e tudo quanto é social fica à distância, desempenhando papel secundário. Essa é a única forma de individualismo que julgo consequente. Ou então os seus astrônomos renascentistas encontraram a verdade, e o cosmo é infinito. Então não há mundo transcendental, não há dualismo. O além acha-se absorvido pelo aquém; desaparece a oposição entre Deus e a natureza; e como nesse caso a personalidade do homem, em vez de ser o campo de batalha de dois princípios inimigos, é harmoniosa e una, o conflito que se trava no interior do homem baseia-se exclusivamente naquele dos interesses individuais e coletivos. A finalidade do Estado torna-se, à boa maneira pagã, a lei moral. Ou um ou outro. 
– Protesto! – gritou Settembrini, enquanto o seu braço teso estendia ao anfitrião a xícara de chá. – Protesto contra a insinuação de que o Estado moderno signifique a servidão diabólica do indivíduo! Protesto pela terceira vez contra aquela alternativa vexatória entre o prussianismo e a reação gótica diante da qual o senhor nos quer colocar! A democracia não tem outro sentido a não ser o de um corretivo individualista de toda forma de absolutismo do Estado. A verdade e a justiça são as jóias da coroa da ética individual, e no caso de um conflito com os interesses estatais talvez até assumam a aparência de potências inimigas do Estado, posto que, em realidade, visem ao seu bem superior, ao bem supra terreno. O Renascimento como origem da idolatria do Estado! Que lógica mais bastarda! As conquistas – emprego essa palavra no sentido literal! –, as conquistas do Renascimento e do Século das Luzes, meu caro senhor, chamam-se personalidade, direitos do homem, liberdade!

     Os ouvintes soltaram a respiração que haviam contido durante a grande réplica do Sr. Settembrini. Hans Castorp não pôde deixar de bater, embora discretamente, na borda da mesa com a palma da mão. – Magnífico! – murmurou entre dentes, e também Joachim mostrou-se altamente impressionado, conquanto o prussianismo houvesse sido mencionado em sentido desfavorável. A seguir, porém, ambos se voltaram para o interlocutor que acabava de ser rechaçado. Hans Castorp o fez com tamanha impaciência, que fincou o cotovelo na mesa e o queixo no punho mais ou menos na posição de quem desenha um porquinho, e fitou o Sr. Naphta de muito perto e com imensa atenção.
     Este se achava sentado calmamente, como que afiado, apoiando as mãos magras sobre os joelhos. 

– Tentei introduzir um pouco de lógica na nossa discussão – disse ele – e sua resposta baseia-se em sentimentos elevados. Que o Renascimento tenha dado à luz tudo aquilo que se chama liberalismo, individualismo, humanismo burguês é um fato que eu conhecia mais ou menos bem. Mas o seu “sentido literal” deixa-me inteiramente frio. A idade “conquistadora”, heroica, dos seus ideais há muito que passou; esses ideais estão mortos ou agonizantes, e aqueles que lhes darão o golpe de misericórdia já se acham próximos. Se não me engano, o senhor se arvora em revolucionário. Mas, se acredita que o resultado das revoluções vindouras será a liberdade, iludiu-se redondamente. O princípio da liberdade cumpriu o seu destino e chegou a ser antiquado nos últimos quinhentos anos. Uma pedagogia que ainda hoje pretende ser a filha do racionalismo e vê os seus meios formativos na crítica, na libertação e no culto do eu, na destruição de formas de vida determinadas de um modo absoluto – tal pedagogia pode obter ainda hoje passageiros triunfos retóricos, porém o seu caráter atrasado é óbvio para os espíritos avisados. Todas as organizações verdadeiramente educadoras souberam sempre o que em realidade deve ser o último objetivo da pedagogia: a autoridade absoluta, a obrigação de ferro, a disciplina, o sacrifício, a renúncia a si próprio, o domínio da personalidade. Em última análise, desconhece e não ama a juventude quem pensa que ela sente prazer diante da liberdade. O que ela aprecia mais é a obediência.

     Joachim empertigou-se. Hans Castorp corou. O Sr. Settembrini torcia nervosamente o belo bigode. 

– Não, senhor! – prosseguiu Naphta. – O segredo e a existência da nossa era não são a libertação e o desenvolvimento do eu. Do que ela necessita, o que deseja, o que criará é – o terror.

