terça-feira, 26 de junho de 2018

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine VI — Quem guardava a casa do prelado

Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Primeiro - Um Justo




VI — Quem guardava a casa do prelado  

A casa que o bispo habitava compunha-se de rés-do-chão e primeiro andar; o rés-do-chão era dividido em três salas, o andar superior em três quartos, por cima dos quais ficava um sótão. Nas traseiras da casa havia um pequeno jardim. As duas mulheres ocupavam o primeiro andar, o bispo o rés-do-chão. A primeira sala, cujas janelas deitavam para a rua, servia-lhe de sala de jantar, a segunda de quarto de dormir e a terceira de oratório. Não se podia sair deste sem passar pelo quarto de dormir, nem do quarto de dormir, sem passar pela sala de jantar. No fundo da sala que servia de oratório havia uma alcova fechada, com uma cama de reserva para os hóspedes, que o bispo oferecia aos párocos de aldeia que os seus próprios negócios ou as necessidades das suas paróquias obrigavam a vir a Digne.

A farmácia do hospital, pequeno compartimento ao fundo do jardim, servia de cozinha e dispensa.

Havia, além disso, também no jardim, um estábulo, que em tempos fora a cozinha do hospício e onde agora o bispo guardava duas vacas. Por pouco que fosse o leite que elas dessem, mesmo assim, todos os dias pela manhã, o prelado mandava entregar metade aos doentes do hospital, ao que ele chamava «pagar o seu dízimo».

Como o seu quarto, demasiadamente grande, era muito frio de Inverno e a lenha em Digne fica por elevado preço, lembrou-se de mandar fazer no estábulo das vacas um compartimento de madeira, onde passava as noites mais frias. Chamava-lhe ele o seu salão de Inverno.

Os móveis do salão de Inverno consistiam apenas, como os da sala de jantar, numa mesa quadrada de pinho e quatro cadeiras de palhinha. Na sala de jantar apenas havia mais um velho bufete, pintado de vermelho. De um bufete igual, convenientemente adornado de toalhas e rendas de pouco custo, fizera o bispo o altar que decorava o oratório.

Por várias vezes, as confessadas ricas do bispo e outras devotas da cidade se haviam quotizado entre si para, à sua custa, lhe mandarem fazer no oratório um altar mais asseado, mas, de todas as vezes, o prelado dera o dinheiro aos pobres.

— O melhor de todos os altares é — dizia ele — é a alma de um infeliz agradecendo a Deus o alívio do seu infortúnio! No oratório tinha dois genuflexórios de palhinha e no quarto de dormir uma cadeira de braços, também de palhinha. Quando acontecia sete ou oito pessoas virem-no visitar ao mesmo tempo, o prefeito, o general, o estado-maior do regimento que fazia a guarda da cidade, ou os alunos do seminário, era preciso ir ao estábulo buscar as cadeiras do salão de Inverno, os genuflexórios ao oratório e a cadeira de braços ao quarto de dormir, conseguindo-se, deste modo, reunir até onze assentos, se tantas eram as visitas. À medida que iam chegando, ia-se desguarnecendo de móveis cada sala.

Sucedia algumas vezes serem doze as visitas; então o bispo dissimulava o embaraço da situação, conservando-se em pé junto do fogão, se era de Inverno, ou passeando no jardim, se era de Verão.

Havia ainda na alcova uma cadeira de palhinha, mas como, além de ter o assento arrombado, só tinha três pernas, não podia servir senão encostando-a à parede. A senhora Baptistina tinha também no seu quarto uma grande poltrona com dourados, que já mal se conheciam, mas como a escada era demasiado estreita, não pudera ser conduzida para o primeiro andar, senão içando-a pela janela, resultando daí que não se podia contar com o seu auxílio para as ocasiões de apuro.

Baptistina tivera sempre a ambição de poder comprar uma mobília completa de acajú, para ornamentar devidamente aquela modesta casa Mas para tal ser-lhe-iam necessários, pelo menos, quinhentos francos, e vendo que durante cinco anos não conseguira economizar mais de cinquenta francos, renunciara tristemente ao seu projeto.

Nada mais simples de imaginar do que o quarto de dormir do bispo. Uma janela rasgada, que deitava para o jardim; defronte, uma cama de ferro de hospital, com cornado de sarja verde; junto da cama, encobertos por uma corna, vários objetos de toucador, denunciando ainda os hábitos elegantes do homem de boa sociedade; duas portas, uma junto do fogão, que dava para o oratório, a outra próxima da estante, dando para a casa de jantar. A estante, grande armário envidraçado cheio de livros; o fogão, guarnecido de madeira pintada a fingir mármore, quase sempre apagado, com trempe de ferro ornada de dois vasos cheios de plantas e embutidos, primitivamente prateados a fosco, o que constituía certo luxo episcopal; por cima do fogão via-se um crucifixo de cobre desprateado, assente sobre um pedaço de veludo preto já muito velho, num caixilho que fora dourado; junto da janela, uma espaçosa mesa com um tinteiro ao centro, pejada de volumosos livros e papéis em confusão. Ao pé da mesa a cadeira de palhinha e ao pé da cama um genuflexório, pertencente ao oratório.

De cada lado da cama, viam-se dois retratos em caixilhos ovais, pendurados na parede. Algumas inscrições gravadas em letras de oiro no fundo escuro de cada tela. Por baixo das figuras, indicavam que os retratos representavam, um o abade de Chaliot, bispo de S. Cláudio, o outro, o abade Tourteau, vigário geral de Agde e abade de Grand-Champs, da ordem de Cister, na diocese de Chartres.

Quando o bispo fixara a sua residência naquela casa, que fora o hospital, encontrara ali aqueles retratos e deixara-os ficar no mesmo lugar, porque eram de sacerdotes e talvez de benfeitores, duas razões para que ele os respeitasse. Tudo o que ele sabia acerca destes dois personagens era que ambos tinham sido providos, um no seu bispado, outro no seu benefício, por nomeação régia datada do mesmo dia, 27 de Abril de 1785. Soubera esta circunstância por a ter encontrado escrita em caracteres que já mal se liam, num quadradinho de papel, amarelado pela ação do tempo, pregado com quatro obreias na parte posterior do retrato do abade de Grand-Champs, numa ocasião em que Magloire tirara os dois quadros para os limpar do pó.

Pendia da larga janela uma corna de grosseiro tecido de lã muito ango, que Magloire para evitar a despesa de uma nova, se viu na necessidade de lhe fazer uma grande costura no centro. Como a costura apresentava exatamente a forma de uma cruz, o bispo indicava-a às vezes, dizendo:

— Nunca houve costura com aspecto mais agradável.

