Thomas Mann
A Montanha Mágica
A Montanha Mágica
Capítulo VI
“Operationes spirituales”
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Leo Naphta era natural de um lugarejo situado nas proximidades da fronteira entre a
Galícia e a Volínia. Seu pai, do qual falava com respeito – sentindo evidentemente que já se
distanciara bastante do mundo da sua origem para poder julgá-lo com benevolência – seu pai fora
schochet, açougueiro ritual. Esse ofício era diferente – e quanto! – daquele que exercia o açougueiro
cristão, um mero artífice e comerciante. O pai de Leo não era nem uma nem outra coisa. Era
uma autoridade de caráter religioso. Examinado pelo rabino quanto à sua habilidade piedosa,
autorizado por ele a abater, em conformidade com os preceitos do Talmude, o gado que a lei de
Moisés considerava apto para esse fim, Elia Naphta, cujos olhos cheios de espiritualidade plácida
haviam brilhado, segundo a descrição do filho, com um esplendor estelar, revelara ele próprio,
em todo o seu ser, o cunho sacerdotal, uma solenidade que relembrava que a função de degolar
animais coubera nos tempos antigos aos sacerdotes. Às vezes, Leo, ou Leib, como o chamavam
na infância, tinha ocasião de ver o pai desempenhar-se das suas tarefas rituais, o que fazia no
pátio, ajudado por um oficial enorme, um rapagão daquele tipo atlético que se encontra entre os
judeus. Ao lado desse gigante, o frágil Elia, com a barba loura aparada em forma oval, parecia
ainda mais delgado e mais franzino. E contra o animal atado e amordaçado, mas, não aturdido, o
pai brandia a grande faca de schochet, abrindo-lhe um profundo talho à altura da vértebra cervical,
enquanto o ajudante apanhava, em tigelas que se enchiam rapidamente, o sangue fumegante que
brotava do corpo. O menino contemplava esse espetáculo com aquele olhar de criança, que
muito além das aparências visíveis penetra até a sua essência, e que o filho de Elia, o dos olhos
estelares, deve ter possuído em grau incomum. Sabia Leo que os açougueiros cristãos tinham a
obrigação de atordoar os animais com um golpe de maceta ou de machado, antes de matá-los, e
que essa prescrição lhes era imposta a fim de evitar ao gado um tratamento torturante e
impiedoso. Seu pai, por sua vez, embora muito mais delicado e muito mais sábio do que aqueles
lorpas, e ainda dotado de olhos estelares como nenhum deles, procedia conforme a lei, dando o
golpe mortal à rês não aturdida e deixando-a derramar o seu sangue até cair exausta. O menino
Leib percebia instintivamente que o método desses grosseiros goim era inspirado por uma
bondade fácil e profana, e que dessa forma não se prestava ao ato sagrado a mesma honra que ele
gozava em virtude do rigorismo solene do rito paterno. O conceito da devoção ligava se, no seu
íntimo, ao da crueldade, assim como na sua imaginação o aspecto e o cheiro do sangue a jorrar
acompanhavam a ideia do sagrado e do espiritual. Pois compreendia perfeitamente que o pai não
se devotara ao seu ofício sanguinário pelo mesmo gosto brutal que talvez determinasse a escolha
de robustos rapazes cristãos e do seu próprio ajudante; motivos espirituais haviam-no
influenciado, apesar do seu físico frágil, e em harmonia com os seus olhos estelares.
