sábado, 30 de abril de 2022

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (5.1) - ... Em maio terminou a guerra

Cem Anos de Solidão


Gabriel Garcia Márquez


(5.1)



para jomí garcía ascot 

e maría luisa elío






EM MAIO TERMINOU a guerra. Duas semanas antes que o governo o anunciasse oficialmente, num decreto altissonante que prometia um castigo sem piedade para os promotores da rebelião, o Coronel Aureliano Buendía caiu prisioneiro, quando já estava quase alcançando a fronteira ocidental disfarçado de feiticeiro indígena. Dos vinte e um homens que o seguiram na guerra, quatorze morreram em combate, seis estavam feridos, e apenas um o acompanhava no momento da derrota final: o Coronel Gerineldo Márquez. A notícia da captura foi dada em Macondo por uma proclamação extraordinária. “Está vivo”, informou Úrsula ao marido. “Roguemos a Deus para que os seus inimigos tenham clemência.” Depois de três dias de choro, numa tarde em que batia um doce de leite na cozinha, ouviu claramente a voz de seu filho muito perto do ouvido. “E Aureliano”, gritou, correndo para. o castanheiro para dar a notícia ao marido. “Não sei como foi o milagre, mas está vivo e vamos vê-lo muito brevemente. Deu o fato como mais do que certo. Fez lavar o chão da casa e mudar a posição dos móveis. Uma semana depois, um rumor sem origem, que não seria estabelecido pelo decreto, confirmou dramaticamente o presságio. O Coronel Aureliano Buendía havia sido condenado à morte e a sentença seria executada em Macondo, para escarmento da população. Numa segunda-feira, às dez e vinte da manhã, Amaranta estava vestindo Aureliano José, quando percebeu um tropel longínquo e um toque de cometa, um segundo antes de que Úrsula irrompesse no quarto com um grito: “Já o estão trazendo.” A tropa lutava para dominar a coronhadas a multidão incontida. Úrsula e Amaranta correram até a esquina, abrindo passagem aos empurrões, e então o viram. Parecia um mendigo. Tinha a roupa rasgada, o cabelo e a barba emaranhados, e estava descalço. Andava sem sentir a poeira escaldante, com as mãos amarradas nas costas com uma corda que um oficial a cavalo sustinha na cabeça da sela. Perto dele, também roto e derrotado, o Coronel Gerineldo Márquez era levado. Não estavam tristes. Pareciam mais como que perturbados pela multidão, que gritava para a tropa todo tipo de impropérios.

— Meu filho! — gritou Úrsula no meio da algazarra, e deu uma bofetada no soldado que tentou detê-la.

O cavalo do oficial empinou. Então o Coronel Aureliano Buendía se deteve, trêmulo, afastou os braços de sua mãe e fixou-lhe nos olhos um olhar duro.

— Vá para casa, mamãe — disse. — Peça permissão às autoridades e venha me ver na prisão.


Olhou para Amaranta, que permanecia indecisa dois passos atrás de Úrsula, e sorriu para ela ao perguntar: “O que foi que aconteceu com a sua mão?” Amaranta levantou a mão com a atadura negra. “Uma queimadura”, disse, e afastou Úrsula para que não fosse atropelada pelos cavalos. A tropa disparou. Uma guarda especial rodeou os prisioneiros e os levou rapidamente para o quartel.

Ao entardecer, Úrsula visitou o Coronel Aureliano Buendía na prisão. Tinha tentado conseguir a permissão através do Sr. Apolinar Moscote, mas este perdera toda a autoridade diante da onipotência dos militares. O Padre Nicanor estava prostrado com uma febre hepática. Os pais do Coronel Gerineldo Márquez, que não estava condenado à morte, tinham tentado vêlo e foram expulsos a coronhadas. Diante da impossibilidade de conseguir intermediários, convencida de que o filho seria fuzilado ao amanhecer, Úrsula fez um embrulho com as coisas que queria levar para ele e foi sozinha ao quartel.

— Sou a mãe do Coronel Aureliano Buendía — anunciou-se.

Os sentinelas lhe impediram a passagem. “Vou entrar de qualquer maneira”, Úrsula advertiu. “De modo que, se têm ordens de disparar, comecem logo.” Afastou um deles com um empurrão e entrou na antiga sala de aula, onde um grupo de soldados nus lubrificava as suas armas. Um oficial de uniforme de campanha, queimado de sol, com óculos de lentes muito grossas e gestos cerimoniosos, fez aos sentinelas um sinal para que se retirassem.

— Sou a mãe do Coronel Aureliano Buendía — Úrsula repetiu.

— A senhora estará querendo dizer — corrigiu o oficial com um sorriso amável — que é a senhora mãe do Sr. Aureliano Buendía. Úrsula reconheceu no seu modo de falar rebuscado a cadência lânguida da gente do páramo, os janotas.

— Como queira, senhor — admitiu — desde que me permita vê-lo.

Havia ordens superiores de não permitir visitas aos condenados à morte, mas o oficial assumiu a responsabilidade de lhe conceder uma entrevista de quinze minutos. Úrsula mostrou a ele o que trazia no embrulho: uma muda de roupa limpa, as botinas que o seu filho usara no casamento, e o doce de leite que guardava para ele desde o dia em que pressentiu o seu regresso. Encontrou o Coronel Aureliano Buendía no quarto dos condenados à morte, estendido num catre e com os braços abertos, porque tinha as axilas cheias de furúnculos. Haviam-lhe permitido fazer a barba. O bigode grosso de pontas torcidas acentuava a angulosidade das maçãs do rosto. Pareceu a Úrsula que estava mais pálido que quando fora embora, um pouco mais alto e mais solitário do que nunca. Sabia dos pormenores da casa: o suicídio de Pietro Crespi, as arbitrariedades e o fuzilamento de Arcadio, a impavidez de José Arcadio Buendía debaixo do castanheiro. Sabia que Amaranta tinha consagrado a sua viuvez de virgem à criação de Aureliano José, e que este começava a dar mostras de muito bom juízo e lia e escrevia ao mesmo tempo que aprendia a falar. A partir do momento em que entrou no quarto, Úrsula se sentiu inibida pela maturidade do filho, pela sua aura de domínio, pelo resplendor de autoridade que irradiava a sua pele. Surpreendeu-se de que estivesse tão bem informado. “A senhora já sabe que eu sou adivinho”, ele brincou. E acrescentou seriamente: “Esta manhã, quando me trouxeram, tive a impressão de que já havia passado por tudo isto.” Na verdade, enquanto a multidão rugia à sua passagem, ele estava concentrado nos seus pensamentos, assombrado da forma como as pessoas tinham envelhecido em um ano. As amendoeiras tinham as folhas gastas. As casas pintadas de azul, pintadas em seguida de vermelho e logo pintadas novamente de azul, acabaram por adquirir uma coloração indefinível.

— O que é que você esperava? — Úrsula suspirou. — O tempo passa.

— Ë verdade — admitiu Aureliano — mas não tanto.

Deste modo, a visita tanto tempo esperada, para a qual ambos haviam preparado as perguntas e inclusive previsto as respostas, foi outra vez a conversa cotidiana de sempre. Quando o sentinela anunciou o fim da entrevista, Aureliano tirou de debaixo da esteira do catre um rolo de papéis suados. Eram os seus versos. Os inspirados por Remedios, que tinha levado consigo quando fora embora, e os escritos depois, nas pausas ocasionais da guerra. “Prometa que ninguém vai ler isto”, disse.


“Esta noite mesmo acenda o forno com eles.” Úrsula prometeu e aprumou o corpo para lhe dar um beijo de despedida.


— Trouxe um revólver para você — murmurou.


O Coronel Aureliano Buendía verificou que o sentinela não estava por perto.


“Não me serve de nada”, respondeu em voz baixa. “Mas deixe comigo, para que não a apanhem na saída.” Úrsula tirou o revólver da combinação e ele o pôs debaixo da esteira do catre. “E agora não se despeça”, concluiu com uma firmeza calma. “Não suplique a ninguém nem se rebaixe diante de ninguém. Faça de conta que já me fuzilaram há muito tempo.” Úrsula mordeu os lábios para não chorar.


— Ponha pedras quentes nos furúnculos — disse.

Deu meia-volta e saiu do quarto. O Coronel Aureliano Buendía permaneceu de pé, pensativo, até que a porta se fechou. Então voltou a se deitar com os braços abertos. Desde o princípio da adolescência, quando começou a ser consciente dos seus presságios, pensava que a morte se havia de anunciar com um sinal definido, inequívoco, irrevogável, mas faltavam poucas horas para ele morrer, e o sinal não aparecia. Certa ocasião uma mulher muito bonita entrou no seu acampamento de Tucurinca e pediu aos sentinelas que lhe permitissem vê-lo. Deixaram-na passar, porque conheciam o fanatismo de algumas mães que enviavam as filhas ao quarto dos guerreiros mais notáveis, conforme elas mesmas diziam, para melhorar a raça. O Coronel Aureliano Buendía estava naquela noite terminando o poema do homem que se extraviara na chuva, quando a moça entrou no quarto. Ele lhe deu as costas para colocar a folha na gaveta com chave onde guardava os seus versos. E então sentiu. Agarrou a pistola na gaveta sem voltar o rosto.

— Não dispare, por favor — disse.