Os quartos, tanto os do rés-do-chão como os do primeiro andar, eram todos caiados de branco, como era habitual nos hospitais e nos quartéis.

Muitos anos depois, porém, Magloire encontrou por baixo do papel caiado várias pinturas que ornavam o quarto de Baptistina. Antes de ser hospital, aquela casa fora centro de reunião dos burgueses e daí provinha a decoração. Os quartos eram ladrilhados de tijolos, que todas as semanas se lavavam, e aos pés de cada cama havia uma esteira. Numa palavra, a humilde habitação do bispo, a cargo das duas mulheres, respirava o perfume da mais esmerada limpeza. Era o único luxo que ele consentia.

— Com isto não se tira nada aos pobres! — costumava ele dizer.

Convém, contudo, dizer que lhe restava ainda, do que outrora possuíra, seis talheres de prata e uma colher de sopa, que Magloire via todos os dias, com o maior prazer, reluzir sobre a alva toalha de linho grosso que cobria a mesa.

E já que aqui pintámos o bispo de Digne tal qual era, devemos acrescentar que mais de uma vez se lhe ouvira dizer:

— Há-de custar-me muito comer com um talher que não seja de prata!

A esta baixela acrescentaremos também dois castiçais de prata maciça, que herdara de uma a. Estes castiçais que tinham duas velas de cera, figuravam habitualmente sobre o fogão. Quando havia algum hóspede, Magloire acendia as velas e colocava os castiçais sobre a mesa. No quarto do bispo, junto à cabeceira da cama, havia um pequeno armário onde Magloire todas as noites fechava os talheres, mas sem nunca tirar a chave.

O jardim, um tanto prejudicado pelas feias construções de que já falámos, era dividido por quatro caminhos em cruz, com um tanque no centro Ao longo do muro caiado que fechava o jardim, havia outro caminho que o circundava. Estas ruas eram separadas por canteiros orlados de buxo, em três dos quais Magloire cultivava legumes, ficando ainda outro, onde o bispo tinha as suas flores e onde plantara também algumas árvores de fruto.

Numa ocasião, a criada dissera ao bispo, sorrindo com ar de afetuosa malícia:

— Monsenhor, que de tudo tira proveito, não sei como tem no jardim um canteiro inutilizado. Não seria melhor semear nele alfaces em vez de flores?

— Está enganada, Magloire — respondeu ele. — O agradável é tão útil como o útil. — E, após um momento de silêncio, acrescentou: — Ou talvez mais.

O canteiro, que era dividido em quatro alegretes, ocupava a atenção do bispo, tanto como os seus livros. Sempre que podia, passava ali uma ou duas horas, cortando, sachando, mondando e lançando à terra novas sementes. Menos hostil com os insetos do que seria para desejar num jardineiro, o bispo também não tinha aspirações a botânico; desconhecia os grupos e as famílias, não se lembrando sequer de decidir entre Tournefort e o método natural, nem de tomar pardo pelos utrículos contra os cotyledonios ou por Jussieu contra Limeu. Não estudava as plantas, amava as flores. Respeitava muito os sábios, respeitava ainda mais os ignorantes e, sem nunca deixar de respeitar uns e outros, no Verão regava todas as tardes os seus alegretes com um regador de lata pintado de verde.

Em toda a casa não havia uma só porta fechada à chave. A porta da sala de jantar que dava saída para o largo da catedral, fora, em tempos, guarnecida de fechaduras e ferrolhos, como se fosse a porta de uma prisão. O bispo mandou tirar todas as fechaduras e daí em diante quer fosse noite, quer dia, a porta apenas ficava segura por um simples fecho. Quem quisesse abrir a porta, podia fazê-lo a qualquer hora.

Nos primeiros tempos, isto afligia as duas mulheres, mas o bispo dizia-lhes:

— Se quiserem mandem pôr ferrolhos nos vossos quartos.

Desde então, elas principiaram a participar da confiança do bispo ou, pelo menos, a mostrar que participavam. Apenas Magloire sentia, de tempos a tempos, renascer-lhe os receios. No que respeita ao prelado, podem dar-nos a explicação ou, pelo menos, indicação do seu pensamento, as seguintes linhas escritas por ele na margem de uma folha da Bíblia: «Eis a diferença: a porta do médico nunca deve estar fechada e a porta do sacerdote deve estar sempre aberta.»

Noutro livro intitulado Filosofia da ciência médica escrevera ele esta nota: «Tão médico sou eu como eles. Eles têm os seus enfermos, aos quais chamam doentes; eu tenho esses e os meus, a quem chamo desgraçados».

Noutra parte lia-se ainda: «Não pergunteis nunca o nome de quem vos pedir pousada Aquele que necessita de ocultar o seu nome, é quem mais carece de asilo».

Uma ocasião, um respeitável pároco, não sabemos bem se o de Couloubroux, se o de Pompierry, perguntou-lhe, talvez instigado por Magloire, se estava certo de não cometer, até certo ponto, uma imprudência, deixando de noite a porta aberta, à mercê de quem quisesse entrar, e se, finalmente, não receava consequências desagradáveis numa casa tão mal guardada.

O bispo, com serena gravidade, pôs-lhe a mão no ombro e disse-lhe:

Nisi Dominus custodierit domum, in vanum vigilante qui custodiunt earn.

Dizendo isto, mudou logo de assunto.

O sacerdote, costumava ele dizer, tem tanta bravura como o militar. Com a diferença, acrescentava, que a nossa deve ser mais pacífica.





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Enquanto existir nas leis e nos costumes uma organização social que cria infernos artificiais no seio da civilização, juntando ao destino, divino por natureza, um fatalismo que provém dos homens; enquanto não forem resolvidos os três problemas fundamentais a degradação do homem pela pobreza, o aviltamento da mulher pela fome, a atrofia da criança pelas trevas; enquanto, em certas classes, continuar a asfixia social ou, por outras palavras e sob um ponto de vista mais claro, enquanto houver no mundo ignorância e miséria, não serão de todo inúteis os livros desta natureza. 

Hauteville House, 1862




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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.