Com efeito, Elia Naphta era um sonhador e um pensador; não se limitava a estudar a
Tora, mas também interpretava a Escritura, cujas máximas discutia com o rabino, altercando com
ele não raras vezes. Na região, e não somente entre os seus correligionários, era considerado
homem extraordinário, que sabia mais do que os outros, em parte devido à sua piedade, em parte
também graças a conhecimentos suspeitos, talvez, e em todo caso contrários, à ordem natural das
coisas. Havia nele um quê de irregularidade sectária, algo de um confidente de Deus, de um Baal
Chem ou Zaddik, quer dizer, um taumaturgo, tanto mais que realmente curara certa feita uma
mulher de uma erupção maligna, e em outra ocasião, um garoto de convulsões, e tudo isso por
meio de sangue e de versículos. Mas foi precisamente esse nimbo de uma piedade um tanto
ousada, no qual o cheiro de sangue da sua profissão desempenhava o seu papel, que se tornou a
causa da sua perdição. Em consequência de um motim e de uma irrupção ,da fúria popular,
provocada pela morte não esclarecida de duas crianças cristãs, Elia foi trucidado de forma
horrorosa: encontraram-no crucificado, fixo com cravos à porta da sua casa incendiada. Sua
esposa, tísica e acamada, abandonou em seguida o país, com os filhos, o menino Leib e seus
quatro irmãozinhos, todos se lamentando e gemendo, de braços erguidos ao céu.
Graças à previdência de Elia, a família não estava inteiramente desprovida de recursos.
Encontraram asilo numa cidadezinha do Vorarlberg. Ali a Srª. Naphta se empregou numa fiação
de algodão, onde trabalhou enquanto as suas forças lhe permitiram, e os filhos mais velhos
frequentaram a escola primária. Mas se a sabedoria ministrada por esse estabelecimento bastava
ao talento e às necessidades dos irmãos de Leo, absolutamente não se dava o mesmo com ele.
Herdara da mãe o germe da doença pulmonar, e do pai, além da compleição delgada, um
discernimento fora do comum, dons intelectuais que desde cedo andavam unidos com instintos
altivos, com a ambição do sublime, com a nostalgia angustiosa de formas de vida mais
aristocráticas, e lhe infundiam o desejo apaixonado de elevar-se acima da esfera da sua origem.
Fora da escola, o adolescente de catorze ou quinze anos formava o seu espírito de modo
impaciente e descontrolado, por meio de livros que soube arranjar e com os quais nutria a
inteligência. Pensava coisas e manifestava ideias que induziam a mãe a encolher a cabeça entre os
ombros e a levantar ao céu as magras mãos espalmadas. Pela sua índole e pelas suas respostas
chamou durante o ensino religioso a atenção do rabino distrital, homem pio e erudito, que o
escolheu para aluno particular e lhe satisfez a predileção formal com aulas de hebraico e de
línguas clássicas, e a ânsia de lógica com ensinamentos matemáticos. Mas a solicitude do homem
foi muito mal recompensada. Evidenciou-se cada vez mais nitidamente que ele acolhera uma
serpente em seu seio. Repetiram-se as contendas que outrora houvera entre Elia Naphta e seu
rabino; não se puseram de acordo; entre o professor e o discípulo surgiram divergências religiosas
e filosóficas que se agravavam de forma crescente, e o honrado teólogo muito teve que sofrer em
virtude da insubmissão intelectual do jovem Naphta, da sua tendência crítica e cética, do seu
espírito de contradição e da sua dialética afiada. Acrescia a isso o fato de que a sutileza e a
rebeldia intelectual de Leo acabavam de assumir um caráter revolucionário. O contato com o
filho de um deputado socialista do Reichsrat e com o próprio representante popular haviam
orientado para a política o espírito do adolescente e imprimido o rumo da crítica social à sua
paixão pela lógica. Leo ousou manifestar ideias que fizeram eriçar-se os cabelos do bom
talmudista, orgulhoso da sua própria lealdade, e que finalmente desmancharam a amizade entre o
professor e o aluno. Numa palavra, as coisas chegaram ao ponto de Naphta ser amaldiçoado pelo
seu mestre e definitivamente expulso do seu gabinete de estudos. Isso sucedeu justamente na
época em que sua mãe, Rakel Naphta, estava agonizante.