Quando se virou com a pistola preparada, a moça tinha abaixado a sua e não sabia o que fazer. Assim tinha conseguido escapar de quatro entre onze emboscadas. Em compensação, alguém que nunca foi capturado entrou certa noite no quartel revolucionário de Manaure e assassinou a punhaladas o seu amigo íntimo, o Coronel Magnífico Visbal, a quem tinha cedido o catre para que suasse uma febre. A poucos metros, dormindo numa rede no mesmo quarto, ele não se deu conta de nada. Eram inúteis os seus esforços para sistematizar os presságios. Apresentavam-se de repente, num clarão de lucidez sobrenatural, como uma convicção absoluta e momentânea, mas inatingível. Algumas vezes eram tão naturais que os identificava como presságios a não ser quando se cumpriam. Outras vezes eram taxativos e não se realizavam. Com frequência não eram mais que toques vulgares de superstição. Mas quando o condenaram à morte e lhe pediram que expressasse o seu último desejo, não teve a menor dificuldade em identificar o presságio que lhe inspirou a resposta:

— Peço que a sentença se cumpra em Macondo — disse.

O presidente do tribunal não gostou.

— Não banque o vivo — disse. — E um estratagema para ganhar tempo.

— Se não cumprirem a sentença, o problema é de vocês — disse o coronel — mas esta é a minha última vontade.

A partir de então os presságios o abandonaram. No dia em que Úrsula o visitou na prisão, depois de muito pensar, chegou à conclusão de que talvez a morte não se anunciasse daquela vez, porque não dependia do acaso e sim da vontade dos verdugos. Passou a noite em claro, atormentado pela dor dos furúnculos. Pouco antes da alvorada ouviu passos no corredor. “Já vem”, disse para si, e pensou sem motivo em José Arcadio Buendía, que naquele momento estava pensando nele, sob a madrugada lúgubre do castanheiro. Não sentiu medo nem saudade, mas uma raiva intestinal diante da ideia de que aquela morte artificiosa não lhe permitiria saber do final de tantas coisas que deixava sem terminar. A porta se abriu e entrou o sentinela com uma caneca de café. No dia seguinte, à mesma hora, ainda estava como então, irritado com a dor nas axilas, e aconteceu exatamente a mesma coisa. Na quinta-feira dividiu o doce de leite com os sentinelas e pôs a roupa limpa, que ficava apertada para ele, e as botinas de verniz. Ainda na sexta-feira não tinha sido fuzilado.

Na realidade, não se atreviam a executar a sentença. A rebeldia do povo fez os militares pensarem que o fuzilamento do Coronel Aureliano Buendía traria graves consequências políticas, não só em Macondo, mas em todo o âmbito do pantanal, de modo que consultaram as autoridades da capital da província. Na noite de sábado, enquanto esperavam a resposta, o Capitão Roque Carnicero foi com os outros oficiais à taberna de Catarino. Apenas uma mulher, quase pressionada por ameaças, atreve u-se a levá-lo ao quarto. “Elas não querem se deitar com um homem que sabem que vai morrer”, confessou ela. “Ninguém sabe como vai ser, mas todo mundo anda dizendo que o oficial que fuzilar o Coronel Aureliano Buendía, e todos os soldados do pelotão, um por um, serão assassinados sem escapatória, mais cedo ou mais tarde, mesmo que se escondam no fim do mundo.” O Capitão Roque Carnicero comentou o fato com os outros oficiais, e estes comentaram com os seus superiores. No domingo, ainda que ninguém tivesse revelado com franqueza, ainda que nenhum ato militar tivesse perturbado a calma tensa daqueles dias, todo o povo sabia que os oficiais estavam dispostos a escapar, sob toda espécie de pretextos, à responsabilidade da execução. No correio de segunda-feira chegou a ordem oficial: a execução deveria se realizar ao fim de vinte e quatro horas. Naquela noite os oficiais colocaram num gorro sete papeizinhos com os seus nomes, e o inclemente destino do Capitão Roque Carnicero apontou para ele com o papelzinho premiado. “O meu azar não escolhe a ocasião”, disse ele com profunda amargura. “Nasci filho da puta e morro filho da puta.” As cinco da madrugada escolheu o pelotão por sorteio, formou-o no pátio, e acordou o condenado com uma frase premonitória:

— Vamos, Buendía — disse a ele. — Chegou a nossa hora.

— Então era isto — respondeu o coronel. — Estava sonhando que os furúnculos tinham arrebentado.

Rebeca Buendía se levantava às três da madrugada desde que soube que Aureliano seria fuzilado. Ficava no quarto no escuro, vigiando pela janela entreaberta o muro do cemitério enquanto a cama em que estava sentada estremecia com os roncos de José Arcadio. Esperou a semana inteira com a mesma obstinação secreta com que em outra época esperava as cartas de Pietro Crespi. “Não vão fuzilar aqui”, dizia-lhe José Arcadio. “Vão fuzilá-lo à meia-noite no quartel, para que ninguém saiba quem formou o pelotão, e o enterram lá mesmo.” Rebeca continuou esperando. “São tão burros que vão fuzilar aqui”, dizia. Tão certa estava que tinha previsto a forma como abriria a porta para dar-lhe adeus com a mão. “Não vão trazê-lo pela rua”, insistia José Arcadio, “só com seis soldados assustados, sabendo que o povo está disposto a tudo.”

Indiferente à lógica do marido, Rebeca continuava na janela.

— Você vai ver já que são burros a esse ponto.

Na terça-feira, às cinco da madrugada, José Arcadio tinha tomado café e soltado os cachorros, quando Rebeca fechou a janela e se agarrou na cabeceira da cama para não cair. “Já o trazem”, suspirou. “Como está bonito.” José Arcadio chegou-se à janela, e o viu, trêmulo na claridade da alvorada, com umas calças que tinham sido suas na juventude. Estava de costas para o muro e tinha as mãos apoiadas na cintura porque os quistos ardentes das axilas impediam-no de abaixar os braços. “O sujeito se amola tanto”, murmurava o Coronel Aureliano Buendía. “O sujeito se amola tanto para depois ser morto por seis maricas sem poder fazer nada.” Repetia isso com tanta raiva que quase parecia fervor, e o Capitão Roque Carnicero se comoveu porque pensou que ele estava rezando. Quando o pelotão apontou para ele, a raiva se tinha materializado numa substância viscosa e amarga que lhe adormeceu a língua e o obrigou a fechar os olhos. Então desapareceu o resplendor de alumínio do amanhecer e ele voltou a ver-se a si mesmo, bem garoto, de calças curtas e gravata-borboleta, e viu seu pai numa tarde esplêndida conduzindo-o para o interior da tenda, e viu o gelo. Quando ouviu o grito, pensou que era a ordem final do pelotão. Abriu os olhos com uma curiosidade de calafrio, esperando chocar-se com a trajetória incandescente dos projéteis, mas só encontrou o Capitão Roque Carnicero com as mãos para o alto, e José Arcadio atravessando a rua com a sua espingarda pavorosa pronta para disparar.

— Não abra fogo — disse o capitão a José Arcadio. - O senhor vem a mando da Divina Providência.

                    

continua página 83...


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Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (1.3) - Quando o pirata Francis Drake assaltou
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (1.4) - O pai deu-lhe com as costas da mão
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (1.5) - O filho de Pilar Ternera
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (1.6) - Foi Aureliano quem concebeu
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (1.7) - O tempo aplacou o seu propósito
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Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (2.3) - ... as suas nove noites de velório
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Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (3.3) - ... Ele mesmo diante do pelotão de fuzilamento
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (4.1) - ... O CORONEL AURELIANO BUENDÍA
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (4.2) - ... Os únicos parentes que souberam
Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (5.1) - ... Em maio terminou a guerra

quinta-feira, 28 de abril de 2022

Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 2 (2a)

Ópera do malandro



Chico Buarque 
 

Ópera do malandro
americanismo: da pirataria à modernização autoritária (e o que se pode seguir)
 

"A multidão vai estar é seduzida" — Teresinha Fernandes de Duran


PRIMEIRO ATO


CENA 2


Esconderijo de Max; o ambiente ê rústico, quase uma cabana de pescadores; o espaço está tomado por uma montanha de caixotes e embrulhos revirados e semi-abertos; os homens de Max estão enfiados nessa montanha, procurando algo; a exceção é Barrabás que, sentado num caixote e mascando chicletes, segue Teresinha com os olhos



TERESINHA
Puxa, Max, o teu escritório é tão escuro! Mais parece um esconderijo.

MAX
Por mim, a cerimônia era no Copacabana Palace. Eu já tinha até tratado a equipe de garçons. E ainda tava arriscado a aparecer de surpresa a orquestra típica do Xavier Cugat.

TERESINHA
Mas aí o papai. . .

MAX
Pois é, o papai também era capaz de dar uma incerta e escangalhar a rumba. Então, Teresinha, o lugar mais discreto que eu encontrei foi mesmo o escritório. O diabo é que ele tá todo entulhado. Essas encomendas chegaram anteontem e não deu tempo de fazer as entregas. (Alto) Como é, macacada? Nada ainda? Procurem direito que só pode estar aí mesmo, no setor dos têxteis.

TERESINHA
Nunca vi escritório tão isolado assim, num areal...

