sexta-feira, 29 de março de 2019

Bom dia, Bossa Nova - Desafinado

Tom Jobim e João Gilberto

- Desafinado




Quando eu vou cantar, você não deixa
E sempre vêm a mesma queixa

Se você disser que eu desafino, amor
Saiba que isto em mim provoca imensa dor

O que você não sabe nem sequer pressente
É que os desafinados também têm um coração














Quando eu vou cantar, você não deixa
E sempre vêm a mesma queixa
Diz que eu desafino, que eu não sei cantar
Você é tão bonita
Mas tanta beleza também pode se acabar


Se você disser que eu desafino, amor
Saiba que isto em mim provoca imensa dor
Só privilegiados têm o ouvido igual ao seu
Eu possuo apenas o que Deus me deu


Se você insiste em classificar
Meu comportamento de anti-musical
Eu mesmo mentindo devo argumentar
Que isto é Bossa Nova, isto é muito natural


O que você não sabe nem sequer pressente
É que os desafinados também têm um coração
Fotografei você na minha Rolley-Flex
Revelou-se a sua enorme ingratidão


Só não poderá falar assim do meu amor
Este é o maior que você pode encontrar
Você com a sua música esqueceu o principal
Que no peito dos desafinados
No fundo do peito bate calado
Que no peito dos desafinados também bate um coração


Compositores: Antonio Carlos Jobim / Newton Mendonça
Letra de Desafinado © Corcovado Music Corporation
Gravação: 10 de novembro de 1958
Lançamento: fevereiro de 1959
Lado B: Hô-bá-lá-lá



quarta-feira, 27 de março de 2019

O Segundo Sexo - 41. Fatos e Mitos: ... a expressão "ter uma mulher"...

Simone de Beauvoir



41. Fatos e Mitos


Terceira Parte
Os Mitos

CAPITULO I


V




 ... a expressão "ter uma mulher"...




Há outra função que o homem de bom grado confia à mulher: sendo objetivo das atividades dos homens e fonte de suas decisões, ela se apresenta concomitantemente como medida dos valores. Ela se revela um juiz privilegiado. Não é somente para possuí-lo que o homem sonha com um Outro, é também para ser confirmado por ele; fazer-se confirmar por homens, que são seus semelhantes, exige dele uma tensão constante. Eis por que ele deseja que um olhar, vindo de fora, confira à sua vida, a seus empreendimentos, a ele próprio um valor absoluto. O olhar de Deus é oculto, estranho, inquietante: mesmo nas épocas de fé, só alguns místicos são por ele atingidos. Esse papel divino, à mulher foi que amiúde o atribuíram. Próxima do homem, por este dominada, ela não põe valores que lhe sejam alheios: e no entanto, como é outra, ela permanece exterior ao mundo dos homens e é, portanto, capaz de apreendê-lo com objetividade. Cabe a ela, em cada caso singular, denunciar a ausência ou a presença da coragem, da força, da beleza, confirmando ao mesmo tempo, de fora, seu valor universal. Os homens acham-se demasiado ocupados com suas relações de cooperação e luta para se constituírem público uns dos outros: não se contemplam. A mulher está afastada de sua atividade, não participa das justas nem dos combates. Toda a sua situação a destina a desempenhar esse papel de olhar. É por sua dama que o cavaleiro combate no torneio; é o sufrágio das mulheres que os poetas procuram obter. Quando Rastignac quer conquistar Paris, pensa primeiramente em ter mulheres, menos para as possuir em seus corpos do que para gozar essa reputação que só elas são capazes de criar para um homem. Balzac projetou em seus jovens heróis a história de sua própria juventude: foi junto das amantes mais idosas que ele começou a formar-se; e não é somente no Le Lys dam la Vallée que a mulher desempenha esse papel de educadora; é também o que lhe é apontado em L'Éducation sentimentale, nos romances de Stendhal e em numerosos outros romances de aprendizado. Já se viu que a mulher é a um tempo phisis e anti-phisis; encarna a Natureza como encarna a sociedade; nela se resume a civilização de uma época, sua cultura, como se vê nos poemas corteses, no Decamerone, em L'Astrée; ela lança modas, reina nos salões, dirige e reflete a opinião. A celebridade e a glória são mulheres. "A multidão é mulher", dizia Mallarmé. Junto das mulheres, o jovem inicia-se "no mundo" e essa complexa realidade chama-se "a vida". Ela é um aos objetivos privilegiados a que se destina o herói, o aventureiro, o individualista. Vê-se, na Antiguidade, Perseu libertar Andromeda, Orfeu buscar Eurídice nos infernos, e Troia combater para guardar a bela Helena. Os romances de cavalaria quase não conhecem outra façanha além da libertação de princesas cativas. Que faria o Príncipe Encantado se não despertasse a Bela Adormecida no bosque, se não cumulasse Pele de Asno com seus dons? O mito do rei que casa com a pastora lisonjeia o homem tanto quanto a mulher. O homem rico precisa prodigalizar, sem o quê, sua riqueza inútil permanece abstrata: ele precisa de alguém a quem dar. O mito de Cinderela, que Philipp Wyllie descreve com complacência em Generation of Vipers, floresce principalmente nos países prósperos; tem mais força na América do Norte do que alhures, porque aí se encontram os homens mais embaraçados com suas riquezas: esse dinheiro que acumulam durante uma vida inteira, como o gastariam se não o consagrassem a uma mulher? Orson Welles, entre outros, encarnou em Cidadão Kane o imperialismo dessa falsa generosidade: é para a afirmação de sua própria força que Kane resolve esmagar com seus presentes uma obscura cançonetista e impô-la ao público como uma grande cantora; poderíamos citar também, na França, muitos cidadãos Kane de menor porte. Em outro filme, O Fio da Navalha, quando o herói volta da Índia senhor de uma sabedoria absoluta, o único emprego que lhe sabe dar é o de reabilitar uma prostituta. É claro que em se sonhando assim doador, libertador, redentor, o homem ainda aspira à escravização da mulher; sim, porque para despertar a Bela Adormecida cumpre que ela durma; são necessários ogros e dragões para que haja princesas cativas. Entretanto, quanto mais o homem aprecia as empresas difíceis, mais ele se compraz em conceder a independência à mulher. Vencer é ainda mais fascinante do que libertar ou dar. O ideal do homem médio ocidental é uma mulher que se submeta livremente a seu domínio, que não aceite suas ideias sem discussão, mas que ceda diante de seus argumentos, que lhe resista com inteligência para acabar deixando-se convencer. Quando mais seu orgulho se torna ousado, mais ele deseja que a aventura seja perigosa: é mais belo dominar Pentesiléia do que desposar Cinderela. "O guerreiro aprecia o perigo e o jogo, diz Nietzsche, eis por que ama a mulher que é o jogo mais perigoso." O homem que gosta do perigo e do jogo vê, sem desprazer, a mulher transformar-se em amazona desde que conserve a esperança de dominá-la (1): o que exige, em seu coração, é que essa luta seja um jogo para ele, ao passo que a mulher nela empenha seu destino; e a verdadeira vitória do homem, libertador ou conquistador, consiste em que a mulher o reconheça livremente como destino. 