     Abafara a voz ao pronunciar esta última palavra. Não se movera. Apenas as lentes dos seus óculos haviam relampejado rapidamente. Os ouvintes tinham estremecido, todos os três, também Settembrini, que imediatamente se dominou e tornou a sorrir. 

– E posso informar-me – indagou – quem ou o que (como vê, limito-me a interrogar e nem sei como formular a pergunta), quem ou o que o senhor imagina como portador desse – custa-me repetir a palavra – desse terror?

     Naphta continuou imóvel, afiado e relampejante.

– Estou às ordens – disse. – Penso não me enganar quando pressuponho que estamos de acordo com respeito ao estado primitivo ideal do homem, à sua liberdade de governo e de poder, à sua relação filial e imediata com Deus, na qual não havia nada de domínio e de serviço, nada de lei e de castigo, nada de injustiça, de união carnal, de diferenças de classe, de trabalho e de propriedade, mas exclusivamente igualdade, fraternidade, perfeição moral. 
– Muito bem. Concordo com isso – declarou Settembrini. – Concordo, exceção feita do ponto da união carnal, que evidentemente deve ter existido sempre, uma vez que o homem é um vertebrado muitíssimo desenvolvido, em nada diferente de outros seres... 
– Como quiser. Verifico que em princípio somos da mesma opinião, no que se refere ao estado primordial, paradisíaco, isento de lei e ligado imediatamente a Deus, esse estado que se perdeu em virtude do pecado original. Creio que poderemos trilhar lado a lado mais um pedaço do caminho; reduziremos então o Estado a um contrato social que, levando em conta o pecado, foi estabelecido como proteção contra a injustiça, e veremos nisso a origem do poder soberano... 
Benissimo! – exclamou Settembrini. – O contrato social! Aí temos o Século das Luzes, ali temos Rousseau. Eu nunca teria pensado... 
– Permita-me. Neste ponto separam-se os nossos caminhos. Do fato de que toda potência e todo governo pertenciam primitivamente ao povo, e que este transmitiu o seu direito de legislação e a totalidade de seu poder ao Estado, ao príncipe, deduz a sua escola, antes de mais nada, que o povo tem o direito de se rebelar contra a realeza. Nós, porém...

     “Nós?”, pensou Hans Castorp, cheio de curiosidade “Quem é nós? Não devo esquecer de perguntar a Settembrini a quem se refere este ‘nós’.” 

