terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Las poetisas del amor... Adélia Prado (Brasil)

Las Poetisas del Amor (17)




Amor feinho não tem ilusão,
o que ele tem é esperança:
eu quero um amor feinho.

Ela responde passando
a língua quente em meu pescoço,
fala pau pra me acalmar,
fala pedra, geometria,
se descuida e fica meiga,
aproveito pra me safar.

Ao escolher palavras com que narrar minha angústia,
Eu já respiro melhor.
A uns Deus os quer doentes,
a outros quer escrevendo.






AMOR FEINHO

Eu quero amor feinho.
Amor feinho não olha um pro outro.
Uma vez encontrado é igual fé,
não teologa mais.
Duro de forte o amor feinho é magro, doido por sexo
e filhos tem os quantos haja.
Tudo que não fala, faz.
Planta beijo de três cores ao redor da casa
e saudade roxa e branca,
da comum e da dobrada.
Amor feinho é bom porque não fica velho.
Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é:
eu sou homem você é mulher.
Amor feinho não tem ilusão,
o que ele tem é esperança:
eu quero um amor feinho.



(Do livro Bagagem. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 97)





SEDUÇÃO 

A poesia me pega com sua roda dentada,
me força a escutar imóvel
o seu discurso esdrúxulo.
Me abraça detrás do muro, levanta
a saia pra eu ver, amorosa e doida.
Acontece a má coisa, eu lhe digo,
também sou filho de Deus,
me deixa desesperar.
Ela responde passando
a língua quente em meu pescoço,
fala pau pra me acalmar,
fala pedra, geometria,
se descuida e fica meiga,
aproveito pra me safar.
Eu corro ela corre mais,
eu grito ela grita mais,
sete demônios mais forte.
Me pega a ponta do pé
e vem até na cabeça,
fazendo sulcos profundos.
É de ferro a roda dentada dela.



(Do livro Bagagem. São Paulo: Siciliano, 1993. p. 60)




AMOR VIOLETA

O amor me fere é debaixo do braço,
de um vão entre as costelas.
Atinge meu coração é por esta via inclinada.
Eu ponho o amor no pilão com cinza
e grão de roxo e soco. Macero ele,
faço dele cataplasma
e ponho sobre a ferida.



(Do livro Bagagem. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 83)




AGORA, Ó JOSÉ

É teu destino, ó José,

a esta hora da tarde,
se encostar na parede,
as mãos para trás.
Teu paletó abotoado
de outro frio te guarda,
enfeita com três botões
tua paciência dura.
A mulher que tens, tão histérica,
tão histórica, desanima.
Mas, ó José, o que fazes?
Passeias no quarteirão
o teu passeio maneiro
e olhas assim e pensas,
o modo de olhar tão pálido.
Por improvável não conta
O que tu sentes, José?
O que te salva da vida
é a vida mesma, ó José,
e o que sobre ela está escrito
a rogo de tua fé:
“No meio do caminho tinha uma pedra”
“Tu és pedra e sobre esta pedra”.
A pedra, ó José, a pedra.
Resiste, ó José. Deita, José,
Dorme com tua mulher,
gira a aldraba de ferro pesadíssima.
O reino do céu é semelhante a um homem
como você, José.



(Do livro Bagagem. São Paulo: Siciliano, 1993. p. 34)




PARA O ZÉ

Eu te amo, homem, hoje como
toda vida quis e não sabia,
eu que já amava de extremoso amor
o peixe, a mala velha, o papel de seda e os riscos
de bordado, onde tem
o desenho cômico de um peixe — os
lábios carnudos como os de uma negra.
Divago, quando o que quero é só dizer
te amo. Teço as curvas, as mistas
e as quebradas, industriosa como abelha,
alegrinha como florinha amarela, desejando
as finuras, violoncelo, violino, menestrel
e fazendo o que sei, o ouvido no teu peito
pra escutar o que bate. Eu te amo, homem, amo
o teu coração, o que é, a carne de que é feito,
amo sua matéria, fauna e flora,
seu poder de perecer, as aparas de tuas unhas
perdidas nas casas que habitamos, os fios
de tua barba. Esmero. Pego tua mão, me afasto, viajo
pra ter saudade, me calo, falo em latim pra requintar meu gosto:
“Dize-me, ó amado da minha alma, onde apascentas
o teu gado, onde repousas ao meio-dia, para que eu não
ande vagueando atrás dos rebanhos de teus companheiros”.
Aprendo. Te aprendo, homem. O que a memória ama
fica eterno. Te amo com a memória, imperecível.
Te alinho junto das coisas que falam
uma coisa só: Deus é amor. Você me espicaça como
o desenho do peixe da guarnição de cozinha, você me guarnece,
tira de mim o ar desnudo, me faz bonita
de olhar-me, me dá uma tarefa, me emprega,
me dá um filho, comida, enche minhas mãos.
Eu te amo, homem, exatamente como amo o que
acontece quando escuto oboé. Meu coração vai desdobrando
os panos, se alargando aquecido, dando
a volta ao mundo, estalando os dedos pra pessoa e bicho.
Amo até a barata, quando descubro que assim te amo,
o que não queria dizer amo também, o piolho. Assim,
te amo do modo mais natural, vero-romântico,
homem meu, particular homem universal.
Tudo que não é mulher está em ti, maravilha.
Como grande senhora vou te amar, os alvos linhos,
a luz na cabeceira, o abajur de prata;
como criada ama, vou te amar, o delicioso amor:
com água tépida, toalha seca e sabonete cheiroso,
me abaixo e lavo teus pés, o dorso e a planta deles
eu beijo.



(Do livro Bagagem. São Paulo: Siciliano, 1993. p. 99)



"Ex-Voto", de Adélia Prado. 
Por Elisa Lucinda.





EX-VOTO

Na tarde clara de um domingo quente,
Surpreendi-me
intestinos urgentes, ânsia de vômito, choro
desejo de raspar a cabeça e me por nua
no centro da minha vida e uivar
até me secarem os ossos:
que queres que eu faça Deus?
Quando parei de chorar
O homem que me aguardava disse-me:
'você é muito sensível, por isso tem falta de ar!'
Chorei de novo porque era verdade
e era também mentira,
sendo só meio consolo.
Respira fundo, insistiu, joga água fria no rosto,
vamos dar uma volta, é psicológico.
Que ex-voto levo à Aparecida se não tenho doença e só lhe peço a cura?
Minha amiga devota se tornou budista,
torço para que se desiluda
e volte a rezar comigo as orações católicas.
Eu nunca ia ser budista,
por medo de não sofrer, por medo de ficar zen.
Existe santo alegre ou são os biógrafos
que os põem assim felizes como bobos?
Minas tem coisas terríveis,
a Serra da Piedade me transtorna.
Em meio a tanta rocha
de tão imediata beleza,
edificações geridas pelo inferno,
pelo descriador do mundo.
O menino não consegue mais, 
vai morrer, sem força para sugar 
a corda de carne preta do que seria um seio, 
agora às moscas.
Meu coração é bom 
mas não aceita que o seja.
O homem me presenteia.
Porque tanto recebo 
Quando seria justo mandarem-me à solitária?
Palavras não, eu disse, só aceito chorar!
Por que então limpei os olhos 
quando avistei roseiras 
e mais o que não queria, 
de jeito nenhum queria aquela hora, 
o poema, 
o ex-voto,
não a forma do que é doente, 
mas do que é são em mim
e rejeito e rejeito 
premida pela mesma força 
do que trabalha contra a beleza das rochas?
Me imploram amor Deus e o mundo,
sou pois mais rica que os dois,
só eu posso dizer a pedra: 
és bela até a aflição;
o mesmo que dizer à Ele: 
sois belo, belo, sois belo!
Quase entendo a razão da minha falta de ar.
Ao escolher palavras com que narrar minha angústia, 
Eu já respiro melhor.
A uns Deus os quer doentes, 
a outros quer escrevendo.




Adélia Prado - 24/03/2014






Adélia Luzia Prado de Freitas (Divinópolis, 13 de dezembro de 1935), mais conhecida como Adélia Prado, é uma poetisa, professora, filósofa e contista brasileira ligada ao Modernismo.

Sua obra retrata o cotidiano com perplexidade e encanto, norteados pela fé cristã e permeados pelo aspecto lúdico, uma das características de seu estilo único. Em 1976,enviou o manuscrito de Bagagem para Affonso Romano de Sant'Anna, que assinava uma coluna de crítica literária no Jornal do Brasil. Admirado, acabou por repassar os manuscritos a Carlos Drummond de Andrade, que incentivou a publicação do livro pela Editora Imago em artigo do mesmo periódico.

Professora por formação, ela exerceu o magistério durante 24 anos, até que a carreira de escritora tornou-se a atividade central.