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domingo, 24 de junho de 2018

histórias de avoinha: a fome num é bão pra companhia

mulheres descalças


a fome num é bão pra companhia
Ensaio 122B – 2ª edição 1ª reimpressão

baitasar



quando o muleque entrô no quintal pra dizê dos encaminhamento feito com o pretu jaquín num tava animado, mais tava diferente, parecia mais forte e pronto pra uivá, os óio examinava tudo com atenção. num gastava as força com movimento de inutilidade ou resmungo de maldição, como todo bão caçadô aprendia sê frio, determinado e cruento; sonhava com o dia de usá o capote militá do pai, tê de veiz a autoridade pra agarrá, amansá ou matá

ele encontrô donna jojô com a felisaberta nos braço, tava sorrindo pru fiu e parecia tê devoção no jeito de oiá pru miúdo. felisaberta parecia observá tudo distraída das amargura da vida, Os olhos dela são diferentes, pensô o muleque, vê a vida sem alegria ou tristeza, nem sabe porque vive, não entende as coisas da vida além de comer, ciscar e pôr ovos. Por isso, a panela é o rumo certo. E acabou-se. Ter pena das galinhas é bobagem. Ficou com fome? Pegue um naco de pão e coma com um pedaço de galinha assada na brasa. Isso mesmo, e piscô um dos ôio debochado, mais num disse uma palavra dos pensamento

logo pra tráis tava donna gegê, todo o desastre brutal pareceu tê sumido do ânimo dela, o muleque observô a tia sem sabê explicá qual a importância dela na sua vida, num sentia o mesmo entusiasmo da mãe pela visita, num tinha uqui dizê, mais sabia vê qui alguma coisa nela num tava bem, parecia tê aquelas doença qui num parece sê doença, respirava, falava, escutava, mais num sorria cumsóio, parecia num sabê a razão de tê vida, nada parecia lhe tê serventia, uma pessoa sem lugá, sem aconchego, sem alívio, sem ardência, uma brasa morna escondida nas cinza esperando pelo assopro

o miúdo voltô oiá na sua volta, as cinco tava com os ânimo acalmado, riu-se de tudo, todas passava bem, Foi só alvoroço, e riu-se de novo, pensô no sargento pulícia, se papai está aqui saberia dá a medida certa para o acontecido: Filho, calma. É só nervosismo de moça!

é desde o tempo de miúdo qui o pepino fica torto

depois qui se riu com os pensamento do pai, fez um gesto encenado pra sê comovente, num tava mais se rindo, ergueu a mão e acariciô a cabeça da felisaberta, Espantoso, pensô o miúdo, somos filhos da mesma mãe...

Meu filho amado, por que tudo aquilo?

o miúdo num se sentia ocupando o lugá difiu. pelo menos, quando donna jojô resolvia hospedá nos seus braço de mãe uma das trêis penosa. já é trabalhoso desmanchá a ciumêra dufiu qui precisa dividí os cuidado da mãe com o pai, mais repartí as delicadeza de mãe com trêis penosa deixava seu curação vazio, Acho que não nasci como devia, num achava prudente falá uqui pensava, mas no fim, é bem simples, cada um tem a mãe que tem e é o filho que é, e pronto. Cada um escolhe ser estúpido e desmiolado ou um homem que se aguenta em pé, crescia um hômi qui se aguenta em pé e num solta os pensamento, a ruindade dos pensamento qui fica guardado, e depois escondido, é qui eles transtorna as vida dum jeito qui deixa marca funda e a cicatriz nem sempre se mostra

Nada demais, mãe. Só queria mostrar um pouco do inferno...

donna jojô abriu os óio e deu um passo atráis, parecia tá querendo distância daquele fiu escondido qui tava se mostrando, O que há com esse menino?

Mostrar o inferno para quem, meu filho?

parecia qui todas as força poderosa qui ajunta mãe e fiu, num importa o lugá nem a distância, rangia com frio. os dois num vibrava junto, muntu menos, rugia junto de contentamento

Para o criolo, mamãe!

um moribundo pretu qui foi mutilado, teve o ôio vazado, esse véio inválido num lhe fazia tê vontade de sentí compaixão nem lhe encorajava brigá com o miúdo qui saiu das suas entranha, mais convocá o inferno num era coisa boa de tê em casa

E por que para o negro?

num entendeu e pruqui num entendeu num ficô triste nem alegre, tem vida qui no modo de vê das pessoa de bem só atrapáia a vida. fez uma purugunta ingênua qui ia tê uma resposta rude e manchada de mentira suja

Mamãe, aparentava tá enjoado pra explicá uqui parecia sê tão fácil de vê, assim ele pode escolher pela própria vontade o criolo que ele quer ser, o miúdo tava inabalável no seu ponto de vê e julgá os pretu, foi só um pequeno susto, mãe. Assim, ele sabe o que pode ter do inferno ou do céu, a escolha é dele.

o ódio é uma doença qui gruda nas pessoa, sabendo ou sem sabê, ele pode chegá como uma tempestade e do mesmo jeito voltá pru lugá donde saiu; mais pode crescê junto com a crescença do miúdo, dia a dia, num muntu nem demais, todo dia um tanto a mais, inté tá com as raiz fincada nos pensamento, nas palavra qui é dita, nos jeito das vista oiá, é o ódio qui vê sem oiá

o miúdo da siá joanna, sabendo ou sem sabê, já tava no começo da missão qui escoieu tê: esperava o tempo passá pra esparramá seu tamanho dentro da vestimenta de pulícia da villa e sonhava deixá a barba encompridá, oiava todo dia no espêio se o bigode esfarelado já aparentava cara de bigode, tava com o gosto da impaciência de crescê logo quando se credita tê uma missão pra cumprí

Na próxima vez... tome mais cuidado, meu filho.

E a galinha, mamãe?

Foi só um pequeno susto...

Tudo bem, então?

puruguntô isso e abriu os braço num gesto de abraço, nada normal entre os dois, a donna jojô retesô o corpo, a respiração, as palavra; num esperava, sabendo ou sem sabê, pelo abraço do miúdo; os dois parecia tê areia movediça nos pé, eles num queria tá afundando ali, mais num podia saí. o abraço num foi dado nem foi recebido

Sim, meu querido... tudo bem...

as vista da donna jojô já tava no galinhêro. as trêis pisava e repisava o chão da terra esgravatada, elas num parava de buscá comida, Meu Deus, as minhas meninas estão parecidas com essa gente morta de fome! Que horror! Eu não deixo faltar nada, os pensamento todo voltado pras trêis fia, num viu qui esse seu jeito roubô a lembrança do fiu, era sempre assim, num tinha como ou num queria evitá, Eurásia! Só pode ser isso. A negra esconde a ração das meninas para essa gente perigosa pedindo de porta em porta. Hoje, ela não me escapa. É muito fácil fazer caridade com o dinheiro dos outros.

o miúdo continuava ali, parado, oiando pras cinco, e num pode deixá de pensá, É... não nasci como deveria, pelo menos, não para minha mãe e minhas irmãzinhas, fez um esforço pra num corrê gritando, Eu não sou uma menina histérica e chorona, quando o miúdo virô as costa pra saí, já tinha tirado dos pensamento a carcaça do pretu jaquín qui ele soltô nas rua e a carcaça da mãe com as chorona, pensava na limonada e nos bolinho de arroz da eufrásia. a boca seca avisava qui tava com sede. a barriga vazia reclamava qui tava com fome. foi ficando arredado de tudo e de todas na sua volta. ele num aprende com o sofrimento dosotro, ele aprende do sofrimento nostro