– Nós, porém – continuou Naphta —, talvez não sejamos menos revolucionários do que o senhor. Nós sempre concluímos desse fato, em primeiro lugar, a supremacia da Igreja sobre o Estado secular. Pois, se a origem não-divina do Estado não estivesse escrita na sua testa, bastaria recordar precisamente o fato histórico de ele derivar da vontade do povo e não, como a Igreja, de uma fundação de Deus, para demonstrar que ele é, se não uma obra do mal, pela menos um produto da emergência e da imperfeição pecaminosa. 
– O Estado, senhor... 
– Já sei o que o senhor pensa do Estado nacional. “Acima de tudo o amor à pátria e o infinito desejo de glória!” Esta frase é de Virgílio. Corrija-a o senhor pelo acréscimo de um pouco de individualismo liberal e surge a democracia. Mas isso não modifica em princípio a sua relação para com o Estado. O senhor não parece chocar-se com a circunstância de que a alma do Estado é o dinheiro. Ou tenciona, acaso, desmenti-la? A Antiguidade era capitalista, devido ao seu culto do Estado. A Idade Média cristã percebeu com toda clareza o iminente capitalismo do Estado secular. “O dinheiro será o imperador” é uma profecia do século XI. Nega o senhor que ela já se cumpriu integralmente e que dessa forma se realizou a diabolização total da nossa vida? 
– Meu amigo! O senhor continua com a palavra. Estou impaciente por saber quem é o Grande Desconhecido, o portador do terror. 
– Curiosidade muito ousada na boca do representante de uma classe social que é portadora daquela liberdade que arruinou o mundo! Posso a rigor dispensar a sua réplica, porque não ignoro a ideologia política da burguesia. O seu objetivo é o império democrático, a apoteose com que o princípio do Estado nacional eleva-se a si próprio a Estado universal. O imperador desse império? Conhecemo-lo. A sua utopia é horrorosa, e todavia neste ponto voltamos, de certo modo, a estar de acordo. Pois a sua república universal capitalista tem qualquer coisa de transcendental. Com efeito, o Estado universal é a transcendência do Estado secular, e acreditamos ambos em que à perfeição da fase primitiva da humanidade corresponde uma fase final perfeita, situada à distância no horizonte. Desde os dias de Gregório Magno, fundador da Cidade de Deus, a Igreja considerou-se incumbida de reconduzir os homens ao governo de Deus. O papa pretende a soberania não para si próprio; sua ditadura delegada era um meio e um caminho para alcançar a meta da salvação, uma forma de transição do Estado pagão ao reino celeste. O senhor falou, diante destes seus discípulos, dos atos sanguinários da Igreja e da sua intolerância vingadora, e mostrou-se sumamente tolo ao fazê-lo. Pois o zelo religioso naturalmente não pode ser pacifista, e o próprio Gregório disse: “Maldito seja o homem que impede a sua espada de derramar sangue!” Já sabemos que o poder é mau. Mas o dualismo do bem e do mal, do aquém e do além, do espírito e da potência, deve ser – para que chegue o reino – passageiramente substituído por um princípio que reúna o ascetismo e o domínio. É isso o que chamo a necessidade do terror. 
– O portador? Quem será o portador? 