MAX
É, baby, eu fui criado no mar. Sabe, assim que a gente se livrar dos caixotes, sei não. . . Com o gosto que você tem, dando um cuidado na decoração, aposto que a gente vai acabar morando aqui mesmo.

TERESINHA
Deus me livre e guarde! Cadê coragem pra morar num ermo desses, sem luz elétrica, sem bonde, sem telefone, sem vizinho e sem policiamento? Sem falar que não vinha visita nem aos domingos.

MAX
Então, tá. Se você não se incomoda de morar em hotel. . .

TERESINHA
Outro dia eu vi uma casinha que era uma graça, lá no Cosme Velho. . .

MAX
Ô, cambada de vagabundos! Sai ou não sai esse vestido?

TERESINHA
Bem que eu falei pra gente comprar o vestido num magazine. Era tão mais fácil. . .

MAX Ora, Teresinha, espera pra ver o modelo exclusivo que eu encomendei. Não é de armarinho do Catete, não. Veio direto da Quinta Avenida, New York! (Ouve-se o estouro dum champanhe)

TERESINHA
Que foi isso? É ladrão, Max, é ladrão!

MAX
Isso foi o safado do Johnny abrindo champanhe antes da hora. Ô, filho duma puta! Desculpe, baby. . . Ô, filho duma puta, desce daí e me passa a garrafa! Isso é hora de beber?

JOHNNY
Não tava bebendo, tava só testando a rolha, capitão.. .

MAX
Lei seca pra você! (Entorna o líquido)

JOHNNY
Não faça isso, capitão! Coitadas das bolhinhas. . .

MAX
Tem cinco minutos pra encontrar o vestido! (Bate com o pé no chão, afugentando Johnny) Não repara, Teresinha, mas esse pessoal só trabalha debaixo de chicote.

TERESINHA
Eles são tão engraçados, Max. Têm cara de gangsters de verdade! (Olha Barrabás) Parece até que saíram duma fita da Paramount.

MAX
E você, Barrabás, que é que tá fazendo aí, gostosão? Tá pensando que é artista de cinema? Mostra o teu talento, anda! Dá um mergulho aí e resgata o vestido da minha noiva.

BARRABÁS
Eu sou escafandrista. Sou roupeiro não. Meu serviço eu já fiz.

MAX
Tá brincando.

BARRABÁS
Não sou pago pra catar camisola de ninguém.

MAX
Ah, é? (Dá um pontapé no caixote, desequilibrando Barrabás) Levanta e faz o que eu te digo! E tem mais! Eu não te pago pra fazer biscate de traficante, viu? Aliás, parece que o Tigrão, nosso bravo inspetor, tá a fim de desbaratar uma quadrilha aí. E eu soube que você, Barrabás, é quem tá encabeçando a lista do Tigrão. (Barrabás junta-se aos outros, vagarosamente, de má vontade) Desculpe a cena, Teresinha, mas foi inevitável. . .

TERESINHA
Você esteve ótimo, Max.

PHILLIP
Capitão, capitão, achei uma caixa escrita nilom!

MAX
É náilon, Phillip. Passa aqui.

PHILLIP (Entrega a caixa)
Mas que tá escrito nilom, tá.

MAX Ô, cretino, são as minhas cuecas! Perdão, Teresinha.

TERESINHA
Deixa eu ver? Olha que uva, eu nunca tinha visto cuecas de náilon!

MAX
É claro que não, eu acabei de importar. . . Escuta aqui, Teresinha, como são as cuecas que você costuma ver?

TERESINHA
Ah, tem de algodão, tem de cambraia, tem de linho, tem até de seda, mas de náilon é a primeira vez que eu vejo.

MAX Sei, sei...

TERESINHA
Ah, Max, é claro que eu tô falando das ceroulas do papai. . . Puxa, você tá tão nervoso com esse casamento que parece marinheiro de primeira viagem.

MAX
Sorry, Teresinha, é esse contratempo todo. Big Ben, que horas são?

BEN (Levanta-se de dentro dum caixote e consulta os relógios que lhe cobrem os braços)
Onze e trinta e sete e vinte, capitão.

MAX
Olha aí, já passou da hora. Ainda bem que o padrinho e o juiz também estão atrasados. . . Nosso padrinho é um homem muito ocupado, Teresinha. Mas é um grande amigo. Fez questão de providenciar um juiz de toda a confiança.

GENERAL
Tá aqui, capitão, achei! (Mostra o vestido)

MAX
É esse mesmo, General, parabéns! Vai ganhar uma medalha! Joga daí mesmo! (Apanha o vestido no ar) Tá vendo, baby, não amarrota. Amassa aqui, pode amarfanhar. É puro náilon, todo ele, até o véu, até a grinalda, até as florzinhas.

TERESINHA
É lindo, Max! Vou lá dentro me trocar. (Sai)

MAX
Ô, macacada, ajuda aqui com a mesa! (Os homens pulam de onde estão e dispõem uns caixotes que, com a toalha, vão simular uma longa mesa com seus bancos) Isso, issso. . . Prataria de Portugal, cristais da Boêmia, toalha de náilon, cerâmica inglesa. . . Vamos, vamos, cuidado que isso é frágil. . . Cadê a Geni, hein?

BARRABÁS
Tá dando.

MAX
Perfeito, perfeito, assim tá bem. Os queijos franceses, o salmão da Noruega, o vinho. . . O quê? Châteauneuf du Pape? Ô, Johnny, você tá bêbado, tá? Quer me fazer passar vexame? Onde é que já se viu servir vinho tinto com salmão? Vai botar o vinho da Alsácia no gelo, vai! Vocês todos, vão passar uma loção na cara e enfiar uma roupa decente. Rápido! (Eles saem por um lado e Teresinha entra por outro, vestida de noiva)

MAX
Teresinha! Teresinha! É você ou é uma visão? (Gira a manivela do gramofone que começa a tocar "l'm in the Mood for Love" com Glenn Miller e um pouco de chiado) É você ou uma visão? Deixa eu te tocar. (Toma-a nos braços e dá alguns passos de dança) Ficou bem, baby? Não tá muito justo?
TERESINHA
Caiu como uma luva, Max. . .
MAX
Viu só? Eu sei de cor cada polegada do teu corpo.

TERESINHA
Eu só tô achando que ele tá um pouquinho úmido. . .

MAX
Ah, eu gosto de tudo úmido. Eu sou um lobo do mar, baby. E depois, não tem comerciante de secos e molhados? Pois é, eu só trabalho com molhados. Você tá tão fresquinha!

TERESINHA
O meu medo é pegar um resfriado. Voltam os capangas de Max, vestindo smokings que não lhes caem bem; o gramofone perde a força e o disco ralenta até parar

MAX
Ah, agora sim vocês estão apresentáveis. Teresinha, estes são os meus funcionários. Funcionários, esta aqui é a minha noiva, Teresinha, que dentro de instantes será a senhora Max Overseas. E agora, a grande surpresa! Baby, não parece mas os meus amigos, nas horas vagas, são compositores. . .

JOHNNY
Ah não, Max, por favor. ..

GENERAL
A música não ficou muito boa...

BARRACAS
Ficou uma bosta.

MAX
Claro que ninguém aqui é Ari Barroso. Mas eles prepararam uma cançãozinha pra você, em sua homenagem.

TERESINHA
Ah, que gracinha! Quero ouvir.

MAX Vocês escutaram? É a vontade da noiva! Orquestra ataca introdução em ritmo de tango Os capangas cantam "Tango do Covil"


Ai, quem me dera ser cantor
Quem dera ser tenor
Quem sabe ter a voz
Igual aos rouxinóis
Igual ao trovador
Que canta os arrebóis
Pra te dizer gentil
Bem-vinda
Deixa eu cantar tua beleza
Tu és a mais linda princesa
Aqui deste covil

Ai, quem me dera ser doutor
Formado em Salvador
Ter um diploma, anel
E voz de bacharel
Fazer em teu louvor
Discursos a granel
Pra te dizer gentil
Bem-vinda
Tu és a dama mais formosa
E, ouso dizer, a mais gostosa
Aqui deste covil

Ai, quem me dera ser garçom
Ter um sapato bom
Quem sabe até talvez
Ser um garçom francês
Vaiar de champinhom
Falar de molho inglês
Pra te dizer gentil
Bem-vinda
És tão graciosa e tão miúda
Tu és a dama mais tesuda
Aqui deste covil

Ai, quem me dera ser Gardel
Tenor e bacharel
Francês e rouxinol
Doutor em champinhom
Garçom em Salvador
E locutor de futebol
Pra te dizer febril
Bem-vinda
Tua beleza é quase um crime
Tu és a bunda mais sublime
Aqui deste covil








continua pág 38...


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NOTA 

O texto da "Ópera do Malandro" ê baseado na "Ópera dos Mendigos" (1728), de John Gay, e na "Ópera dos Três Vinténs" (1928), de Bertolt Brecht e Kurt Weill. O trabalho partiu de uma análise dessas duas peças conduzida por Luís Antônio Martinez Corrêa e que contou com a colaboração de Maurício Sette, Marieta Severo, Rita Murtinho, Carlos Gregório e, posteriormente, Maurício Arraes. A  equipe também cooperou na realização do texto final através de leituras, críticas e sugestões. Nessa etapa do trabalho, muito nos valeram os filmes "Ópera dos Três Vinténs", de Pabst, e "Getúlio Vargas", de Ana Carolina, os estudos de Bernard Dort ("O Teatro e Sua Realidade"), as memórias de Madame Satã, bem como a amizade e o testemunho de Grande Otelo. Contamos ainda com a orientação do prof. Manoel Maurício de Albuquerque para uma melhor percepção dos diferentes momentos históricos em que se passam as três "óperas". E o prof. Luiz Werneck Vianna contribuiu com observações muito esclarecedoras. Esta peça é dedicada à lembrança de Paulo Pontes. 