(1) Os romances policiais norte-americanos — ou escritos à maneira norte-americana — constituem um exemplo típico. Os heróis de Peter Cheney, entre outros, andam sempre às voltas com uma mulher extremamente perigosa, indomável para qualquer outro que não eles; após um duelo que se desenrola durante todo o romance, ela é finalmente vencida por Campion ou Callagham e cai-lhe nos braços.


Assim a expressão "ter uma mulher" comporta um duplo sentido: as funções de objeto e juiz não se acham dissociadas. A partir do momento em que a mulher é encarada como pessoa, só pode ser conquistada com seu consentimento: cumpre vencê-la. É o sorriso da Bela Adormecida que encanta o Príncipe; são as lágrimas de felicidade e gratidão das princesas cativas que emprestam verdade à façanha do cavaleiro. Inversamente, seu olhar não tem a severidade abstrata do olhar masculino, é suscetível de se encantar. O heroísmo e a poesia são, portanto, modos de sedução, mas deixando-se seduzir, a mulher exalta o heroísmo e a poesia. Aos olhos do individualista, ela detém um privilégio ainda mais essencial: apresenta-se-lhe não como uma medida de valores universalmente reconhecidos, mas sim como a revelação de seus méritos singulares e de seu próprio ser. Um homem é julgado por seus semelhantes pelo que faz, na sua objetividade e segundo medidas gerais. Mas algumas de suas qualidades, e entre outras suas qualidades vitais, só podem interessar a mulher; ele é viril, agradável, sedutor, terno, cruel unicamente em função dela: se é a essas mais secretas virtudes que dá valor, dela tem ele necessidade absoluta; por ela conhecerá o milagre de apresentar-se como outro, outro que é também seu eu mais profundo. Há um texto de Malraux, em La Condition humane, que exprime admiravelmente o que o individualista espera da mulher amada. Kyo interroga-se: "Ouve-se a voz dos outros com os ouvidos, a da gente com a garganta. Sim. A vida da gente também se ouve com a garganta, e a dos outros ?. . . Para os outros sou o que fiz. . . Somente para May ele não era o que fizera; somente para ele, ela era inteiramente diferente de sua biografia. O amplexo pelo qual o amor mantém os seres colados um a outro contra a solidão, não era ao homem que trazia ajuda; era ao louco, ao monstro incomparável, preferível a tudo o que todo ser é para si mesmo e que acarinha em seu coração. Desde que sua mãe morrera, May era o único ser para o qual ele não era Kyo Gisors e sim a mais estreita cumplicidade.. . Os homens não são meus semelhantes, são quem me olha e me julga; meus semelhantes são os que me amam e não me olham, que me amam contra tudo, que me amam contra a decadência, contra a baixeza, contra a traição: a mim, e não ao que fiz ou farei. São os que me amarão enquanto eu me amar a mim mesmo até o suicídio inclusive". O que torna humana e comovente a atitude de Kyo é o fato de que ela implica a reciprocidade e de que ele pede a May que o ame em sua autenticidade e não que lhe ofereça um reflexo complacente. Em muitos homens essa exigência se degrada; em lugar de uma revelação exata, eles buscam no fundo de dois olhos vivos uma imagem aureolada de admiração e gratidão, divinizada. Se a mulher foi, muitas vezes, comparada à água, é entre outros motivos porque é o espelho em que o Narciso macho se contempla; debruça-se sobre ela de boa ou de má-fé. Mas o que, em todo caso, ele lhe pede é que seja fora dele tudo o que não pode apreender em si, pois a interioridade do existente não passa de nada e, para se atingir, ele precisa projetar-se em um objeto. A mulher é para ele a suprema recompensa porque é sob uma forma exterior que ele pode possuir, em sua carne, sua própria apoteose. E é esse "monstro incomparável", isto é, a si mesmo, que ele possui quando aperta nos braços o ser que lhe resume o Mundo e a quem impôs seus valores e leis. Então, unindo-se a esse outro que fez seu, espera atingir a si próprio. Tesouro, presa, jogo e risco, musa, guia, juiz, mediadora, espelho, a mulher é o Outro em que o sujeito se supera sem ser limitado, que a ele se opõe sem o negar. Ela é o Outro que se deixa anexar sem deixar de ser o Outro. E, desse modo, ela é tão necessária à alegria do homem e a seu triunfo, que se pode dizer que, se ela não existisse, os homens a teriam inventado. 