– O senhor me pergunta ainda? Será que à sua mentalidade manchesteriana escapou a existência de uma doutrina sociológica que representa a vitória do homem sobre o economismo, e cujos princípios e objetivos coincidem inteiramente com os do Estado cristão de Deus? Os padres da Igreja qualificavam o “meu” e o “teu” de palavras funestas e chamavam à propriedade privada usurpação e roubo. Condenavam a posse de bens por ser a terra, segundo o direito natural e divino, comum a todos os homens, produzindo os seus frutos para o uso geral. Ensinavam que somente a cobiça, uma consequência do pecado original, defendia os direitos de posse e criara a propriedade particular. Eram bastante humanos, bastante hostis ao comércio para considerar a atividade econômica em geral um perigo para a salvação da alma, isto é, para a humanidade. Odiavam o dinheiro e os negócios, e a riqueza capitalista era para eles o combustível das chamas do inferno. A lei econômica fundamental, a saber, que o preço resulta da relação entre a oferta e a procura, foi desprezada de todo o coração por eles, que reprovavam o aproveitamento de circunstâncias favoráveis como exploração cínica da miséria do próximo. Existia contudo, aos seus olhos, uma exploração mais nefanda ainda: a do tempo, a monstruosidade de se fazer pagar um prêmio pelo simples transcurso do tempo, esse prêmio que são os juros, e de se abusar dessa forma, para vantagem de uns e para prejuízo de outros, de uma instituição divina e geral, o tempo. 
Benissimo! – exclamou Hans Castorp, deixando-se levar, pelo seu entusiasmo, a empregar a fórmula de aprovação do Sr. Settembrini. – O tempo... Uma instituição divina e geral... Isto é sumamente importante! 
– Sim, senhor – prosseguiu Naphta. – Esses espíritos realmente humanos julgavam asquerosa a ideia de um aumento automático do dinheiro. Incluíam no conceito da usura qualquer especulação ou anatocismo e declaravam que todos os ricos ora eram ladrões ora herdeiros de ladrões. Iam ainda mais longe. Partilhavam a opinião de São Tomás de Aquino, segundo a qual o comércio em si, o mero negócio comercial, a compra e venda no intuito de obter um lucro, mas sem transformação nem melhoramento da mercadoria, representava uma profissão ignominiosa. Não eram propensos a apreciar muito o próprio trabalho, pois ele é apenas um assunto ético e não religioso, e se realiza a serviço da vida e não de Deus. E desde que não se tratava de outra coisa senão da vida e da economia, exigiam que uma atividade produtiva formasse a condição de toda vantagem econômica e a medida da respeitabilidade. Honrosos pareciam-lhes o agricultor e o artífice, mas não o mercador e o industrial. Queriam eles que a produção se acomodasse às necessidades e abominavam a produção em massa. Bem, depois de séculos de soterramento ressurgem todos esses princípios e padrões econômicos no movimento moderno do comunismo. A semelhança é completa, até no significado da reivindicação da soberania, que pleiteia, contra a camada internacional de comerciantes e especuladores, o trabalho internacional, o proletariado do mundo, que hoje em dia opõe a humanidade e os critérios da Cidade de Deus à depravação burguês-capitalista. A ditadura do proletariado, essa exigência de salvação política e econômica dos nossos tempos, não tem o sentido de um domínio pelo domínio e por toda a eternidade, mas sim o de uma ab-rogação temporária do conflito entre o espírito e o poder sob o signo da cruz, o sentido de se triunfar sobre o mundo dominando-o, o sentido da transição e da transcendência, o sentido do Reino. O proletariado retomou a obra de Gregório; sente arder no seu íntimo o zelo piedoso do grande papa e, como ele, tampouco poderá impedir as suas mãos do derramamento de sangue. Sua incumbência é espalhar o terror para a salvação do mundo e para a conquista do objetivo da redenção, que é a relação filial com Deus, sem a interferência do Estado e das classes.