Chico Buarque Rio, junho de 1978


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Leia também:

Chico Buarque - Ópera do Malandro (prefácio e nota)
Chico Buarque - Ópera do Malandro (introdução)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 1 (1a)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 1 (1b)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 2 (2a)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Primeiro Ato - Cena 2 (2b)

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Chico Buarque - foi musicando o poema "Morte e Vida Severina", de João Cabral de Mello Neto, encenado pelo grupo universitário TUCA, que Chico Buarque se revelou como compositor, dois anos antes do sucesso de "A Banda", "Roda Viva", sua primeira peça, teve uma carreira tumultuada: estreou no Rio, em 1967, com um sucesso que desgostou a muita gente; em São Paulo, os atores foram espancados durante o espetáculo e, em Porto Alegre, sequestraram a atriz Elizabeth Gasper. A peça acabou proibida pela censura.
Chico só voltou ao teatro em 1972. OU melhor: tentou voltar.. Depois de muito tempo e dinheiro gastos com ensaios e produção, "Calabar - O Elogio da Traição", teve sua encenação vetada. E a censura foi além: proibiu a imprensa de fazer qualquer referência à obra, aos autores e até ao próprio Calabar. Mas, transcrita em livro, a peça esgotou-se rapidamente.
No ano seguinte, outro sucesso de venda: "Fazendo Modelo - Uma Novela Pecuária". E, em 1975, apesar de inúmeros cortes, "Gota d'Água" chegou aos palcos de Rio e São Paulo, onde ficou por dois anos. Agora, aí está a "Ópera do Malandro", que estreou no Rio  a 26 de julho de 1978, e que é mais uma prova do gênio de Chico Buarque de Hollanda.


Cauby, um novo Cauby igual, mais romântico

 Cauby Peixoto



MPB ESPECIAL (ENSAIO) - 1972


ah... se eu fosse você
eu voltava pra mim

tudo lembra você









terça-feira, 26 de abril de 2022

Elza Soares

 Meu Guri





O Brasil Nação - V2: § 90 – Por Fim (1) - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim



O Brasil Nação volume 2



SEGUNDA PARTE 
TRADIÇÕES



À glória de
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução


POR FIM...


(1)


Semente de energia, terra sã e moça, condições propícias deram para um Brasil que pôde ser a primeira nacionalidade americana a manifestar-se. Mas, Insurreição Pernambucana, conquista dos sertões... afirmações peremptórias, como patenteavam vigor e perspectiva de grandeza na nova pátria, denunciaram- na à metrópole parasita, e que, votada ao parasitismo, tinha de anular esse vigor, para que pudesse exaurir a grandeza que se anunciava. Foi uma carreira bem contrastante: pronunciava-se a pátria brasileira, definia-se o seu valor, e Portugal degenerava, decaía, degradava-se, até abater-se aos pés do tradicional inimigo, para deixar o dilatado domínio ultramarino, símbolo das suas glórias, nas mãos do primeiro pirata que se atirou a despojá-lo... Só escapou, do que tinha preço, este Brasil, que, para continuar Brasil, resistira ao mesmo poderosíssimo pirata, e lutara, e o batera, já contra o desígnio e as ordens explícitas de Portugal, que aceitara a derrota, transigira com ela, e vendera do Brasil tanto quanto lho quis comprar o holandês. Destino sinistro: a mesma vitória do Brasil prendia-o a Portugal, que já era impudência de degradação. E, agora, a vida da pátria, que por si se libertara, será o debater-se contra um domínio que se convertera em garras a serviço das mais implacáveis ventosas. O Brasil se tornou a única razão de ser uma metrópole que, degradada, se conduzia pela política de dirigentes abjetamente incapazes, com ânimo somente para a função de oprimir e espoliar. E, com isto, Portugal ligou inteiramente a sua vida corrompida à desta pátria, colou-se a ela: fez da existência da oprimida colônia o programa exclusivo da sua política, incluindo finalmente, a mesma política nos nossos destinos. Como contundia para dominar, e feria para fazer sangrar, essa política, colada ao Brasil, contaminava-o em todas as formas de direção social, até que a nova pátria teve de viver sob uma crosta de infecção. Porque fossem totalmente sinistros os nossos destinos, houve a conjuntura em que a totalidade política metropolitana para aqui se transportou, com o Estado português que as naus fujonas de D. João VI nos trouxeram.


Aqui plantada a soberania explícita do Estado português; possuído de uma vez pela política bragantina, para o Brasil não houve remissão possível. Seis de março de dezessete teve de ser um fracasso, para permitir o embuste da Independência, novas forças de domínio que farão fracassar 1823, e anularão inteiramente 7 de abril de 1831, tanto que em 1840, e na ordem que se lhe segue, encontramos a pura essência da política metropolitana – Vilela Barbosa, José Clemente, Calmon, Ribeiro de Rezende, Vieira Carvalho... de quem nem vale a pena indagar onde nasceram, tão idênticos são no essencial bragantismo. Então, foi possível normalizar o regime, por si tão dissociado da nação, tão avesso às suas legítimas aspirações, que a sua realidade nunca se pôde encontrar com a tradição já patente nos fastos da nacionalidade. E o Império houve que ser mentira de opinião, facciosismo no Sul, conservação da ignorância pública, exploração do cativeiro dos negros, perpetuação do mandonismo baço dos dias coloniais...


E como a nação continuava possuída por esse arcaísmo tórpido e mau, os patriotas brasileiros tiveram de ser arcaicos de ideal, pregando, nos fins do século XIX, como extrema revolução, a serôdia democracia de 1830, completando-a com a eliminação do cativeiro legal, instituição já condenada pelos republicanos de dezessete. Significação total: o Brasil – domínio e exploração dos dirigentes de sempre, expressão de um regime em que persistia a submissão anterior, em favor da mesma classe política, sem correspondência com a índole das populações, infensa a todas as suas legítimas reivindicações, sem nenhuma justificativa para governar, a não ser o privilégio de predomínio que nela se mantinha.


Nação sem voz nos próprios destinos, condenada a ser o usufruto da incapacidade desonesta, depois de setenta anos de nominal soberania, este Brasil teve de repetir a malograda tentativa de 1831, pois que persistia aquela condição em que o ânimo patriótico tinha de incluir afirmações nacionalistas nas suas reivindicações democráticas, como brasileiro, republicano, nacionalista, jacobino etc., em 1889-96, assim como brasileiro, constitucional, nacionalista, liberal etc., em 1833-31. Fez-se o 15 de Novembro: novo malogro, mais grave que o de 1831-32, pois que, afastando o artifício do ajustamento monárquico, deixou a nu a ignomínia da classe dirigente, e deu em descrédito dos ideais democráticos. Com vistas às aspirações de justiça da nação brasileira, 1822, 31, 89... são datas vazias, substituição de títulos, momentos de ilusão, e em que, de fato, mais se agravou o mal, visto como, em cada um dos respectivos movimentos, legitimaram-se os dirigentes, sempre os mesmos, para a perpetuação do seu domínio. Desta sorte, resta-nos uma pátria a conquistar ainda, e a liberdade política a assegurar, e criar as próprias possibilidades de progresso social.


continua pág 315...

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"Manoel Bomfim morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."

Cecília Costa Junqueira
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Bomfim, Manoel, 1868-1932  
                O Brasil nação: vol. II / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 392 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 31).


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O Brasil Nação - v2: § 67 – A propaganda republicana (2) - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 68 – A revolução para a República - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 69 – Mais Dejanira... e nova túnica - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 70 – A farda na República - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 71 – O positivismo na República - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 72 – A reação contra a República - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 73 – A Federação brasileira - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 73-a – Significação da tradição de classe  - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 74 – A descendência de Coimbra - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 75 – Ordem... - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 81 – A Queda... - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 82 – As formas, na política republicana - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 83 – O presidencialismo... do presidente - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 84 – Incapacidade: política e mental - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 85 – A finança dos republicanos “práticos” - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 86 – ... até no materialismo - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 87 – Da materialidade à corrupção integral - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 88 – Sob a ignomínia política, a miséria do povo - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 89 – O indispensável preparo - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 90 – Por Fim (1) - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 90 – Por Fim (2) - Manoel Bomfim

nunca é demais pensar...

Mini-conto, miniconto, mini conto... nem te conto

 EMEF Antônio Giúdice



ah, essa biblioteca... essas paredes... essa gurizada vilêra... saudades - assim mesmo, nos plurais dos esses - de todas e todos, vocês são o começo, o meio e o fim de uma história que não tem fim



cadeados esquecidos e pudins desaparecidos

vitor e hemilly



Boa tarde, Boleros Nunca Mais

Boleros Nunca Mais


Dança de Salão...