Eles inventaram-na (2). Mas ela existe também sem essa invenção. Eis por que é, ao mesmo tempo, a encarnação do sonho masculino e seu malogro. Não há uma só representação da mulher que não engendre de imediato a imagem inversa: ela é a Vida e a Morte, a Natureza e o Artifício, o Dia e a Noite. Sob qualquer aspecto que a consideremos, encontramos sempre a mesma oscilação pelo fato de que o inessencial volta necessariamente ao essencial. Nas figuras da Virgem Maria e de Beatriz subsistem Eva e Circe.


(2) "O homem criou a mulher, com quê? Com uma costela de seu deus, de seu ideal". (Nietzsche, O Crepúsculo dos ídolos).


"Pela mulher, escreve Kierkegaard, em In vino veritas, a idealidade entra na vida, e sem ela que seria do homem? Mais de um homem se fez gênio graças a uma jovem. . . mas nenhum se tornou gênio graças a uma jovem de quem tivesse obtido a mão..." 

"É numa relação negativa que a mulher torna o homem produtivo na idealidade.. . Relações negativas com a mulher podem tornar-nos infinitos. . . relações positivas com a mulher tornam o homem finito nas mais amplas proporções." Isso significa que a mulher é necessária na medida em que permanece uma Ideia em que o homem projeta sua própria transcendência; mas que é nefasta enquanto realidade objetiva, existindo por si e limitada a si. É recusando casar-se com a noiva que Kierkegaard estima ter estabelecido a única relação válida com a mulher. E tem razão no sentido em que o mito da mulher colocada como Outro infinito acarreta, de imediato, seu contrário.

Porque é falso Infinito, Ideal sem verdade, ela se descobre como finidade e mediocridade e, concomitantemente, como mentira. Assim é que se apresenta em Laforgue. Este, em toda a sua obra, exprime seu rancor contra a mistificação que torna o homem tão culpado quanto a mulher. Ofélia, Salomé são, na realidade, "mulherzinhas". Hamlet pensa: "É assim que Ofélia me houvera amado, como "seu bem" e porque eu era social e moralmente superior aos bens de suas amiguinhas. E as pequenas frases que lhe escapam, nas horas em que as lâmpadas se acendem, acerca do bem-estar e do conforto!" A mulher faz o homem sonhar. Entretanto, pensa no conforto, no quotidiano; falam-lhe da alma quando não passa de um corpo. E acreditando perseguir um Ideal, o amante é o joguete da Natureza que utiliza todas essas místicas para fins de reprodução. Ela representa, em verdade, o quotidiano da vida; ela é parvoíce, prudência, mesquinharia, tédio. É o que exprime, entre outros o poema intitulado "Nossa companheirinha":


. . . Tenho a arte de todas as escolas
Tenho almas para todos os gostos
Colhei a flor de meus rostos
Bebi minha boca e não minha voz
Não procureis outra coisa:
Ninguém aí vive com clareza nem mesmo eu.
Nossos amores não são iguais
Para que vos estenda a mão
Sois apenas machos ingênuos
Eu sou o Eterno Feminino!
Meu Fim perde-se nas estrelas! Sou eu a Grande ísis!
Ninguém me arregaçou o véu
Pensai somente em meus oásis... (3)



(3) ... J'ali l'art de toutes les écoles
J''ai des âmes pour tous les goûts
Cueillez la fleur de mes visages
Buvez ma bouche et non ma voix
Et n'en cherchez pas davantage:
Nul n'y vit clair pas même moi.
Nos atnours ne sont pas égales
Pour que je vous tende la main
Vous n'êtes que de naífs males
Je suis 1'Éternel féminin!
Mon But se perd dans les Ètoiles!
Cest moi qui suis la Grande Isis!
Nul ne m'a retrousseé mon voile
Ne songez qu'à mes oásis. . , 


O homem conseguiu escravizar a mulher, mas desse modo despojou-a do que lhe tornava a posse desejável. Integrada na família e na sociedade, a magia da mulher dissipa-se em vez de se transfigurar; reduzida à condição de serva, ela não é mais a presa indomada em que se encarnavam todos os tesouros da Natureza. Desde o aparecimento do amor cortês, é lugar-comum dizer que o casamento mata o amor. Demasiado desprezada ou demasiado respeitada, por demais quotidiana, a esposa não é mais um objeto erótico. Os ritos do casamento destinam-se primitivamente a defender o homem contra a mulher; ela torna-se sua propriedade; mas tudo o que possuímos nos possui; o casamento é também uma servidão para o homem; é então que ele se vê preso na armadilha da Natureza. Por ter desejado uma jovem viçosa, o homem deve sustentar toda sua vida uma gorda matrona, uma velha encarquilhada; a joia delicada destinada a embelezar sua existência torna-se fardo odioso. Xantipa é um dos tipos femininos de que os homens sempre falaram com mais horror (4). Porém, mesmo que a mulher seja jovem, há


(4) Viu-se que foi na Grécia e na Idade Média o tema de numerosas lamentações.