Roda Viva | Adélia Prado | 1994




Lima Barreto - O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte V(a) - O Bibelot

 O triste fim de Policarpo Quaresma 



Lima Barreto




A João Luiz Ferreira 
Engenheiro Civil 

Le grand inconvénient de la vie réelle et ce qui la rend insupportable à l’homme supérieur, c’est que, si l’on y transporte les principes de l’idéal, les qualités deviennent des défauts, si bien que fort souvent l’homme accompli y réussit moins bien que celui qui a pour mobiles l’égoïsme ou la routine vulgaire. 

Renan, Marc-Auréle 





PRIMEIRA PARTE


V - O Bibelot

 
Não era a primeira vez que ela vinha ali. Mais de uma dezena já subira aquela larga escada de pedra, com grupos de mármores de Lisboa de um lado e do outro, a Caridade e Nossa Senhora da Piedade; penetrara por aquele pórtico de colunas dóricas, atravessara o átrio ladrilhado, deixando à esquerda e à direita, Pinel e Esquirol, meditando sobre o angustioso mistério da loucura; subira outra escada encerada cuidadosamente e fora ter com o padrinho lá em cima, triste e absorvido no seu sonho e na sua mania. Seu pai a trazia às vezes, aos domingos, quando vinha cumprir o piedoso dever de amizade, visitando Quaresma. Há quanto tempo estava ele ali? Ela não se lembrava ao certo; uns três ou quatro meses, se tanto.

Só o nome da casa metia medo. O hospício! É assim como uma sepultura em vida, um semienterramento, enterramento do espírito, da razão condutora, de cuja ausência os corpos raramente se ressentem. A saúde não depende dela e há muitos que parecem até adquirir mais força de vida, prolongar a existência, quando ela se evola não se sabe por que orifício do corpo e para onde. Com que terror, uma espécie de pavor de cousa sobrenatural, espanto de inimigo invisível e onipresente, não ouvia a gente pobre referir-se ao estabelecimento da praia das Saudades! Antes uma boa morte, diziam.

No primeiro aspecto, não se compreendia bem esse pasmo, esse espanto, esse terror do povo por aquela casa imensa, severa e grave, meio hospital, meio prisão, com seu alto gradil, suas janelas gradeadas, a se estender por uns centos de metros, em face do mar imenso e verde, lá na entrada da baía, na Praia das Saudades. Entrava-se, viam-se uns homens calmos, pensativos, meditabundos, como monges em recolhimento e prece.

De resto, com aquela entrada silenciosa, clara e respeitável, perdia-se logo a ideia popular da loucura; o escarcéu, os trejeitos, as fúrias, o entrechoque de tolices ditas aqui e ali.

Não havia nada disso; era uma calma, um silêncio, uma ordem perfeitamente naturais. No fim, porém, quando se examinavam bem, na sala de visitas, aquelas faces transtornadas, aqueles ares aparvalhados, alguns idiotas e sem expressão, outros como alheados e mergulhados em um sonho íntimo sem fim, e via-se também a excitação de uns, mais viva em face à atonia de outros, é que se sentia bem o horror da loucura, o angustioso mistério que ela encerra, feito não sei de que inexplicável fuga do espírito daquilo que supõe o real, para se apossar e viver das aparências das cousas ou de outras aparências das mesmas.

Quem uma vez esteve diante deste enigma indecifrável da nossa própria natureza fica amedrontado, sentindo que o germe daquilo está depositado em nós e que por qualquer cousa ele nos invade, nos toma, nos esmaga e nos sepulta numa desesperadora compreensão inversa e absurda de nós mesmos, dos outros e do mundo. Cada louco traz em si o seu mundo e para ele não há mais semelhantes: o que foi antes da loucura é outro muito outro do que ele vem a ser após.

E essa mudança não começa, não se sente quando começa e quase nunca acaba. Com o seu padrinho, como fora? A princípio, aquele requerimento... Mas que era aquilo? Um capricho, uma fantasia, cousa sem importância, uma ideia de velho sem consequência. Depois, aquele ofício? Não tinha importância, uma simples distração, cousa que acontece a cada passo... E enfim? A loucura declarada, a torva e irônica loucura que nos tira a nossa alma e põe uma outra, que nos rebaixa... Enfim, a loucura declarada, a exaltação do eu, a mania de não sair, de se dizer perseguido, de imaginar como inimigos, os amigos, os melhores. Como fora doloroso aquilo! A primeira fase do seu delírio, aquela agitação desordenada, aquele falar sem nexo, sem acordo com que se realizava fora dele e com os atos passados, um falar que não se sabia donde vinha, donde saía, de que ponto do seu ser tomava conhecimento! E o pavor do doce Quaresma? Um pavor de quem viu um cataclismo, que o fazia tremer todo, desde os pés à cabeça, e enchia-o de indiferença para tudo mais que não fosse o seu próprio delírio.

A casa, os livros e os seus interesses de dinheiro andavam à matroca. Para ele, nada disso valia, nada disso tinha existência e importância. Eram sombras, aparências; o real eram os inimigos, os inimigos terríveis cujos nomes o seu delírio não chegava a criar. A velha irmã, atarantada, atordoada, sem direção, sem saber que alvitre tomar. Educada em casa sempre com um homem ao lado, o pai, depois o irmão, ela não sabia lidar com o mundo, com negócios, com as autoridades e pessoas influentes. Ao mesmo tempo, na sua inexperiência e ternura de irmã, oscilava entre a crença de que aquilo fosse verdade e a suspeita de que fosse loucura pura e simples.

Se não fosse seu pai (e Olga amava mais por isso o seu rude pai) que se interessava, chamando a si os interesses da família e evitando a demissão de que estava ameaçado, transformando-a em aposentadoria, que seria dele? Como é fácil na vida tudo ruir! Aquele homem pautado, regrado, honesto, com emprego seguro, tinha uma aparência inabalável; entretanto bastou um grãozinho de sandice...

Estava há uns meses no hospício, o seu padrinho, e a irmã não o podia visitar. Era tal o seu abalo de nervos, era tal a emoção ao vê-lo ali naquela meia-prisão, decaído dele mesmo que um ataque se seguia e não podia ser evitado.

Vinham ela e o pai, às vezes o pai só, algumas vezes Ricardo, e eram só os três a visitá-lo. Aquele domingo estava particularmente lindo, principalmente em Botafogo, nas proximidades do mar e das montanhas altas que se recortavam num céu de seda. O ar era macio e docemente o sol faiscava nas calçadas.

O pai vinha lendo os jornais e ela, pensando, de quando em quando folheando as revistas ilustradas que trazia para alegrar e distrair o padrinho.

Ele estava como pensionista; mas, embora assim, no começo, ela teve um certo pudor em se misturar com os visitantes.

Parecia-lhe que a sua fortuna a punha acima de presenciar misérias; recalcou porém, dentro de si, esse pensamento egoísta, o seu orgulho de classe, e agora entrava naturalmente, pondo em destaque a sua elegância natural. Amava esses sacrifícios, essas abnegações, tinha o sentimento da grandeza deles, e ficou contente consigo mesma.

No bonde vinham outros visitantes e todos não tardaram em saltar no portão do manicômio. Como em todas as portas dos nossos infernos sociais, havia de toda a gente, de várias condições, nascimentos e fortunas. Não é só a morte que nivela; a loucura, o crime e a moléstia passam também a sua rasoura pelas distinções que inventamos.

Os bem-vestidos e os mal-vestidos, os elegantes e os pobres, os feios e os bonitos, os inteligentes e os néscios, entravam com respeito, com concentração, com uma ponta de pavor nos olhos como se penetrassem noutro mundo.

Chegavam aos parentes e os embrulhos se desfaziam: eram guloseimas, fumo, meias, chinelas, às vezes livros e jornais. Dos doentes uns conversavam com os parentes; outros mantinham-se calados, num mutismo feroz e inexplicável; outros indiferentes; e era tal a variedade de aspectos dessas recepções que se chegava a esquecer o império da doença sobre todos aqueles infelizes, tanto ela variava neste ou naquele, para se pensar em caprichos pessoais, em ditames das vontades livres de cada um.

E ela pensava como esta nossa vida é variada e diversa, como ela é mais rica de aspectos tristes que de alegres, e como na variedade da vida a tristeza pode mais variar que a alegria e como que dá o próprio movimento da vida.

Verificando isso, quase teve satisfação, pois a sua natureza inteligente e curiosa se comprazia nas mais simples descobertas que seu espírito fazia.

Quaresma estava melhor. A exaltação passara e o delírio parecia querer desaparecer completamente. Chocando-se com aquele meio, houve logo nele uma reação salutar e necessária. Estava doido, pois se o punham ali...