Boleros nunca mais
Nunca mais
Há solidão em mim
Vou dançar sozinha
Boleros nunca mais!





Andréia Garcia e Jair Alcides





Roberta Miranda
Bolero Nunca Mais


Outra vez
A saudade trouxe você
Minha vida
Vida minha
Vou guardar nosso amor aqui dentro de mim

É verão
Peço a Deus
Por você, amor
Que não se vá
Tudo em vão
Vou viver
Sem o seu olhar
Brilhando pra mim

Boleros nunca mais
Nunca mais
Há solidão em mim
Vou dançar sozinha
Boleros nunca mais!

O que farei?
Sem seus olhos a olhar nos olhos meus
Os seus braços que me aqueceram
Não estão aqui



OS SERTÕES, Euclides da Cunha - O Homem: IV Como se faz um monstro ...

OS SERTÕES 


Euclides da Cunha

Volume 1



O HOMEM




Como se faz um monstro ...

E surgia na Bahia o anacoreta sombrio, cabelos crescidos até aos ombros, barba inculta e longa; face escaveirada; olhar fulgurante; monstruoso, dentro de um hábito azul de brim americano; abordoado ao clássico bastão, em que se apoia o passo tardo dos peregrinos...
É desconhecida a sua existência durante tão largo período. Um velho caboclo, preso em Canudos nos últimos dias da campanha, disse-me algo a respeito, mas vagamente, sem precisar datas, sem pormenores característicos. Conhecera-o nos sertões de Pernambuco, um ou dous anos depois da partida do Crato. Das palavras desta testemunha, concluí que Antônio Maciel, ainda moço, já impressionava vivamente a imaginação dos sertanejos. Aparecia por aqueles lugares em destino fixo, errante. Nada referia sobre o passado. Praticava em frases breves e raros monossílabos. Andava sem rumo certo, de um pouso para outro, indiferente à vida e aos perigos, alimentando-se mal e ocasionalmente, dormindo ao relento à beira dos caminhos, numa penitência demorada e rude...
Tornou-se logo alguma cousa de fantástico ou mal-assombrado para aquelas gentes simples. Ao abeirar-se das rancharias dos tropeiros aquele velho singular, de pouco mais de trinta anos, fazia que cessassem os improvisos e as violas festivas.
Era natural. Ele surdia — esquálido e macerado — dentro do hábito escorrido, sem relevos, mudo, como uma sombra, das chapadas povoadas de duendes...
Passava, buscando outros lugares, deixando absortos os matutos supersticiosos.
Dominava-os por fim, sem o querer.
No seio de uma sociedade primitiva que pelas qualidades étnicas e influxo das santas missões malévolas compreendia melhor a vida pelo incompreendido dos milagres, o seu viver misterioso rodeou-o logo de não vulgar prestígio, agravando-lhe, talvez, o temperamento delirante. A pouco e pouco todo o domínio que, sem cálculo, derramava em torno, parece haver refluído sobre si mesmo. Todas as conjecturas ou lendas que para logo o circundaram fizeram o ambiente propício ao germinar do próprio desvario. A sua insânia estava, ali, exteriorizada. Espelhavam-lha a admiração intensa e o respeito absoluto que o tornaram em pouco tempo árbitro incondicional de todas as divergências ou brigas, conselheiro predileto em todas as decisões. A multidão poupara-lhe o indagar torturante acerca do próprio estado emotivo, o esforço dessas interrogativas angustiosas e dessa intuspecção delirante, entre os quais evolve a loucura nos cérebros abalados. Remodelava-o à sua imagem. Criava-o. Ampliava-lhe, desmesuradamente, a vida, lançando-lhe dentro os erros de dous mil anos.
Precisava de alguém que lhe traduzisse a idealização indefinida, e a guiasse nas trilhas misteriosas para os céus...
O evangelizador surgiu, monstruoso, mas autômato.
Aquele dominador foi um títere. Agiu passivo, como uma sombra. Mas esta condensava o obscurantismo de três raças.
E cresceu tanto que se projetou na História...


Peregrinações e martírios

Dos sertões de Pernambuco passou aos de Sergipe, aparecendo na cidade de Itabaiana em 1874.
Ali chegou, como em toda a parte, desconhecido e suspeito, impressionando pelos trajes esquisitos
— camisolão azul, sem cintura; chapéu de abas largas, derrubadas; e sandálias. Às costas um surrão de couro em que trazia papel, pena e tinta, a Missão Abreviada e as Horas Marianas.
Vivia de esmolas, das quais recusava qualquer excesso, pedindo apenas o sustento de cada dia. Procurava aos poucos solitários. Não aceitava leito algum, além de uma tábua nua e, na falta desta, o chão duro.
Assim pervagou largo tempo, até aparecer nos sertões, ao norte da Bahia. Ia-lhe crescendo o prestígio. Já não seguia só. Encalçavam-no na rota desnorteada os primeiros fiéis. Não os chamara. Chegaram-lhe espontâneos, felizes por atravessarem com ele os mesmos dias de provações e misérias. Eram, no geral, gente ínfima e suspeita, avessa ao trabalho, farândola de vencidos da vida, vezada à mândria e à rapina.
Um dos adeptos carregava o templo único, então, da religião minúscula e nascente: um oratório tosco, de cedro, encerrando a imagem do Cristo.
Nas paradas pelos caminhos prendiam-no a um galho de árvore; e, genuflexos, rezavam. Entravam com ele, triunfalmente erguido, pelos vilarejos, e povoados, num coro de ladainhas.
Assim se apresentou o Conselheiro, em 1876, na vila do Itapicuru de Cima. Já tinha grande renome.
Di-lo documento expressivo publicado aquele ano, na capital do Império.
“Apareceu no sertão do Norte um indivíduo, que se diz chamar Antônio Conselheiro, e que exerce grande influência no espírito das classes populares servindo-se de seu exterior misterioso e costumes ascéticos, com que impõe à ignorância e à simplicidade. Deixou crescer a barba e cabelos, veste uma túnica de algodão e alimenta-se tenuemente, sendo quase uma múmia. Acompanhado de duas professas, vive a rezar terços e ladainhas e a pregar e a dar conselhos às multidões, que reúne, onde lhe permitem os párocos; e, movendo sentimentos religiosos, vai arrebanhando o povo e guiando-o a seu gosto. Revela ser homem inteligente, mas sem cultura.”
Estes dizeres, rigorosamente verídicos, de um anuário impresso centenares de léguas de distância, delatam bem a fama que ele já granjeara.


Lendas

Entretanto a vila de Itapicuru esteve para ser o fecho da sua carreira extraordinária. Foi, ali, naquele mesmo ano, entre o espanto dos fiéis, inopinadamente preso. Determinara a prisão uma falsidade, que o seu modo de vida excepcional e as antigas desordens domésticas de algum modo justificavam: diziam-no assassino da esposa e da própria mãe.
Era uma lenda arrepiadora.
Contavam que a última, desadorando a nora, imaginara perdê-la. Revelara, por isto, ao filho, que era traído; e como este, surpreso, lhe exigisse provas do delito, propôs-se apresentá-las sem tardança. Aconselhou-o a que fantasiasse qualquer viagem, permanecendo, porém, nos arredores, porque veria, à noite, invadir-lhe o lar o sedutor que o desonrara. Aceito o alvitre, o infeliz, cavalgando e afastando-se cerca de meia légua, torceu depois de rédeas, tornando, furtivamente, por desfrequentados desvios, para uma espera adrede escolhida, de onde pudesse observar bem e agir de pronto.
Ali quedou longas horas, até lobrigar, de fato, noite velha, um vulto aproximando-se de sua vivenda. Viu-o achegar-se cautelosamente e galgar uma das janelas. E não lhe deu tempo para entrar. Abateu-o com um tiro.
Penetrou, em seguida, de um salto, no lar e fulminou com outra descarga a esposa infiel, adormecida.
Voltou, depois, para reconhecer o homem que matara... E viu com horror que era sua própria mãe, que se disfarçara daquele modo para a consecução do plano diabólico.
Fugira, então, na mesma hora, apavorado, doudo, abandonando tudo, ao acaso, pelos sertões em fora...
A imaginação popular, como se vê, começava a romancear-lhe a vida, com um traço vigoroso de originalidade trágica.