continua pág 263...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Da Cidade de Deus e da redenção pelo mal (b)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

Massa e Poder - A Malta: A Determinação das Maltas e sua Constância Histórica

Elias Canetti

A MALTA

      A Determinação das Maltas e sua Constância Histórica

     As pessoas conhecem o morto cuja perda lamentam. Somente aqueles que lhe eram próximos ou sabem exatamente quem ele é têm o direito de juntar-se à malta de lamentação. A dor aumenta na proporção da familiaridade que se tinha com ele. Os que o conheciam melhor são os que se lamentam com maior veemência. O ápice da lamentação cabe à mãe de cujo ventre ele proveio. Não se guarda luto pela morte de estranhos. Em sua origem, a malta de lamentação não podia formar-se em torno de qualquer um.
     Contudo, essa determinação em relação a seu objeto caracteriza todas as maltas. Não se trata apenas de os pertencentes a uma malta conhecerem-se bem uns aos outros: eles conhecem sua meta também. Quando estão caçando, sabem do que estão atrás. Quando guerreiam, conhecem muito bem o inimigo. Na lamentação, sua dor tem por objeto um morto que sabem muito bem quem é. E, nos ritos de multiplicação, sabem com idêntica precisão o que deve multiplicar-se.
     A malta é de uma determinação imutável e assustadora. Essa determinação, porém, possui também um elemento de familiaridade. Um carinho singular por sua presa é inegável nos caçadores primitivos. Na lamentação e na multiplicação, essa familiaridade carinhosa é natural. Mas, por vezes, algo desse interesse íntimo recai até mesmo sobre o inimigo, se não é temido em demasia.
     As metas que a malta se fixa são sempre as mesmas. A repetição infinda, própria de todas as atividades vitais do homem, caracteriza também as suas maltas. A determinação e a repetição conduziram aí a formações de enorme constância. É essa constância, o fato de estarem sempre prontas e à disposição, que possibilita o emprego das maltas em civilizações mais complexas. Na qualidade de cristais de massa, são empregados repetidamente, onde quer que se trate de produzir massas com rapidez.
     Mas muito do que há de arcaico em nossas culturas modernas expressa-se também sob a forma da malta. É precisamente esse o teor do anseio por uma vida simples ou natural, por um desligamento das pressões e exigências crescentes do nosso tempo: trata-se do desejo de viver em maltas isoladas. As caças à raposa na Inglaterra, as viagens oceânicas em barcos pequenos e escassamente tripulados, os retiros espirituais em conventos, as expedições a terras desconhecidas e mesmo o sonho de, juntamente com uns poucos, viver em meio a uma natureza paradisíaca, onde, por assim dizer, tudo se multiplica por si só, sem nenhum esforço por parte do homem — todas essas situações arcaicas têm em comum a ideia de um número reduzido de pessoas que se conhecem bem umas às outras e participam conjuntamente de uma empreitada clara e inequívoca, bastante bem determinada ou delimitada.
     Uma forma desavergonhada da malta tem-se ainda hoje em todo e qualquer ato de justiça por linchamento. A expressão é tão descarada quanto aquilo que ela designa, pois trata-se aí, na verdade, de uma supressão da justiça. Não se considera digna dela a pessoa inculpada. Tal pessoa deve morrer feito um animal, sem direito a nenhuma das formalidades usuais entre os homens. A diversidade de sua aparência e conduta, o abismo que, para os assassinos, os separa de sua vítima, torna-lhes mais fácil tratá-la como um animal. Quanto mais longamente ela fugir deles, tanto mais avidamente eles se transformarão numa malta. Um homem forte e saudável, um bom corredor, propicia lhes a oportunidade para uma caçada, oportunidade esta que agarram com prazer. Por sua própria natureza, tais caçadas não podem ser muito frequentes; a raridade aumenta-lhes o encanto. As crueldades que os homens se permitem no ato do linchamento explicam-se possivelmente pelo fato de não poderem eles devorar sua vítima. Provavelmente, veem-se como homens porque não cravam nela os dentes.
      A acusação de natureza sexual, na qual esse tipo de malta tem amiúde seu ponto de partida, transforma a vítima num ser perigoso. Imagina-se o crime real ou suposto que cometeu. A união de um homem negro a uma mulher branca; a imagem da proximidade corporal entre ambos enfatiza-lhes a diferença aos olhos dos vingadores. A mulher faz-se cada vez mais branca, assim como o homem torna-se cada vez mais negro. Ela é inocente, pois, sendo homem, ele é mais forte. Se ela consentiu no ato, é porque foi enganada pela força superior do homem. É a ideia dessa superioridade que se a figura insuportável aos vingadores e os compele a unirem-se contra ele. Na qualidade de um animal feroz — afinal, atacou uma mulher —, ele é acossado e morto conjuntamente. Seu assassinato afigura-se lícito e imperioso aos vingadores, proporcionando-lhes franca satisfação.