Meu filho, escute...

parô os passo, lutô contra o muxoxo de bruxa qui sentiu vontade de fazê, queria podê ignorá a mãe com jeito bem-educado, desaparecendo pra uma distância segura, opaca, triste e secreta

Sim, mãe...

donna jojô sabia qui a educação pru fiu é dada em casa, mais num sabia se fazia voz zangada ou preocupada com os ocorrido de hoje, de todo modo, num queria deixá passá sem uma boa conversa com ensinamento pru miúdo. pensô dizê, A vida já tem muito sofrimento, meu filho. Não existe lugar sem sofrimento, sem dor, mais num disse, queria tê dito pru fiu: Não confie nos próprios sonhos sem ter um suborno guardado, mais num disse, queria tê dito pra ele num engravidá a vida com mais vida pruqui as criança padece e os pai sofre muntu mais com o aguardamento entre a felicidade e o desapontamento, queria tê dito muntu mais duqui num disse

aproximô do miúdo com a felisaberta de volta nos braço, as duas cacarejando, numa faísca de desconfiança ele pensô qui as duas parecia assustada com ele, Machucar os outros me dá um alívio que eu não gosto, queria tê dito pra mãe, mais num disse, É como ficar me tocando nas intimidades, na hora, é bom, mas depois piora. Sinto que não devia fazer isso, mas aquele negro me provocou com seu jeito de vagabundo. Eu não sou assim, eu sou bom. Não sou ruim, não. É o demônio que se aproveita das minhas mãos, num disse nada disso

Meu filho, nunca mais me apareça em casa com um negro encardido, suado, fedido, sujo de escarros. Menino, aposto que você nem reparou nas marcas do negro. Um criolo muito marcado é perigoso e desobediente.

quando o miúdo respondeu pra sua mãe, ele já tava com as mão desenfeitiçada e a felisaberta já tava no chão ciscando

Eu sei, mãe. Eu prometo que não vai mais acontecer.

dava pra escutá as penosa resmungando e esgravatando, pra lá e cá, torrão por torrão, dava pra vê qui era só minhoca e formiga uqui elas buscava. a fome num é bão pra companhia, ela entristece a moldura das vista com a vida, as pessoa parece árvore despida, seca, cheia de lástima, parece qui tudo morre ou tá morrendo na volta

o miúdo fingia atenção qui num tinha, o medo qui num sentia, Não posso esquecer de aparecer no galinheiro dessas vacas com um punhado de milho, num sabia como o pai foi casá logo com a primêra qui foi oferecida, deu no qui deu, Um bom homem todo estropiado, condenado a morrer aos poucos.

a tia gegê, era assim qui ele foi ensinado dizê, e era isso qui precisava sabê, achô qui tumbé podia se metê. afinal, o susto qui levô quase lhe fez provocá o óbito da felisaberta. ela saiu do silêncio das testemunha, mais continuô pra tráis, uma sombra decorativa, como as manequim sem rosto, mão ou perna, apenas pra simulá um corpo de gente

o descaso da donna jojô era pra mostrá podê, dizê sem dizê, pra gêmea mais nova, qui era ela: jojô, qui mandava e desamandava entre as duas; o desdém do miúdo, era pra num mostrá aceno – igual letrêro na tabuleta – qui a tia gegê lhe acendia as vontade de tocá as intimidade de hômi pra muié, puro desassossego querê mais qui pode tê ou achá qui pode acendê as brasa mais amornada com seu assopro de querê aprendê

Querido, sua mãe não precisava ver isso. Esse é o trabalho do seu pai. Os homens fortes e do bem cuidam dos corretivos nos negros. Essas coisas fedidas e sujas não entram na porta da frente.

nem a mais véia nem ufiu da mais véia virô na direção da donna gegê, otro descaso qui ela deixô guardado pra num desmanchá aquela amizade da vida toda, pensô em puruguntá, De quantos desdém a pessoa precisa para se cansar, mais num disse, tem pessoa qui é assim, na villa parece qui tudo é assim, quanto mais maltratada mais perto qué ficá, é o seu modo de vivê, o seu caminho inté morrê. num presta atenção na própria vida pruqui num aprendeu, ou num quis aprendê vivê bem com as otra vida, dá trabáio qualqué vida, toda vida

essa gente qui num vê merecimento nas otras vida parece vivê cercada com um muro de vasteza gigante e sem janela, uma pequena fresta no teto, na volta um fedô de gente esfarrapada e se desmanchando como se fosse comida. gente qui mastiga gente num sabe sentí a vida, gosta de adormecê a cabeça no travessêro das mentira e das mistura nojenta do egoísmo, a maldade precisa se prufumá muntu pra escondê a catinga ôca e tola da crueldade qui tem pudrento

Por que tudo isso, meu filho?

as vista do miúdo num tava asustada, nada nele tremia, uqui dava pra vê era um brilho excitado qui teimava ficá como amostra duqui ele deixô jogado pra tráis por cima do ombro

Tudo isso o quê, mãe?

mãe e fiu continuava soprando palavra atráis das palavra como uma rajada fria, um pru otro, e tumbém desatendendo os dito e num dito da donna gegê. as crista branca erguida congelava a grosseria rude da mais véia e derramava sobre a mais nova o silêncio indiferente. donna jojô ficô parada, se o seu miúdo num fosse uqui é ela podia achá qui ele tava bêbado como o pai, a vontade qui teve foi descê seu punho delicado com toda força sobre alguma mesa, pra sorte do seu punho fino e efeminado num tinha mesa no galinhêro, Seu fedelho de merda nem imagina tudo que já suportei por você, num gritô e num disse

Esse circo de horrores com aquele negro...

o miúdo já tava, pela força do hábito, com as atitude fingida grudada na sua crista branca e impaciente, abanava a cabeça prum lado e outro sacudindo os ombro

A molecada duvidou...

uma enxurrada de gente qui já viveu na villa puxava a carretêra dos hábito, figuras humana qui rastejava como verme e recebia mais verme em troca. donna jojô voltô pegá felisaberta, abraçô o corpo da bichana, segurô as pata magra e colocô a cabeça da miúda de penas no seu ombro, como se sossega os bebê muntu chorão

Calma, meu amorzinho. Vai ficar tudo bem. Somos boas pessoas, ninguém vai lhe fazer mal.

Pelo menos, enquanto a fome não bater à porta.