Também por esse tempo, imediatamente após o transpasse da mãe, Leo travou
conhecimento com o Padre Unterpertinger. O jovem de dezesseis anos estava sentado, solitário,
num banco do parque de Margaretenkopf, numa colina situada a oeste da cidadezinha, à beira do
Ill, donde se descortinava uma vista ampla e alegre sobre o vale do Reno. Achava-se ali, absorto
em sombrios e amargos pensamentos quanto ao seu destino e futuro, quando um professor do
Instituto Jesuítico Stella Matutina, ao passear pelo parque, sentou-se a seu lado, pôs o chapéu no
banco, cruzou as pernas sob a sotaina de padre secular, e após ter lido algumas páginas do seu
breviário, entabulou uma conversa que se tornou muito animada e estava fadada a decidir a sorte
de Leo. O jesuíta, homem experiente, de trato afável, pedagogo apaixonado, bom psicólogo e
hábil pescador de almas, aguçou o ouvido, desde as primeiras frases, articuladas com sarcástica
clareza, que o mísero judeuzinho proferia em resposta às suas perguntas. Sentiu nelas o sopro de
uma espiritualidade aguda e atormentada, e penetrando mais a fundo, topou com uma sabedoria e
uma elegância maliciosa do pensamento que o exterior maltrapilho do rapaz apenas tornava mais
surpreendentes. Falaram de Marx, cujo Capital Leo Naphta estudara numa edição popular, e daí
passaram para Hegel, do qual ou sobre o qual o jovem também lera o suficiente para formular
algumas observações incisivas. Fosse por uma inclinação geral para o paradoxo, fosse devido à
intenção de agradar, chamou Hegel de “pensador católico”; quando o padre, sorrindo, lhe
perguntou em que se fundava essa opinião, uma vez que Hegel, na sua qualidade de filósofo
oficial da Prússia, devia ser considerado lógica e essencialmente como protestante, replicou o
jovem que as próprias palavras “filósofo oficial” confirmavam que, no sentido religioso, embora
naturalmente não no sentido eclesiástico-dogmático, a sua afirmação da catolicidade de Hegel
estava certa. Pois – Naphta gostava muitíssimo dessa conjunção que na sua boca adquiria um
caráter triunfal e inexorável e fazia-lhe os olhos relampejar atrás dos óculos, cada vez que tinha
oportunidade de inseri-las nas suas deduções – pois o conceito da política se achava
psicologicamente ligado ao do catolicismo; formavam eles uma categoria que abrangia tudo
quanto era objetivo, operante, ativo, realizador, e produzia efeitos exteriores. A essa categoria
opunha-se a esfera pietista, protestante, que tinha a sua origem na mística. No jesuitismo –
acrescentou —, tornava-se evidente a natureza política e pedagógica do catolicismo. Essa ordem
sempre considerara seu domínio a estadística e a educação. E citou Goethe, que, embora
arraigado do pietismo e indiscutivelmente protestante, tinha um forte cunho católico, em virtude
do seu objetivismo e da sua doutrina de ação, chegando a defender a confissão auricular e
mostrando-se quase jesuíta como educador.
Não importa que Naphta tivesse dito essas coisas, por acreditar nelas, ou por achá-las
espirituosas, ou finalmente na intenção de comprazer ao seu interlocutor, como faz um homem
pobre que deve lisonjear e calcula com precisão o que lhe pode ser útil ou prejudicial. Fosse
como fosse, o padre preocupou-se menos com o valor verdadeiro dessas palavras do que com a
inteligência geral que elas documentavam. A conversa foi continuada, e dentro em pouco o
jesuíta conhecia a situação particular de Leo. A entrevista terminou com um convite de
Unterpertinger para que Naphta o visitasse no instituto.
