domingo, 30 de março de 2014

03 – General Calçacurta

O Cadáver do Calçacurta – 3ª edição revisada
Eu sei, General

baitasar
Não vá o senhor pensar que estou de reclamação. A decisão foi minha. Eu acho. Enfim, eu concordei com a missão porque era relevante e influente ser o motorista do General Calçacurta. Um homem sem meios e medidas. Inimigo dos inimigos, mas não era um antagonista simplório, dedicava aos adversários o mesmo sentimento que destinava ao diabo, o aniquilamento. Inimigos não eram vítimas, mas perigos que cedo ou tarde chegavam às suas mãos para o estrago final
—        Chupa-racha, inimigo bom é aquele que fica espremido sob a botina até a parada do respiradouro.
Amigo dos amigos e dos amigos dos amigos. Capaz dos maiores sacrifícios e desatinos para saciar o contentamento do afeiçoado. Todo indivíduo ajustado as suas exigências e rotinas era um aliado. Não tinha medidas de controle, amigos eram crianças que precisava contentar. Eis a realidade das coisas. Era mais vantagem ter o General como amigo, ser simplório aos seus olhos. Não embaraçar a sombra da sua justiça com problemas desnecessários.
E claro, houve outro interesse da minha parte. A cobiça por carros velozes e furiosos. Outra decisão estúpida. Jamais usei a força de fuga ou perseguição do seu carrão. Um desperdício, entre tantos, nestes anos de desmandos contra essa gente subversiva, não usar aquela viatura criada para a velocidade. E não foi por falta de reza. Rezei, uma ou outra vez, para que o senhor entrasse na viatura dos seus passeios secretos, foram tantos, e fosse gritando
—        Vamos rápido! Siga aquele fusca!
Não sei por que os subversivos gostavam tanto do Fusca e da Kombi, raramente usaram outro veículo nos seus ataques criminosos. Não tinham bom gosto nem para os carros
—        Toda velocidade, soldado!
Nunca aconteceu.
O General entrava na viatura com o olhar perdido em algum assunto distante. A respiração tranquila, desarmada e despida de qualquer bravura ou contentamento. Um tempo de acomodação e desprezo com as leis. O senhor era as leis. Ficava em silêncio. O único ruído vinha do motor frio e rouco. Outras vezes, o General chegava à viatura com jeito de indecência e travessura. Um guri malicioso e engraçado. Subia na viatura alisando o bigode, sentava no assento atrás, cheirava os dois dedos do alisamento e soltava um suspiro contraditório, como se a solução dada não fosse do seu desejo, mas esse desconforto não durava nem o tempo do piscar dos olhos, já recuperado da insatisfação, o senhor recomendava
—        Devagar, chupa-racha. Não ultrapasse os limites da via. A lei é para ser cumprida.
Essa foi uma dúvida que me assaltou naquele abismo de incoerências, General. Nunca me atrevi, mas deveria ter perguntado
—        Qual das leis é para valer, General? — nunca perguntei, agora não tem mais graça. Mantive a salvo o topo do meu pescoço. Calado. Os comunistas fascinados pelas lorotas de Moscou perdiam tudo, o pescoço, os dentes, os dedos, o desfiladeiro dos intestinos. Tagarelas. Aprendi a ficar quieto no meu lugar, atrás do volante da sua viatura, General. Fiz pouco uso da garganta. Medo? Claro! Apego ao meu próprio conforto. Sou um supervivente
—        Chupa-racha! Quem não deve não teme!
Eu sei, General. Ouvi tanto isso que fiquei surdo para as palavras de coragem que nos convocam a não temer. Mas o que interessa daqui para frente é a lei do nada. Chegou o seu tempo de imobilidade enquanto se transforma em nada. E ser coisa nenhuma é como ser soldado raso, superior ao tempo e inferior à merda. Lembra disso, General? Soldado raso é boi de piranha
—        O que é isso, soldado!
—       Eu sei, General! Na guerra alguém precisa morrer ou não é guerra. É sacanagem! Um dos lados precisa sentir o peso da pólvora do outro lado, experimentar o lodo de sangue da sua gente sob os pés.
Acho que se o defunto pudesse colocar as mãos em mim nada me sobrava. Por sorte, acabou esse tempo do Calçacurta torturador, mas a arrogância não lhe saiu da cara antiquada e retrógrada. Ele é que conhece a conduta da honra, sabe tratar com dignidade e gentileza o privilégio da glória, mas não foi bem assim
—        Rapazinho, você nunca fez guerra ou lhe fizeram guerra. Não saiu do volante porque eu não quis. Impedi que o gosto do sangue lhe abrisse o apetite. Não se ponha a falar das coisas que só os guerreiros conhecem e calam.
Poderia ter encerrado tudo ali, um pequeno discurso patriótico. Ao melhor estilo, ame-o ou deixe-o. Mas não consegui deixar de provocar o defunto
—        Eu sei, General. O bom guerreiro luta contra outro bom guerreiro, mas sabem que o campo sagrado da luta tem regras que não podem ser esquecidas, nem o inimigo é abandonado à própria morte. Pode haver honra na luta entre dois guerreiros, mas é sempre a morte querendo vencer a vida.
O falecido pareceu recobrar suas energias. O corneteiro soprava no clarim o toque de reunir e avançar sobre o inimigo
—        É isso, soldado! A morte rondava os filhos da puta! Eu era a morte!
A questão não é o senhor, General. Essa parte já foi decifrada ou pelo menos vão sendo desvendados da cegueira coletiva os seus interrogatórios que executava cientificamente. O prédio do Porão abrigou um dos mais sofisticados aparelhos de tortura. E o senhor comandava tudo por lá
—        Não tinham tratamento de guerra.
A Convenção de Genebra era a mesma coisa que se não tivesse existido
—        Convenção de Genebra? Menos, chupa-racha. Gostava de variar nos interrogatórios. A pressão psicológica começava sem as roupas, ficavam apenas com o capuz. Depois vinha afogamento, pau-de-arara, choques. Gostava do telefone. É muito fácil, um fio na boca e outro no ouvido. E a descarga. O folclore diz que inventamos o telefone celular. Bobagem. Você já experimentou a ligação direta? Um fio enfiado na boquinha do mastro, outro no cu. E a descarga.
É isso, General. A dificuldade dessa gente toda, que faz festa pela sua morte, é o fim sem fim que o senhor deu aos seus prisioneiros — Quantos viraram cinzas em suas mãos?
Pronto, o defunto levantou. Aos berros, cuspindo as palavras da sua boca flácida, cambaleante e furiosa
—        O que está acontecendo, soldado? Os postes se puseram a mijar nos cachorros? — não pode continuar, precisou fechar a boca, os dentes lhe caíram. Pareciam falsos. Hoje, não seria mais reconhecido pelos dentes. As gengivas retraíram murchas e não seguravam mais a armação. Quando abria a boca eles resvalavam. Procurou empurrar os dentes com o polegar direito, mas lhe pareceu que aquele dedo estava morto — Os cachorros é que mijam nos postes!
O General gostava de se repetir. Afinal, todos têm algumas coisas que gostamos de desdizer. Obedecemos aos vícios de distração e gozos refugiados em nós mesmos. O soldado Jacaré, por exemplo, meu subordinado, a sua estratégia para sobreviver é obedecer. Acho que não se importa com a compreensão das ordens. Nunca perguntei. Ordens são ordens. Soldado não precisa compreender. Não precisa decidir. Obedece, e pronto
—        Por que o senhor nunca me deixou entrar no Porão?
O defunto já tinha voltado a sua aparência constrangida. Não acho que foi devido a minha pergunta. É a situação toda. Não deve ser moleza descobrir que morreu, e depois esse abandono do morto. É embaraçoso. Nenhuma visita, até agora. Mas eles virão, senhor.
Mirei o morto nos olhos, continuavam fechados. Encarava a morte. Frente a frente. Buscava respostas recolhendo as possíveis. Insisti, mais uma vez — O senhor está em uma posição privilegiada, não tem nenhuma razão para mentir. Pelo contrário, os mentirosos vão para o inferno.
—        E torturador vai para onde, chupa-racha? — olhei outra vez aquele homem que não era mais homem, um corpo frio e inerte, as carnes amolecidas começando a desgrudar dos ossos. A boca em silêncio, as palavras aprisionadas na sua não vida.
Um zum-zum-zum anunciou a confusão.
Uma mosca arriou-se no bigode do General. Em seguida, ergueu-se nervosa no ar desenhando piruetas e desceu na testa do gelado general sem meias de lã. Escorregou até o nariz, entrou em uma das ventas e sumiu. Entrei em pânico. A minha primeira reação foi matar a intrusa, um animalzinho deselegante. Procurei nos bolsos por alguma arma. Nunca tive arma de fogo. O General não achava necessário que o seu motorista andasse armado
—        Eu cuido de mim mesmo. Esses comunistas não me metem susto.
Encontrei uma navalha, presente do General. Lembra? Quando completei meu primeiro ano na sua ajudância. Claro, junto com a arma branca vieram os conselhos
—        Caso precise fazer uso, precisa estar bem perto para melhor eficácia e menor risco. O golpe além de certeiro tem que ser de surpresa. Como se fosse uma traição. Não pode dar tempo para queixumes. Sem oposição. — agradeci e guardei no bolso, não tive uso imediato.
Abri a navalha. Examinei seu fio com meu polegar opositor direito, levemente. Um pequeno fio de sangue apareceu. Não tinha eficácia melhor que uma baioneta para um golpe de frente, mas para um golpe que chegue por trás, num despreparo da vítima, é mortal. Pode-se cortar o pescoço de um lado ao outro. Senti um leve estremecimento. Fechei a lâmina e guardei a arma golpista no bolso.
Examinei o local, mas não desatendia a atenção nas ventas do General. Pode que o animalzinho queira se evadir. Não podia deixar o inimigo ir-se, com certeza voltava com os reforços. Minhas mãos saiam e entravam nos bolsos. Apalpei e revisei os bolsos. Uma ou duas vezes. Vazios. Sorrateiro como qualquer patrulha de reconhecimento fui ao banheiro. Arranquei o rolo de papel higiênico da parede e voltei ao meu posto. Rápido com um soldado em carga de ataque. Destaquei uma folha do rolo e amassei, amassei e amassei. Fiz uma bolinha de papel. Separei outra folha, mais uma bolinha. Enfiei uma bolinha na primeira venta. O mesmo com a outra bolinha. Enterrei o animalzinho dentro do General. Agora, não escapa mais. Morre dentro do morto.
Achei tudo aquilo poético.