Não se assuste com seu irmão, Felisaberta... ele é um bom filho.

a felisaberta continuava com sua crista vermêia impaciente, abanava a cabeça pru lado e otro

Meu filho, não se torne uma vítima dos outros. Não queira aparecer para os outros. Jamais perca o controle. É mais fácil satisfazer a sua fome que a fome dos outros...

enquanto a donna do galinhêro falava, falava e falava, sem dizê nada pra tê importância pru miúdo, as palavra se misturava com os vulto manso e estranho qui cacarejava nas sombra como anjos desinteressados e frios, aparição sem rosto, sem repouso, qui zombava do silêncio medroso das conveniência

... a vida, lá fora, meu filho, é muito triste e insuportável. Aqui, no quintal das galinhas, ao contrário, é tudo inocente e sem arrependimentos.

as duas qui tava fora do colo materno respondeu cacarejando, elas empurrava com o bico e ciscava com uspé, em volta delas a voz descolorida da donna jojô. num tinha um pedaço do galinhêro qui elas num examinô, mais num era trabáio, num era fome, era o costume qui parecia dá pra elas a liberdade de lutá pelas própria necessidade sem aborrecimento, desde qui num fosse vontade arredada do galinhêro. fazê tudo igual com medo de sê mudada num é sê livre, é sê obediente ao julgamento da voz qui manda enquanto a vida se afasta do contorno das vista cacarejando e ciscando

Eu sei, mãe.

donna jojô oiô pru fiu, ela num conhecia a trilha qui leva pru coração do miúdo, num conhecia pruqui num procurô ou desistiu de procurá, então, já basta qui ele fique sem reação e com jeito de vencido, obediente

Agora, vá tomar seu banho... e tire do seu corpo essa catinga de negro.

a tardinha já caminhava nas rua da villa e entrava no galinhêro da donna jojô, a porta tava aberta. a brancura qui entrava pelo terrêro sem respondê se podia, tava se indo. o dia seguia sempre em frente, num parava pra ouví as reclamação ou as alegria, sempre em frente, sem oiá pra tráis

Sim, mãe.

ia e voltava, num era o primêro nem o último dia qui vai varrê a claridade e passá tudo pra escuridão da noite, desde o começo de tudo é assim, um dia depois otro, pru qui mudá se tá dando tão certo, né

Espere o seu pai para o jantar.

nem as lágrima consegue pará a sua balada de chegada e despedida, um miúdo esfarrapado corre, bem cedinho, gritando pra lhe dá as boa-vinda quando chega de volta, Eu conheço o caminho... Eu conheço o caminho, repete e repete prum dia cambaleante, mais ele segue sem respondê, sem pedí, sem ouví, desde os tempo mais remoto foi assim, mudá pra quê

Sim, mãe.

o miúdo sumiu na direção da cozinha enquanto as cinco ficô parada sem dá um piu, inté qui a siá georginna se resolveu pela gabação

Joanna, minha amiga querida, adorei vê como vosmecê controlou tudo.

a donna do galinhêro embalava nos braço felisaberta, controlava as otra duas com oiá de cuidado. logo pra tráis, donna gegê media na amiga se aquele quase desastre brutal tinha desaparecido do seu ânimo de gentileza

Tudo isso, Georginna... foi só um susto.

as duas fez o contorno da cruiz qui elas tinha estampada na memória, levô as mão na testa, Em nome do Pai, depois no peito, do Filho, no lado esquerdo, do Espírito, no lado direito, Santo, e terminô com as mão nos lábio, Amém...

Sinto tanto orgulho de vosmecê, minha amiga.

duas nuvem cinzenta cobriu o galinhêro, só faltô o vento gelado e o miúdo esfarrapado e magrento do destino pra puruguntá, A siazinha conheceu a defunta? Foi uma pena, essa galinha só faltava falar, a visita sentiu um calafrio só de pensá na desgraça qui num aconteceu e podia tê acontecido, mais tudo num passô do susto

Georginna, o que seria da vida na nossa querida Villa sem algumas regras alicerçadas em nosso caráter: os pobres e os miseráveis servem aos ricos, certo?

a mais véia caminhava lá e cá no galinhêro

Perfeito, Joanna.

O que seria nossa vida se alguém decide que os negros não serão mais escravos?

Um pandemônio, Joanna.

Quem faria o serviço dos pobres? Não posso nem imaginar! Georginna, vosmecê consegue imaginar o disparate que seria eu servir essa negrinha Eurásia? Meu Deus, nem com muita imaginação.

a mais nova se agachô pra chamá uma das bichana

Não consigo, Joanna.

Não, Georginna, Deus quer assim como sempre foi, se não fosse para ser assim, Ele já teria mudado isso tudo.




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Stendhal - O Vermelho e o Negro: As Afinidadades Eletivas (VII)


Livro I


A verdade, a áspera verdade. 
Danton 


Capítulo VII







AS AFINIDADES ELETIVAS


Só sabem tocar o coração machucando-o.

UM MODERNO






AS CRIANÇAS O adoravam, ele não gostava delas; seu pensamento estava noutra parte. O que aqueles moleques pudessem fazer jamais o impacientava. Frio, justo, impassível, e não obstante amado, porque sua chegada expulsara de certo modo o tédio da casa, foi um bom preceptor. Para ele, tudo o que sentia era ódio e horror em relação à alta sociedade na qual era admitido, em verdade apenas com reserva, o que explica talvez seu sentimento. Houve alguns jantares de cerimônia nos quais só a muito custo pôde conter o ódio por tudo o que o cercava. Num dia de São Luís, entre outros, enquanto o sr. Valenod sustentava a conversa na casa do sr. de Rênal, Julien esteve a ponto de trair-se; salvou-se indo para o jardim, a pretexto de ver as crianças. Quantos elogios à probidade!, exclamou; dir-se-ia que é a única virtude; no entanto, quanta consideração, quanto respeito servil por um homem que evidentemente duplicou e triplicou sua fortuna desde que administra o bem dos pobres! Eu apostaria que ele ganha mesmo com os fundos destinados às crianças enjeitadas, a esses pobres cuja miséria é ainda maior que a dos outros! Ah! Monstros, monstros! E eu, também, sou uma espécie de criança enjeitada, odiado por meu pai, por meus irmãos, por toda a minha família.

Alguns dias antes do São Luís, Julien, passeando sozinho e recitando seu breviário num pequeno bosque chamado Belvedere, e que domina o Passeio da Fidelidade, buscara em vão evitar seus dois irmãos, que vinham ao longe por um caminho solitário. Enciumados pelo belo traje preto, pelo aspecto extremamente asseado do irmão, pelo desprezo sincero que tinha por eles, esses operários grosseiros bateram nele a ponto de deixá-lo desfalecido e sangrando. A sra. de Rênal, que passeava com o sr. Valenod e o subprefeito, chegou por acaso ao pequeno bosque; viu Julien estendido no chão e acreditou-o morto. Sua comoção foi tamanha que despertou ciúmes no sr. Valenod.