Destarte aconteceu que Naphta pôs os pés no solo do Stella Matutina, cujo nível
científica e socialmente elevado desde muito o atraía. E mais do que isso: graças ao rumo que as
coisas acabavam de tomar, obteve um novo mestre e protetor, mais disposto do que o anterior a
lhe apreciar e estimular a índole; um mentor cuja bondade, fria por natureza, baseava-se no
conhecimento do mundo, e em cujo circulo de vida o jovem anelava penetrar. Semelhante a
muitos judeus talentosos, Naphta tinha um instinto ao mesmo tempo revolucionário e
aristocrático; era socialista e também dominado pelo sonho de participar de uma forma de vida
soberba, distinta, exclusiva e ordenada. A primeira manifestação que lhe inspirara a presença de
um teólogo católico fora, embora se apresentasse sob a forma de pura análise comparativa, uma
declaração de amor à Igreja Romana, que se lhe afigurava como uma potência nobre e espiritual,
quer dizer antimaterial, contrária à realidade hostil do mundo, e portanto revolucionária. Essa
homenagem era sincera e tinha raízes no fundo do seu ser: como ele próprio explicava, o
judaísmo, graças à sua orientação terrena e objetiva, graças ao seu caráter socialista e à sua
espiritualidade política, achava-se muito mais próximo da esfera católica, era infinitamente mais
congênere dela, do que o protestantismo na sua mania de ensimesmar-se e na sua subjetividade
mística. Assim, a conversão de um judeu à religião católica representava, do ponto de vista da
Igreja, um processo muito mais fácil do que a de um protestante.
Separado do pastor da sua comunidade religiosa de origem, órfão, desamparado, e ainda
ansioso por respirar um ar mais puro, por gozar o estilo de vida que lhe cabia devido ao seu
talento, Naphta, que desde havia algum tempo atingira a idade legal que o capacitava para
escolher a sua religião, estava tão impaciente por consumar o ato da conversão, que o seu
“descobridor” podia dispensar o menor esforço no sentido de conquistar essa alma, ou melhor,
esse cérebro extraordinário, para o mundo da sua confissão. Já antes de receber o sacramento do
batismo, Naphta encontrara, através da influência do padre, asilo provisório no Stella Matutina,
que lhe garantia o seu alimento material e intelectual. Domiciliou-se ali, abandonando, com a
maior equanimidade e com a insensibilidade de um aristocrata do espírito, os seus irmãos mais
moços à caridade pública e àquele destino que eles mereciam em virtude dos seus dons
medíocres.
As terras do educandário eram tão extensas quanto os seus edifícios, que podiam abrigar
aproximadamente quatrocentos alunos. O conjunto abrangia bosques e prados, meia dúzia de
campos de jogo, celeiros, estábulos para centenas de vacas. O instituto era ao mesmo tempo um
pensionato, uma granja-modelo, uma academia de esportes, uma escola de sábios e um templo
das musas; pois, sem cessar, havia representações teatrais e concertos. A vida era senhoril e
claustral. A disciplina, a elegância, a alegria discreta, a espiritualidade, a cultura esmerada, a
precisão do variadíssimo programa diário – tudo isso afagava os instintos mais profundos de Leo.
O moço transbordava de felicidade. Ministravam-lhe excelentes manjares num vasto refeitório,
onde o silêncio era de regra, assim como nos corredores do estabelecimento, em cujo centro um
jovem prefeito, sentado numa cátedra elevada, lia em voz alta para os alunos que tomavam a
refeição. O zelo que Naphta desenvolvia nos estudos era ardente, e apesar da sua debilidade física
fazia toda espécie de esforços para não se deixar superar, à tarde, nos jogos desportivos. A
devoção com que todas as manhãs assistia à primeira missa e participava do ofício dominical
devia causar prazer aos padres pedagogos. Seu comportamento e suas maneiras satisfaziam-nos
da mesma forma. Nos dias de festa, pela tarde, depois de comer doces e beber vinho, ia passear,
trajando o uniforme cinzento e verde, com o colarinho engomado, boné e barras nas calças.
Sentia-se deslumbrado de gratidão diante das considerações com que eram tratados a sua
origem, o seu cristianismo recente e a sua situação particular em geral. Ninguém parecia saber que
ele se beneficiava de uma bolsa. O regulamento da casa desviava a atenção dos companheiros do
fato de ele não ter nem família nem pátria. Quanto à remessa de víveres ou guloseimas existia
uma proibição geral. Encomendas que chegavam apesar disso eram repartidas entre todos, e
também Leo recebia a sua parte. O cosmopolitismo da instituição impedia que a sua origem racial
aparecesse de modo evidente. Existiam ali jovens provenientes de terras longínquas, sul
americanos de raça lusa, cujo aspecto era mais “judeu” do que o de Leo, e dessa forma o conceito
deixou de subir à tona. O príncipe etíope que entrara ao mesmo tempo que Naphta era até um
negro típico, com cabelos lanosos, e contudo sumamente distinto.