no casamento uma mistificação, pois pretendendo socializar o erotismo só consegue aniquilá-lo. É que o erotismo implica uma reivindicação do instante contra o tempo, do indivíduo contra a coletividade; ele afirma a separação contra a comunicação; é rebelde a todo regulamento; contém um princípio hostil à sociedade. Nunca os costumes se dobraram ao rigor das instituições e das leis. É contra elas que o amor desde sempre se afirmou. Sob seu aspecto sensual, é aos jovens e às cortesãs que se endereça na Grécia e em Roma, carnal e platônico ao mesmo tempo, o amor cortês que sempre se destinou à esposa de outrem. Tristão é a epopeia do adultério. A época que renova o mito da mulher, por volta de 1900, é aquela em que o adultério se torna o tema de toda a literatura. Certos escritores, como Bernstein, esforçam-se por reintegrar, no casamento, o erotismo e o amor, numa defesa suprema das instituições burguesas; mas há mais verdade na Amoureuse de Porto-Riche que mostra a incompatibilidade dessas duas ordens de valores. O adultério só pode desaparecer com o próprio casamento. Porque o fim do casamento é, em suma, imunizar o homem contra sua mulher: mas as outras mulheres conservam a seus olhos uma vertiginosa atração; é para elas que ele se volta. As mulheres fazem-se cúmplices, porque se rebelam contra uma ordem que pretende privá-las de todas as suas armas. Para arrancar a mulher à Natureza, para escravizá-la ao homem mediante cerimônias e contratos, elevaram-na à dignidade de pessoa humana, deram-lhe liberdade. Mas a liberdade é precisamente o que escapa a toda servidão; e se se concede a um ser originalmente habitado por forças maléficas, ela se torna perigosa. E tanto mais quanto o homem se deteve nas meias medidas; só aceitou a mulher no mundo masculino fazendo dela uma serva, frustrando-a de sua transcendência; a liberdade que lhe outorgaram só podia ser de uso negativo; ela empenha-se em se recusar. A mulher só se tornou livre tornando-se cativa; renuncia a esse privilégio humano para encontrar de novo sua força de objeto natural. De dia, ela desempenha perfidamente seu papel de escrava dócil, mas, à noite, transforma-se em gata, em corça; introduz-se novamente em sua pele de sereia ou, cavalgando uma vassoura, participa de rondas satânicas. Por vezes é sobre o marido que exerce sua magia noturna; porém, é mais prudente dissimular essa metamorfose a seu senhor; são estranhos que ela escolhe como presas; eles não têm direitos sobre ela e ela continua planta, fonte, estrela, feiticeira para eles. Ei-la, portanto, votada à infidelidade: é o único aspecto concreto que pode assumir sua liberdade. Ela é infiel para além mesmo de seus desejos, seus pensamentos, sua consciência; pelo fato de ser encarada como objeto está entregue a toda subjetividade que resolve apossar-se dela; encerrada no harém, escondida sob véus, nem assim se tem certeza de que não inspire desejos a ninguém: inspirar desejo a um estranho já é estar em falta com o esposo e com a sociedade. Demais, ela faz-se muitas vezes cúmplice dessa fatalidade; é somente pela mentira e pelo adultério que pode provar que não é a propriedade de ninguém e desmentir as pretensões do homem. Eis por que o ciúme do homem tão facilmente desperta; vê-se nas lendas que a mulher, sem motivo, pode ser suspeita, condenada à menor desconfiança, como Geneviève de Brabant ou Desdêmona; antes mesmo de qualquer suspeita Grisélidis é submetida às mais duras provas. Esse conto seria absurdo se a mulher de antemão não fosse suspeita; não há necessidade de demonstrar suas culpas: a ela é que cabe provar sua inocência. Eis por que igualmente o ciúme pode ser insaciável; já se disse que a posse nunca pode ser positivamente realizada; mesmo em se proibindo a quem quer que seja servir-se dela, não se possui a nascente em que a gente se dessedenta. O ciumento bem o sabe. Por essência, a mulher é inconstante, como fluida é a água; e nenhuma força humana pode contradizer uma verdade natural. Através de todas as literaturas, nas Mil e Uma Noites, como no Decamerone, vemos os ardis da mulher triunfarem sobre a prudência do homem. E, no entanto, não é somente pela vontade individualista que este é carcereiro; é a sociedade que o torna responsável pela conduta da mulher, na qualidade de pai, irmão ou esposo. A castidade é imposta à mulher por motivos de ordem econômica e religiosa, devendo cada cidadão ser autentificado como filho de seu pai. Mas é muito importante também obrigar a mulher a representar exatamente o papel que lhe atribui a sociedade. Há uma dupla exigência do homem que força a mulher à duplicidade: ele quer que ela seja sua e que lhe permaneça estranha, deseja-a escrava e feiticeira a um tempo. Mas é somente o primeiro desses desejos que demonstra publicamente; o outro é uma reivindicação sorrateira que dissimula no segredo de seu coração e de sua carne. Ela contesta a moral e a sociedade; ela é má como o Outro, como a Natureza rebelde, como "a mulher má". O homem não se dedica inteiramente ao Bem que constrói e pretende impor; entretém vergonhosamente relações com o Mal. Mas onde quer que este ouse mostrar imprudentemente seu rosto a descoberto, ele luta contra. Nas trevas da noite, o homem convida a mulher ao pecado, mas em pleno dia repudia o pecado e a pecadora. E as mulheres, elas próprias pecadoras no mistério do leito, com muito mais paixão ainda rendem culto público à virtude. Assim como, entre os primitivos, o sexo masculino é laico enquanto o da mulher se impregna de virtudes religiosas e mágicas, não passa, nas sociedades mais modernas, o erro do homem de um deslize sem gravidade; consideram-no amiúde com indulgência. Mesmo se desobedece às leis da comunidade, o homem continua a pertencer-lhe; não passa de um menino levado que não ameaça profundamente a ordem coletiva. Ao contrário, se a mulher se evade da sociedade, retorna à natureza e ao demônio, desencadeia no seio da coletividade forças incontroláveis e perniciosas. À censura que inspira uma conduta desavergonhada, mistura-se sempre o medo. Se o marido não consegue constranger a mulher à virtude, ele participa do erro; sua desgraça é uma desonra aos olhos da sociedade; há civilizações tão severas que lhe obrigam a matar a criminosa para se dessolidarizar do crime. Em outras, pune-se o esposo complacente passeando-o, nu, montado num asno. E a comunidade encarrega-se de castigar a culpada em seu lugar: pois não é apenas a ele que ela ofende e sim toda a coletividade. Esses costumes existiram com certo rigor na Espanha supersticiosa e mística, sensual e aterrorizada pela carne. Calderón, Lorca, Valle Inclan fizeram disso o tema de muitos dramas. Em Casa de Bernarda Alba, de Lorca, as comadres da aldeia querem punir a jovem seduzida queimando com brasas "o lugar do pecado". Nas Divinas Palavras de Valle Inclan, a mulher adúltera apresenta-se como feiticeira que dança com o demônio; descoberto o pecado, toda a aldeia se reúne para arrancar-lhe as roupas e afogá-la. Muitas tradições relatam que se desnudava a pecadora e a seguir a lapidavam como está dito no Evangelho, enterravam-na viva, afogavam-na, queimavam-na. O sentido de tais suplícios era devolvê-la à Natureza depois de tê-la despojado de sua dignidade social; com seu pecado ela desencadeara eflúvios naturais perniciosos e a expiação efetua-se numa espécie de orgia sagrada em que as mulheres, despindo, batendo, massacrando a culpada, desencadeavam por sua vez fluidos misteriosos mas propícios, porquanto agiam de acordo com a sociedade.