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Leia também:
O Cadáver do Calçacurta – 3ª edição revisada / 02 - General Calçacurta

O Cadáver do Calçacurta – 3ª edição revisada / 04 - Um armário na parede

sábado, 29 de março de 2014

histórias davóinha: A cavalaria está saindo! 06cp

casarão canela preta


A cavalaria está saindo! 
Ensaio 06cp – 2ª edição 1ª reimpressão



baitasar




o redemoinho da vida é incontrolável, rompe resistências. tanto pode acagaçar bravos como acabaçar covardes. encanta-se nas encruzilhadas com as oferendas, trouxas e carregos. não faz perguntas nem procura respeito ou submissão. a sua fome come todos, é uma fome sem tamanho. a vida é assim, um descontrole 

arrumei o passo à passo e entrei com o pé direito na empresa. afinal, toda ajuda sempre é bem-vinda. gosto de ter a ajuda dos amuletos e simpatias, benzedeiras e benzeduras, mais as ervas na prevenção e cura das doenças. e para os esconde-esconde da vida tenho a proteção da quantidade sem conta das novidades que acontece, mas que já tinha acontecido. já era sabido. vivam os orixás! avoinha gostava de avisar, Os doutô não credita nisso, inté ficá difice entendê. Eles nunca foi pretu.

o tiuzin batata ao meu lado. o rodamoinho me atraindo como o novo contratado temporário da Viação Anônima. o cobrador das passagens. era o fim da vida de fartura com a miséria. tinha um emprego de respeito. minha primeira missão de importância fora do casarão Canela Preta. começava o turbilhão dos ventos contra e a favor, uma tarefa de gente grande

ainda não havia aprendido que nessas horas a prudência é um consenso

naquela madrugada, durante o caminho até a garagem da empresa dos ônibus, o tiuzin batata enunciava suas últimas recomendações. sussurrava pequenos conselhos, perguntei se ele estava arrependido, Preocupado, sobrinho... só preocupado.

alguns passos em silêncio e mais recomendações, avisos que achava importante. as lembranças lhe traziam outros aconselhamentos e mais preocupações. queria ter todas as certezas de não estar me levando para uma luta de morte, caminhava temendo o caminho à sua direita e o outro à sua esquerda, Moleque, trabalha certinho... dá conta da féria do dia... cuida o troco, se precisá contá de novo, é só contá, até ficá com certeza... no fim tem as conta do dinheiro e da roleta, elas tem qui chegá junta, pode até sobrá, mais se faltá dinheiro vai saí do bolso do moleque, até a conta fechá... se trabalhá direitinho, logo, logo, o moleque recebe os benefício do patrão.

O tiuzin pode botá confiança.

O tiuzin sabe... eu sei...

na primeira semana, fiquei na reserva. entrava na falta de algum colega cobrador das passagens. o reservista precisa ficar no alcance do largador. um sujeito que organiza as saídas dos ônibus e das parelhas que vão fazer o serviço de transportar as pessoas. ele tem uma planilha, um telefone e uma cara de poucos amigos. mandou, está mandado, João Torto!

Pronto, chefe...

Pega o 69 e faz a rota do Paulão... acabou de quebrar. O Fumacinha vai ao poleiro, o poleiro vocês já devem ter adivinhado que é o meu lugar de cobrador das passagens, minha pequena torrezinha. um lugar para controlar as entradas e saídas, e claro, cobrar as passagens

Já to embarcando... Moleque!... Você mesmo... soldado no quartel quer trabalho, esse é pra nóis! Qué?

Já to indo!

o coração subiu pela boca enquanto corria atrás do joão torto. o saquinho com o troco numa das mãos, a guia de controle na outra. o joão abriu a porta do 69 e subimos. o largador subiu pediu a guia e anotou o número do último passageiro na roleta. deu-me um último olhar que deve ter sido para me encorajar, mas me pareceu um adeus. não fez nenhuma piada obscena, e aquele, Podem ir, me soou muito sério e medíocre

Tudo bem, moleque?

Tudo bem, João...

A cavalaria está saindo!


gritou o torto

depois da primeira viagem a afobação diminuiu, o troco ficou mais fácil de calcular. acostumei com o poleiro. quase sobrava tempo para olhar às ruas com suas casas e pessoas desconhecidas ficando para trás. um passado que podia ver de longe, desaparecendo. um acontecido de desconhecidos visto de perto e deixados ignorados pelo caminho. continuariam anônimos. havia tanto para ser visto do poleiro: pessoas, ruas, esquinas, carros, buracos, curvas, freios, lugares por onde só passamos... nunca descemos

meus novos heróis eram grandes. bebiam. falavam aos gritos. tinham sempre uma piada suja e indecente escorregando no canto da boca. a barriga crescendo, engravidando da cerveja. a bunda sumindo. já perceberam? o motorista tem muita barriga e pouca bunda, quase nenhuma. o cigarro amarelando os dedos, os dentes, a tosse, o pigarro, o perfume, eu continuava me forjando na fumaça cinza dos meus heróis. saia do canela preta com o tiuzin batata, às 4 horas da manhã, chegava à garagem pontualmente, já eram 4 e meia. às vezes, recebia o troco e embarcava, outras esperava pelos infortúnios dos colegas. parece que existe uma roda de compensações na vida que faz com que a tristeza de uns possa trazer alegrias para outros. rei morto, longa vida ao rei. a primeira viagem saia às 4 e 45 minutos. para e anda. sobe e desce. todas as luzes animadas. o dia acordando as ruas, as casas espreguiçando. a minha confiança aumentando, Um passinho mais pra frente, por favor, não tinha muitos arrependimentos, esse não seria um remorso a mais. era um bom emprego

Segura João, tá subindo... feeecha!


é isso, vamos levando todos, ninguém fica para trás, como um rodo puxando a água derramada. limpando as paradas das ruas, derramando no curral das fábricas. a minha missão era cobrar as passagens, se possível, sendo gentil, Bom dia, senhora.

nem tudo é tão bom que não possa melhorar, Um passinho mais à frente, por favor. Feeecha!

é isso, ninguém fica para trás. amontoadinhos.

o largador fixava a tabela com os horários às 4 e meia. Os soldados rasos sem nenhuma posição estratégica tocam o horário até às 11 horas, com intervalo até às 4 da tarde, depois finalizando às 10 horas da noite. os peixes do patrão – peixe é o empregado com serviço de importância que só o patrão reconhece – finalizam às 8 da noite. perguntei ao tiuzin como se explica esse grande companheirismo entre o patrão com um ou outro funcionário, O moleque já ouviu falá sobre o acontecido do favô qui se paga com outro favô?


fez um olhar de acomodação, abriu os braços discretamente, antes de continuar, Manda quem pode e obedece quem tem juízo.

Uma mão lava a outra.