Ele alarmava-se muito cedo. Julien achava a sra. de Rênal muito bela, mas a odiava por causa de sua beleza; fora o primeiro obstáculo que por pouco não lhe barrara o caminho à fortuna. Falava-lhe o menos possível, a fim de fazer esquecer o transporte que, no primeiro dia, o levara a beijar sua mão.

Elisa, a camareira da sra. de Rênal, logo apaixonara-se pelo jovem preceptor; falava dele com frequência à patroa. O amor da srta. Elisa valera a Julien o ódio de um dos criados. Um dia, ele ouviu esse homem dizer a Elisa: Você não quer mais falar comigo desde que esse preceptor ordinário entrou na casa. Julien não merecia essa injúria; mas, por instinto de rapaz bonito, redobrou os cuidados com sua pessoa. O ódio do sr. Valenod também aumen​tou. Ele disse publicamente que tanta elegância não convinha a um jovem padre. Julien vestia raramente a batina.

A sra. de Rênal observou que ele falava mais seguidamente que de costume com a srta. Elisa; ficou sabendo que essas conversas eram causadas pela penúria do pequeno guarda-roupa de Julien. Ele tinha tão poucas roupas de baixo que era obrigado a fazê-las lavar com fre​quên​cia fora de casa, e era para esses pequenos serviços que Elisa lhe era útil. Essa extrema pobreza, que não suspeitava, tocou a sra. de Rênal; ela teve vontade de dar-lhe presentes, mas não ousou; essa resistência interior foi o primeiro sentimento penoso que Julien lhe causou. Até então, o nome de Julien e o sentimento de uma alegria pura e inteiramente intelectual eram sinônimos para ela. Atormentada pela ideia da pobreza de Julien, a sra. de Rênal falou ao marido para dar-lhe de presente roupas de baixo.

– Que tolice!, ele respondeu. Dar presentes a um homem com o qual estamos perfeitamente satisfeitos e que nos serve bem! Só faríamos isso se começasse a relaxar e fosse preciso estimular seu zelo.

A sra. de Rênal sentiu-se humilhada com essa maneira de ver; não a teria notado antes da chegada de Julien. Não podia ver o extremo asseio do vestuário, aliás muito simples, do jovem padre, sem pensar: pobre rapaz, como ele se arranja?

Aos poucos, sentiu piedade por tudo o que faltava a Julien, em vez de sentir-se chocada.

A sra. de Rênal era uma dessas mulheres da província que podemos perfeitamente tomar por tolas durante os quinze primeiros dias em que as vemos. Não tinha nenhuma experiência da vida e não se preocupava com o que dizia. Dotada de uma alma delicada e desdenhosa, o instinto de felicidade natural a todos os seres fazia que, na maior parte do tempo, ela não desse nenhuma atenção às ações dos personagens grosseiros no meio dos quais o acaso a lançara.

Teriam reparado em seu caráter e em sua vivacidade de espírito se tivesse recebido o mínimo de educação. Mas, em sua qualidade de herdeira, fora educada pelas religiosas adoradoras apaixonadas do Sagrado Coração de Jesus e animadas de um ódio violento aos franceses inimigos dos jesuí​tas. A sra. de Rênal tivera bastante bom senso para esquecer em seguida, como absurdo, tudo o que aprendera no convento, mas nada colocou no lugar, e acabou por nada saber. As lisonjas precoces de que fora objeto em sua qualidade de herdeira de uma grande fortuna, e um pendor decidido à devoção apaixonada, produziram nela uma maneira de viver completamente interior. Aparentando a condescendência mais perfeita e uma abnegação da vontade que os maridos de Verrières citavam como exemplo às suas mulheres, e que faziam o orgulho do sr. de Rênal, a conduta habitual de sua alma era, com efeito, o resultado da mais altiva disposição de espírito. Essa princesa, citada por seu orgulho, está infinitamente mais atenta ao que fazem os fidalgos a seu redor do que a esposa, aparentemente tão doce e modesta, ao que dizia ou fazia o marido. Até a chegada de Julien, ela realmente só dera atenção aos filhos. Suas pequenas doen​ças, suas dores, suas pequenas alegrias ocupavam toda a sensibilidade dessa alma que, na vida, não havia adorado senão a Deus, quando estava no Sacré-Coeur de Besançon.

Sem que dissesse a ninguém, um acesso de febre num dos filhos deixava-a quase no mesmo estado, como se a crian​ça tivesse morrido. Uma risada grosseira, um dar de ombros, acompanhado de uma máxima trivial sobre a loucura das mulheres: assim haviam sido acolhidas as confidências desse tipo de aflição que a necessidade de desafogo a levara a fazer ao marido, nos primeiros anos do casamento. Tais gracejos, sobretudo quando relacionados às doenças dos filhos, eram como uma punhalada no coração da sra. de Rênal. Eis o que ela encontrou em lugar das bajulações servis e melosas do convento jesuítico onde passara a juventude. Sua educação fizera-se pelo sofrimento. Orgulhosa demais para falar desse tipo de desgosto, mesmo à sua amiga, sra. Derville, ela imaginou que todos os homens eram como seu marido, o sr. Valenod e o subprefeito Charcot de Maugiron. A grosseria e a mais brutal insensibilidade a tudo o que não era interesse por dinheiro, prerrogativa ou condecoração, o ódio cego a qualquer ra​cio​cínio que os contrariasse, pareceram-lhe coisas naturais a esse sexo, como usar botas e um chapéu de feltro.

Depois de longos anos, a sra. de Rênal ainda não se acostumara a essa gente de dinheiro no meio da qual precisava viver.

Daí o sucesso do pequeno aldeão Julien. Ela descobriu doces prazeres, realçados pelo encanto da novidade, na simpatia dessa alma nobre e orgulhosa. A sra. de Rênal em breve lhe perdoaria sua ignorância extrema, que era uma graça a mais, e a rudeza de suas maneiras, que conseguiu corrigir. Achou que valia a pena escutá-lo, mesmo quando falavam das coisas mais comuns, mesmo quando se tratava de um pobre cão atropelado, ao cruzar a rua, pela carroça de um aldeão apressado. O espetáculo desse sofrimento provocava o riso grosseiro do marido, ao passo que ela via contraírem-se as belas sobrancelhas negras e tão bem arqueadas de Julien. A generosidade, a nobreza de alma e a humanidade pareceram-lhe, aos poucos, existir apenas nesse jovem padre. Apenas por ele sentiu a simpatia e mesmo a admiração que essas virtudes suscitam nas almas bem-nascidas.