O asceta

Como quer que fosse, porém, o certo é que em 1876 a repressão legal o atingiu quando já se ultimara a evolução do seu espírito, imerso de todo no sonho de onde não mais despertaria. O asceta despontava, inteiriço, da rudeza disciplinar de quinze anos de penitência. Requintara nessa aprendizagem de martírios, que tanto preconizam os velhos luminares da Igreja. Vinha do tirocínio brutal da fome, da sede, das fadigas, das angústias recalcadas e das misérias fundas. Não tinha dores desconhecidas. A epiderme seca rugava-se-lhe como uma couraça amolgada e rota sobre a carne morta. Anestesiara-a com a própria dor; macerara-a e sarjara-a de cilícios mais duros que os buréis de esparto; trouxera-a, de rojo, pelas pedras dos caminhos; esturrara-a nos rescaldos das secas; inteiriçara-a nos relentos frios; adormecera-a, em transitórios repousos, nos leitos dilacerantes das caatingas...
Abeirara muitas vezes a morte nos jejuns prolongados, com requinte de ascetismo que surpreenderia Tertuliano, esse sombrio propagandista da eliminação lenta da matéria, “descarregando-se do seu sangue, fardo pesado e importuno da alma impaciente por fugir...”.
Para quem estava neste tirocínio de amarguras, aquela ordem de prisão era incidente mínimo. Recebeu-a indiferente. Proibiu aos fiéis que o defendessem. Entregou-se. Levaram-no à capital da Bahia. Ali, a sua fisionomia estranha: face morta, rígida como uma máscara, sem olhar e sem risos; pálpebras descidas dentro de órbitas profundas; e o seu entrajar singularíssimo; e o seu aspecto repugnante, de desenterrado, dentro do camisolão comprido, feito uma mortalha preta; e os longos cabelos corredios e poentes caindo pelos ombros, emaranhando-se nos pelos duros da barba descuidada, que descia até a cintura — aferroaram a curiosidade geral.
Passou pelas ruas entre ovações de esconjuros e “pelos-sinais” dos crentes assustados e das beatas retransidas de sustos.
Interrogaram-no os juízes estupefatos.
Acusavam-no de velhos crimes, cometidos no torrão nativo. Ouviu o interrogatório e as acusações, e não murmurou sequer, revestido de impassibilidade marmórea.
A escolta que o trouxera, soube-se depois, espancara-o covardemente nas estradas. Não formulou a mais leve queixa.
Quedou na tranquila indiferença superior de um estoico.
Apenas — e este pormenor curioso ouvimo-lo a pessoa insuspeita — no dia do embarque para o Ceará pediu às autoridades que o livrassem da curiosidade pública, a única coisa que o vexava.
Chegando à terra natal, reconhecida a improcedência da denúncia, é posto em liberdade. E no mesmo ano reaparece na Bahia entre os discípulos, que o aguardavam sempre.
Esta volta — coincidindo, segundo afirmam, com o dia que prefixara, no momento de ser preso — tomou aspectos de milagre.
Tresdobrou a sua influência.
Vagueia então algum tempo, pelos sertões de Curaçá, estacionando (1877) de preferência em Xorroxó, lugarejo de poucas centenas de habitantes, cuja feira movimentada congrega a maioria dos povoadores daquele trecho do S. Francisco. Uma capela elegante indica-lhe, ainda, hoje, a estadia. E, mais venerável talvez, pequena árvore, à entrada da vila, que foi muito tempo objeto de uma fitolatria extraordinária. À sua sombra descansara o peregrino. Era um arbusto sagrado. À sua sombra curvavam-se os crédulos doentes; as suas folhas eram panaceia infalível.
O povo começava a grande série de milagres de que não cogitava talvez o infeliz...
De 1877 a 1887 erra por aqueles sertões, em todos os sentidos, chegando mesmo até ao litoral, em Vila do Conde (1887).
Em toda esta área não há, talvez, uma cidade ou povoado onde não tenha aparecido. Alagoinhas, Inhambupe, Bom Conselho, Jeremoabo, Cumbe, Mocambo, Maçacará, Pompal, Monte Santo, Tucano e outros, viram-no chegar, acompanhado da farândola de fiéis. Em quase todas deixava um traço de passagem: aqui um cemitério arruinado, de muros reconstruídos; além uma igreja renovada; adiante uma capela que se erguia, elegante sempre.
A sua entrada nos povoados, seguido pela multidão contrita, em silêncio, alevantando imagens, cruzes e bandeiras do Divino, era solene e impressionadora. Paralisavam-se as ocupações normais. Ermavam-se as oficinas e as culturas. A população convergia para a vila onde, em compensação, avultava o movimento das feiras; e durante alguns dias, eclipsando as autoridades locais, o penitente errante e humilde monopolizava o mando, fazia-se autoridade única.
Erguiam-se na praça, revestidas de folhagens, as latadas, onde à tarde entoavam, os devotos, terços e ladainhas; e quando era grande a concorrência, improvisava-se um palanque ao lado do barracão da feira, no centro do largo, para que a palavra do profeta pudesse irradiar para todos os pontos e edificar todos os crentes.


As prédicas

Ele ali subia e pregava. Era assombroso, afirmam testemunhas existentes. Uma oratória bárbara e arrepiadora, feita de excertos truncados das Horas Marianas, desconexa, abstrusa, agravada, às vezes, pela ousadia extrema das citações latinas; transcorrendo em frases sacudidas; misto inextricável e confuso de conselhos dogmáticos, preceitos vulgares da moral cristã e de profecias esdrúxulas...
Era truanesco e era pavoroso.
Imagine-se um bufão arrebatado numa visão do Apocalipse...
Parco de gestos, falava largo tempo, olhos em terra, sem encarar a multidão abatida sob a algaravia, que derivava demoradamente, ao arrepio do bom senso, em melopeia fatigante.
Tinha, entretanto, ao que parece, a preocupação do efeito produzido por uma ou outra frase mais incisiva. Enunciava-a e emudecia; alevantava a cabeça, descerrava de golpe as pálpebras; viam-se-lhe então os olhos extremamente negros e vivos, e o olhar — uma cintilação ofuscante... Ninguém ousava contemplá-lo. A multidão sucumbida abaixava, por sua vez, as vistas, fascinada, com o estranho hipnotismo daquela insânia formidável.
E o grande desventurado realizava, nesta ocasião, o seu único milagre: conseguia não se tornar ridículo...
Nestas prédicas, em que fazia vitoriosa concorrência aos capuchinhos vagabundos das missões, estadeava o sistema religioso incongruente e vago. Ora, quem as ouviu não se forra a aproximações históricas sugestivas. Relendo as páginas memoráveis1 em que Renan faz ressurgir, pelo galvanismo do seu belo estilo, os adoudados chefes de seita dos primeiros séculos, nota-se a revivescência integral de suas aberrações extintas. Não há desejar mais completa reprodução do mesmo sistema, das mesmas imagens, das mesmas fórmulas hiperbólicas, das mesmas palavras quase. É um exemplo belíssimo da identidade dos estados evolutivos entre os povos. O retrógrado do sertão reproduz o facies dos místicos do passado. Considerando-o, sente-se o efeito maravilhoso de uma perspectiva através dos séculos...
Está fora do nosso tempo. Está de todo entre esses retardatários que Fouillée compara, em imagem feliz, à des coureurs sur le champ de la civilisation, de plus en plus en retard.


Preceitos de montanista

É um dissidente do molde exato de Themison. Insurge-se contra a Igreja romana, e vibra-lhe objurgatórias, estadeando o mesmo argumento que aquele: ela perdeu a sua glória e obedece a Satanás. Esboça uma moral que é a tradução justalinear da de Montano: a castidade exagerada ao máximo horror pela mulher, contrastando com a licença absoluta para o amor livre, atingindo quase à extinção do casamento.
O frígio pregava-a, talvez como o cearense, pelos ressaibos remanescentes das desditas conjugais. Ambos proíbem severamente que as moças se ataviem; bramam contra as vestes realçadoras; insistem do mesmo modo, especialmente, sobre o luxo dos toucados; e — o que é singularíssimo — cominam, ambos, o mesmo castigo a este pecado: o demônio dos cabelos, punindo as vaidosas com dilaceradores pentes de espinho.
A beleza era-lhes a face tentadora de Satã. O Conselheiro extremou-se mesmo no mostrar por ela invencível horror. Nunca mais olhou para uma mulher. Falava de costas, mesmo às beatas velhas, feitas para amansarem sátiros.


Profecias

Ora, esta identidade avulta, mais frisante, quando se comparam com as do passado as concepções absurdas do esmaniado apóstolo sertanejo. Como os montanistas, ele surgia no epílogo na Terra... O mesmo milenarismo extravagante, o mesmo pavor do anticristo despontando na derrocada universal da vida. O fim do mundo próximo...
Que os fiéis abandonassem todos os haveres, tudo quanto os maculasse com um leve traço da vaidade. Todas as fortunas estavam a pique da catástrofe iminente e fora temeridade inútil conservá-las.
Que abdicassem as venturas mais fugazes e fizessem da vida um purgatório duro; e não a manchassem nunca com o sacrilégio de um sorriso. O Juízo Final aproximava-se, inflexível.
Prenunciavam-se anos sucessivos de desgraças:
“...Em 1896 hade rebanhos mil correr da praia para o certão; então o certão virará praia e a praia virará certão. Em 1897 haverá muito pasto e pouco rasto e um só pastor e um só rebanho. Em 1898 haverá muitos chapéos e poucas cabeças. Em 1899 ficarão as aguas em sangue e o planeta hade apparecer no nascente com o raio do sol que o ramo se confrontará na terra e a terra em algum lugar se confrontará no céu... Hade chover uma grande chuva de estrellas e ahi será o fim do mundo. Em 1900 se apagarão as luzes. Deus disse no Evangelho: eu tenho um rebanho que anda fóra deste aprisco e é preciso que se reunam porque há um só pastor e um só rebanho!”
Como os antigos, o predestinado atingia a terra pela vontade divina. Fora o próprio Cristo que pressagiara a sua vinda quando
“na hora nona, descançando no monte das Oliveiras um dos seus apóstolos perguntou: Senhor! para o fim desta edade que signaes vós deixaes? Elle respondeu: muitos signaes na Lua, no Sol e nas Estrellas. Hade apparecer um Anjo mandado por meu pae terno, pregando sermão pelas portas, fazendo povoações nos desertos, fazendo egrejas e capellinhas e dando seus conselhos...”
E no meio desse extravagar adoudado, rompendo dentre o messianismo religioso, o messianismo da raça levando-o à insurreição contra a forma republicana:
“Em verdade vos digo, quando as nações brigam com as nações, o Brazil com o Brazil, a Inglaterra com a Inglaterra, a Prussia com a Prussia, das ondas do mar D. Sebastião sahirá com todo o seu exercito. Desde o principio do mundo que encantou com todo seu exercito e o restituio em guerra. E quando encantou-se afincou a espada na pedra, ella foi até os corpos e elle disse: Adeus mundo! Até mil e tantos a dois mil não chegarás! Neste dia quando sahir com o seu exercito tira a todos no fio da espada deste papel da Republica. O fim desta guerra se acabará na Santa Casa de Roma e o sangue hade ir até a junta grossa...”