Isso é o qui pensa o ajudado e o ajudante, mais também pode acontecê qui a mão suja emporcalha a outra.

entendi o recado. preciso ficar com os olhos e ouvidos atentos. a boca fechada que as moscas não entram e não saem palavras de arrependimento. quase não carrego nas lembranças remorsos de muito peso, uma ou outra coisinha. lembro a primeira comunhão, não quis ser coroinha, achei que uma coisa levava à outra, não queria ser padre. depois chegou o tempo das imaginações com a professora da geografia. o cabelo nas mãos. ainda hoje, acho que tive sorte dela não ter se envolvido com esse rabanete preto. todas sonham em casar e ter filhos, naqueles dias tinha ímpetos aventureiros muito sórdidos. teve o beijo no galego, um descuido que me atrasou mais que podia imaginar. também não me apeteceu o lugar do tigão no tráfico, não queria minha boca cheia de ouro ou entupida de terra, melhor não arriscar. o arrependimento não mata, mas se pudesse matar, hoje tava morto. não sei, têm horas que tenho arrependimento, em outras não tenho. vai entender essa vontade de tudo, até de ser bandido. no fim, ninguém nota diferença no rabo da sereia

na segunda semana continuava na reserva. queria um itinerário fixo antes de terminar o contrato de temporário. um feito muito difícil, nunca dantes feito. repetir o caminho e as pessoas. conhecido. famoso. o torto e o anão preto

a tiazin vanda ficava acordada, esperando. não estava perdida da razão, desconfiava daquele prodígio sem desafio, Eita emprego de cobrá qui não tem nenhuma graça.

eu não queria nenhuma guerra na família, mas pareceu que a tiazin vivia enciumada porque o tiuzin fez o arranjo do emprego. continuava parada, em pé, na cozinha, uma das mãos apoiada na ilha. não tinha quem a curasse. não tinha curativo para o seu zelo demasiado. continuava me repreendendo. só fazia silêncio quando percebia que nem toda água e torneira da chuva ia me afogar. voltava suas baterias aéreas para o tiuzin, Batata, com esse horário maluco o moleque não vai estudá!

É tudo temporário...

depois da primeira semana de serviço, o largador espalhou na garagem que o pequeno batatinha era competente no ofício de cobrador. não dava para ficar bem de vida, mas já tinha emprego, logo, recebia o dinheiro, Tiazin Vanda...

Fumaça, não tem escola qui ensina no meio-dia até metade da tarde, ela tinha preocupação nos olhos. foi a primeira vez que olhei a tiazin e concordei que ela tava envelhecendo, Tudo tem jeito certo de fazê.

Tiazin, aprendi com davó que não tem só um jeito certo. E que as pessoas precisam escutar com a atenção do coração. Isso tudo é temporário. É só ficar conhecido como o tiuzin Batata.

a tiazin pareceu perder a sua paciência. eu também estava no mesmo ponto do desencontro. queria que ela num pequeno esforço pudesse me entender, mesmo que fosse uma compreensão aos frangalhos, com os trancos e barrancos da desvontade que temos para enxergar os outros. ainda achava que os egoístas estão lá fora, nunca estão dentro de nós mesmos, O teu tio é o caso do famoso qui é desconhecido. O preto com preparo na corrida qui tem um treinadô ditadô: o motorista branco do caminhão do lixo. Ninguém pode sê mais malvado no cumprimento do horário. Só estanca o caminhão sê fô cruzamento ou perigo da pessoa na frente. Os preto lá atrás, pega no latão, vira no caminhão e corre pra devolvê. Pega outro latão, vira e corre pra devolvê. Tudo sem perdê a imundícia dos outro pra fora do caminhão. Se perdê tem qui voltá e ajuntá, se não voltá vai escutá reclamação, se repetí, pega gancho. Vai pra reserva. O teu tiuzin Batata não perdia nem farelo do latão. Corria mais qui o caminhão. Nos torneio de corrida ganhô sempre. Era melhó qui os outro. Abriu os caminho correndo. Fez conhecido bão. Um ajuda daqui, outro dali. Saiu do caminhão e virô cobradô das passagem. Num outro pulo já ficô de motorista. O carregadô de gente. E ocê, moleque? Vai corrê? Chutá bola?


me olhava de um jeito sem pena, sem dó. media a minha força, o tamanho da minha vontade. queria me fazer ver o que ela pressentia, o medo de não dar certo, mirar no alvo errado, Ocê vai se enterrá sentado. Adormecido da bunda. E enriquecendo o patrão da Anônima.

a tiazin falava a verdade como se a verdade só fosse aquela verdade. até a mentira pode virar verdade. a lorota só precisa encontrar algum ouvido desatento ou com maldade. e pronto, vira uma verdade verdadeira. não tem empregado rico, só fica rico se roubar do patrão. tem sempre alguém roubando. é isso, o dinheiro é incontrolável, corrompe as resistências. não faz perguntas. não responde perguntas. a sua fome come todos, come a fome. o empregado morre. o patrão morre. o homem morre. a mulher morre. o doutor morre. o traficante morre. mas o dinheiro continua comendo. o dinheiro come a morte e cospe na nossa cara, continua comendo até que a vida morre, Merda!

O que foi moleque?

Esqueci a guia no bolso...




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Leia também:

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Sô a favô de vendê, pegá no dinheiro e cuidá de vivê
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sexta-feira, 28 de março de 2014

XV – Mitologia dos Orixás: Oxumarê [109] [110]

Oxumarê
Reginaldo Prandi
Oxumarê desenha o arco-íris no céu para estancar a chuva
Conta-se que Oxumarê não tinha simpatia pela Chuva.
Toda vez que ela reunia suas nuvens e molhava a terra por muito tempo, Oxumarê apontava para o céu ameaçadoramente com sua faca de bronze e fazia com que Chuva desaparecesse, dando lugar ao arco-íris.
Um dia Olodumare contraiu uma moléstia que o cegou. Chamou Oxumarê, que da cegueira o curou. Olodumare temia, entretanto, perder de novo a visão e não permitiu que Oxumarê voltasse à Terra para morar.
Para ter Oxumarê por perto, determinou que morasse com ele, e que só de vez em quando viesse à Terra em visita, mas só em visita.
Enquanto Oxumarê não vem à Terra, todos podem vê-lo no céu com sua faca de bronze, sempre se fazendo no arco-íris para estancar a Chuva. [109]

Oxumarê fica rico e respeitado
Oxumarê era um babalaô que atendia o rei de Ifé.
Porém não era um homem de fama, não tinha riquezas nem poder. Sentia-se humilhado, como humilhado vivera seu pai, conhecido pelo nome de Senhor-do-Xale-Colorido. Oxumarê estava triste e foi consultar um adivinho. Ele ensinou-lhe um ritual para tornar-se rico e poderoso. Deveria oferecer uma faca de bronze e quatro pombos, bem como oferecer búzios em boa quantidade.
Oxumarê, obediente, pôs-se a fazer a oferenda, mas, nessa mesma hora, o rei mandou chamá-lo. Oxumarê recusou-se a atender à ordem, dizendo que iria depois de terminada a cerimônia. O rei ficou enfurecido com a ousadia e deixou de pagar uma dívida a Oxumarê.
Quando Oxumarê retornou à sua casa, recebeu um chamado de Olocum, rainha de um país vizinho, que necessitava de sua sabedoria para a cura de seu filho. Ifá foi consultado por Oxumarê, que fez as oferendas necessárias e curou o filho de Olocum. Em gratidão ela ofereceu-lhe riquezas, cavalos, escravos e um lindo pano azul.
Retornando à casa com um inestimável tesouro, Oxumarê foi saudar o rei, que muito se admirou ao ver a opulência do babalaô antes tão pobre. Quis saber sobre os presentes recebidos.
Oxumarê contou da cura do filho de Olocum. O rei, que tinha uma rivalidade nata com quer que fosse, não queria ficar abaixo de Olocum. Então ofereceu a Oxumarê uma roupa vermelha muito preciosa e muitos e muitos outros presentes.
Foi assim que Oxumarê tornou-se rico e respeitado.
[110]
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Leia também:
XIV – Mitologia dos Orixás: Obaluaê – Omulu – Xapanã - Sapatá [97] [98]

XVI – Mitologia dos Orixás: Euá [114] 115]


Reginaldo Prandi, paulista de Potirendaba e professor titular de sociologia da Universidade de São Paulo, é autor de três dezenas de livros. Pela editora Hucitec publicou Os candomblés de São Paulo, pela Edusp, Um sopro do Espírito, e pela Cosac Naify, Os príncipes do destino. Dele, a Companhia das Letras publicou também Segredos guardados: orixás na alma brasileiraMorte nos búziosIfá, o AdivinhoXangô, o TrovãoOxumarê, o Arco-ÍrisContos e lendas afro-brasileiros: a criação do mundoMinha querida assombraçãoJogo de escolhas e Feliz Aniversário.


Prandi, Reginaldo. Mitologia dos Orixás / Reginaldo Prandi; ilustrações de Pedro Rafael. - São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

terça-feira, 25 de março de 2014

Como curamos quem não está doente?