continua...
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O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR

Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.

Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.

Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.


4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES



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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.

No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.



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Leia também:





O Segundo Sexo - 35. Fatos e Mitos: A hesitação do macho entre o medo e o desejo

O Segundo Sexo - 36. Fatos e Mitos: "Está cheio de teia de aranha lá dentro..."

O Segundo Sexo - 37. Fatos e Mitos: a masturbação é considerada um perigo e um pecado

O Segundo Sexo - 38. Fatos e Mitos: Mulher! És a porta do diabo

O Segundo Sexo - 39. Fatos e Mitos: A Mãe

O Segundo Sexo - 40. Fatos e Mitos: A Alma e a Ideia

O Segundo Sexo - 42. Fatos e Mitos: A mãe, a noiva fiel, a esposa paciente


Bom dia, Mercedes - Volver a los 17

Volver a los 17


Mercedes Sosa, Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento e Gal Costa



O CORO

"Desgraça! Desgraça! estamos sós - a Peste e nós. A última porta fechou-se! Não estamos ouvindo mais nada. O mar, de agora em diante, está por demais longínquo. Agora, estamos dentro da dor e teremos de rodar em torno desta cidade, sem árvores e sem águas, fechada por altas portas lisas, coroada por multidões ululantes... não merecemos esta prisão! Nossos corações não eram inocentes, mas nós amávamos o mundo e seus verões - e isto nos deveria ter salvo!... Mas por uma vez ainda, pela última vez, antes que nossas bocas se fechem sob a mordaça do terror, gritaremos no deserto!"

Albert Camus, Estado de Sítio, 1948.











Voltar aos 17 depois de viver um século
É como decifrar sinais sem ser sábio competente
Voltar a ser de repente tão frágil como um segundo
Voltar a sentir profundo como um menino diante de Deus
Isso é o que sinto neste instante fecundo


Vai se envolvendo, envolvendo
Como no muro a hera
E vai brotando, brotando
Como o musgo na pedra
Como o musgo na pedra, ai sim, sim, sim.


Meu passo retrocede quando o de vocês avança
O arco das alianças penetrou em meu ninho
Com todo seu colorido passeou por minhas veias
E até a dura corrente com a qual nos prende o destino
É como um diamante fino que ilumina minha alma serena


Vai se envolvendo, envolvendo
Como no muro a hera
E vai brotando, brotando
Como o musgo na pedra
Como o musgo na pedra, ai sim, sim, sim.


O que pode o sentimento não o pode o saber
Nem o mais claro proceder, nem o maior dos pensamentos
Tudo o muda num momento qual mago condescendente
Nos afasta docemente de rancores e violências
Só o amor com sua ciência nos torna tão inocentes


Vai se envolvendo, envolvendo
Como no muro a hera
E vai brotando, brotando
Como o musgo na pedra
Como o musgo na pedra, ai sim, sim, sim.


O amor é um turbilhão de pureza original
Até o feroz animal sussurra seu doce som
Detém os peregrinos, liberta os prisioneiros
O amor com seus esforços ao velho o torna criança
E ao mal só o carinho o torna puro e sincero


Vai se envolvendo, envolvendo
Como no muro a hera
E vai brotando, brotando
Como o musgo na pedra
Como o musgo na pedra, ai sim, sim, sim.


De par em par a janela se abriu como por encanto
Entrou o amor com seu manto como uma fraca manhã
Ao som de sua bela Diana fez brotar o jasmim
Voando qual serafim ao céu lhe pôs brincos
Meus anos em dezessete os converteu o querubim


Composição: Violeta Parra




terça-feira, 26 de março de 2019

Baudelaire - Pequenos Poemas em Prosa: XLVIII - Anywhere Out Of The World

Baudelaire - Pequenos Poemas em Prosa



XLVIII

ANYWHERE OUT OF THE WORLD


Esta vida é um hospital em que cada doente é dominado pelo desejo de mudar de leito. Um desejaria sofrer em frente à estufa, outro julga que se restabeleceria junto à janela. 

Por mim, tenho a impressão de que estaria sempre bem onde não estou, e essa questão de mudança é uma das que discuto constantemente com minha alma.

— Alma, minha pobre alma enregelada, que diria se fôssemos morar em Lisboa? Lá, deve fazer calor, e ficarias esperta como uma lagartixa. É uma cidade à beira-mar. Dizem que é construída de mármore e que o povo odeia os vegetais, arrancando todas as árvores. É uma paisagem ao teu gosto, uma paisagem feita de luz e minerais, além do líquido para refrescá-los!