Quando veio a ter com o compadre e a afilhada até trazia um sorriso de satisfação por baixo do bigode já grisalho. Tinha emagrecido um pouco, os cabelos pretos estavam um pouco brancos, mas o aspecto geral era o mesmo. Não perdera totalmente a mansuetude e a ternura no falar, mas quando a mania lhe tomava ficava um tanto seco e desconfiado. Ao vê-los disse amavelmente: - Então vieram sempre... Estava à espera...

Cumprimentaram-se e ele deu mesmo um largo abraço na afilhada.

- Como está Adelaide?

- Bem. Mandou lembranças e não veio porque... adiantou Coleoni.

- Coitada! disse ele, e pendeu a cabeça como se quisesse afastar uma recordação triste; em seguida, perguntou:

- E o Ricardo?

A afilhada apressou-se em responder ao padrinho, com alvoroço e alegria. Via-o já escapo à semisepultura da insânia.

- Está bom, padrinho. Procurou papai há dias e disse que a sua aposentadoria já está quase acabada.

Coleoni tinha-se sentado. Quaresma também e a moça estava de pé, para melhor olhar o padrinho com os seus olhos muito luminosos e firmes no encarar. Guardas, internos e médicos passavam pelas portas com a indiferença profissional. Os visitantes não se olhavam, pareciam que não queriam conhecer-se na rua. Lá fora, era o dia lindo, os ares macios, o mar infinito e melancólico, as montanhas a se recortar num céu de seda - a beleza da natureza imponente e indecifrável.

Coleoni, embora mais assíduo nas visitas, notava as melhoras do compadre com satisfação que errava na sua fisionomia, num ligeiro sorriso. Num dado momento aventurou:

- O major já está muito melhor; quer sair?

Quaresma não respondeu logo; pensou um pouco e respondeu firme e vagarosamente:

- É melhor esperar um pouco. Vou melhor... Sinto incomodar-te tanto, mas vocês que têm sido tão bons, hão de levar tudo isso para conta da própria bondade. Quem tem inimigos deve ter também bons amigos...

O pai e a filha entreolharam-se; o major levantou a cabeça e parecia que as lágrimas queriam rebentar. A moça interveio de pronto:

- Sabe, padrinho, vou casar-me.

- É verdade, confirmou o pai. A Olga vai casar-se e nós vínhamos preveni-lo.

- Quem é teu noivo? perguntou Quaresma.

- É um rapaz...

- Decerto, interrompeu o padrinho sorrindo.

E os dous acompanharam-no com familiaridade e contentamento. Era um bom sinal.

- É o Senhor Armando Borges, doutorando. Está satisfeito, padrinho? fez Olga gentilmente.

- Então é para depois do fim do ano.

- Esperamos que seja por aí, disse o italiano.

- Gostas muito dele? indagou o padrinho.

Ela não sabia responder aquela pergunta. Queria sentir que gostava, mas estava que não. E por que casava? Não sabia... Um impulso do seu meio, uma cousa que não vinha dela - não sabia... Gostava de outro? Também não. Todos os rapazes que ela conhecia não possuíam relevo que a ferisse, não tinham o “quê”, ainda indeterminado na sua emoção e na sua inteligência, que a fascinasse ou subjugasse. Ela não sabia bem o que era, não chegava e extremar na percepção das suas inclinações a qualidade que ela queria ver dominante no homem. Era o heroico, era o fora do comum, era a força de projeção para as grandes cousas; mas nessa confusão mental dos nossos primeiros anos, quando as idrias e os desejos se entrelaçam e se embaralham, Olga não podia colher e registrar esse anelo, esse modo de se lhe representar e de amar o indivíduo masculino.

E tinha razão em se casar sem obedecer à sua concepção. É tão difícil ver nitidamente num homem, de vinte a trinta anos, o que ela sonhara que era bem possível tomasse a nuvem por Juno... Casava por hábito de sociedade, um pouco por curiosidade e para alargar o campo de sua vida e aguçar a sensibilidade. Lembrou-se disso tudo rapidamente e respondeu sem convicção ao padrinho:

- Gosto.



continua página 31...

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Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…

Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.



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MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional 
Departamento Nacional do Livro


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Leia também:

O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte I - A Lição de Violão
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte II(a) - Reformas Radicais
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte II(b) - Reformas Radicais
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte III(a) - Reformas Radicais
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte III(b) - Reformas Radicais
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte IV(a) - Desastrosas consequências...
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte V(a) - O Bibelot
O Triste fim de Policarpo Quaresma: 1ª Parte V(b) - O Bibelot


Cruz e Sousa - Poesias Completas: Campesinas LI - Campesinas

   Cruz e Sousa


Obra Completa
Volume 1
POESIA



O Livro Derradeiro
Primeiros Escritos

Cambiantes
Outros Sonetos Campesinas
Dispersas
Julieta dos Santos




CAMPESINAS 




CAMPESINAS
                 

I

Camponesa, camponesa,
Ah! quem contigo vivesse
Dia e noite e amanhecesse
Ao sol da tua beleza.

Quem livre, na natureza,
Pelos campos se perdesse
E apenas em ti só cresse
E em nada mais, camponesa.

Quem contigo andasse à toa
Nas margens duma lagoa,
Por vergéis e por desertos,

Beijando-te o corpo airoso,
Tão fresco e tão perfumoso,
Cheirando a figos abertos.



II

De cabelos desmanchados,
Tu, teus olhos luminosos
Recordam-me uns saborosos
E raros frutos de prados.

Assim negros e quebrados,
Profundos, grandes, formosos,
Contêm fluidos vaporosos
São como campos mondados.

Quando soltas os cabelos
Repletos de pesadelos
E de perfumes de ervagens,

Teus olhos, flor das violetas,
Lembram certas uvas pretas
Metidas entre folhagens.



III

As papoulas da saúde
Trouxeram-te um ar mais novo,
Ó bela filha do povo,
Rosa aberta de virtude.

Do campo viçoso e rude
Regressas, como um renovo,
E eu ao ver-te, os olhos movo
De um modo que nunca pude.

Bravo ao campo e bravo à seara
Que deram-te à pele clara
Sãos rubores de alvorada.

Que esses teus beijos agora
Tenham sabores de amora
E de romã estalada.



IV

Através das romãzeiras
E dos pomares floridos
Ouvem-se às vezes ruídos
E bater d’asas ligeiras.

São as aves forasteiras
Que dos seus ninhos queridos
Vêm dar ali os gemidos
Das ilusões passageiras.

Vêm sonhar leves quimeras,
Idílios de primaveras,
Contar os risos e os males.

Vêm chorar um seio de ave
Perdida pela suave
Carícia verde dos vales.



V

De manhã tu vais ao gado
A cantar entre as giestas,
Com tuas graças modestas,
Correndo e saltando o prado.

E a veiga e o rio e o valado
Que todos dormem às sestas
Acordam-se ante as honestas
Canções desse peito amado.

As aves nos ares gozam,
Entre abraços se desposam,
No mais amoroso enlace.

E as abelhas matutinas
Que regressam das boninas
Voam-te em torno da face.



VI

As uvas pretas em cachos
Dão agora nas latadas...
Que lindo tom de alvoradas
Na vinha, junto aos riachos.

Este ano arados e sachos
Deixaram terras lavradas,
À espera das inflamadas
Ondas do sol, como fachos.

Veio o sol e fecundou-as,
Deu-lhes vigor, enseivou-as,
Tornou-as férteis de amor.

Eis que as vinhas rebentaram
E as uvas amaduraram,
Sanguíneas, com sol na cor.



VII

Engrinaldada de rosas,
Surge a manhã pitoresca...
Que linda aquarela fresca
Nas veigas deliciosas!

Que bom gosto e perfumosas
Frutas traz, madrigalesca
A rapariga tudesca
Que vem das searas cheirosas!

Como os rios vão cantando,
Em sons de prata, ondulando,
Abaixo pelos marneis!

Que carícia nas verduras,
Que vigor pelas culturas,
Que de ouro pelos vergéis!



VIII

Orgulho das raparigas,
Encanto ideal dos rapazes,
Acendes crenças vivazes
Com tuas belas cantigas.

No louro ondear das espigas,
Boca cheirosa a lilases,
Carne em polpa de ananases,
Lembras baladas antigas.

Tens uns tons enevoados
De castelos apagados
Nas eras medievais.

Falta-te o pajem na ameia
Dedilhando, à lua cheia,
O bandolim dos seus ais!



"Se não fosse a educação... o racismo não teria como se reproduzir."