Na classe de retórica, Leo manifestou o desejo de estudar teologia, para que pudesse um
dia pertencer à ordem, se é que fosse julgado digno. Isso teve por consequência que a sua bolsa
foi transferida do segundo internato, onde o regime era mais modesto, para o primeiro. Agora era
servido à mesa por criados, e seu cubículo no dormitório achava-se situado entre o de um nobre
silesiano, o Conde von Harbuval e Chamaré, e o do Marquês di Rangoni-Santacroce, de Modena.
Passou brilhantemente pelos exames e, fiel aos seus propósitos, abandonou o educandário e
mudou-se para o noviciado na vizinha aldeia de Tisis, onde passou a levar a vida de humildade
obediente, de subordinação muda e de adaptação religiosa, vida que lhe proporcionava prazeres
espirituais no sentido das concepções fanáticas de épocas distantes.
Nesse meio tempo, a sua saúde sofreu um abalo, menos por causa do rigor da vida de
noviço, que não carecia de oportunidades para fortalecer o corpo, do que em virtude de
processos que se desenvolviam no seu íntimo. A sutileza e a sagacidade dos processos
pedagógicos de que ele era objeto iam ao encontro dos seus talentos particulares, e ao mesmo
tempo provocavam-nos. Durante as operações espirituais às quais consagrava os seus dias e ainda
parte das suas noites, no curso de todos esses exames de consciência, contemplações,
ponderações e introspecções, enredava-se ele, devido a uma paixão maliciosa pela contenda, em
milhares de dificuldades, contradições e dúvidas. Leo era o desespero, e também a grande
esperança, do diretor dos seus exercícios, a quem cossava dia a dia com sua fúria dialética e sua
falta de ingenuidade... “Ad haec quid tu?”, perguntava, com as lentes dos óculos cintilando. E o
padre, posto contra a parede, não tinha outro recurso senão recomendar-lhe a prece, para que
conseguisse a tranquilidade do coração, ut in aliquem gradum quietis in anima perveniat. Mas, essa
“tranquilidade” consistia, quando obtida, num completo embotamento da vida individual e na
redução fatal a um mero instrumento, era a paz de um cemitério do espírito, cujos sinistros sinais
exteriores Naphta podia muito bem estudar entre os seus companheiros em mais de uma
fisionomia de olhar parado, e que ele mesmo nunca lograria alcançar por outro caminho que não
o da ruína corporal.
Fala em favor do nível intelectual dos seus superiores que essas reservas e objeções não
diminuíam a estima que Naphta gozava junto deles. O próprio padre provincial chamou-o pelo
fim dos dois anos de noviciado, conversou com ele e autorizou-lhe a admissão na ordem. O
jovem escolástico, que recebera quatro ordenações inferiores – as do porteiro, do acólito, do
leitor e do exorcista – e também fizera os votos “simples”, ficou assim pertencendo
definitivamente à Companhia. Partiu para o colégio de Falkenburgh, na Holanda, a fim de se
dedicar aos estudos de teologia.
Tinha então vinte anos, e nos três anos seguintes, sob a influência de um clima prejudicial
e de excessivos esforços intelectuais, o mal hereditário realizou tamanhos progressos, que sua
permanência no colégio só teria sido possível com perigo de vida. Uma hemoptise que sofreu
alarmou os seus superiores, e depois de ele se achar durante semanas inteiras entre a vida e a
morte, enviaram o jovem precariamente restabelecido ao lugar donde viera. No mesmo
estabelecimento onde fora educado, encontrou Leo uma colocação como prefeito, vigilante dos
alunos e professor de humanidades e filosofia. Esse interlúdio fazia parte do regulamento, só que
normalmente depois de poucos anos de serviço se voltava ao colégio, para prosseguir e concluir
os sete anos de estudos teológicos. Isso não foi dado ao Irmão Naphta. Ele continuava enfermo.