continua página 181...
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Leia também:

Massa e Poder - A Malta: A Determinação das Maltas e sua Constância Histórica
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

segunda-feira, 14 de julho de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Quarta Parte (9a) - Tinham-se passado quinze dias

O Idiota

Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Quarta Parte

9.

.     Tinham-se passado quinze dias, desde os acontecimentos narrados no último capítulo, e a situação dos personagens que lhes dizem respeito estava tão completamente mudada que nos é difícil continuar a nossa história sem algumas explicações. No entanto nos temos de restringir, o mais possível, à declaração singela dos fatos, e por uma razão muito simples: porque defrontamos com muitas dificuldades, em vários pontos, ao querermos explicar quanto ocorreu.
     Tal declaração de nossa parte deve parecer muito estranha e obscura para o leitor que tem o direito de perguntar por que nos pusemos a descrever aquilo de que não tínhamos uma ideia clara ou uma opinião pessoal. Evitando colocar-nos em uma posição ainda mais falsa, preferimos dar um exemplo, mercê do qual o leitor bondosamente compreenderá a nossa dificuldade. Tentaremos, até, fazer com que esse exemplo não quebre a sequência da narrativa, tornando-se, antes, mera continuação dela.
     Quinze dias antes, isto é, no começo de julho, a história do nosso herói, e, de um modo mais particular, o último incidente dessa história, se foi transformando no escândalo do ano, dada a sua estrutura estranha, divertida e até mesmo solene, espalhando-se gradualmente pelas ruas contíguas às vilas de Liébediev, Ptítsin Dária Aleksiéievna, atingindo a casa dos Epantchín, ultrapassando, a seguir, a cidade, e se desfigurando nos distritos vizinhos. Quase toda a sociedade que se aglomerava na praça, habitantes, veranistas” e povo, que se reuniam para escutar a banda, glosavam esta história, através de mil variações. 
     De como um príncipe, depois de ter causado um escândalo em uma família muito conhecida e distinta, namorando uma formosa moça dessa família e chegando até a ficar noivo, se deixava cativar por uma conhecida cocote, e, rompendo com todos os amigos, indiferente a tudo, desdenhando ameaças, zombando da indignação popular, resolvera, poucos dias depois, olhando todo o mundo de cabeça erguida, casar-se ali mesmo em Pávlovsk, franca e publicamente, com essa mulher de passado ignominioso. A história tornou-se tão ricamente adornada de escandalosas minúcias, tantas e tão distintas pessoas tomaram parte nela, tão fantásticas e enigmáticas evidências foram dadas, e por outro lado, foram apresentados fatos tão concretos e tão incontestáveis que a Curiosidade geral e a tagarelice não podiam deixar de ser desculpáveis.  
     Verdade é que os comentários promanavam da mais múltipla, sutil e engenhosa interpretação. E promanavam - isso lhes dando maior probabilidade! - dessa gente sensível que, em todas as classes da sociedade, transforma a sua vocação em consolo, apressando-se sempre em explicar tudo aos vizinhos. Segundo a versão dessa gente, um jovem de esplêndida família, um príncipe quase rico, mas louco e democrata, dera guarida em seu cérebro ao niilismo contemporâneo revelado pelo Senhor Turguénev. Embora não sabendo quase uma só palavra de russo, se apaixonara pela filha do General Epantchín, conseguindo ser aceito pelo noivo, pela família.
     Mas, como certo francês daquela história que os jornais recentemente tinham publicado (que depois de consentir que o sagrassem sacerdote, voluntariamente, tendo recebido as ordens, e se sujeitado a todo o cerimonial de reverências, orações, ósculos e votos, acabara, no dia seguinte, para informar, publicamente, ao bispo, em cartas mandadas aos jornais liberais, que não acreditava em Deus e que por considerar desonroso enganar os fiéis, e deles receber considerações sem motivo, renunciava à batina!), como esse francês ateu, o príncipe também fingira e representara!
      Chegaram a afirmar que ele esperou, de propósito, pela recepção formal, dada pelos pais da moça para participarem o noivado (recepção essa em que fora apresentado a muitos personagens distintos), para declarar alto e bom som, diante de todos, que julgava leviandade venerar velhos dignitários, renunciando, a seguir, e de modo insultuoso, ao noivado. E que, depois, em luta com os lacaios que o punham para fora, quebrara um magnífico vaso da China. E assim, mais uma vez ficaria patenteada mais uma das características e tendências da época, pois não havia dúvida de que o desmiolado jovem estava apaixonado pela noiva - a filha de um general - mas renunciara simplesmente por causa do niilismo. E ainda por cima resolvera levar o escândalo mais adiante, determinando-se a casar com uma mulher perdida, somente para comprovar, com isso, à vista de todo o mundo, que a sua convicção era que não havia mulher perdida nem mulher virtuosa, todas elas sendo iguais e livres! Que a antiga divisão não merecia crédito! E que aos seus olhos uma mulher perdida era superior a uma que não fosse perdida!