Silvio Almeida




"Desse tipo de erro ninguém reclama nos livros didáticos"



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Leia também:

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Campesinas LI - Campesinas
Cruz e Sousa - Poesias Completas: Campesinas LIII - Os Risonhos


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De fato, a inteligência, criatividade e ousadia de Cruz e Sousa eram tão vigorosos que, mesmo vítima do preconceito racial e da sempiterna dificuldade em aceitar o novo, ainda assim o desterrense, filho de escravos alforriados, João da Cruz e Sousa, “Cisne Negro” para uns, “Dante Negro” para outros, soube superar todos os obstáculos que o destino lhe reservou, tornando-se o maior poeta simbolista brasileiro, um dos três grandes do mundo, no mesmo pódio onde figuram Stephan Mallarmé e Stefan George. A sociedade recém-liberta da escravidão não conseguia assimilar um negro erudito, multilíngue e, se não bastasse, com manias de dândi. Nem mesmo a chamada intelligentzia estava preparada para sua modernidade e desapego aos cânones da época. Sua postura independente e corajosa era vista como orgulhosa e arrogante. Por ser negro e por ser poeta foi um maldito entre malditos, um Baudelaire ao quadrado. Depois de morrer como indigente, num lugarejo chamado Estação do Sítio, em Barbacena (para onde fora, às pressas, tentar curar-se de tuberculose), seu
corpo foi levado para o Rio de Janeiro graças à intervenção do abolicionista José do Patrocínio, que cuidou para que tivesse um enterro cristão, no cemitério São João Batista.


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Organização e Estudo
Lauro Junkes
Presidente da Academia Catarinense de Letras


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FICHA CATALOGRÁFICA

Catalogação na fonte por M. Margarete Elbert - CRB14/167



S725o      Sousa, Cruz e, 1861-1898

                        Obra completa : poesia / João da Cruz e Sousa ; organização
                  e estudo por Lauro Junkes. – Jaraguá do Sul : Avenida ; 2008.
                         v. 1 (612 p.)

                         Edição comemorativa dos 110 anos de falecimento e do
                  traslado dos restos mortais de Cruz e Sousa para Santa Catarina.

                            1. Sousa, Cruz e, 1861-1898. 2. Poesia catarinense. I.
                  Junkes, Lauro. II. Titulo.

                                                                                      CDU: 869.0(816.4)-1



"A gente só tem saída na política."


segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

mulheres descalças: hipócrita, egoísta e cega d’ódio

mulheres descalças


hipócrita, egoísta e cega d’ódio
Ensaio 127Bzq – 2ª edição 1ª reimpressão


baitasar



quanto mais pra frente, no tempo quitá pra chegá, pôco das coisa vai mudá prus fiu dusfiu dusiô augusto, é assim mesmo, miúdo bem ensinado pra latí e mordê vai tá sempre correndo atráis do osso, eles vai dizê qui nos dia diantes era assim, e se assim foi é preciso continuá, Não tem porque mudar. A negrada não é gente! Foi trazida com o propósito de servir, e assim vai continuar. É bem feito! Eles não têm qualificação e as negrinhas o que têm de bom e gostoso nem é bom comentar. Não têm moral, não têm cultura decente e não fazem nada importante, pelo contrário, ignorantes, preguiçosos e maliciosos, vivem de fazer feitiço. O melhor de tudo é que assim o trabalho sujo é da negrada. Juro que eles não têm estômago. Estão tão acostumados. É um nojo! Não se importam de voltar para suas senzalas com os pés churriados, as unhas impregnadas da sujidade, exalando um odor fétido, atraindo moscas ávidas e felizes, um festim de suor e fedor. Tenho nojo e medo ao mesmo tempo. Espero que queimem no fogo do inferno! Deus nos livre! Enterrar e misturar no lixão da cidade vai dar no mesmo e não se perde tempo nem receita.

a brancura vai continuá defendendo as regalia qui tem com tudo qui tá nas mão pra usá: as lei feita pela brancura pra ajustá meió o abuso, o uso e o aproveitamento duspretu obrigado dipassá naquela vida da miséria e escravidão, Todo negro fujão achado que se ponha com fogo uma marca em uma espádua com a letra F, e que quando for executada essa pena, for achado com a mesma marca, se lhe cortará uma orelha; tudo por simples mandado do juiz de fora, ou ordinário da terra ou do ouvidor da comarca, sem processo algum e só pela notoriedade do fato, logo que for trazido, antes de entrar para a cadeia, as pulícia tumbé era destacada, selecionada, ensinada, nomeada e marcada pra fazê uso das lei da brancura, em nome da brancura, pra protegê os ganho da brancura

tudo já tinha dono: os meió lugá pra vivê, as meió coisa ditê, a villa risonha num ia deixá difazê uso duspretu nem índio ou desafortunado desdentado pra continuá risonha, pra continuá à vontade com as caridade faz-de-conta, as mentira deslavada, malvada e desalmada

mesmo muntu tempo pra frente, uspretu vai tê precisão pra prestá tenção nuseus modo pra dizê uqui pensa – caso tenha permissão pra falá –, nuseus modo pra caminhá, pra corrê, a brancura num consegue evitá disê uquié: hipócrita, egoísta e cega d’ódio, num consegue impedí quiatitude escondida escorregue no meio dusdedo, fingindo qui num sabe nada duqui contece, na verdade, essa gente do bem 
 quióia pra quem faz o bem  só tomatitude caso o mau, a doença ou a desavença chega nela, então, e só então, ela desmancha a cara de paisagi e toma coragi pra enfrentá o medo divê qui vivê junto na villa risonha num é vivê só pra ela mesma

us muriquinhu qui vê num pode judá, Quiria pudê judá, Num tem uqui fazê, Iô sei, Uqui contece num é nosso, Iô sei, é dusvivo nascido.




____________________

é bão lê tumbém:




histórias de avoinha: Sinto-me tão só
histórias de avoinha: um império invisível
histórias de avoinha: uma sombra sem corpo não cruza as pernas
histórias de avoinha: Bagaço hipócrita!
histórias de avoinha: a vaga de marido
histórias de avoinha: a lua na escuridão
histórias de avoinha: chegô no piano
histórias de avoinha: o silêncio no brejo dos pensamento
histórias de avoinha: borboleta preta
histórias de avoinha: Obrigada, Açunta!
histórias de avoinha: ôum velório de vida
histórias de avoinha: o feitiço das trança
histórias de avoinha: o siô ajeitado e as duas miúda
histórias de avoinha: Simão
mulheres descalças: é mansa...
mulheres descalças: Mas você devia!
mulheres descalças: Dez sacas, o amigo concorda?
mulheres descalças: café ralo e mandioca cuzida
mulheres descalças: o descuido da miúda
mulheres descalças: a traste
mulheres descalças: até quando
mulheres descalças: uma sombra silenciosa
mulheres descalças: a perigosa é ela
mulheres descalças: uma resposta deboche
mulheres descalças: gostar sem resistir
mulheres descalças: buraco do barranco
mulheres descalças: caridade é uma brisa morna
mulheres descalças: hipócrita, egoísta e cega d’ódio
mulheres descalças: a pulícia pública



Clementina, O Canto dos Escravos

 Clementina De Jesus

 

- Clementina, E o Canto dos Escravos 



Canto I

Yao ê,
Ererê ai ogum bê.

Com licença do Curiandamba,
Com licença do Curiacuca,
Com licença do Sinhô Moço,
Com licença do Dono de Terra.(x6)

Clementina de Jesus, Tia Doca e Geraldo Filme interpretam esse belíssimo Canto I, do Álbum O Canto dos Escravos, LP prensado em 1982, contendo cantos ancestrais dos negros benguelas, de São João da Chapada, Diamantina, Minas Gerais, cujas letras e partituras estão contidas na obra de Aires da Mata Machado Filho, O Negro e o Garimpo em Minas Gerais.


Canto II

Muriquinho piquinino, muriquinho piquinino,
Parente de quiçamba na cacunda.

Purugunta aonde vai, purugunta aonde vai,
Ô parente, pro quilombo do dumbá. (x2)

Muriquinho piquinino, muriquinho piquinino,
Parente de quiçamba na cacunda.

Purugunta aonde vai, purugunta aonde vai,
Ô parente, pro quilombo do dumbá. (x2)

Ê, chora, chora gongo,ê dévera, chora gongo chora,
Ê, chora, chora gongo, ê cambada, chora gongo chora.

Muriquinho piquinino, muriquinho piquinino,
Parente de quiçamba na cacunda.

Purugunta aonde vai, purugunta aonde vai,
Ô parente, pro quilombo do dumbá. (x2)

Ê, chora, chora gongo,ê dévera, chora gongo chora,
Ê, chora, chora gongo, ê cambada, chora gongo chora.

Clementina de Jesus interpreta o belíssimo Canto II, do Álbum O Canto dos Escravos.


Canto III

Oenda auê, a, a!
Ucumbi oenda, auê, a...
Oenda auê.a a!
Ucumbi oenda, auê, no calunga.