Um heresiarca do século II em plena idade moderna

O profetismo tinha, como se vê, na sua boca, o mesmo tom com que despontou na Frígia, avançando para o Ocidente. Anunciava, idêntico, o juízo de Deus, a desgraça dos poderosos, o esmagamento do mundo profano, o reino de mil anos e suas delícias.
Não haverá, com efeito, nisto, um traço superior do judaísmo?
Não há encobri-lo. Ademais este voltar-se à idade de ouro dos apóstolos e sibilistas, revivendo vetustas ilusões, não é uma novidade. É o permanente refluxo do cristianismo para o seu berço judaico. Montano reproduz-se em toda a história, mais ou menos alterado consoante o caráter dos povos, mas delatando, na mesma rebeldia contra a hierarquia eclesiástica, na mesma exploração do sobrenatural, e no mesmo ansiar pelos céus, a feição primitivamente sonhadora da velha religião, antes que a deformassem os sofistas canonizados dos concílios.
A exemplo de seus comparsas do passado, Antônio Conselheiro era um pietista ansiando pelo reino de Deus, prometido, delongado sempre e ao cabo de todo esquecido pela Igreja ortodoxa do século II.
Abeirara-se apenas do catolicismo mal compreendido.


Tentativas de reação legal

Coerente com a missão a que se devotara, ordenava, depois destas homilias, penitências que de ordinário redundavam em benefício das localidades. Reconstruíam-se templos abatidos; renovavam-se cemitérios em abandono; erigiam-se construções novas e elegantes. Os pedreiros e carpinteiros trabalhavam de graça; os abastados forneciam, grátis, os materiais indispensáveis; o povo carregava pedras. Durante dias seguidos, na azáfama piedosa, se agitavam os operários cujos salários se averbavam nos céus.
E terminada a empresa o predestinado abalava... para onde? Ao acaso, tomando a primeira vereda, pelos sertões em fora, pelas chapadas multívias, sem olhar sequer para os que o encalçavam.
Não o contrariava o antagonismo de um adversário perigoso, o padre. A dar-se crédito a testemunho valioso,1 aquele, em geral, estimulava-lhe ou permitia-lhe as práticas pelas quais, sem nada usufruir, promovia todos os atos de onde saem os rendimentos do clero: batizados, desobrigas, festas e novenas.
Os vigários toleravam com boa sombra os despropósitos do Santo endemoninhado que ao menos lhes acrescia a côngrua reduzida. Percebeu-o, em 1882, o arcebispo da Bahia, procurando pôr paradeiro a esta transigência, senão mal disfarçada proteção, por uma circular dirigida a todos os párocos.
“Chegando ao nosso conhecimento, que pelas freguesias do centro deste arcebispado, anda um indivíduo denominado Antônio Conselheiro, pregando ao povo, que se reúne para ouvi-lo, doutrinas supersticiosas e uma moral excessivamente rígida2 com que está perturbando as consciências e enfraquecendo, não pouco, a autoridade dos párocos destes lugares, ordenamos a V. Revma., que não consinta em sua freguesia semelhante abuso, fazendo saber aos Paroquianos que lhes proibimos absolutamente, de se reunirem para ouvir tal pregação, visto como, competindo na igreja católica, somente aos ministros da religião, a missão santa de doutrinar os povos, um secular, quem quer que ele seja, ainda quando muito instruído e virtuoso, não tem autoridade para exercê-la.  
Entretanto sirva isto para excitar cada vez mais o zelo de V. Revma, no exercício do ministério da pregação, a fim de que os seus paroquianos, suficientemente instruídos, não se deixem levar por todo o vento de doutrina” etc.
Foi inútil a intervenção da Igreja.
Antônio Conselheiro continuou sem embaraços a sua marcha de desnorteado apóstolo, pervagando nos sertões. E como se desejasse reviver sempre a lembrança da primeira perseguição sofrida, volve constantemente ao Itapicuru, cuja autoridade policial, por fim, apelou para os poderes constituídos, em ofício onde, depois de historiar ligeiramente os antecedentes do agitador, disse:
“...Fez neste termo seu acampamento e presentemente está no referido arraial construindo uma capela a expensas do povo.
Conquanto esta obra seja de algum melhoramento, aliás dispensável, para o lugar, todavia os excessos e sacrifícios não compensam este bem, e, pelo modo por que estão os ânimos, é mais que justo e fundado o receio de grandes desgraças.
Para que V. Sa. saiba quem é Antônio Conselheiro, basta dizer que é acompanhado por centenas e centenas de pessoas, que ouvem-no e cumprem suas ordens de preferência às do vigário da paróquia.
O fanatismo não tem limites e assim é quem, sem medo de erro, e firmando em fatos, posso afirmar que adoram-no, como se fosse um Deus vivo.
Nos dias de sermões, terços e ladainhas, o ajuntamento sobe a mil pessoas. Na construção desta capela, cuja féria semanal é de quase cem mil réis, décuplo do que devia ser pago, estão empregados cearenses, aos quais Antônio Conselheiro presta a mais cega proteção, tolerando e dissimulando os atentados que cometem, e esse dinheiro sai dos crédulos e ignorantes, que, além de não trabalharem, vendem o pouco que possuem e até furtam para que não haja a menor falta, sem falar nas quantias arrecadadas que têm sido remetidas para outras obras do Xorroxó, termo do Capim Grosso.”
E depois de apontar a última tropelia dos fanáticos:
“Havendo desinteligência entre o grupo de Antônio Conselheiro e o vigário de Inhambupe, está aquele municiado como se tivesse de ferir uma batalha campal, e consta que estão à espera que o vigário vá ao lugar denominado Junco para assassiná-lo. Faz medo aos transeuntes passar por alto, vendo aqueles malvados munidos de cacetes, facas, facões, clavinotes; e ai daquele que for suspeito de ser infenso a Antônio Conselheiro.”
Ao que se figura, este apelo, feito em termos tão alarmantes, não foi correspondido. Nenhuma providência se tomou até meados de 1887, quando a diocese da Bahia interveio de novo, oficiando o arcebispo ao presidente da província, pedindo providências que contivessem o “indivíduo Antônio Vicente Mendes Maciel que pregando doutrinas subversivas, fazia um grande mal à religião e ao Estado, distraindo o povo de suas obrigações e arrastando-o após si, procurando convencer de que era Espírito Santo” etc.
Ante o reclamo, o presidente daquela província dirigiu-se ao ministro do Império, pedindo um lugar para o tresloucado no hospício de alienados do Rio. O ministro respondeu ao presidente contrapondo o notável argumento de não haver, naquele estabelecimento, lugar algum vago; e o presidente oficiou de novo ao prelado, tornando-o ciente da resolução admirável do governo.
Assim se abriu e se fechou o ciclo das providências legais que se fizeram durante o Império.


continua 075...

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Leia também:


OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: I Preliminares
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: I A entrada do sertão
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: I Primeiras impressões
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OS SERTÕES, Euclides da Cunha - O Homem: III ... Religião mestiça
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OS SERTÕES, Euclides da Cunha - O Homem: IV ... Como se faz um monstro ...
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - O Homem: IV   Mais lendas...

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Os Sertões, de Euclides da Cunha

Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).

Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.


segunda-feira, 25 de abril de 2022

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Será um complô? (XV)

Livro II 


Ela não é galante,
não usa ruge algum.

Sainte-Beuve



Capítulo XV

SERÁ UM COMPLÔ?




Ah! como é cruel o intervalo entre um grande projeto e sua execução! 
Quantos vãos terrores! Quantas irresoluções! Trata-se da vida. – Trata-se
de muito mais: da honra!