A alma não responde. 

— Se amas tanto o repouso, ante o espetáculo do movimento, queres ir morar na Holanda, essa terra abençoada? Talvez te divertisses nessa região cuja imagem tantas vezes admiraste nos museus. Que achas de Rotterdam, tu que aprecias as florestas de mastros e os navios atracados junto às casas? 

Minha alma continua silenciosa. 

— Talvez a Batávia te sorrisse mais. Além disso, encontraríamos lá o espírito da Europa casado com a beleza tropical. 

Nem uma palavra. Minha alma estaria morta? 

— Terás chegado a um tal estado de letargia que só estejas satisfeita com teu mal? Nesse caso, fujamos para os países que evocam a Morte. Assumo o compromisso, pobre alma! Arrumaremos as malas pra Tornéu. Ou vamos mais longe ainda, para os extremos confins do Báltico; mais longe ainda da vida, se for possível; instalemo-nos no polo. Lá, o sol apenas toca a terra obliquamente, e as lentas alternativas da luz e da noite suprimem a variedade e aumentam a monotonia, essa metade do nada. Lá, poderemos tomar longos banhos de trevas, ao mesmo tempo que, para divertir-nos, as auroras boreais nos enviarão de vez em quando os seus feixes róseos, como reflexos de um fogo de artifício do Inferno! 

Finalmente, minha alma intervém e exclama com sabedoria: — Não importa onde! Não importa o lugar! O essencial é que seja fora deste mundo!



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Charles-Pierre Baudelaire (Paris, 9 de abril de 1821 — Paris, 31 de agosto de 1867) foi um poeta boémio ou dandy ou flâneur e teórico da arte francesa. É considerado um dos precursores do simbolismo e reconhecido internacionalmente como o fundador da tradição moderna em poesia, juntamente com Walt Whitman, embora tenha se relacionado com diversas escolas artísticas. Sua obra teórica também influenciou profundamente as artes plásticas do século XIX.
Nasceu em Paris a 9 de abril de 1821. Estudou no Colégio Real de Lyon e Lycée Louis-le-Grand (de onde foi expulso por não querer mostrar um bilhete que lhe foi passado por um colega).
Em 1840 foi enviado pelo padrasto, preocupado com sua vida desregrada, à Índia, mas nunca chegou ao destino. Pára na ilha da Reunião e retorna a Paris. Atingindo a maioridade, ganha posse da herança do pai. Por dois anos vive entre drogas e álcool na companhia de Jeanne Duval. Em 1844 sua mãe entra na justiça, acusando-o de pródigo, e então sua fortuna torna-se controlada por um notário.
Em 1857 é lançado As flores do mal contendo 100 poemas. O autor do livro é acusado, no mesmo ano, pela justiça, de ultrajar a moral pública. Os exemplares são apreendidos, pagando de multa o escritor 300 francos e a editora 100 francos.
Essa censura se deveu a apenas seis poemas do livro. Baudelaire aceita a sentença e escreve seis novos poemas, "mais belos que os suprimidos", segundo ele.
Mesmo depois disso, Baudelaire tenta ingressar na Academia Francesa. Há divergência, entre os estudiosos, sobre a principal razão pela qual Baudelaire tentou isso. Uns dizem que foi para se reabilitar aos olhos da mãe (que dessa forma lhe daria mais dinheiro), e outros dizem que ele queria se reabilitar com o público em geral, que via suas obras com maus olhos em função das duras críticas que ele recebia da burguesia.
Morreu prematuramente sem sequer conhecer a fama, em 1867, em Paris, e seu corpo está sepultado no Cemitério do Montparnasse, em Paris..


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Siempre fuiste la razón de mi existir
adorarte para mi fue religión
en tus besos yo encontraba
el calor que me brindaba
el amor y la pasión.











Ya no estas mas a mi lado corazón
en el alma sólo tengo soledad
y si ya no puedo verte
por qué Dios me hizo quererte
para hacerme sufrir mas.


Siempre fuiste la razón de mi existir
adorarte para mi fue religión
en tus besos yo encontraba
el calor que me brindaba
el amor y la pasión.


Es la historia de un amor
como no hay otro igual
que me hizo comprender
todo el bien, todo el mal
que le dio luz a mi vida
apagándola después
hay que vida tan obscura
sin tu amor no viviré.


Siempre fuiste la razón de mi existir
adorarte para mi fue religión
en tus besos yo encontraba
el calor que me brindaba
el amor y la pasión.


Es la historia de un amor
como no hay otro igual
que me hizo comprender
todo el bien, todo el mal
que le dio luz a mi vida
apagándola después
hay que vida tan obscura
sin tu amor no viviré.


Siempre fuiste la razón de mi existir
adorarte para mi fue religión
en tus besos yo encontraba
el calor que me brindaba
el amor y la pasión.


Composição: Carlos Eleta Almarán










domingo, 24 de março de 2019

Stanislaw PP - FeBeAPá: O puxa-saquismo desvairado

O Festival de Besteira

Festival de Besteira que Assola o País




O puxa-saquismo desvairado




Puxar saco do presidente da República é coisa que chaleira nenhum jamais conseguiu ou conseguirá ultrapassar. O verdadeiro puxa-saco é vidrado em presidente da República, seja ele um verdadeiro homem de Estado, seja ele um cocoroca total. Esta condição intransponível dos puxas é que levou o falecido Getúlio Vargas à Academia Brasileira de Letras, numa época em que o ilustre homem público ainda não tomava semancol em doses suficientes para escapar ao ridículo de uma imortalidade literária das mais rebarbativas. 