Coro 1º:

Ucumbi oenda, ondoró onjó
Ucumbi oenda, ondoró onjó (bis)

Coro 2º:

Iô vô oendá, pu curima auê
Iô vô oendá, pu curimá auê (bis)

Oenda auê, a, a!
Ucumbi oenda, auê, a...
Oenda auê.a a!
Ucumbi oenda, auê, no calunga.

Coro 1º:

Ucumbi oenda, ondoró onjó
Ucumbi oenda, ondoró onjó (bis)

Coro 2º:

Iô vô oendá, pu curima auê
Iô vô oendá, pu curimá auê (bis)

Oenda auê, a, a!
Ucumbi oenda, auê, a...
Oenda auê.a a!
Ucumbi oenda, auê, no calunga.

Coro 1º:

Ucumbi oenda, ondoró onjó
Ucumbi oenda, ondoró onjó (bis)

Coro 2º:

Iô vô oendá, pu curima auê
Iô vô oendá, pu curimá auê (bis)

Geraldo Filme interpreta esse belíssimo Canto III, do Álbum O Canto dos Escravos.


Canto IV

Ei ê, oia puru céu, oia puru céu,
Puru terra.

Riabo t'inganou, Muriquim,
Puru terra.

Riabo t'inganou, João Inácio!
Oia pru céu!

Puru terra. (x3)

Tia Doca interpreta o Canto IV, do Álbum O Canto dos Escravos. 


Canto V

Ei ê covicará

iô bambi

tuara vassange ô atundô mera

covicara tuca atunda

Dona Maria de Ouro Fino,

Crioula bonita num vai na venda

chora, chora, chora só

chora, chora, chora só.

Clementina de Jesus interpreta esse belíssimo Canto V, do Álbum O Canto dos Escravos.


Canto VI (Canto dos Escravos)

Mia cavalo anda em pé, iorô!
Mia cavalo come em pé.
O riabo leva o cavalo
mia cavalo anda em pé. (bis)

Ei! cavalo!
Purru, cavalo?!

Ei! cavalo qui puto ô nguenda,
Oiô, cavalo!

Purru, cavalo!

Geraldo Filme interpreta esse belíssimo Canto VI do Álbum O Canto dos Escravos.


Canto VII

Jambá cacumbi queremá,
turira auê,

jambá cacumbi queremá,
mapiá turi,
turira auê mapiá,

turira auê, mapiá,,
turira auê mongorombô. (x5)

Álbum: O Canto dos Escravos - Interpretação de Clementina de Jesus - Tia Doca - Geraldo Filme.


Canto VIII

Nda popere catá ô Tinguê,

nda popera ô catá (bis)

Tingui á uauê!
Nda popere catá,

Tingui á uauê, iá!

Interpretação de Clementina de Jesus


Canto IX

Ei ê lambá.
quero me acabá no sumidô
quero me acabá no sumidô

lambá de vinte dia
ei lambá
quero me acabar no sumidô

Ei ê lambá
quero me acabá no sumidô
quero me acabá no sumidô

lamba de vinte dia
ei lambá
quero me acabar no sumidô

Ei ererê.

Geraldo Filme interpreta o Canto IX.


Canto X

Ei, ei, que foi à fonte (bis)
sinhora me disse
que foi à fonte

sinhora me disse
que foi à fonte
com dois barris
que foi à fonte
com dois barris
que foi à fonte

sinhora me disse
com dois barris. (x4)

Tia Doca interpreta o Canto X na companhia de Clementina de Jesus e Geraldo Filme.


Canto XI

Otê!
Padre-Nosso cum Ave-Maria,
securo camera qui t'Angananzambê, aiô...

Aiô...T'Angananzambê, aiô!...

Calunga qui tom' ossemá,

Calunga qui tom'Anzambi, aiô...

O Canto XI interpretado por Clementina de Jesus, Tia Doca e Geraldo Filme.


Canto XII  

São João foi no céu, foi passear,
foi visitar noss'sinhô. (x2)

São João foi no céu.

São João foi no céu, é dévera,
São João foi no céu, é mentira,
omen, omenhá, rossequê,
omen, omenhá, rossequê,
omen, omenhá, rossequê, coroá.

São João foi no céu, foi passear,
foi visitar noss'sinhô. (x2)

São João foi no céu.
São João foi no céu, é dévera,

São João foi no céu, é mentira,
omen, omenhá, rossequê,
omen, omenhá, rossequê,
omen, omenhá, rossequê, coroá.

Clementina de Jesus, a inolvidável QUELÉ, interpreta o Canto XII.


Canto XIII

Galo já cantou, eh, eh,
Cristo nasceu,
dia amanheceu,

galo já cantou. (x2)

Eh, eh, toma galo,
dia amanheceu, toma galo,
Cristo levantou, toma galo.

cacariacô
Cristo no céu, toma galo,
dia amanheceu, toma galo.

Galo já cantou eh, eh,
Cristo nasceu,
dia amanheceu,
galo já cantou. (x2)

Eh, eh, toma galo,
dia amanheceu, toma galo,
Cristo levantou, toma galo.

cacariacô
Cristo no céu, toma galo,
dia amanheceu, toma galo.

Galo já cantou eh, eh,
Cristo nasceu,
dia amanheceu,
galo já cantou. (x2)

Eh, eh, toma galo,
dia amanheceu, toma galo,
Cristo levantou, toma galo.

cacariacô
Cristo no céu, toma galo,
dia amanheceu, toma galo.

Galo já cantou eh, eh,
Cristo nasceu,
dia amanheceu,
galo já cantou. (x2)

Tia Doca interpreta o Canto XIII 


Canto XIV

Uanga ô assomá,
qui popiá,

qui dendengá
uanga auê,,,

Uanga ô assomá,
qui popiá,

qui dendengá
uanga auê, ererê...

Geraldo Filme interpreta o Canto XIV







O CANTO DOS ESCRAVOS - Clementina de Jesus, Tia Doca, Geraldo Filme

Em 1928, indo em gozo de férias a S.João da Chapada, município de Diamantina, chamaram-me a atenção umas cantigas em língua africana ouvidas outrora nos serviços de mineração. Fui ter com um dos conhecedores, o meu bom amigo João Tameirão, que, com solicitude, satisfez à minha curiosidade de aprender as cantigas.

Tomei notas apressadas, que vim depois a rejeitar. E, nas curtas estadas naquele aprazível e tranquilo arraial, nunca deixei de observar alguma coisa sobre os tais cantos de trabalho, cuja importância foi crescendo em meu conceito, à medida que fui adquirindo conhecimentos novos.

Entendi, posteriormente, de realizar, de vez, o velho plano de recolher os "vissungos", como lhes chamam, reunindo ainda o vocabulário e a gramática da "língua de banguela", certamente transformada em nosso meio.

Quase nada consegui na primeira investida. Lá ficava, porém, o meu colaborador, Araújo Sobrinho, com instruções minhas.

Voltando, mais tarde, encontrei novidades: um vocabulário de duzentas palavras, colhidas na boca de "seu" Tameirão, algumas cantigas e a notícia do falecimento do nosso prestimoso amigo.

Fiquei pelos cabelos, imaginando que tudo estava perdido. Mas não tardaram em aparecer outros conhecedores. E, depois de peripécias que não vêm ao caso, conseguimos, com um outro cantador, letra, música e tradução, ou antes "fundamento", como eles dizem.

Não sei se seremos felizes com as notas e reflexões. O certo, porém, é que só o material, que tivemos a sorte de desencavar em nossa mineração, bastaria para justificar o aparecimento de um livro.

À colheita do material seguiu-se o exame da bibliografia sobre o assunto. Compulsando livros de linguistas e etnógrafos, tivemos ensejo de estabelecer confrontos e reforçar hipóteses. Muitas vezes, vimos a autenticidade dos modestos achados e a plausibilidade das reflexões confirmadas pelas contribuições dos eminentes estudiosos que antes de nós lavraram o terreno. Com isso pudemos evitar, quanto possível, generalizações apressadas, cotejos fantasiosos e afirmações apriorísticas. Se o não conseguimos, não foi por falta de necessária diligência.


Aires da Mata Machado Filho - O texto acima foi publicado como introdução do livro "O Negro e o garimpo em Minas Gerais (Editora José Olímpio), de Aires da Mata Machado Filho, sendo aqui reproduzido com a permissão do autor, que igualmente autorizou o Estúdio Eldorado a realizar a gravação de quatorze das sessenta e cinco partituras registradas naquela obra.


Tia Doca - Jilçária Cruz Costa, conhecida como Tia Doca da Portela ou Tia Doca (Rio de Janeiro, 20 de dezembro de 1932 — Rio de Janeiro, 25 de janeiro de 2009) foi uma pastora da velha-guarda da Escola de Samba Portela.