O médico e os superiores julgaram que o serviço nesse lugar, com o seu ar saudável, a companhia
dos alunos, e as ocupações agrícolas eram o que lhe convinha por enquanto. Naphta recebeu a
primeira ordenação superior e obteve assim o direito de cantar a Epístola na missa solene dos
domingos – direito que ele não exercia, em primeiro lugar porque lhe faltava por completo o
talento musical, e em segundo, por causa da doença, que lhe tornava a voz esganiçada e fazia-a
pouco apta para cantar. Não progrediu além do subdiaconato. Não alcançou o diaconato,
tampouco a ordenação sacerdotal. Como a hemoptise se repetisse e a febre não desse mostras de
ceder, teve que submeter-se, à custa da ordem, a um tratamento prolongado. Instalara-se em
Davos, onde se encontrava fazia mais de cinco anos. Mal se podia falar de um tratamento, senão
de uma condição fixa da sua existência, que exigia atmosfera rarefeita, e que alguma atividade
como professor de latim no ginásio dos enfermos tornava menos penosa...
Essas coisas, além de outros pormenores, chegavam ao conhecimento de Hans Castorp
pela boca do próprio Naphta, quando o visitava na sua cela forrada de seda, ora sozinho, ora
acompanhado dos seus comensais Ferge e Wehsal, que apresentara ao seu anfitrião, ou quando o
encontrava num passeio e regressava junto com ele até a “aldeia”. Ia conhecendo esses detalhes
ao acaso, em fragmentos ou sob a forma de narrativas coesas, e não somente os achava
extraordinariamente interessantes, mas também incitava Ferge e Wehsal a considerá-los sob o
mesmo prisma, o que de fato acontecia. Verdade é que o primeiro nunca deixava de acrescentar a
restrição de não entender de coisas sublimes (uma vez que unicamente a experiência do choque
pleural o elevara acima das mais humildes entre as contingências humanas). Wehsal, porem,
regozijava-se visivelmente com a carreira afortunada de um homem outrora opresso pelo destino,
essa carreira que agora, como para abater qualquer soberba, se via interrompida e parecia encalhar
no mal físico que eles tinham em comum.
Hans Castorp, por sua vez, lamentava essa estagnação e recordava com orgulho e
desassossego o honrado Joachim, que num esforço heroico rasgara a rede resistente da retórica
de Radamanto e desertara para a sua bandeira, a cuja haste – segundo imaginava o jovem – devia
estar agarrado, erguendo três dedos da mão direita para prestar o juramento de fidelidade.
Também Naphta tinha uma bandeira à qual jurara, e sob cuja proteção se encontrava, como ele
mesmo dizia, ao informar Hans Castorp acerca da organização da ordem; mas, manifestamente,
em vista de todas as suas reservas e combinações, era-lhe menos fiel do que Joachim à sua. O
civil Hans Castorp, amigo da paz, sempre que escutava o antigo ou futuro jesuíta, sentia,
contudo, consolidada a sua opinião de que cada um dos dois devia olhar com simpatia a profissão
do outro e perceber o parentesco estreito que existia entre ela e a própria. Eram castas militares,
tanto uma como a outra, e isso sob muitos aspectos, o do ascetismo e o da hierarquia, o da
obediência e o do pundonor espanhol. Este último desempenhava um papel importantíssimo na
ordem de Naphta, que tinha a sua origem na Espanha, e cuja regra de exercícios espirituais,
espécie de precursora do regulamento que Frederico da Prússia deu à infantaria, era, na sua forma
original, redigida em espanhol. Por isso ocorria frequentemente a Naphta empregar termos
espanhóis nas suas narrativas e explicações. Falava então das dos banderas em torno das quais os
exércitos se agrupavam para a grande batalha, o do Inferno e o da Igreja, um na região de
Jerusalém, chefiado por Cristo, o capitán general de todos os justos, e o outro na planície da
Babilônia, onde Lúcifer exercia o cargo de caudillo ou chefe de bando...