No setor administrativo, então, Deus me livre! Não há um prefeito cretino de cidade do interior que não sonhe com uma praça para inaugurar com o nome do presidente da República. A Pretapress, inclusive, já contou até a história daquele prefeito bronqueado com essas besteiras de estar mudando a toda hora o nome da praça principal da cidade, com as constantes oscilações democráticas, ora inaugurando placa nova com o nome de praça Presidente Café Filho, para logo mudar para praça Presidente Kubitschek, depois praça Presidente Jânio Quadros, e em seguida praça Presidente João Goulart, outra vez para praça Presidente Castello Branco. O homem, provando ser um bom administrador municipal, acabou com essa fofoca, inaugurando a placa definitiva com o nome da praça: praça Presidente Atual. 

Mas por que foi que eu falei isto tudo? Ah sim… no Ceará. Conforme vocês sabem, ninguém puxa mais saco da “redentora” do que os estados de Pernambuco, Ceará e Rio Grande do Sul. Pois imaginem só que no time do Ceará Sporting Clube, time que vem sendo um dos melhores do Norte-Nordeste, na disputa da Taça Brasil, tem um beque esquerdo chamado Eraldo, que é parente do marechal presidente. 

Ah rapaziada… pra quê! O rapaz tem recebido as mais variadas demonstrações de puxa-saquismo do momento, a ponto de ser recebido no aeroporto do Recife, quando o time do Ceará Sporting Clube foi jogar contra o Náutico, de Pernambuco, por autoridades do IV Exército. Diz que o Eraldo não é militar, mas apenas capitão do time do Ceará, condição a que chegou mais por sua técnica futebolística do que por chaleirismo e, se é verdade o que nos manda dizer o correspondente, os jornais do Ceará não fazem por menos quando anunciam a formação do quarteto de beques do time campeão, formado por Pipiu, Bacabau, Caiçara e o dito Eraldo. Volta e meia as folhas esportivas metem lá: “Pipiu, Bacabau, Caiçara e o capitão Eraldo de Alencar Castello Branco”.




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SÉRGIO PORTO nasceu no Rio de Janeiro em 1923 e morreu na mesma cidade em 1968. Foi cronista, radialista, homem de teatro e TV, compositor. Conhecido nacionalmente por meio do pseudônimo Stanislaw Ponte Preta, publicou, além de Febeapá, coletâneas de crônicas, textos sobre futebol, entre outros.



Bom dia, Tango - La Cumparsita

Carlos Gardel


- La Cumparsita





Si supieras,
Que aún dentro de mi alma,
conservo aquel cariño
que tuve para ti
Quién sabe si supieras
que nunca te he olvidado,
volviendo a tu pasado
te acordarás de mí










Si supieras,
Que aún dentro de mi alma,
conservo aquel cariño
que tuve para ti
Quién sabe si supieras
que nunca te he olvidado,
volviendo a tu pasado
te acordarás de mí


Los amigos ya no vienen
ni siquiera a visitarme,
nadie quiere consolarme
en mi aflicción
desde el día que te fuiste
siento angustias en mi pecho,
decí, percanta, qué has hecho
de mi pobre corazón?


Al cotorro abandonado
ya ni el sol de la mañana
asoma por la ventana
como cuando estabas vos,
y aquel perrito compañero,
que por tu ausencia no comía,
al verme solo el otro día
también me dejó


Si supieras,
Que aún dentro de mi alma,
conservo aquel cariño
que tuve para ti
Quién sabe si supieras
que nunca te he olvidado,
volviendo a tu pasado
te acordarás de mí



Compositores: Gerardo Matos Rodríguez
















histórias de avoinha: a dô dotro pode sê esquecida?

mulheres descalças



a dô dotro pode sê esquecida?
ensaio 127Bi – 2ª edição 1ª reimpressão




baitasar




A praça continua cheia daquela gente, a pianística comentô sem alarde de tamanho, como se fala prum vazio qualqué, só pra enchê sem urgência o silêncio, é um costume natural fugí pra relva macia do desilêncio vão qui devora os pensamento como os lírio enfeita os túmulo escondido na memória, tava vencida pelo cansaço pra se descobrí vestida com o véu da hipocrisia, num queria mostrá pra ela mesma a natureza dos hábito atrelado: reclamá de barriga cheia e fingí qui a dô dotro num pode sê sentida e esquecida

o painho encorajado pelo arrependimento e uma pequena tristeza respondeu ausente dele mesmo, nem tanto do tanto qui podia, mais apareceu seu estúpido desapreço pela vida qui ele julga vulgá, desinteressante e inferiô, Hoje, nesta praça, que já foi frequentada por gente de bem, só tem assombração de vagabundo e o pior da negrada. Abusam da nossa paciência. Pura perda de tempo ensinar à pobreza e pra essa negrada... modos de gente.

um arrepiu fugindo da praça junto com um suspiro de aguardamento fez estremecê os vidro da janela no mezanino, lamento de gente qui se escraviza pela ordem e pelo progresso, sem sabê uquié ordem nem entendê uquié progresso, gente qui grita em nome dos dono de tudo, lá do poço sem fundo da escravidão 

Veja, papai! Dois fidalgo conversando no meio do alvoroço todo, aposto que o assunto é o negrinho, parô de súbito e oiô pru painho, só pode ser, venha ver. Não podem ter outro motivo. Venha, tudo está parado na volta dos dois, até aquele baita criolo que acompanha de perto o acorrentado parou.

a praça pode num sê – é muntu possível qui num é – o centro da villa, mais tava no centro daquela sala pianística, as razão num era pra todos do mesmo feitio, mais se o centro das pessoa é a arrumação e o crescimento do avanço sem qualqué medida da vida qui tem na sua volta, a praça era só um circo em qui as pessoa ri e chora do palhaço, torce pru equilibrista caí e chora depois qui ele cai e reza pra ele num morrê

depois de suspirá o siô augusto chamô pela fia

Minha filha, por favor. Saia da janela... não vamos recomeçar. Essa praça não é o centro da vida em nossa Villa, muito menos, em nossa casa.