LADO A

1 — CANTO I — com Clementina de Jesus, Geraldo Filme e Doca
2 — CANTO II — com Clementina de Jesus
3 — CANTO III — com Geraldo Filme
4 — CANTO IV — com Doca
5 — CANTO V — com Clementina de Jesus
6 — CANTO VI — com Geraldo Filme
7 — CANTO VII — com Doca

LADO B

1 — CANTO VIII — com Clementina de Jesus
2 — CANTO IX — com Geraldo Filme
3 — CANTO X — com Doca
4 — CANTO XI — com Geraldo Filme
5 — CANTO XII — com Clementina de Jesus
6 — CANTO XIII — com Doca
7 — CANTO XIV — com Geraldo Filme

PERCUSSIONISTAS:

Djalma Correia: tronco, atabaques, xequerê, enxada e cabaça
Papete: atabaques, xequerê, agogô e ganzá
Don Bira: atabaques, caxixi, xequerê e afoxê
Projeto e Coordenação Artística: Aluízio Falcão
Direção Musical, Produção e Direção de Estúdio: Marcus Vinícius
Técnico de Gravação e Mixagem: Flávio Barreira
Direção de Arte e Capa: Ariel Severino
Clementina de Jesus, cedida gentilmente pela gravadora Emi Odeon.


__________________

Fontes: 

http://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/album-o-canto-dos-escravos
https://www.youtube.com/channel/UC_keoktqPE74X6HZEYhKyAA

Relações Étnicos-Raciais

youtube




Poesia Africana: António Baticã Ferreira (Guiné-Bissau)

   Poesia Africana - 28


língua portuguesa



Um sentimento de amor pátrio sobe no meu coração,
Em espírito demando o meu país natal,
E lembro aquela floresta africana,
Cheia de caça e de verdura;
Lembro as suas imensas árvores gigantes,
A folhagem verde ou amarela
Que nos perfuma






A FONTE


I


Eis-me perto da Fonte, muito perto.
Vejo brotar a água,
Uma água clara e límpida,
Boa, amável!

Eis a Fonte:
Fica perto de Badiopor.
Junto dela nasci:
Eis a Fonte da minha infância.

Sim, eu amo essa Fonte,
Admiro-a,
Brinco,
Eu e meus irmãos, à sua beira.

Fica, fica perto de Badiopor,
Desse lugar quase sagrado,
Desse lugar ensombrado;
Badiopor, fonte de nossas almas.

A sua água nos atrai,
E acarinha-nos.
Vemo-la noite e dia;

E a Fonte que está mais perto.

Olha: a água a brotar da nascente,
Como de fonte,
Como um regato!

(Sim, parece-se mais com um regato.)




II


Mais pequena ainda que a Fonte,
É a nascente onde tudo vem beber.
A nascente, nossos pais, amamo-la.
Nossa.

A nascente é fonte das árvores e das folhas.
Olhamos a nascente, o ribeiro,
Manancial de nossos pais.

É verdade:

Esta Fonte é mui antiga,

Nascente da Tradição,
Fonte da Historia; eis
O manancial do Reino,
Tão perto de Badiopor!

Bem me lembro:
Ha muito que ela se conserva no mesmo lugar,
Manando água cristalina.
Eis, eis a Fonte do Reino.

Ela protege-nos,
Ela é a alma das crianças;
Fonte do Reino, força nossa,
Ela é a nossa protectora.

As chaves do Reino onde estão?

Nessa Fonte,
Onde meus irmãos e eu vemos às vezes monstros
E trememos então de medo,
Ou choramos.

(Nós, filhos do Reino,
Nos, príncipes desse seu Reino.)



III


É verdade, como príncipes,
De tudo cantamos,

Nos, príncipes de Baboque
Bem amados,
Pelo sangue
Oriundos daquele Rei,

Daquele que é Rei dos Reis;
Nos que vimos do seu Reino,
De todos o mais poderoso e vasto,
Como o Reino de Baçarel.

(E Baçarel é um grande Reino,
Onde príncipes vêm a luz;
Baçarel, terra bem nobre,
Seu lugar de nascimento.)





O MAR


Olhai: o Mar tem influência singular
Sobre mim. Os animais aquáticos são tantos
Valia a pena persegui-los no mar alto;

Valia a pena vê-los saltar através das ondas.

O Mar, esse mundo que os homens não habitam,
É imenso, tão belo e tão perfeito!
O Mar tem influência singular
Sobre mim. Eu bem queria ir ver as ondas;

Valia a pena olhá-las a correr
Loucamente; valia a pena
Ver qual delas primeiro entrava na baía.

Ah!, o Mar vasto, no entanto, aqui nos fala
Sim, fala-nos interiormente,
E nos compreendemos a sua língua:
E uma língua que se entende.

(Ah!, que impressão nos faz o Mar!)





INFÂNCIA


Eu corria através dos bosques e das florestas
Eu corno o ruído vibrante de um bosque desvendado,
Eu via belos pássaros voando pelos campos
E parecia ser levado por seus cantos.

Subitamente, desviei os meus olhos
Para o alto mar e para os grandes celeiros
Cheios da colheita dos bravos camponeses
Que, terminando o dia, regressavam à noite entoando

Canções tradicionais das selvas africanas
Que lhes lembravam os ódios ardentes
Dos velhos. Subitamente, uma corça gritou
Fugindo na frente dos leões esfomeados.

Aos saltos, os leões perseguiram a corça
Derrubando as lianas e afugentando os pássaros.
A desgraçada atingiu a planície
E os dois reis breve a alcançaram



PAÍS NATAL


Um sentimento de amor pátrio sobe no meu coração,
Em espírito demando o meu país natal,
E lembro aquela floresta africana,
Cheia de caça e de verdura;
Lembro as suas imensas árvores gigantes,
A folhagem verde ou amarela
Que nos perfuma.
Revejo a minha infância,
Toda cheia de alegrias:
Eu corria pelo mato,
Espiava os animais selvagens,
Sem medo;
E olhava os lavradores nos campos,
E, no mar, os pescadores,
Que lutavam contra o vento, para agarrar o peixe,
E que eu, atento, seguia com o olhar:
Como gostava de os ver no oceano
Domar as vagas, que lhes queriam virar as barcas!
(Ah!, bem me lembro, bem me lembro do meu país natal!)



__________________________



António Baticã Ferreira nasceu em Texeira Pinto no Canchungo (Guiné-Bissau) no ano de 1939. Estudou em França onde concluiu o liceu.

Na Suíça formou-se em medicina na Universidade de Lausana. Sabe-se que exerceu medicina no Hospital de Santa Maria em Lisboa (Portugal), mas desconhece-se quanto tempo viveu em Portugal.

De acordo com Luís Graça (bloguer), Albano de Matos disse-lhe que conheceu António Baticã na Sociedade da Língua Portugues e que este ter-lhe-á publicado colectânea de poesia de nominada “Poesia & Ficção".

Em 1945 António Baticã Ferreira e Amílcar Cabral estavam ligados ao partido PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde) na luta pela independência da Guiné-Bissau contra o domínio Português e com a denominada “poesia de combate” que incitava a luta pela libertação

No que diz respeito a musica cabo verdiana, Baticã também teve grande relevo, pois no período que antecedeu a libertação os seus escritos foram considerados com forma de expressão fizeram cultural na Guiné-Bissau.

A sua poesia está dispersa por diversas publicações francesas e portuguesas, nomeadamente La Tribune Internacional des Poètes, L’Afrique Nouvelle e La Croix; Poesia & Ficção, Diário Popular e Debate.


domingo, 6 de dezembro de 2020

Reggae - MIR uma Grande banda de reggae com consciência social

 Misty In Roots 


- Live @ Mekudeshet 2016
(Full Show)


"Existem poucas bandas de reggae no mundo que podem se igualar à extensa carreira de MIR. Eles começaram como banda de apoio do lendário Nicky Thomas, juntaram-se ao movimento de protesto dos anos 1970 em Londres e derreteram a cortina de ferro como um dos primeiros a se apresentar na Rússia e na Polônia e, mais tarde, na África do Sul pós-apartheid.


MIR desempenhou um papel importante na formação do som do reggae de Londres e no confronto da realidade desafiadora que os negros enfrentam em Londres e em todo o mundo. A ideologia do MIR, combinando o protesto civil com os valores do Rastafarianismo, manteve a banda aos olhos do público por mais de 40 anos, apesar de vários anos de inatividade e mudanças em sua formação. Em 2002, quando lançaram o álbum Roots Controller e voltaram à cena musical com força total, foram recebidos com entusiasmo pelo público e pela crítica."






Cover Up


Feel it!
No!