Teatro Pedagógico 10
baitasar
Nestes tempos de esquecimentos, comemorações de golpes contra a democracia, palavras obscenas de amor às torturas e desaparecimentos, eu quero comemorar os meus 50 anos de amor histórico. Entrei em março de 64, com 7 anos completos. Nunca mais sai da escola. Outras ficaram desaparecidas para sempre no universo em expansão. Estrelas esfriando sem corpos. O big bang enrugando o tempo e expandindo o espaço. Subi todos os degraus, um a um. Nas grandes empresas da educação privada seria alguma coisa parecida como ter vindo lá debaixo e vencido. Ralando os olhos, as mãos, os sapatos e a paciência. Corrigindo, explicando, conversando, sorrindo, algumas vezes chorando, amando, lendo e escrevendo. Acho que ainda estou em expansão como o universo. Expandindo e esfriando até o colapso.
Não vi nem senti o uso da palmatória, mas vi sem compreender os coturnos nos corredores; ouvi os murmúrios de professores, pequenos resmungos. E tenho a pálida lembrança de um ou outro que não retornou. Nunca foi dito nada. Hoje, eu sei, para muitos, eles desapareceram; para alguns, sumiram; e para outros, fugiram. Quando? Para onde? Nunca soube. Essas são algumas das tatuagens que tenho sob a pele. Lembranças infantis de um tempo duro e cinzento. Decidi que vou tatuar seus nomes e rostos sobre a pele. Quem sabe alguém os reconhece em mim? Não quero esquecer.
Argumentos teóricos são apenas sonhos? Direitos e desejos veementes são homens e mulheres que não se acovardaram? Sonhamos apenas com o que podemos acreditar? Mesmo sem entender? Nunca sonhei com Deus. É por que não acredito? Mas tenho muitos sonhos com a escola. Quem não submeteu à realidade adequada do relógio suas vontades inquietas? São pesadelos? Gramáticas, mapas, datas, heróis, bolas, tabuadas, células, indivíduos sem prazer no coletivo e fugindo dos compromissos solidários, sem tempo, silenciosos, condições de trabalho ruins, pó de giz, salários indignos, 60 horas, 25 anos, sala de aula, planos, avaliações, boletim escolar, sábados, pares zoológico, pais, mães, reuniões. Há falta de sonhos possíveis? O que dizer da fé e dos sonhos impossíveis?
Quero ser uma mulher voadora normal
—        Colegas!
Voltamos nossa atenção para o Aguinaldo. Levo o cantinho da unha do meu polegar direito à boca, sou uma roedora. Tento ser alguém normal sentada na fórmica, que não voa, chamando uma a uma, olhando cadernos com cópias do quadro de giz. Dando uma estrelinha, duas ou três, talvez. Deve existir alguma razão para colecionar certos e errados.
Nenhuma de nós quer transformar crianças em bonecos. Nem acredito que todas devam ser progressistas ou modernistas, ou pós-modernistas, ou, ou, ou, mas precisamos fazer o nosso trabalho da melhor maneira que sabemos, honestamente, sem fingimentos, com ética.
Minha atenção voa e pousa, sai e volta, se a minha intenção não está aqui, estou sendo desonesta? Sinto vontade de sair e fumar, tragar-me. Têm dias em que me sinto terrivelmente apaixonada, em outros sou um castelo na beira do mar. Quem guarda um beijo meu e vem me salvar, quem
—        Gostaria de trazer à reunião uma questão do nosso cotidiano. Os atrasos. O início do turno está muito difícil...
Tento me concentrar nos atrasos, mas meus segredos continuam apaixonados, colados em meu corpo
—        Não vejo maiores problemas. É simples, basta que alguém da equipe diretiva leve os alunos à sala de aula.
A bondade da Acemira. Depois, será a primeira reclamando a falta de apoio e abandono, Onde está o SOE? Onde está o SSE?, esquecida das suas boas intenções. Memória curta, cobertor curto.
Sinto meus músculos levemente amassados, doloridos, uma deliciosa preguiça deixa meu corpo sair de mim, ser outra que não reconheço
—        Acemira, pegar a turma e fazer o quê?
—        Dar aula, Aguinaldo. Afinal, somos todas professoras.
Sonho com as mãos mágicas que me enfeitiçam as vontades, fico sem as minhas vontades, tiras de mim o que nem eu mesma sabia que queria dar. Teus olhos me fazem mostrar o que nem mesmo sabia que queria mostrar, tua boca me faz pedir o que não sabia que queria pedir
—        Até seria possível, mas temos nossas tarefas no cotidiano da escola. E junto aos atrasos temos os afastamentos por saúde. A soma desta conta torna inviável o início do turno. Já tivemos que iniciar o turno da tarde sem sete ou oito professores.
Silêncio.
Fico em silêncio, também. Essa discussão não me interessa. Não falto, não chego atrasada. Não quero ser diretora da escola. Quero casar contigo. Reivindicar minha presença no teu mundo. Minha saúde não é de ferro e minha eternidade amadurece, enquanto vou me expandindo vou me esfriando. Quero tua boca, desejo teu beijo doce. Estou presa no cativeiro do cotidiano e das tuas escolhas
—        Puxa, Aguinaldo! Não dá pra exigir professor substituto?
Um suspiro invisível. Eu pareço invisível para você, meu amor
—        Ofélia, também é possível, mas não acredito nesta solução.
Um suspiro de espanto
—        Por que?
Ele para, a resposta parece que hesita, não quer sair e se comprometer
—        Ela inviabiliza nossos salários.
Silêncio
—        É?
—        Acredito que sim.
—        E a corrupção?
—        Também.
Resisto com todas as minhas forças para não ir procurar o professor do corredor. Assim como entrou, ele saiu. Em silêncio. Ele, como eu, também se cala. Abre seu armário e procura por algo que não está lá. Está aqui. Sou eu. Volta muito silenciosamente. Quase triste. Eu já sei da sua tristeza, Estou cansado da repetição, falta imaginação
—        Lélia, o raciocínio é simples. Se eu e você precisamos de outro professor para dividirmos as mesmas tarefas da nossa incumbência, deveríamos saber que esse novo colega entra na divisão do bolo que nos paga, ou finge que nos paga, ou diz que nos paga. Adianta sim, reclamar. Apontar erros mal-intencionados ou ingênuos, mas precisamos fazer a parte que nos cabe. Progressistas ou não, precisamos fazer nosso trabalho bem feito, o nosso melhor jeito.
Novo silêncio e já estou em teus braços. Corri como louca, mas cheguei. O que me resta são meus sonhos. Invento um modo de reinventar a dor, penso na possibilidade impossível, sei que te amo, duvido do teu amor
—        Aguinaldo, isso é conversinha do patrão. Você parece querendo enfiar o medo no ânimo da gente, o rabo entre nossas pernas.
—        É isso mesmo, você não falava assim antes da eleição. O que aconteceu? Quem mudou?
Estamos perto, mas não sentimos o que vemos. A realidade dos que estão fora
—        Não sei quem mudou mais. O fantástico é que tudo sempre muda. Todos os dias, a cada instante. Esse é o nosso caráter humano, a certeza da renovação. O trágico é que não mudamos a escola. O que posso dizer de mim mesmo? Descobri que sai do meu mundo particular da sala de aula, me deparei com o mundo da escola, necessidades administrativas, pedagógicas humanas. Preciso realizar as tarefas às quais me propus de maneira crítica, engajado no presente e no futuro. Não vejo ninguém impedindo meu trabalho.
Murmúrios
—        E as esquerdistas vão se calar? Quem ouve o Aguinaldo e cala, concorda que não queremos trabalhar. Na verdade, o que não se diz é que está cada vez mais difícil e complicado ensinar. Não querem aprender.
Não chego nem perto de um computador fora da escola. Meu peito incha com teu grito em silêncio. Eu mesma já morri muitas mortes. Apesar de tudo, o eterno recomeço. Sou teimosa, mas tem limite essa teimosia. Paro de te pensar. Pergunto-me se somos duas repetições de erros antigos, tentativas sem convicção. Bobagem, eu tenho convicção no meu amor. Em minha ideia de vida não deixo de me reviver e te conquistar. Meus sonhos me queimam enquanto fico jogada de costas na cama, olhando meu teto limpo e asseado. Suando, gemendo, escavoucando
—        Mas aprender o quê, Jacobina? Aprender que têm o direito de escutar calados para repetir o que ouvem? A palavra reforça um poder, o nosso. E uma servidão, a deles. — o Marko e suas perguntas invagina na rotina da escola a necessidade da concepção do mundo além do próprio umbigo
—        Como assim aprender o quê, Marko? Para começo dessa conversa, não consigo um mínimo de diálogo sereno sem as interrupções dos gritos, muitas vezes, obscenos. E não são os meus gritos. Eles não exercem o direito de escutar calados. Nem escutam!
Continuo por aqui, sofrendo. A vontade de fumar lateja em minhas têmporas. Meus dedos segurando um cigarro acesso, os pequenos rolos da fumação subindo suavemente. Dispersos. Quero me perder dentro do teu abraço apertado
—        Quem consegue fazer a chamada sem crises de gritos e pedidos de silêncio? O começo já é insuportável.
—        Mas Ofélia, a lista da chamada dos alunos não pode ser feita no final da aula? — a Lia fez a pergunta num tom muito baixo, parecendo mais uma reflexão para ela mesma que uma pergunta com intenção deliberada
—        Os cadernos da frequência são documentos oficiais que precisam credibilidade. Por isso, precisam ser preenchidos com cuidado. Por exemplo, podem determinar a reprovação por infrequência. Esse mesmo controle da frequência é usado para sabermos se os alunos cadastrados no programa Bolsa Família estão vindo à escola, ou não.
Uma intervenção técnica da Camila. Precisamos de anotações técnicas, mas acompanhadas de adendos apaixonados, éticos, críticos e inteligentes, para, quem sabe, um dia emergir um mundo diferente e possível, onde a palavra libertará o silêncio imposto e exigido da garganta
—        Talvez precisemos um pouquinho mais de sorte.
—        Não podemos contar com a sorte, arroubos de magia, explosões de inspiração no nosso cotidiano. Precisamos interferir com o pleno uso da nossa razão no conjunto das ações propostas.
Uma delícia, um cansaço. Sinto que é possível compor a letra e a música que será a nossa vida. Uma vida nova para diante
—        Isso, Arthur. A nossa escola. A escola do povo. Pode estar longe, pode estar perto, não apenas para ver, mas para fazer com ética e competência interessada, comprometimento e alegria, silêncios e cantorias, avanços e saudades. Uma, duas, três, dezenas, centenas, muita e muitas escolas com a cara dos eu povo...
—        Cara suja, ranhosa, banguela e...
—        Cuidado! Pense bem o que vai dizer.
Essa sou eu. Não pude evitar. A Acemira tem razão, o seu olhar me fez enrubescer
—        E pobre.
Fiquei desprotegida. Fiz o que condeno, pensei pelo outro. Coloquei os meus pensamentos na cabeça da Acemira. Mereci a chinelada. Fui salva pelo Marko, ele continuou conversando, afinal, era isso que fazíamos
—        A escola dialética. A escola sem mágoas ou caras de nojo, assustadas. A escola que não derrota, mas transforma. A escola dos fatos e da poesia. Das etnias. A escola histórica que não para e não trai. A escola dos amores da nossa vida. Exagerada na resistência à intolerância e ao mau humor. A escola das diferenças. A escola da Pátria imensa.
Silêncio.
O Marko aquietou a própria voz, sabia que a reação aos sonhos possíveis não espera o tempo de dormir, muito menos, o tempo de acordar. Estava pronto para escutar
—        Marko, essa escola eu quero conhecer!
Pronto, foi rápida no gatilho. Não foi ingênua. Eis Acemira, correndo, ombro a ombro. Sempre em defesa da família e dos bons costumes na pedagogia sem contradições, a intenção de habilitar e amestrar. A beleza insustentável do silêncio. O poder da palavra usado para decompor as inteligências em notas que aprovam ou reprovam. Libertam ou aprisionam
—        Professora, feche os olhos. Imagine outro jeito, outro feitio de educar. O desajeitamento lúdico, os jogos, as brincadeiras nos aproximam da beleza de estarmos juntos. Aprendendo. Consideramos que a criança deve brincar, mas estamos convencidos que para o divertimento deve haver um lugar separado. Acredite, raros são os momentos, dentro do nosso fazer pedagógico, que nos permitem tanta intensidade que as circunstâncias dos jogos e brincadeiras. Uma entrega que dificilmente haverá em outras atividades.
Nada impede que Neruda ou Saramago apareçam na matemática, num ambiente lúdico e cúmplice pelo encontro da minha vida com a vida do outro, esse é o encanto da vida, encontros.
—        Bobagem, pura bobagem! Minha mensagem educativa vem da minha formação acadêmica, bem específica. Fui treinada para ensinar os conteúdos disciplinares do currículo. Sei o que faço, não preciso ficar declamando versinhos. Os jovens é que não sabem o que estão fazendo na escola.
É verdade, os jovens não querem fazer parte deste pensamento cartesiano, um vírus herdado de muitas gerações, mas nós acreditamos que existe cura. Continuamos usando a vacina dos verbos, equações, datas, mapas e heróis, para curar quem não está doente.
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Leia também:

TP 09 - Já desencarrilhei e louqueei


domingo, 23 de março de 2014

Uma Ronda por São Paulo

Paulo Vanzolini


Ronda


Ronda
Inezita Barroso


De noite eu rondo a cidade
A lhe procurar sem emcontrar
No meio de olhares espio nas mesas dos bares
Você não está
Volto pra casa abatida
Desenganada da vida
No sonho eu vou descansar
Nele você está
Ai se eu tivesse quem bem me qisesse
Esse alguém me diria
Desiste essa busca é inutil
Eu não desistia
Porém com perfeita paciencia
Sigo a procurar
Hei de encontrar
Bebendo com outras mulheres
Rolando um dadinho
Jogando bilhar
E nesse dia então
Vai dar na primeira edição
Cena de sangue num bar da avenida São João

Composição: Paulo Vanzolini


Cuitelinho



Praça Clóvis


Praça Clóvis
Chico Buarque

Na praça Clóvis
Minha carteira foi batida
Tinha vinte e cinco cruzeiros
E o teu retrato
Vinte e cinco
Francamente achei barato
Prá me livrarem
Do meu atraso de vida
Eu já devia Ter rasgado e não podia
Esse retrato cujo olhar me maltratava e perseguia
Um dia veio o lanceiro
Naquele aperto de praça
Vinte e cinco, francamente, foi de graça

Composição: Paulo Vanzolini


Chorava no meio da rua


Raiz


Quando eu for sem pena


Seu Barbosa


Valsa sem fim


Valsa Sem Fim
Paulo Vanzolini


Eu sei
Que jamais hei de ter quem
Venha amar e querer bem
Este meu coração
Tão sequioso de amor
Vem trazer teu calor

Vem
Pois não posso viver sem
Isso que ninguém mais tem
Só você pode dar
Vem matar a vontade de amar

Vem gozar
Nos meus braços amantes
Os melhores instantes
Que o amor dá na vida
Vem logo querida
Não posso esperar

Composição: Paulo Vanzolini


José




Uma história de um homem e uma cidade



sexta-feira, 21 de março de 2014

Baleiro do ano

Zeca Baleiro

Nada Além




Nada Além
Zeca Baleiro


Você não quer ver nada além do seu umbigo
E eu quero ver o que há depois do perigo
Você acha que ninguém sofre mais do que você
Talvez porque não saiba ao certo o que é sofrer
Ando pelas ruas cheirando a fumaça dos motores
Enquanto você fantasia suas dores de amores

Você não quer ver nada além do seu mundinho
E eu prefiro escrever meu próprio caminho
Você acha que ninguém sofre mais do que você
Talvez porque não saiba ao certo o que é sofrer
Você sonha ser princesa em castelos fabulosos
Enquanto eu vago na cidade entre inocentes e criminosos

Você não quer ver nada além
Ninguém pode ensinar nada a ninguém
Você não quer ver nada além
Ninguém pode ensinar nada a ninguém

Você sonha ser princesa em castelos fabulosos
Enquanto eu vago na cidade entre inocentes e criminosos

Você não quer ver nada além
Ninguém pode ensinar nada a ninguém
Você não quer ver nada além
Ninguém pode ensinar nada a ninguém

Você não quer ver nada além
Ninguém pode ensinar nada a ninguém
Você não quer ver nada além
Ninguém pode ensinar nada a ninguém

Fique com os seus bonsais, seus haicais,
Sua paz, suas flores, seu jardim de inverno
Se isso é céu eu prefiro meu inferno

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Em tempos de esquecimentos que não deixam você ver nada além...

Não quero ser sem memória... E continuamos na luta!