Em Paris, a posição de Julien em relação à sra. de Rênal logo teria se simplificado; mas em Paris o amor é filho dos romances. O jovem preceptor e sua tímida patroa teriam encontrado em três ou quatro romances, e até nas coplas do liceu, o esclarecimento da posição deles. Os romances ter-lhes-iam traçado o papel a desempenhar, mostrado o modelo a imitar; e esse modelo, cedo ou tarde, e embora sem nenhum prazer, quem sabe até resmungando, a vaidade teria forçado Julien a segui-lo.

Numa cidadezinha do Aveyron ou dos Pirineus, o menor incidente teria sido decisivo, em função do clima. Sob nossos céus mais sombrios, um moço pobre, e que só é ambicioso porque a delicadeza de seu coração torna ne​cessários alguns dos prazeres que o dinheiro proporcio​na, vê todo dia uma mulher de trinta anos, sinceramente honesta, ocupada com os filhos, e que de maneira nenhuma tira dos romances exemplos de conduta. Tudo segue lentamente, tudo se faz aos poucos na província, há mais naturalidade.

Com frequência, ao pensar na pobreza do jovem preceptor, a sra. de Rênal enternecia-se até as lágrimas. Julien surpreendeu-a, um dia, a chorar de verdade.

– Oh! Aconteceu-lhe alguma desgraça, senhora?

– Não, meu amigo, ela respondeu; chame as crianças, vamos passear.

Ela tomou-lhe o braço e apoiou-se de uma maneira que pareceu singular a Julien. Era a primeira vez que o chamava de meu amigo.

Quase ao final do passeio, Julien notou que ela estava muito corada e diminuiu o passo.

– Terão lhe contado, ela disse sem olhar para ele, que sou a única herdeira de uma tia muito rica que mora em Besançon. Ela me cumula de presentes... meus filhos fazem progressos... tão surpreendentes que gostaria de pedir-lhe aceitar um pequeno presente como prova de meu reconhecimento. Trata-se apenas de alguns luíses para que compre roupas. Mas... acrescentou, ruborizando ainda mais, e parou de falar.

– O quê, senhora?, disse Julien.

– Seria inútil, ela prosseguiu, baixando a cabeça, falar disso a meu marido.

– Sou pequeno, senhora, mas não sou vil, disse Julien estacando, com os olhos brilhantes de cólera e emperti​gando-se todo, e a senhora não pensou muito nisso. Eu seria menos que um criado se decidisse ocultar ao sr. de Rênal qualquer coisa relacionada a meu dinheiro.

A sra. de Rênal estava aterrorizada.

– O sr. prefeito, continuou Julien, pagou-me cinco vezes 36 francos desde que moro em sua casa, estou pronto para mostrar meu livro de despesas ao sr. de Rênal e a quem quer que seja, mesmo ao sr. Valenod, que me odeia.

Depois dessa resposta, a sra. de Rênal ficara pálida e trêmula, e o passeio terminou sem que nenhum dos dois pudesse achar um pretexto para reatar o diálogo. O amor pela sra. de Rênal tornou-se cada vez mais impossível no coração orgulhoso de Julien; quanto a ela, respeitou-o, admirou-o; fora repreen​dida. Sob pretexto de reparar a humilhação involuntária que lhe causara, permitiu-se as atenções mais ternas. A novidade dessas maneiras fez, durante oito dias, a felicidade da sra. de Rênal. Seu efeito foi apaziguar em parte a cólera de Julien; ele estava longe de ver nisso algo que pudesse assemelhar-se a um gosto pessoal.

Eis como age essa gente rica, ele pensava, humilham e creem em seguida poder reparar tudo com alguns trejeitos!

O coração da sra. de Rênal era ainda muito puro, e ainda muito inocente, para que, apesar de suas resoluções a esse respeito, ela não contasse ao marido a oferta que fizera a Julien e a maneira como fora repelida.

– O quê! disse o sr. de Rênal vivamente ofendido, você pôde tolerar uma recusa da parte de um criado?

E, como a sra. de Rênal protestasse contra essa palavra:

– Eu falo, senhora, como o falecido príncipe de Condé, ao apresentar seus auxiliares à nova esposa: “Todos esses aí”, disse-lhe, “são meus criados”. Já li a você a passagem das Memórias de Besenval, essencial para as prerrogativas. Todos os que não são fidalgos que vivem em sua casa e recebem salário são seus criados. Vou dizer duas palavras a esse sr. Julien e dar-lhe cem francos.

– Ah, meu caro, disse a sra. de Rênal trêmula, que ao menos não seja diante dos criados!

– Sim, eles poderiam ficar enciumados e com razão, disse o marido, afastando-se e pensando no montante da soma.

A sra. de Rênal deixou-se cair numa cadeira, quase desfalecida de dor. Ele vai humilhar Julien, e por minha culpa! Sentiu horror do marido e cobriu o rosto com as mãos. Prometeu a si mesma jamais fazer confidências.

Quando tornou a ver Julien, estava muito trêmula, seu peito estava tão contraído que não conseguiu pronunciar a menor palavra. No seu embaraço, tomou as mãos dele e as apertou.

– Então, meu amigo, disse ela enfim, está contente com meu marido?

– Como não estaria?, respondeu Julien com um sorriso amargo; ele me deu cem francos.

A sra. de Rênal olhou para ele como que incerta.


– Dê-me o braço, disse ela enfim, com um acento de coragem que Julien não conhecia.

Ela ousou ir até a casa do livreiro de Verrières, apesar de sua terrível reputação de liberalismo. Lá escolheu, por dez luíses, livros que deu aos filhos. Mas esses livros eram os que ela sabia que Julien desejava. Exigiu que ali, na loja do livreiro, cada um dos filhos escrevesse seu nome nos livros que lhe cabiam. Enquanto a sra. de Rênal alegrava-se com a espécie de reparação que tinha a audácia de fazer a Julien, este surpreendia-se com a quantidade de livros que via na loja do livreiro. Nunca havia ousado entrar num lugar tão profano; seu coração palpitava. Longe de tentar adivinhar o que se passava no coração da sra. de Rênal, ele imaginava o meio que haveria, para um jovem estudante de teologia, de obter alguns daqueles livros. Finalmente, teve a ideia de que seria possível, com habilidade, convencer o sr. de Rênal de que era preciso dar como tema, a seus filhos, a história dos fidalgos célebres nascidos na província. Após um mês de esforços, sua ideia foi bem sucedida, a tal ponto que, algum tempo depois, Julien ousou propor, ao falar com o sr. de Rênal, uma ação bem mais penosa para o nobre prefeito; tratava-se de contribuir para a fortuna de um liberal, abrindo uma conta no livreiro. O sr. de Rênal admitia ser conveniente dar ao filho mais velho uma ideia geral de várias obras que ele ouviria mencionar em conversas, quando estivesse na Escola Militar; mas Julien via o sr. prefeito obstinar-se em não ir mais adiante. Suspeitava uma razão secreta, mas não podia adivinhá-la.