>From the goodness of your mind
And it's a cover up
Black man feel it
No justice
Racism - it's a cover up
People know it

Do you remember Stephen Lawrence
Black male cut down in south London?
And Babylon, called to account,
Made a true confession

>From the goodness of your mind
It's a cover up
Black males feel it
No justice
And it's a cover up
Racism - it's a cover up
Black man knows it

>From youth when you start education
Then later on in the workplaces
How can man and woman get through?
But majority knows your true confessions

Are from the goodness of your mind
And it's a cover up
Black man feel it
And no justice
And it's a cover up
Racism - it's a cover up
People know it
Blackman feel it
People know it
Blackman feel it


Walford Tyson









Cobrir


Sinta!
Não!

> Pela bondade de sua mente
E é um encobrimento
Homem negro sente isso
Não há justiça
Racismo - é um encobrimento
As pessoas sabem disso

Você se lembra de Stephen Lawrence
Homem negro morto no sul de Londres?
E a Babilônia, chamada a prestar contas,
Fez uma verdadeira confissão

> Pela bondade de sua mente
É um encobrimento
Homens negros sentem isso
Não há justiça
E é um encobrimento
Racismo - é um encobrimento
Homem negro sabe disso

> Desde a juventude, quando você começa a estudar
Então, mais tarde, nos locais de trabalho
Como o homem e a mulher podem passar?
Mas a maioria conhece suas verdadeiras confissões

São da bondade da sua mente
E é um encobrimento
Homem negro sente isso
E sem justiça
E é um encobrimento
Racismo - é um encobrimento
As pessoas sabem disso
Blackman sente isso
As pessoas sabem disso
Blackman sente isso



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Assassinato racista de Stephen Lawrence: 'O Met pode desistir, eu nunca irei'

Publicado 11 de agosto



A mãe da vítima de assassinato racista, Stephen Lawrence, jurou que nunca desistirá de seu filho, apesar da Polícia Metropolitana declarar as investigações "inativas".




sábado, 5 de dezembro de 2020

P.Q.P. Bach e as Variações da Valsinha

P.Q.P. Beethoven



P.Q.P. Bach



BTHVN250 – Anton Diabelli (1781-1858) et al. – Vaterländischer Künstlerverein – Buchbinder

Certa vez, há muitos anos, o irmão de um amigo estava num bar com um pequeno palco e um violão à disposição daqueles que quisessem fazer um pouco de música. Ele, um bom violonista, animou-se e lá foi tocar algumas coisinhas. Recebeu aplausos sinceros e, enquanto voltava ao seu lugar, viu o dono do estabelecimento afobar-se rumo ao microfone:

– Gurizada, acabo de saber que está aqui conosco uma das maiores revelações da Música brasileira, e queria chamá-lo agora ao palco.

Era Yamandu Costa, que atendeu ao chamado e, claro, logo começou a derramar maravilhas do violão. Enquanto isso, o irmão de meu amigo, sentindo-se um protossímio, saía de fininho e, até onde sei, nunca mais tocou em público.

ooOoo

Sentimento semelhante deve ter tomado conta de cinquenta entre os cinquenta e um colaboradores do projeto Vaterländischer Künstlerverein, quando o colaborador restante, um alemão de nome Beethoven, enviou ao editor Diabelli não somente a variação que este pedira sobre uma sua valsinha, mas trinta e três transfigurações dela que, juntas, formam a maior obra em variações da história da Música.


Ei-las

Ninguém tem certeza sobre os motivos que levaram Diabelli, um pianista e violonista amador cuja notoriedade resumia-se à composição de numerosas bagatelas pedagógicas, a organizar o projeto. Como sócio duma editora, pode-se sempre supor que o motivo fosse caçar bufunfa. Corre a lenda, no entanto, de que ele, horrorizado com a penúria dos órfãos e feridos de guerra em Viena, resolveu convocar a Associação Patriótica de Artistas (uma das traduções possíveis para Vaterländischer Künstlerverein) para aliviar o sofrimento daqueles miseráveis, através duma composição beneficente. O fato é que esse alívio, se de fato houve, demorou a chegar, pois, entre a composição da primeira variação (por Czerny, em 1819) e a da última (por Wittasek, em 1824), cinco anos se passaram. Nesse meio-tempo, Beethoven –  obviamente obcecado pelo tema de Diabelli – pariu trinta e três variações, escritas entre os exigentes trabalhos da Missa Solemnis e das três últimas sonatas para piano, e as publicou antes de todas as demais, em 1823, como o primeiro volume da Vaterländischer Künstlerverein. As cinquenta contribuições restantes só iriam à prensa no ano seguinte, formando seu segundo e obscuro volume.

Ninguém sabe, tampouco, a quantos compositores Diabelli enviou seu convite e a cópia da hoje célebre valsinha. O que houve, e disso já sabemos, foram cinquenta e uma respostas. Afora o renano aberrante com suas trinta e três geniais variações, houve dois outros compositores que se deram ao trabalho de escrever mais de uma variação. Gottfried Rieger e Franz Xaver Wolfgang Mozart (filho de Amadeus e por isso chamado, na primeira edição, de “Wolfgang Amadeus Mozart Filho”) contribuíram cada qual com um par, do qual Diabelli escolheu apenas uma (as outras, que acabaram descartadas, estão inclusas na gravação que ouvirão).

Entre os outros quarenta e oito, há um gênio: o então pouco conhecido Franz Schubert, cuja singela variação praticamente grita sua autoria e soa como um dos seus “moments musicaux”. Há também músicos que fizeram o movimento oposto e desceram do alto do panteão musical para um relativo esquecimento, como o mui competente Johann Nepomuk Hummel, cujo  maior defeito e tremendo azar foi ser contemporâneo de Ludwig. Entre as muitas celebridades pianísticas da época que legaram suas variações, duas eram muito próximas a Beethoven: Carl Czerny, seu aluno de piano e fundador duma linha pedagógica que chegou a nossos tempos, e Ignaz Moscheles, que o auxiliou na organização de Fidelio e lhe foi um amigo extraordinário nos dolorosos anos finais. Outras dessas celebridades hoje mal ocupam notas de rodapé, como Friedrich Kalkbrenner, o mais famoso pianista de Paris quando da chegada de Chopin àquela cidade e dedicatário do primeiro concerto para piano do polonês (Op. 11), e de J. P. Pixis, um artista famoso pelo nariz descomunal e que também recebeu uma dedicatória de Chopin – aquela da Fantasia sobre Temas Poloneses (Op. 13). Escondidos sob a forma alemã de seus sobrenomes – Tomaschek e Worzischek – estão dois bons compositores boêmios, Václav Tomášek e Jan Voříšek. Também encontramos no rol alguns cidadãos de oblíqua fama, como Michael Umlauf, o regente de fato da première da Nona Sinfonia de Beethoven (pois o regente oficial era Beethoven, que nada mais escutava e menos ainda regia), e Anselm Hüttenbrenner, amigo de Schubert e fiel depositário dos manuscritos da Sinfonia Inacabada. Encontramos alguns falsos cognatos – um Czerny que nada tem a ver com o Czerny famoso, autor daquelas centenas de estudos que são o terror dos estudantes de piano, e um Kreutzer sem relações com aquele que esnobou a sonata que imortalizou seu nome. No mais, somente nomes dos quais nada mais sabemos, nem por notas de rodapé, com duas exceções.

A primeira exceção é a sigla S. R. D., que para os íntimos significa Serenissimus Rudolphus Dux e designa o arquiduque Rudolph da Áustria, grande amigo e generoso patrono de Beethoven, de quem foi o único aluno de composição. Rudolph, que se preparava para assumir a arquidiocese de Olmütz (atual Olomouc, Tchéquia), estava um tanto afastado da Música e deve ter, por isso, preferido a discrição.

A segunda é um “menino de onze anos, nascido na Hungria”, de nome…


O então desconhecido moleque de Raiding tinha oito anos quando Czerny, seu influente professor, escreveu sua variação, e treze quando sua própria variação foi publicada. Liszt ainda não sonhava com a fama e a histeria em que surfaria por toda a Europa nas décadas seguintes, e certamente ingressou no rol de Diabelli por  influência de Czerny. Curiosamente, Liszt, Czerny e o supracitado Pixis juntar-se-iam futuramente a Chopin, Thalberg e Herz na publicação duma outra obra colaborativa: o Hexameron (1837), composto por variações sobre uma marcha de Bellini e organizado por Liszt.

Convites enviados, variações recebidas, restava organizá-las para publicação. E qual o critério escolhido para fazê-lo? O mais mocorongo possível: a ordem alfabética.


Francamente, Herr Diabelli!

Para não ficar tão feio, Diabelli pediu a Czerny, seu primeiro colaborador no projeto, que compusesse uma coda que arrematasse a colcha de retalhos. Apesar de seu cuidado, o mexidão pianístico não deu tão certo e, mesmo que lhe concedamos a cortesia de não escutarmos as “Diabelli” de Beethoven primeiro, o segundo volume da Vaterländische Künstlerverein é dureza de ouvir. A posteridade foi rápida no veredito e concedeu-lhe, por fim, a mais definitiva das cortesias: o completo esquecimento.