Gonzaguinha

Pequena Memória para um tempo sem Memória




A gente nunca torna ao belo olhar
se abraça e fala da vida que foi por ai
e conta os amigos nas pontas dos dedos
pra ver quantos vivem e quem já morreu
amanhã ou depois

Ê ê ê eu

Quem me dirá onde está
Aquele moço fulano de tal
filho, marido, irmão, namorado
que não voltou mais
insiste um anuncio nos nossos jornais
achados perdidos morridos
saudades demais
mas eu pergunto a resposta
ninguém sabe ninguém nunca viu
só sei quão sumido ele foi
sei é que ele sumiu
e quem souber algo acerca do seu paradeiro, beco
das liberdades estreita e esquecida
uma pequena marginal
dessa imensa avenida Brasil

Memória de um tempo onde lutar
Por seu direito
É um defeito que mata
São tantas lutas inglórias
São histórias que a história
Qualquer dia contará
De obscuros personagens
As passagens, as coragens
São sementes espalhadas nesse chão
De Juvenais e de Raimundos
Tantos Júlios de Santana
Uma crença num enorme coração
Dos humilhados e ofendidos
Explorados e oprimidos

Que tentaram encontrar a solução
São cruzes sem nomes, sem corpos, sem datas
Memória de um tempo onde lutar por seu direito
É um defeito que mata
E tantos são os homens por debaixo das manchetes
São braços esquecidos que fizeram os herois
São forças, são suores que levantam as vedetes
Do teatro de revistas, que é o país de todos nós
São vozes que negaram liberdade concedida
Pois ela é bem mais sangue
Ela é bem mais vida
São vidas que alimentam nosso fogo da esperança
O grito da batalha

Quem espera nunca alcança
Ê ê, quando o Sol nascer
É que eu quero ver quem se lembrará
Ê ê, quando amanhecer
É que eu quero ver quem recordará
Ê ê, não quero esquecer
Essa legião que se entregou por um novo dia
Ê eu quero é cantar essa mão tão calejada
Que nos deu tanta alegria
E vamos à luta.

quinta-feira, 20 de março de 2014

O mate está esfriando

Ensaio 34B
baitasar

O preto em pé com o cabungo nas mão, os óio sem piscá. Os pé descalçado. Parecia qui um pé tinha vontade de seguí num rumo, o otro pé com a decisão de caminhá otro destino; cada dedo apontava um caminho pra fazê longe dali. Dez dedo, dez lugá diferente pra vivê longe das obrigação de escravo, afastado daquela miséria de branco adormecido de sê gente; distante do chicote da infâmia. De tanto andá descalçado não sentia gosto de usá qualqué coisa nos pé. De tanto tempo sem dente não lembrava mais de mastigá. De não tê língua ou só metade dela, qui era quase a mesma coisa qui não tê, perdeu o gosto de falá. Ficava parado com a boca fechada pra não deixá entrá as mosca. Tinha vez qui sentia saudade de escutá a voz qui foi dono, té isso lhe tirô o dono bondoso da chibata. Deixô de sê dono do qui queria falá. Nem o nome conseguia repetí. Logo o nome qui foi ensinado dizê qui era seu, um nome qui aprendeu junto com as primeira cantoria de nascê. Respirava com cuidado. Nenhum suspiro enquanto esperava a cusparada verde do magistrado juiz

—         Esse é o meu bom Salvador. Dos negros que disponho como minha propriedade, os negros do Tribunal são adequação do serviço público, esse é o negro da mais segura segurança, se os dois amigos me permitem a redundância do circunlóquio.

Colocô as vista no preto qui se aproximô com o cabungo. Otra cusparada verde. A bebida do chimarrão é um costume mui apreciado, sobretudo, no frio. Na Vila, quem tinha tratamento de gente havia de tê o costume de mateá proseando. As duas coisa acontecia junto. Mais de primeiro, era uso da boa maneira e finura oferecê o mate com a erva-mate já no ponto da quentura. Então, o primeiro mate amargo e frio era do convidadô. Ele puxava o mate na bomba, depois cuspia o amargo frio pra não tê desgosto de gosto na barriga.

O magistrado juiz era filho da terra, mais um das fidalguia qui muito novinho foi mandado fazê seus estudo de doutô advogado e juiz, bem longe, precisô atravessá a estrada das água feita pros branco. A estrada das água feita pros preto carregado nos navio negreiro alimentava os navio qui levava e trazia os fio da fidalguia. A estrada das água dos branco. Eles ia ignorante e voltava interesseiro. Não é de estranhá qui voltava interesseiro, todos qui vinha de lá chegava pronto pra usá as carne dos índio e dos preto pra fazê riqueza. E usô té cansá de usá.

Toda sabedoria dele sobre o povo da terra, qui deixô bem novinho, era as história qui lembrava das conversa do velho pai tomando chimarrão com as visita. Hábito qui juntô rapidinho nos seus dia-a-dia. Durante o mate gostava de enaltecê as basbaquice qui reparava desde qui chegô da estrada das água. Tratava logo de avisá qui pensava em francês, não conseguia pensá na língua da Vila

—         O povo mestiço da Vila é inapto para o progresso, a preguiça está entranhada, jamais saberão beneficiar-se das riquezas naturais da terra, que se diga para o seu próprio bem, e os homens de valor da Vila, não deveriam ter a posse. Só assim, talvez, conseguissem evitar a exuberância da lascívia.

Miofioneto, entendeu por causo do quê ocê precisa tá na escola? Pra não tê qui segurá o cabungo pros branco cuspí. Eles vai fazê tudo pra ocê não ficá, mais o mifioneto precisa teimá. O homem branco matô quem quis, na hora qui quis, carregô com ele a praga das doença e do jeito branco de vivê. Acabô com os otro jeito de vivê pela força das arma e as riqueza qui roubô. Criô o dito qui avisava, quem não tinha uma boa arma ou um bão exército, mais dia ou menos dia, ia sê conquistado. Mais quando era do seu interesse se apoderô das utilidade dos índio e dos preto. O mate, por exemplo, era costume dos índio qui ele fez uso e domesticô, pra modo de dizê qui as coisa boa ele não destruía, fazia uso. E fez ficá branca, pra modo de conseguí rezá, a rainha Iemanjá. Nunca vi gente mais interesseira e menos trabalhadeira.

O magistrado juiz ia proseando e esvaziando a cuia. Otra puxada, otra cusparada. Té qui roncô a bomba. Siná qui acabô o mate. O magistrado juiz oiô pro Salvadô, o preto se aligerô de largá o cabungo no piso madeirado. Pegô na chaleira pra serví otro mate. Esse ficô fumegando na cuia. É bonito de vê a espuma esverdeada ladeando o topete do mate

—         Agora, tomo o segundo. E já podemos começar a prosa do assunto original.

O chefe das pulícia ainda tentô voltá na trama anteriô, mais o magistrado juiz ergueu a mão qui não segurava o mate e interrompeu a chefia da sua pulícia. Deu otra puxada. O mate nas mão do bão proseadô servia pra criá adiamento, as delonga com as palavra qui explicava os pensamento, uma prosa sem palavrório. Quando parecia qui ia começá a argumentação, deu otra puxada e a bomba estremeceu roncando. Ele oiô pro preto e perguntô

—         Salvador, parece que ocê fez o mate mais curto que o costume e o meu gosto.

O Salvadô não mexeu nenhum cantinho da cara pra confirmá ou negá. O magistrado juiz esticô o braço pra trás com a cuia, o preto serviu a água quente no mate

—         Amanhã... amanhã. Por agora, o Chefe devia aproveitar o mate e escutar os pensamentos do Governador que nos chegam através das palavras do seu Ouvidor. — estendeu a mão esquerda com a cuia e o mate renovado pro chefe das pulícia — Lhe ofereço com a mão do coração, sinal da minha estima e confiança.

Pra essa sua avó, mifioneto, sempre interessô vê as coisa pequena despercebida, mais qui tem serventia pra muitas coisa, precisa sabê vê

—         Do mesmo modo aceito.

O chefe das pulícia estendeu a mão esquerda do coração, ainda carregava no colarinho do punho o sangue preto do João Amaro, pegô a cuia ricamente lavrada e ornada em ouro, com o feitio dum seio pardo, opulento e farto. A bomba, um canudo em prata lavrada, tava ornada com muitas pedra preciosa. O bocal era feito em ouro.

O magistrado juiz fez um pequeno siná com os óio pro Salvadô. O preto largô a chaleira no chão, juntô o cabungo com as cusparada verde do seu dono e sumiu pelo piso madeirado. Parecia sabê onde pisá pra modo de não fazê o chão gemê. Não conseguia escutá lamúria de qualqué gemeção qui fosse, sem sentí o coração amargurado de tanta tristeza qui té não se importava de virá um cão sem dono. Livre das ordenação de qualqué laia. Imaginava qui à noite virava um homem qui encantava as preta encorpada das cadeira. As cadeiruda. Contava as suas história de cão sem dono. Agarrava as anca graúda da preta e dormia enlaçado. A encantação era só magia qui tinha das história dos antigo; ele sabia qui a libertação podia tomá o tempo do crescimento do baobá, mais ia vim

—         Acredito que assim todos se sentem mais à vontade.

O chefe das pulícia já tinha participado dos encontro naquele esconderijo de conversa secreta e acordos camuflado, mais foi a primeira vez qui ficô incomodado com as janela fechada. O abafado tava lhe impedindo de enxergá nos óio dos conversista. Pensô qui vinha cansado das estripulia com as tentativa de consertá o preto cortado da língua. Tinha nas venta da cara o suô fedido e forte do preto, misturado com sangue, xixi e coco, qui o avariado deixô escorrê das corpulência da carne. Anotô nas memória qui precisava esclarecê pro recém empossado capitão do mato, qui a Vila não tinha o hábito de aplicá corretivo de sangramento descontrolado, É ruim pros negócios.

Deixô as vista pensativa no piso madeirado e puxô o mate. A boca se encheu com o amargo verde e quente. Engoliu tudo de uma só vez, Ainda bem, pensô durante o tempo qui o mate levô pra descê amargo, que a incomodação com os donos do negro preso é serviço da alçada do magistrado. E apesar do descontrole do novo contratado pela Comarca da Vila, esse descomedimento se educa, os serviços da polícia ficaram mais parados. É bom ter descanso vez que outra.