desta veiz, o painho pode tá certo, mais pelas razão de hôme branco qui julga e determina uqui é ou num é importante, a bondade é feita pela vontade dos hôme qui é branco, inté as muié aprendeu sê uquié pelo julgamento dos mesmo hôme, quem se recusa aprendê sê defunto-vivo vira defunto-morto 

Dá uma pena... e podia tê ficado nisso, uma dó qui podia serví tanto lá fora como lá dentro da casa pianística

a praça pode num sê o centro das terra da villa ou da terra-mundo, mesmo com a desconfiança de uns pra desdizê e a crença dotros pra confirmá uma coisa ou otra, mais é um lugá qui pode se oferecê como o meió dos mundo pra retocá a ignorância desalmada qui fecha as vista grossa prus mal-intencionado das justiça injusta

as lei num é pensada pra sê uma só

as justiça da villa é muntu mais qui uma ou duas, tem o justiçamento dos pretu, feito com as lei ou sem as lei; otro justiçamento qui tem muntu uso é pras vadia, feito pra conservá o lugá das família no alto das terra da villa; otro prus miserando pobre e triste é feito pra tê tudo no seu lugá de costume; delas, resulta a justiça sem o tapa-ôio qui conserva as regalia dos dono de tudo

as lei é pensada pra fazê tudo sê como é

é preciso entendê qui a villa num nasceu das lei, elas foi imaginada, considerada, aleijada, ajeitada e criada pela ordenança dos dono da villa, qui disse como queria o feitio da vida entre o medo e a hipocrisia, o desânimo e a ignorância, tudo escondido no silêncio duvidoso da ceguêra qui vê, mais num sabe uqui vê pruqui num qué vê

o fato estabelecido é qui a justiça das lei nunca existiu de verdade – e uquié verdade? – pra diminuí a fartura da vida dos dono de tudo, um justiçamento premeditado, refletido e pouco repetitivo inté pode sê usado pelos dono de tudo, esporádico e muntu pensadamente, é verdade – já descalçô a verdade? –, contra os afeiçoado e aliado, caso a cisma da traição exija o uso das represália pra mantê a firmeza do jogo, eles é qui tem e sempre teve a decisão das decisão: os dono de tudo manda e quem tem juízo obedece

é preciso entendê qui quem faz, acomoda, ajusta e julga com as lei da villa tá metido inté a raiz dos cabelo no serviço de obedecê os dono de tudo

Chuiquinha, chega! Saia da janela!

a muriquinha pianística voltô as vista pra mãinha e seu grito histérico, tava pasma de escutá ela falando grosso na frente do painho, logo ela, a rainha silenciosa da casa, sempre conformada, obediente e paciente com as vontade do marido

Mãezinha...

a mais véia tava o retrato dum trapo de pano rouco e triste qui foi colocado no sol pra secá e voltá tê uso, um uso cada veiz menos fidalgo e majestoso, no modo de vê do siô augusto 

ela num se surpreende mais quando tropeça, cai e levanta sozinha sem a ajuda do marido, ele óia e num se oferece; ela num precisa mais adivinhá sua verdadêra dimensão nem imaginá coisa diferente, Levanta, mulher. Caindo de madura? 

se lamenta e num se lamenta, sabe qui a casca da carne é a aparência qui a villa qué vê duqui ela tem pra mostrá, num basta tê as unha dos pé e das mão limpa e lapidada, a raiz num muda a cô da flô

Obedeça seu pai, já!

a voz da mãinha tava pinicando e embostando os alicerce da sua silenciosa vontade, foi quando o brilho alaranjado da rua encontrô a silenciosa sinhá e tingiu com a aura da sua luz inocente a cúmplice invisível dadô qui ela carrega, a culpa de durumí só dulado do marido, sem ninguém pra se pendurá no pescoço, uma muié inferiô qui subiu obrigada na cama do seu siô pra nunca mais descê  uqui a villa fazia enquanto o dono da casa lhe subia sem querê sabê se ela queria, sem puruguntá se podia subí

a villa nunca se incomodô de respondê enquanto ela se incomodava de fazê uqui era preciso fazê: ele gemê em silêncio, agarrada com unha e dente no travessêro

Mãezinha... o sol ainda está macio e carinhoso, a pianística comentô sem alarde de tamanho, falava prum vazio qualqué, queria enchê com urgência o desilêncio, fugí pra relva macia do colo da mãinha, mais em vão, a solidão devora os pensamento e engole as palavra como os lírio enfeita os túmulo escondido na memória

a mais véia qui tava sentada, e assim ficô, num ergueu nem a quêxada pra oiá lá pra fora, sabia de tanto vê no silêncio da sua solidão qui a vista do panorama da noite escura é a repetição das otra escuridão descampada na bêrada do rio, É só escurecer e todas essas belezas viram verdadeiras taperas, como um nariz sujo que não respira nem cheira, mas está lá e não sabe o porquê existe.

E não esqueça, Chiquinha, a muriquinha virô-se na direção do painho, isso era uma novidade pra pianística, os dois se combinando com as palavra sem suspeitá qui as palavra dos dois, cada veiz mais, quase nada valia pra muriquinha qui num sorria nem se acomodava, a escuridão dá cobertura para essa negrada vil, como só eles sabem usar. Ainda bem que acabam mortos por algum motivo.

chiquinha experimentava o cansaço e a insuficiência pra sê mais qui a agulha do paiêro, naquele jogo de mandá e obedecê, gato e rato, prugunta e resposta sem resposta

Coitadinho...




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