Não fosse a abnegação de gente como Rudolf Buchbinder a tirar-lhes o bolor, soprar-lhes a poeira e volta e meia tocá-las (Buchbinder significa “encadernador”, e talvez isso explique sua predileção por papel roído por cupins), vocês só saberiam dessas cinquenta outras variações através de poentos volumes e debaixo de violentos acessos de rinite. Por isso, agradeçam a Buchbinder e ao PQP Bach pelo duvidoso privilégio, sem esquecer daquele valeuzinho para mim, que tanto trabalho tive digitando nomes obscuros para identificar as faixas e as categorias na lista de compositores publicados aqui no blog – o qual, certamente, nunca ganhou tantas figurinhas novas num só dia.

De nada.

Anton DIABELLI (1781–1858) [organizador]

Vaterländischer Künstlerverein – Veränderungen für das Piano-Forte über ein vorgelegtes Thema componiert von den vorzüglichsten Tonzetzern und Virtuosen Wiens und der kaiserlichen-königlichen österreichischen Staaten (“Associação de Artistas Patrióticos – Variações sobre um tema proposto, compostas pelos mais renomados compositores e virtuosos de Viena e dos estados imperiais e reais da Áustria”)

PARTE I

Ludwig van BEETHOVEN (1770-1827)

Trinta e três variações em Dó maior para piano sobre uma valsa de Anton Diabelli, Op. 120
Compostas entre 1819–23
Publicadas em 1823
Dedicadas a Antonie Brentano

1 – Thema: Vivace
2 – Variation 1: Alla marcia maestoso
3 – Variation 2: Poco allegro
4 – Variation 3: L’istesso tempo
5 – Variation 4: Un poco più vivace
6 – Variation 5: Allegro vivace
7 – Variation 6: Allegro ma non troppo e serioso
8 – Variation 7: Un poco più allegro
9 – Variation 8: Poco vivace
10 – Variation 9: Allegro pesante e risoluto
11 – Variation 10: Presto
12 – Variation 11: Allegretto
13 – Variation 12: Un poco più moto
14 – Variation 13: Vivace
15 – Variation 14: Grave e maestoso
16 – Variation 15: Presto scherzando
17 – Variation 16: Allegro
18 – Variation 17: Allegro
19 – Variation 18: Poco moderato
20 – Variation 19: Presto
21 – Variation 20: Andante
22 – Variation 21: Allegro con brio – Meno allegro – Tempo primo
23 – Variation 22: Allegro molto, alla « Notte e giorno faticar » di Mozart
24 – Variation 23: Allegro assai
25 – Variation 24: Fughetta (Andante)
26 – Variation 25: Allegro
27 – Variation 26: (Piacevole)
28 – Variation 27: Vivace
29 – Variation 28: Allegro
30 – Variation 29: Adagio ma non troppo
31 – Variation 30: Andante, sempre cantabile
32 – Variation 31: Largo, molto espressivo
33 – Variation 32: Fuga: Allegro
34 – Variation 33: Tempo di Menuetto moderato

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PARTE II

Anton DIABELLI
1 – Thema: Vivace

Ignaz ASSMAYER (1790–1862)
2 – Variação I: Moderato

Carl Maria von BOCKLET (1801–1881)
3 – Variação II: Vivace

Leopold Eustachius CZAPEK (1792–1840)
4 – Variação III: Vivace molto legato

Carl CZERNY (1791–1857)
5 – Variação IV [Sem indicação de andamento]

Joseph CZERNY (1785–1842)
6 – Variação V[Sem indicação de andamento]

Moritz Joseph Johann, Príncipe de DIETRICHSTEIN (1775–1864)
7 –  Variação VI: Tempo vivo del Thema

Joseph DRECHSLER (1782–1852)
8 – Variação VII: Quasi overture: Adagio – Allegro

Emanuel Aloys FÖRSTER (1748–1823
9 – Variação VIII: Capriccio: Allegro

Franz Jakob FREYSTÄDTLER (1761–1841)
10 – Variação IX [Sem indicação de andamento]

Johann Baptist GÄNSBACHER (1778–1844)
11 – Variação X [Sem indicação de andamento]

Joseph GELINEK (1758–1825)
12 – Variação XI: Presto

Anton HALM (1789–1872)
13 – Variação XII: Dolce

Joachim HOFFMANN (1788–1856)
14 – Variação XIII: Fugato: Vivo

Johann HORZALKA (1798–1860)
15 – Variação XIV: Adagio

Joseph HUGLMANN (1768–1839)
16 – Variação XV: Allegro

Johann Nepomuk HUMMEL (1778–1837)
17 – Variação XVI [Sem indicação de andamento]

Anselm HÜTTENBRENNER (1794–1868)
18 – Variação XVII: Allegro

Friedrich KALKBRENNER (1785–1849)
19 – Variação XVIII: Allegro non troppo

Friedrich August KANNE (1778–1833)
20 – Variação XIX [Sem indicação de andamento]

Joseph KERZKOWSKY (1791?)
21 – Variação XX: Moderato con espressione

Conradin KREUTZER (1780–1849)
22  – Variação XXI: Vivace

Eduard, Barão de LANNOY (1787–1853)
23 – Variação XXII [Sem indicação de andamento]

Maximilian Joseph LEIDESDORF (1787–1840)
24 – Variação XXIII: Vivace

Franz LISZT (1811–1886)
25 – Variação XXIV: Allegro

Joseph MAYSEDER (1789–1863)
26 – Variação XXV: Allegro

Ignaz MOSCHELES (1794–1870)
27 – Variação XXVI [Sem indicação de andamento]

Ignaz Franz Edler von MOSEL (1772–1844)
28 – Variação XXVII [Sem indicação de andamento]

Franz Xaver Wolfgang MOZART (1791–1844), listado como “Wolfgang Amadeus Mozart Filho”
29 – Variação XXVIIIa: Con fuoco
30 – Variação XXVIIIb [Sem indicação de andamento]

Joseph PANNY (1796–1838)
31 – Variação XXIX: Allegro con brio

Hieronymus PAYER (1787–1845)
32 – Variação XXX [Sem indicação de andamento]

Johann Peter PIXIS (1788–1874)
33 – Variação XXXI [Sem indicação de andamento]

Wenzel PLACHY (1785–1858)
34 – Variação XXXII: Con fuoco

Gottfried RIEGER (1764–1855)
35 – Variação XXXIIIa: Allegro ma no troppo
36 – Variação XXXIIIb: [Sem indicação de andamento]

Philipp Jakob RIOTTE (1776–1856)
37 – Variação XXXIV: Allegro

Franz de Paula ROSER (1779–1830)
38 – Variação XXXV [Sem indicação de andamento]

Johann Baptist SCHENK (1753–1836)
39 – Variação XXXVI: Caprice: Moderato

Franz SCHOBERLECHNER (1797–1843)
40 – Variação XXXVII [Sem indicação de andamento]

Franz Peter SCHUBERT (1797–1828)
41 – Variação XXXVIII [Sem indicação de andamento] (D. 718)

Simon SECHTER (1788–1867)
42 -Variação XXXIX: Imitatio quasi Canon a 3 voci

“S.R.D.” (Serenissimus Rudolfus DuxArquiduque RUDOLPH da Áustria) (1788–1831)
43 – Variação XL: Fuga: Allegro

Maximilian STADLER (1748–1833)
44 – Variação XLI [Sem indicação de andamento]

Joseph von SZALAY (1800–1860)
45 – Variação XLII [Sem indicação de andamento]

Wenzel Johann Tomaschek (Václav Jan TOMÁŠEK) (1774–1850)
46 – Variação XLIII: Polonaise: Tempo giusto

Michael UMLAUF (1781–1842)
47 – Variação XLIV: Presto

Friedrich Dionysius Weber (Bedřich Diviš WEBER) (1766–1842)
48 – Variação XLV: Con fuoco

Franz WEBER (1805–1876)
47 – Variação XLVI: Brillante

Carl Angelus von WINKHLER (1796–1845)
48 – Variação XLVII: Allegro con fuoco

Franz WEISS (1778–1830)
49 – Variação XLVIII [Sem indicação de andamento]

Johann Nepomuk August Wittasek (Jan Nepomuk August VITÁSEK) (1770–1839)
50 – Variação XLIX: Un poco moderato

Johann Hugo Worzischek (Jan Václav VOŘÍŠEK) (1791–1825)
51 – Variação L [Sem indicação de andamento]

Carl CZERNY
52 – Coda

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Rudolf Buchbinder, piano



BTHVN250, por René Denon

Vassily



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aham... e como o começo foi um bar, um pequeno palco e o violão 
um trechinho desse outro instrumento virtuoso de cordas