Otro puxão no mate e a bomba roncô

—         Senhores, vamos às conversas que nos trouxeram aqui? — os dois voltô as vista pro ouvidô. A cuia do chimarrão foi té o magistrado juiz qui encheu com a água da chaleira e ofereceu pro aconselhadô do governadô. Ele pegô com a mesma mão do coração — Obrigado.

O magistrado juiz subiu a mão e fez gesto de desacordo

—         Não agradeça, divida com seus amigos as preocupações que lhe fizeram convocar essa reunião.

O mate precisa sê sorvido sem pressa pra modo qui a prosa fique sem a afobação da impaciência, té qui ela acostuma com a preguiça da bebida. O aconselhadô era mateadô experimentado, usava como ninguém o tempo de tomá o mate pro seu gosto de proseá, ora apressando, ora acalmando as palavra fervendo nos pensamento. Na primeira puxada, tinha preocupação com o oferecimento do magistrado juiz, Coisa que não se tem na política, muito menos, quando se chega ao topo da carreira, são amigos. Aqueles que um dia lhe juram amizade, no dia seguinte, podem ser capazes de lhe puxar o tapete dos pés. Se quiser ter amigos precisa ficar longe da política, em nome dela o filho luta contra o pai.

—         A sua Excelência sabe que não podemos enfraquecer a voz do sinhô Padre, não é interesse do Governador, nem da Vila, afinal, ele fala em nome da Santa dos nossos favores. — parô pra tragá de novo o mate, fez com mais calma qui o seu costume, queria alongá o silêncio pra não corrê o risco de acusá a Santa ou a pulícia, Ela não consegue impedir de ser roubada, se fosse ele a santidade, resolvia tudo com uma ou duas palavrinhas com o Sinhô de Tudo.

Como a narração da trama tava parada o chefe das pulícia aproveitô pra interrompê o silêncio

—         Como é isso? A Santa está sendo roubada?

Nas barba do chefe das pulícia e do manto da Santa, teve vontade, mais não disse. O magistrado se contentô em afroxá a voz

—         O assunto teve começo antes da sua chegada na reunião.

O chefe ergueu os ombro e abriu os braço.

O aconselhadô achô meió não se metê na conversa dos homi das lei, na Vila. Fez movimento de tomá otro gole, mais tratô de acalmá ainda mais o seu jeito de tragá o mate. Inventô té um entupimento da bomba, qui podia acontecê, mais, no caso pensado, era invencionice pra se desviá com atenção das explicação dum lado e otro

—         Se entendi as razões do Ouvidor, devidamente explicadas antes da sua chegada, os associados da Irmandade, nossos amigos, estão roubando as doações que fazem à obra Santa. Eles dão o donativo, depois pegam de volta um pouco do que foi dado.

O chefe das pulícia lavô as mão

—         Não vejo nenhum crime, sua Excelência. Eles estão pegando o que já é deles.

—         Depois que foi dado à Santa é da Santa.

O chefe deu de ombro com sua caramunha de desdém

—         Não podemos deixar com a Santa a feitura da justiça?

O aconselhadô fez roncá o mate e, antes de devolvê pro magistrado juiz, interferiu na prosa

—         O sinhô governador me fez a mesma pergunta.

O magistrado juiz estendeu a mão do coração pra recebê de volta a cuia do mate. Enquanto despejava a água na cuia e preparava a sua vez de mateá, não oiava os outro. O chefe achô meió desencadeá uma resposta de mais precisão

—         E qual foi a sua resposta para o Governador?

O perguntado apertô as vista, como se pudesse oiá meió os propósito do otro. Juntô as mão como se pudesse rezá o qui nunca rezô na vida, mais só queria parecê mais sério que parecia

—         Disse que é um jeito de não fazer o que precisa ser feito, mas o problema é o porta-voz da Santa, o sinhô Padre. Ele tem o balcão das domingueiras. É arriscado fechar os olhos.

O magistrado juiz tava puxando o mate, isso lhe autorizava fazê silêncio pra pensá, O povo não vai entender porque quem dá, e pode dar, pega de volta o que foi dado. Mas as leis não podem ficar acuadas pelo sacerdócio.

O chefe das pulícia lembrô do óbvio qui os otro dois já tinha pensado

—         E os associados da Irmandade?

—         Não podemos expor nossos amigos, gente valerosa, credores do Governador junto ao Imperador.

Foi quando o magistrado juiz, qui só pensa em francês, explodiu da raiva e perdeu a formosura

—         Filhos da puta! Não sabem que com um punhado de escravos e um chicote se pode enriquecer? Medíocres! Roubar as obras da Santa! Por acaso, eles não são brancos, cristãos e civilizados? Não roubamos nós mesmos!

Os otros dois não se oiava, nem arriscava concordá ou discordá, tem hora qui é mais bão guardá as palavra e fazê silêncio. Eles esperava qui o magistrado juiz pudesse pará de gritá pra tomá o mate qui esfriava. Ele parecia atolado na raiva qui sentia dos preto e na vergonha dos branco, não conseguia pará. Tava esquecido do mate nas mão, tinha perdido a visão da sua volta

—         O que se pode esperar do conluio de selvagens inferiores, colonizadores oriundos de gente vil, assassinos, e negros boçais e degenerados? Essa mistura é nossa desgraça!

—         Excelência...

—         O que foi? — a voz tava feito gelo, nenhuma paixão

—         O mate está esfriando.

O magistrado juiz pareceu saí do seu transe de ódio, mais os óio ainda piscava, levô o mate té a boca e tomô tudo em duas puxada.
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Leia também:
Ensaio 33B - Um lugá qui nunca existiu

Uma aula Magna magnífica

Sebastião Salgado





domingo, 16 de março de 2014

histórias davóinha: Ele não é bicho, neinho. É mifiu! 05cp

casarão canela preta


é mais fácil não tê alguma coisa qui tê
Ensaio 05cp – 2ª edição 1ª reimpressão


baitasar



o tiuzin perdeu intimidade com o casarão

desapareceu

não deixou nenhum aclaramento com as palavras. o sumiço ficou sem a explicação do tiuzin. comecei a descobrir que se o interessado em dasambientá a cisma esconde as razões com ele mesmo, sobram suspeitas e suposições. no caso do tiuzin João não vão faltar estimativas e suspeitas. no meu jeito preocupado com o tiuzin, só consigo atinar que ele não se conformou com o dinheiro cravado nas pedras do casarão. tinha e não tinha o dinheiro que queria e precisava. não conseguiu vender o Canela Preta no contrário da vontade dos tiuzin. tinha e não tinha um nome. ninguém lhe via ou sabia. nunca quis o casarão, maisqueria as canelas pretas nas ruas. andarilhando. invisível

fui o último que viu o tiuzin, ele estava vestido de cavalo, puxava o carrinho, os olhos vermelhos

Não consigo entender por que o senhor quis vender a memória da nossa gente. A família é tudo, vi com dó o tiuzin desenrolar a língua e ela não lhe obedecer. a tiazin não gostava de sentir pena. repetia que o preto bebe porque ele quer, podia fazer outras coisas. não cansava de repetir que se escolheu o papel de puxar carroça não vai conseguir desvestir os arreios. eu concordo em parte com a tiazin, o tiuzin de acordo com as suas possibilidades fez a sua escolha. também concordo que os pretos precisam ser exemplo melhor que os brancos

Bosta de lembrança qui não tem serventia, fui o último que ouviu a voz do tiuzin João sobre a família dos Canela Preta. a última vez vestido de cavalo. o vermelho do céu e a vermelhidão das vistas lhe fez arder em chamas. arrancou o casco, largou a carroça, os arreios jogados no chão. saltou a cerca do curral como um puro sangue. agora, ele era um dos indomados. nunca olhou para trás. outro andarilho canela preta. outra escolha. não era esse o exemplo para os pretos que a tiazin queria

a suposição mais aceita para o silêncio do tiuzin foi da tiazin Vanda, O João fez voto de mudez até o casarão sê vendido.

eu acho que o tiuzin não tinha uma disposição de preto nem de branco. sabia e não sabia onde caminhava. um pé em cada mundo. no pior de cada mundo. não era nem uma estrada nem uma rua, um beco sem saída. o caminho não tava por dentro do tiuzin. um preto sem lugar no mundo dos pretos. e no mundo dos brancos o lugar que tinha ninguém lhe enxergava

Moleque, Deus não existe. E se fô o caso de existí, ele não tem cuidado de cuidá duspretu. É um deus pru branco.