     Tais versões, parecendo extremamente prováveis, foram aceitas pela maioria dos veranistas e mais prontamente à medida que os fatos diários lhes davam azo. Garantiram que a pobre moça adorava tanto o noivo - no dizer de alguns, seu sedutor - que no dia em que a abandonou correu a encontrá-lo, deparando com ele nos braços da amante. Outros asseguraram, ao contrário, que a coitada fora propositadamente atraída por ele à casa da amante, por causa ainda do niilismo que é a doutrina que timbra em envergonhar e insultar. De todos esses rumores resultou um interesse cada dia mais crescente, culminando quando se veio a saber que o incrível casamento realmente ia ser o desfecho.
     E agora, se nos pedissem uma explicação, não quanto à significação niilista do incidente, oh! Não!, mas até que ponto o casamento proposto satisfazia aos desejos reais do príncipe, e quais eram esses desejos nessa ocasião, definindo a condição espiritual do nosso herói, teríamos dificuldade em responder. Só podemos dizer uma coisa: que o casamento, de fato, foi combinado e que o próprio Míchkin autorizou Liébediev, Keller e um amigo de Liébediev, apresentado por este nessa emergência, a empreender todas as providências necessárias, tanto as religiosas, como as seculares, sendo-lhes recomendado não poupar dinheiro, pois Nastássia Filíppovna insistia na urgência. Que Keller conseguira ver atendido o seu ardente desejo de ser escolhido como padrinho, enquanto Burdóvskii, escolhido para assumir o mesmo papel por parte de Nastássia Fillíppovna, aceitara evidenciando entusiasmo.
     O casamento estava marcado para o começo de julho. E não foram só estes os informes autênticos. Outros fatos foram por nós sabidos, e, por estarem em contradição direta com os precedentes acima narrados, atrapalham os nossos cálculos. Desconfiamos, por exemplo, que, depois de ter autorizado Liébediev e outros a acelerar todos os preparativos, horas depois o príncipe parecia ter esquecido o casamento, os padrinhos e as cerimônias, sendo mais razoável pensarmos que justamente incumbiu urgência e cuidados a outrem para evitar pensar ele próprio no fato, apressando assim o esquecimento.
     No que estaria ele pensando simultaneamente com isso? Que era que não conseguia esquecer? Com o que estava lutando? Também não resta dúvida de que não houve coação da parte de Nastássia Filíppovna, muito embora tivesse sido ela quem pensara no casamento e dera a entender a sua urgência, de Míchkin partindo, sem dúvida um imediato acordo. (Mas uma espécie de acordo casual, como se o que lhe era sugerido fosse um pedido comum.)
     Esses fatos estranhos pululam diante de nós, mas, em vez de clarearem as coisas, tornando-as compreensíveis, positivamente as obscurecem, tornando absurdas as explicações tomadas onde quer que o sejam.
     Passemos a outro exemplo.
     Ficou notório, como coisa verdadeira, que durante essas duas semanas o príncipe passava os dias inteiros em casa de Nastássia Filíppovna, sendo levado por ela a passear e a ouvir música. Que era visto na carruagem, acompanhando-a, todos os dias. Que uma só hora sem vê-la, o inquietava (indícios de amor sincero). Que, todavia, quando ela falava com ele, ficava a escutá-la com um sorriso indulgente e sutil, sem, porém, durante essas longas horas, dizer quase nada.
     Também se veio a saber que, no decorrer daqueles dias, fora muitas vezes à casa dos Epantchín, não o tendo feito às escondidas de Nastássia Filíppovna, sabendo embora que isso a exasperava. Verificou-se que, enquanto permaneceram em Pávlovsk, os Epantchín não o receberam, proibindo peremptoriamente Agláia Ivánovna de o ver. Que ele se retirava do vestíbulo, sem dizer palavra, voltando no dia seguinte, parecendo ter esquecido a recusa da véspera e saindo indiferente à de então.
     Também se descobriu que, uma hora depois da volta de Agláia Ivánovna da casa de Nastássia Filíppovna, o príncipe tinha ido pressuroso à casa dos Epantchín, certo de encontrá-la, à sua chegada, tendo posto toda a casa em rebuliço visto não se saber onde estivesse Agláia, tendo sido por ele que os Epantchín se puseram a par da ida da moça à casa de Nastássia Filíppovna. Asseverou-se que, nessa ocasião, aflitíssimos, Lizavéta Prokófievna, as filhas e o Príncipe Chtch... destrataram violentamente Míchkin, renunciando, nos mais fortes termos, a qualquer amizade ou relação daí em diante com ele. E que fora justamente no momento mais acalorado que Varvára Ardaliónovna subitamente aparecera para dizer a Lizavéta Prokófievna que Agláia Ivánovna estava lá em sua casa, em um pavoroso estado de espírito, jurando não querer voltar à casa paterna.