– Pensei, senhor, disse ele um dia, que seria muito inconveniente o nome de um bom fidalgo como um Rênal figurar no registro sujo do livreiro.

A fronte do sr. de Rênal desanuviou-se.

– Também seria bastante impróprio, continuou Julien num tom mais humilde, para um pobre estudante de teologia, se viessem um dia a descobrir que seu nome esteve no registro de um livreiro que aluga livros. Os liberais poderiam acusar-me de ter solicitado os livros mais infames; quem sabe até não chegariam a escrever após meu nome os títulos desses livros perversos.

Mas Julien afastava-se da pista. Ele via a fisionomia do prefeito retomar a expressão de embaraço e de irritação. Julien calou-se. Tenho-o na mão, pensou.

Alguns dias depois, o mais velho dos meninos interrogava Julien sobre um livro anunciado no La Quoti​dienne, em presença do sr. de Rênal:

– Para evitar qualquer motivo de triunfo ao partido jacobino, disse o jovem preceptor, e no entanto para dar-me os meios de responder ao sr. Adolphe, poderíamos fazer que o último de seus criados abrisse uma conta no livreiro.

– A ideia não é má, disse o sr. de Rênal, evidentemente muito alegre.

– Todavia, seria preciso especificar, observou Julien, com aquele ar grave e quase infeliz que cai tão bem em certas pessoas quando veem o sucesso há muito almejado de seus negócios, seria preciso especificar que o criado não poderá tomar nenhum romance. Uma vez na casa, esses livros perigosos poderiam corromper as criadas da senhora e o próprio criado.

– Está esquecendo os panfletos políticos, acrescentou o sr. de Rênal, com um ar altivo. Ele queria dissimular a admiração que lhe causava o sábio mezzo-termine inventado pelo preceptor de seus filhos.

A vida de Julien compunha-se assim de uma série de pequenas negociações; e seu sucesso ocupava-o bem mais do que o sentimento de preferência marcada que lhe bastaria ler no coração da sra. de Rênal.


A posição moral onde estivera em toda a sua vida renovava-se na casa do sr. prefeito de Verrières. Ali, como na serraria do pai, desprezava profundamente as pessoas com quem vivia, e era odiado por elas. Diariamente ele via nos relatos feitos pelo subprefeito, pelo sr. Valenod, pelos outros amigos da casa, a propósito de coisas que acabavam de se passar sob seus olhos, o quanto as ideias deles eram contrárias às suas. Uma ação que lhe parecia admirável era precisamente a que atraía a reprovação das pessoas que o cercavam. Sua réplica interior era sempre: Que monstros ou que tolos! O engraçado é que, com todo esse orgulho, com frequência ele não compreendia absolutamente nada do que estavam falando.

Em sua vida, ele só havia falado sinceramente com o velho cirurgião-mor. As poucas ideias que tinha eram relativas às campanhas de Bonaparte na Itália ou à cirurgia. Sua jovem coragem comprazia-se com o relato detalhado das operações mais dolorosas; ele dizia a si mesmo: Eu não teria pestanejado.

A primeira vez que a sra. de Rênal tentou com ele uma conversa alheia à educação das crianças, ele pôs-se a falar de operações cirúrgicas; ela empalideceu e pediu-lhe que parasse.

Julien nada sabia além disso. Assim, convivendo com a sra. de Rênal, um silêncio singular estabelecia-se entre os dois assim que estavam a sós. Na sala, qualquer que fosse a humildade de sua atitude, ela percebia nos olhos dele um ar de superioridade intelectual em relação a tudo que partia dela. Ao ficar por um instante a sós com ele, via-o visivelmente embaraçado. Ela inquietava-se com isso, pois seu instinto de mulher fazia-a compreender que esse embaraço não era de modo algum afetuoso.

De acordo com não sei que ideia ouvida em conversas da boa sociedade, segundo dissera o velho cirurgião-mor, de que não se devia ficar em silêncio num lugar onde houvesse uma mulher, Julien sentia-se humilhado, como se esse silêncio fosse por sua culpa particular. Essa sensação era cem vezes mais penosa no encontro a dois. Sua imaginação, repleta das noções mais exageradas, mais espanholas, sobre o que um homem deve dizer quando está a sós com uma mulher, só lhe oferecia, em sua perturbação, ideias inadmissíveis. Tinha a alma nas nuvens, e no entanto não podia sair do silêncio mais humilhante. Assim, seu ar severo, durante os longos passeios com a sra. de Rênal e as crianças, era aumentado pelos sofrimentos mais cruéis. Desprezava-se horrivelmente. Se, por infelicidade, forçava-se a falar, sucedia-lhe dizer as coisas mais ridículas. Para o cúmulo da miséria, ele via e exagerava o absurdo delas; mas o que não via era a expressão de seus olhos; eram tão belos e anunciavam uma alma tão ardente que, como os bons atores, davam às vezes um sentido encantador ao que não o tinha. A sra. de Rênal observou que, a sós com ela, ele só chegava a dizer alguma coisa de interessante quando, distraído por um acontecimento imprevisto, não pensava em dirigir-lhe uma lisonja. Como os amigos da casa não lhe presenteavam com ideias novas e brilhantes, ela deliciava-se com os rasgos de espírito de Julien.

Desde a queda de Napoleão, toda aparência de galan​teria está severamente banida dos costumes da província. Teme-se ser destituído. Os velhacos buscam um apoio na Congregação; e a hipocrisia fez os maiores progressos mesmo nas classes liberais. O tédio aumenta. Não resta outro prazer senão a leitura e a agricultura.

A sra. de Rênal, rica herdeira de uma tia devota, casada aos dezesseis anos com um fidalgo, não tinha em sua vida experimentado nem visto nada que se assemelhasse um pouquinho só ao amor. Praticamente apenas seu confessor, o bom cura Chélan, lhe falara do amor, a propósito do assédio do sr. Valenod, e fizera dele uma imagem tão desagradável que essa palavra representava-lhe apenas a ideia da libertinagem mais abjeta. Ela considerava como uma exceção, ou mesmo como algo inteiramente antinatural, o amor tal como o encontrara nos poucos romances que o acaso pusera sob seus olhos. Graças a essa ignorância, a sra. de Rênal, perfeitamente feliz, ocupada o tempo todo com Julien, estava longe de fazer-se a menor censura.





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ADVERTÊNCIA DO EDITOR
Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.


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Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.

Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.

Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.

"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.

Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.

Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.

Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.

Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.



O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.

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