SCHILLER


ISSO ESTÁ FICANDO SÉRIO, pensou Julien... e um pouco claro demais, acrescentou, depois de ter pensado. Ora, vejam! Essa bela senhorita pode falar comigo na biblioteca com uma liberdade que, graças a Deus, é completa; o marquês, com seu receio de que eu peça demissão, jamais vem aqui. Ele e o conde Norbert, as únicas pessoas que entram aqui, estão ausentes quase o dia inteiro; pode-se facilmente observar o momento em que retornam à mansão. E a sublime Mathilde, por cuja mão um príncipe soberano não seria bastante nobre, quer que eu cometa uma imprudência abominável!
É claro, querem destruir-me ou zombar de mim, pelo menos. Primeiro quiseram destruir-me com minhas cartas; estas foram prudentes. Eles precisam então de uma ação mais clara que o dia. Esses elegantes senhores julgam-me muito idiota ou muito presumido. Essa é boa! Com o maior luar do mundo, subir por uma escada a um primeiro andar a oito metros de altura! Poderão me ver mesmo das mansões vizinhas. Como eu seria aplaudido em minha escada! Julien voltou a seu quarto e pôs-se a arrumar as malas, assobiando. Estava decidido a partir e a nem mesmo responder.
Mas essa sensata resolução não lhe dava paz ao coração. E se porventura, pensou de repente, tendo fechado a mala, Mathilde age de boa-fé! Então, aos olhos dela, desempenho o papel de um covarde perfeito. Não tendo nobreza de origem, preciso de grandes qualidades, dinheiro à vista, sem suposições complacentes, bem provadas por ações significativas.
Ficou um quarto de hora a refletir. De que serve negar?, disse ele enfim; serei um covarde aos olhos dela. Perco não apenas a pessoa mais brilhante da alta sociedade, como diziam todos no baile do duque de Retz, mas também o divino prazer de ver sacrificado, por mim, o marquês de Croisenois, filho de um duque, e que será duque ele próprio. Um jovem encantador que tem todas as qualidades que me faltam: presença de espírito, nascimento, fortuna...
Esse remorso irá perseguir-me a vida inteira, não por ela, pois há muitas amantes!
...Mas a honra é uma só!
disse o velho Dom Diego, e aqui, de maneira clara e nítida, recuo diante do primeiro perigo que me é apresentado; pois aquele duelo com o sr. de Beauvoisis foi como uma brincadeira. Agora é muito diferente. Posso ser alvejado por um criado, mas esse é o menor perigo; o perigo é ser desonrado.
Isso está ficando sério, meu rapaz, acrescentou com uma graça e um sotaque gascões. A questão é a honur. [1] Jamais um pobre-diabo, lançado pela sorte numa posição tão baixa quanto a minha, terá de novo essa oportunidade; terei outras, mas subalternas...
Ele refletiu longamente, andando a passos precipitados e, de tempo em tempo, estacando. Haviam posto em seu quarto um magnífico busto em mármore do cardeal Richelieu, que, contra sua vontade, atraía seu olhar. Esse busto parecia observá-lo de um modo severo e como que reprovando-lhe a falta dessa audácia que deve ser tão natural ao caráter francês. No teu tempo, grande homem, eu teria hesitado?
Na pior das hipóteses, pensou finalmente Julien, suponhamos que tudo seja uma armadilha: seria muito feio e comprometedor para uma moça. Todos sabem que não sou homem de calar-me. Teriam então que me matar. Isso era comum em 1574, no tempo de Boniface de La Mole, mas o de hoje não ousaria, essa gente não é mais a mesma. A srta. de La Mole é tão invejada! Quatrocentos salões estariam falando amanhã de sua vergonha, e com que prazer!
Os criados mexericam, entre si, das preferências marcadas de que sou o objeto, sei disso, os ouvi falar...
Por outro lado, as cartas dela!... Eles podem achar que as tenho comigo. Surpreendido em seu quarto, as retiram de mim. Terei de enfrentar dois, três, quatro homens, sei lá. Mas onde conseguirão esses homens? Onde encontrar subalternos discretos em Paris? A justiça mete-lhes medo... Quem sabe os próprios Caylus, Croisenois, de Luz! Esse momento e a cara de bobo que farei no meio deles é o que esperavam. Cuidado com a sorte de Abelardo, sr. secretário!
Está bem, senhores! mas levarão minhas marcas. Hei de golpeá-los no rosto, como os soldados de César em Farsália... Quanto às cartas, posso guardá-las num lugar seguro.
Julien fez cópias das duas últimas, escondeu-as num volume do precioso Voltaire da biblioteca, e levou ele próprio os originais ao correio.
Ao voltar, disse a si mesmo com surpresa e terror: Em que loucura vou me lançar! Ele passara um quarto de hora sem encarar sua ação da próxima noite.
Se recusar, eu mesmo me desprezarei daqui por diante! A vida inteira essa ação será um motivo de dúvida e, para mim, tal dúvida é a pior das desgraças. Não a senti em relação ao amante de Amanda? Creio que me perdoaria mais facilmente um crime bem claro; uma vez confessado, não pensaria mais nele.
Quê! Tenho por rival um homem que possui um dos nomes mais nobres da França, e voluntariamente declarar-me-ia seu inferior! No fundo, há covardia em não ir. Isso decide tudo, exclamou Julien, levantando-se... Aliás, ela é bem bonita.
Se não for uma traição, que loucura ela faz por mim!... Se for uma mistificação, muito bem, senhores! Compete apenas a mim tornar a brincadeira séria, e assim farei.
Mas se me agarram pelos braços no momento de entrar no quarto? Eles podem ter montado algum dispositivo engenhoso!
É como um duelo, pensou, rindo, há contragolpe para tudo, diz meu mestre de esgrima, mas o bom Deus, que quer encerrar o assunto, faz que um dos dois esqueça de desviar um golpe. De resto, eis aqui com que responder-lhes. E tirou do bolso as pistolas; embora a munição fosse fulminante, ele a renovou.
Ainda havia muitas horas a esperar; para fazer alguma coisa, Julien escreveu a Fouqué: “Meu amigo, só abra a carta aqui inclusa em caso de acidente, se ficares sabendo que algo de estranho me aconteceu. Então, apaga os nomes próprios do manuscrito que te envio, tira dele oito cópias que enviarás aos jornais de Marselha, Bordéus, Lyon, Bruxelas etc.; dez dias mais tarde, manda imprimir esse manuscrito, envia o primeiro exemplar ao sr. marquês de La Mole e, quinze dias depois, lança os outros exemplares, de madrugada, nas ruas de Verrières”.
Esse pequeno documento justificativo disposto em forma de conto, que Fouqué só devia abrir em caso de acidente, Julien o fez de modo a comprometer o menos possível a srta. de La Mole, mas ele descrevia com muita exatidão a posição dela.
Estava fechando o pacote quando soou a sineta do jantar, fazendo-lhe o coração bater mais rápido. Sua imaginação, preocupada com o relato que acabara de redigir, expunha-se aos pressentimentos trágicos. Via-se agarrado por criados, manietado, conduzido a um porão com uma mordaça na boca. Ali, um criado o vigiava, e, se a honra da nobre família exigisse que a aventura tivesse um fim trágico, era fácil encerrar tudo com venenos que não deixam vestígios; então, diriam que ele morreu de enfermidade, e o transportariam morto a seu quarto.
Comovido por sua própria história como um autor dramático, Julien sentia realmente medo quando entrou na sala de jantar. Observava todos aqueles criados de libré, estudava-lhes a fisionomia. Quais são os escolhidos para a expedição desta noite?, pensava. Nesta família, as lembranças da corte de Henrique III são tão presentes, tão frequentemente evocadas que, julgando-se ultrajados, seus membros serão mais decididos que outros personagens da mesma condição. Olhou a srta. de La Mole para ler em seus olhos os projetos da família; estava pálida e com uma fisionomia perfeitamente medieval. Nunca seu aspecto lhe pareceu tão nobre, estava realmente bela e imponente. Quase sentiu paixão por ela. Pallida morte futura, pensou (Sua palidez anuncia seus grandes desígnios).
Em vão, depois do jantar, fingiu passear por um longo tempo no jardim, a srta. de La Mole não apareceu. Falar com ela, naquele momento, teria livrado seu coração de um grande peso.
Por que não confessar? Ele tinha medo. Como estava decidido a agir, entregava-se a esse sentimento sem nenhuma vergonha. Contanto que no momento de agir eu tenha a coragem necessária, pensava, que importa o que posso sentir neste momento? Foi examinar a situação e verificar o peso da escada.
É um instrumento, disse consigo, rindo, destinado a servir-me, tanto aqui como em Verrières! Qual a diferença? Na outra ocasião, acrescentou com um suspiro, eu não era obrigado a desconfiar da pessoa pela qual me expunha. Que diferença também no perigo!
Ainda que me tivessem matado nos jardins do sr. de Rênal, não havia nenhuma desonra para mim. Facilmente teriam tornado minha morte inexplicável. Aqui, que histórias abomináveis não inventarão nos salões da mansão de Chaulnes, da mansão de Caylus, na mansão de Retz etc., em toda parte, enfim. Serei um monstro para a posteridade.
Durante dois ou três anos, continuou, rindo e zombando de si mesmo. Mas essa ideia o acabrunhou. E eu, em que poderão justificar-me? Supondo que Fouqué imprima meu panfleto póstumo, será apenas uma infâmia a mais. Quê! Então sou recebido numa casa e, em troca da hospitalidade que recebo, das amabilidades com que me cumulam, imprimo um panfleto sobre o que nela se passa! Ataco a honra das mulheres! Ah! é preferível mil vezes ser um trouxa!
Essa noite foi terrível.



continua página 235...

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[1] Honra, em dialeto gascão (N.T.)

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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.

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Henri-Marie Beylemais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.
Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.
Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.
"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.
Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.
Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.
Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.
Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.
O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.

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Leia também:

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Será um complô? (XV)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Uma Hora da Madrugada (XVI)