     Tal novidade afetara ainda mais Lizavéta Prokófievna. (E acontece que era verdadeira, pois, fugindo atarantada da casa de Nastássia Filíppovna, Agláia preferiria morrer a entrar em casa, tendo voado para casa de Nina Aleksándrovna, debulhada em pranto, tendo então Varvára Ardaliónovna, por sua parte, achado ser essencial ir avisar prontamente a mãe da moça.) Mãe e filhas arrojaram-se, imediatamente, para a casa de Nina Aleksándrovna, seguidas pelo chefe da família, Iván Fiódorovitch, que mal acabara de chegar da rua.
     Atrás deles seguira o príncipe, atarantado, embora o expulsassem e descompusessem, nem mesmo na casa onde ela estava lhe tendo sido permitido, devido às cautelas de Vária, ver Agláia. O final disso fora que, mal viu a mãe e as manas; também debulhadas em pranto, sem ousarem proferir uma palavra de censura, Agláia se arremessou nos braços delas, regressando logo com todos para o lar.
     Além de tudo isso, ainda se adiantou, sem que o pudéssemos autenticar, que Gavríl Ardaliónovitch também não fora muito feliz nessa conjuntura, por causa do seguinte: resolvera aproveitar a oportunidade de Varvára ter ido a correr à casa de Lizavéta Prokófievna, deixando-o sozinho com Agláia, para inoportunamente lhe falar ainda na sua paixão; mas, ouvindo isso, apesar de estar zonza e em lágrimas, ela desandou a rir, repentinamente. E até lhe perguntou se ele, para lhe provar esse amor, queimaria o dedo em uma vela. E Gavríl Ardaliónovitch - prossegue a história - ficara petrificado diante da pergunta. Tão petrificado, a sua cara traindo tamanho espanto que, tomada de uma espécie de ataque histérico, Agláia riu dele, acabando por fugir, escadas acima, para os cômodos de Nina Aleksándrovna, onde a família a fora encontrar.
      Esse episódio foi contado ao príncipe, no dia seguinte, por Ippolít, que, não podendo mais levantar da cama, mandou-o chamar de propósito para lhe narrar o caso. Como Ippolít soubera do fato, ignoramos; mas quando Míchkin ouviu falar em vela e em dedo, riu tanto que Ippolít ficou admirado. E, inesperadamente depois, o príncipe se pusera a tremer e a chorar... Devia juntar-se a isso que durante aqueles dias estivera em um estado de grande confusão, e que uma extraordinária perturbação, embora vaga, o atormentava, agora. Ippolít rudemente afirmou que o príncipe estava fora do seu espírito; mas era impossível garantir-se isso com segurança.
     Apresentando todos estes fatos e não tentando explicá-los, não temos o intuito de justificar o herói aos olhos do leitor. E, o que é mais, estamos inclinados a comparticipar da indignação que ele provocara mesmo nos amigos. Vera Liébedieva ficara zangada, por uns dias. Kólia, idem. Keller só deixou de ficar indignado depois que foi escolhido para padrinho; sem que seja preciso nos referirmos a Liébediev que logo começara a intrigar, ora a favor, ora contra o príncipe, movido por uma indignação verídica. (Sobre isso, aliás, falaremos mais tarde.)
     Mas, em compensação, simpatizamos logo com algumas palavras proferidas por Evguénii Pávlovitch, vigorosas e profundamente psicológicas, ditas em cheio, e sem cerimônia alguma, em conversa com o príncipe, seis ou sete dias depois do que se passara em casa de Nastássia Filíppovna. Temos de intercalar aqui que não só os Epantchín, mas todos aqueles que lhes estavam direta ou indiretamente ligados, julgaram melhor romper com o príncipe.
     O Príncipe Chtch... para citar um exemplo, ao encontrar Míchkin, virava a cabeça para o lado e não respondia à sua saudação. Mas Evguénii Pávlovitch não receou comprometer-se, visitando o príncipe, embora visitasse também, e assiduamente, os Epantchín, que o recebiam com evidente cordialidade. Uma dessas visitas suas ao príncipe foi justamente na noite do dia em que os Epantchín deixaram Pávlovsk. Estava perfeitamente a par dos rumores em circulação, e, muito possivelmente, ajudava até a espalhá-los.
     O príncipe alegrou-se de o ver e começou logo a falar nos Epantchín. Uma tal franqueza fez que Evguénii Pávlovitch também sentisse a língua solta, indo diretamente ao ponto, sem se vexar. O príncipe ignorava que os Epantchín tivessem ido embora. De tão surpreendido, ficou lívido. Um minuto depois, meneava, porém, a cabeça, confuso e meditativo, concordando que “só podia ser assim”. E avidamente perguntou “para onde tinham ido”.
     Enquanto isso, Evguénii Pávlovitch o examinava cuidadosamente, pasmado, e não à toa, ante a rapidez das perguntas, a ingenuidade e a inquietação, o sossego e o nervosismo, e simultaneamente, com isso tudo, ante essa franqueza inefável. Contou tudo, mas procurando ser delicado.

Terceira Parte
O Idiota: Quarta Parte (9a) - Tinham-se passado quinze dias
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