Ele cuida de todo mundo, fiz o sinal da cruz

ele resmungou de volta, Um qui otro pretu, té pode sê.

pedi aos espíritos dos mais velhos interesse pelo tiuzin. não sabia se chegava ajuda com o tempo de convencer o tiuzin que a melhor decisão era não vender

Mifiuneto, deixa o João. Ele tá sincero na vontade de andá sem preocupação da religião ou moradia. Não tá com interesse em ninguém. Não tem plano pra ajudá nem atrapaiá.

essas conversas com davó me devolviam a paz. acendiam a esperança que davó continuava me cuidando

Ele perdeu a esperança?

sentia que ela estava no meu lado. a mão no meu ombro. os dois olhando o tiuzin sumindo, Tá sem um lugá de chegada. Não vê futuro. Quis copiá o exemplo do branco e não deu certo pra ele. Ficô sem o meió do mundo duspretu e dusbrancu. Ele não sabe, mais cansô diquerê sem podê tê. Cansô das coisa e duqui vivê.

davó entendia o filho que o mundo não aprendeu. o tiuzin não quis mais se ajustar aos arreios da carroça que recolhia garrafa vazia, ferro velho, juntava osso e vidro quebrado

Ele não é bicho, neinho. É mifiu!

Mas ele quer vender o casarão...

E daí?

olhei davó com os olhos arregalados. pensei que davó defendia com unhas e dentes as histórias que estavam no casarão. fiquei assustado com o jeito que ela parecia não dar importância

Davó viveu no casarão. É aqui que estão as histórias dos pretos, queria tirar a tristeza da minha voz, mas não sabia como fazer

Bobagem, mifiuneto. A história duspretu tão espaiada por tudo qui foi trabáio. Não teve uqui uspretu não fez. E ocê já devia tê a sabedoria qui a história é o ajuntamento das história mal contada. Não tem qui esquecê, mais uspretu precisa encontrá jeito de vivê meió. Se os branco qué pagá pelo casarão e as lembrança qui tem dentro, não tem infortúnio nem mistério. É só trazê muito dinheiro. Ocêis cuida das memória.

não atinava fechar a boca e piscar as vistas

Davó acha que é preciso vender?

antes de usar as palavras que estava pensando, o palheiro com o fumo foi puxado num suspiro firme. a brasa ficou com jeito de acendida. tava ali, um tempo saboreando o entupimento daquela fumação. davó é tão esperta para alcançar o conhecimento da nação dos preto, mas tão ignorante com outras

Ninguém sabe tudo, mifiuneto, levei um susto, parecia que escutava os meus pensamentos, mais se fô preciso vendê qui faça bão uso pra vendê.

não queria desistir de não vender o casarão. ele me parecia uma grande barriga de mãe

Mas davó... e as histórias que estão aqui?

ela saiu do meu lado. caminhou uns passos para frente. parecia estar bem levinha. quando se virou e olhou direto nos meus olhos, eu sabia que era davó diferente, Não vejo infortúnio nem mistério. É só o compradô aceitá pagá os dois preço. As lembrança ocêis leva pra otro lugá e as memória ocêis trata de espaiá.

Os dois preços?

fiz com as vistas jeito de estranhamento. olhava para cima, davó parecia flutuando com cara de santa, Que dois preços são esses?

o fumo da corda queima mais um pouco. depois vavó solta uma baforada que quase me esconde. começo a tossir, Desculpe, neinho. A sua avó é muito deseducada, olho vavó com os olhos molhados. ela tá com jeito de brincadeira e alegria, não parece com jeito de tristeza

Escuta, mifiuneto. São duas casa. Essa qui ocê vê com usóio qui a terra ainda lhe come. A otra casa ocê só vê se fechá usóio. Carece enchê o curação com as história dos espírito mais velho qui continua aqui. O compradô precisa pagá pelo serviço de discontá essas história, esvaziá e fechá o poço da nêga Laetitia.

Não tem freguesia para comprar o que não vê, ela pareceu dar um sorriso de tolerância ou foi o meu olhar indulgente que vi sorrindo de mim mesmo

Mifiuneto, não é o dinheiro o problema do compradô. O incômodo é as história que ele conhece de ouvi falá. Diz qui não credita nem descredita. Otros fica na dúvida de perdê dinheiro se abrí as corrente dos preto. Pagô pra acorrentá as canela preta, mais não qué pagá pra desacorrentá. Esses, se vai querê o casarão, tem qui pagá as cicatriz dos ferro e das tira de coiro.

a conversa resmungada com davó nunca me deixa perder a confiança nas palavras. tinha certeza que precisava resistir qualquer tentação de vender, mas era preciso esperar ela aclarar as ideias. achava que davó tava sendo imprudente, depois voltava no assunto, É decisão difícil. O que é vendido fica a mercê do novo dono. É a vontade dele que vai valer, se ele põe tudo abaixo o casarão acaba. Nunca mais existe.

Neinho, ocê só tá cogitando com as suas razão.

Avoinha, essa vontade do tiuzin tem razão na desconfiança nele mesmo. Abandonou o casarão por qualquer lugar. Desaprendeu do amor guardado no Canela Preta. Não se curou de ser andante, ela desceu um pouco da sua flutuação e chegou mais perto, parecia que queria fazer das palavras algum segredo

Andá é o jeito dele vivê. Pru qui ocê se incomoda tanto?

Ele quer vender e perder a vigilância nas coisas da família. Acho que ele precisa ter alguém mais velho acampado no seu corpo.

essa foi minha última conversa com avoinha, desde o tempo do desaparecimento do tiuzin João, que eu lembre. mas acho que tenho mais conversa que não lembro. não tenho certeza, mas desconfio. eu terminei meus estudos da escola e escapei do quartel. sem as conversas com avoinha. a tiazin Vanda tava de felicidade com as duas vitórias, achava que precisava festejar as duas coisas, o diploma e o impedimento militar. não tinha tamanho de soldado. não conheço nenhum caso de anão que cresceu mais que um anão. descobri que o meu tamanho não precisa solução, já tá resolvido

não tinha festejo no casarão desde que foi decidido que ele não ia ser vendido. foi o tempo da acomodação das águas para dentro do rio. até que uma notícia caiu como bomba. o tiuzin Batata tinha saído da limpeza das ruas e se firmado como motorista da Viação Anônima, caído nas graças da chefia

Consegui emprego de cobradô das passagem para o miúdo, o miúdo era eu, ele já tem idade e o conhecimento para trabalhar.

a tiazin foi a única que teve desgosto pelo acontecido, Não sei, Batata. Não sei, não. A mãinha qué vê o moleque segurando o diploma de doutô.

o tiuzin Batata jogou o corpo para os lados como se fosse um estremecimento dos pensamentos

A mãinha não tá mais na aparição das vista.

a tiazin fez o sinal da cruz, levantou as mãos e os olhos enquanto a sua boca cochichava alguma coisa que não podia ser ouvida desse lado, Mas não custa muito e ela aparece.

Vanda, trabalhar não faz estorvá. O que pode impedí a conclusão do diploma é a falta do dinheiro, o tiuzin tava na sua razão, tu sabe muito bem que preto sem emprego é logo cadeiado, os agente da lei não engole a desculpa que o preto sem trabalho é estudante, por muito menos, tem criolo puxando cana.

Eu consigo, tiazin. Faço os dois serviços... estudar e trabalhar.

a tiazin usou as vista como se tivesse colocando as mãos na minha volta, Eu sei que ocê consegue, mas a vontade da mãinha não é essa, ela não tinha brabeza na voz, mas não queria descumprir o prometido.

o tiuzin Batata levantou em silêncio. a cara era de poucos amigos. caminhava pela cozinha, dava voltas na ilha. nosso lugar do pensamento

O miúdo precisa saber trabalhá. Já tem idade de homem.

Mais não tem o tamanho, olhei espantado

A tia, também?

o amor de muito cuidado pode provocar alergia e arrancar as medidas da confiança. tornar hábito o medo. transformar em tragédia as regras mais simples. eu era um caldeirão fervente de zoada e confusão, Tia Vanda, não quero lhe faltar com o respeito nem com o amor da tiazin por mim, mas eu vou trabalhar com o tiuzin. Cada um na sua vez e a vez por todos, a opinião geral era que eu estava condenado a não chegar ao tamanho dos homens. um personagem esquisito e desusado. ocultado de maneira modesta até morrer. sem reabilitação. um desastre preto. anão não cresce. preto não fica branco. não tinha nem o amálgama das preces

Mas... mifiusobrinho...

quando se sabe que nem as preces darão certo

Tia Vanda, já tenho decisão tomada. Assino contrato de temporário. E se der no jeito, fico no carro do tiuzin, mas isso não importa. O que interessa é que começo já, onde for preciso.

a tiazin não conseguia recuperação das palavras desacertadas, E os estudo? Ocê carece de escutá a mãinha, fiquei apenado com a culpa que vestia o corpo cansado e envelhecido da tiazin

Tia Vanda, tenho desconfiança que a escola não foi feita para mim ou não está pronta para os netos da avoinha, as águas dos olhos da tiazin começaram escorregá pelos canto, mas daqui de fora não vai mudá nada. Vai continuá como sempre foi... vamos continuar olhando.

Pode sê, pode não sê.



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