Não era o Instituto Stella Matutina uma verdadeira escola de cadetes, cujos alunos,
distribuídos em “divisões”, iam sendo orientados no sentido honroso de uma bienséance militar e
clerical, que representava, por assim dizer, uma combinação de “colarinho engomado” e “golilha
espanhola”? As ideias da honra e da distinção, que na classe de Joachim desempenhavam tão
brilhante papel, com quanta nitidez – assim pensava Hans Castorp – não apareciam naquela que
Naphta desgraçadamente tivera de abandonar devido à doença! A crer nele, a ordem compunha
se exclusivamente de oficiais ambiciosos, cujo único pensamento era distinguir-se no serviço.
(Insignes esse, dizia-se em latim.) Segundo a doutrina e o regulamento do fundador e primeiro geral,
o espanhol Loyola, tais homens prestavam serviços maiores, serviços mais grandiosos do que
todos aqueles que agiam guiados pela mera razão. Realizavam a sua obra ex superrogatione, indo
além do seu dever; não se limitavam a resistir à rebelião da carne (rebellioni carnis), o que não
passava, em suma, daquilo que faz todo homem dotado de mediano bom senso, mas também
combatiam as tendências para a sensualidade, o egoísmo e o amor às coisas mundanas, até em
assuntos que geralmente eram considerados lícitos. Pois agir em detrimento do inimigo (agere
contra), quer dizer, atacar, era mais honroso e mais importante do que apenas defender-se
(resistere). “Debilitar e desbaratar o inimigo”, rezava o regulamento de campanha, e mais uma vez
o seu autor, o espanhol Loyola, estava plenamente de acordo com o capitán general de Joachim, o
prussiano Frederico e sua máxima estratégica: “Atacar, atacar! Não dar tréguas ao inimigo!
Attaquez donc toujours!”
Mas o que os mundos de Naphta e de Joachim tinham em comum, antes de mais nada,
era a relação com o sangue e o axioma de que não se devia impedir a mão de derramá-lo; nisso,
sobretudo, concordavam estritamente, como mundos, como ordens e como classes, e a um
amigo da paz parecia notável o que Naphta contava de tipos de monges-guerreiros da Idade
Média, que, ascetas até o esgotamento e no entanto ávidos de poder espiritual, não haviam
poupado sangue no seu esforço de estabelecer a Cidade de Deus e o reino do sobrenatural; falava
dos belicosos templários que julgavam mais meritório morrer na luta contra os infiéis do que na
cama, e para os quais matar ou ser morto por amor a Jesus não era crime, senão glória suprema.
Ainda bem que Settembrini não estava presente quando Naphta expôs essas ideias! Caso
contrário, não teria deixado de fazer o papel de tocador de realejo desmancha-prazeres e de fazer
soar a flauta pastoril da paz, não obstante o seu próprio projeto de guerra santa, nacional,
civilizadora, contra Viena, que ele absolutamente não rejeitava, ao passo que o sarcasmo e a
mordacidade de Naphta castigavam de preferência essa paixão e esse fraco do seu adversário.
Cada vez que o italiano se inflamava por esse gênero de sentimentos, o outro lhe opunha um
cosmopolitismo cristão, chamando todos os países, e ao mesmo tempo nenhum, de sua pátria e
repetindo em voz cortante a frase de um geral da sua ordem, de nome Nickel, segundo o qual o
patriotismo era “uma peste e a morte certa do amor cristão”.
Lógico que era em nome do ascetismo que Naphta tratava de peste o amor à pátria –
pois, quanta coisa não encerrava esse termo, aos seus olhos, quanta coisa não contrariava,
segundo a sua opinião, a ascética e o reino de Deus! Isso não somente se aplicava ao afeto à
família e ao lar, mas também ao apego à saúde e à vida. Era precisamente por eles que Naphta
censurava o humanista, quando este encomiava a paz e a felicidade; num tom rixoso, acusava-o
de amor carnalis, de amor ao conforto do corpo, commodorum corporis, e declarava à queima-roupa
que conceder a menor importância à vida e à saúde demonstrava a impiedade de pequenos
burgueses.
continua pág 292...
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Leia também:
Capítulo II
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
“Operationes spirituales”(a)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.