sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Chico Buarque - Ópera do Malandro / 1o. Ato - Cena 1 (1a)

Ópera do malandro



Chico Buarque 
 

Ópera do malandro
americanismo: da pirataria à modernização autoritária (e o que se pode seguir)
 

"A multidão vai estar é seduzida" — Teresinha Fernandes de Duran


PRIMEIRO ATO


CENA 1


Casa de Duran; misto de sala de estar, escritório e bazar; Duran está sentado à escrivaninha e fala ao telefone.


DURAN
É isso mesmo, tem que dar um basta nessa malandragem! No dia em que todo brasileiro trabalhar o que eu trabalho, acaba a miséria. Mas viu, Chaves, eu tô te ligando pra lembrar que amanhã é o último dia do mês. . . É, inspetor, a dívida tá em trinta contos e no dia primeiro passa a trinta e três. Hein? Tem nada demais, dez por cento ao mês. A inflação tá galopando aí fora... Abatimento? Sei. Bem, eu vou examinar com a maior boa vontade. . . Oliveira, Oliveira. . . Cremilda Pacheco de Oliveira? Celina, Conceição, Cremilda, é minha sim. . . Vulga Marli Sodoma, quarenta e um aninhos, hummmm. . . Atentado ao pudor, é? Olha, inspetor, sinceramente, eu não sei o que é que essa senhora ainda está fazendo aqui no meu fichário. O quê? Não, não me interessa. A imagem da minha empresa não pode ficar comprometida por causa duma Marli Sodoma! Não, já decidi. Nem por três vinténs. Aciona aí a Operação Faxina, tá bom? O quê? Mudou, é? Ha ha, essa é boa. Operação Detergente, como é que é mesmo? Sei. . . Elimina a gordura sem deixar vestígio? Ha ha ha, formidável, essa agora. . . Sim. Garcia? Maria de Jesus Garcia, tá aqui na mão. . . Ah, claro, é a Jussara Pé de Anjo. O que há com ela? Suadouro, é? Sei, sei. . . É, pois é, ela é violenta mesmo. E um touro! E se você não se cuidar ela destrói a tua delegacia. (Toca a campainha) Pode entrar! Mas olha, solta a Jussara, tá? No fundo ela é boa moça. Trabalha direitinho, trabalha, tem muito cliente que aprecia o jeitão dela. E ela ainda me dá uma mãozinha como leoa-de-chácara. O quê? Duzentos mil-réis? Tá louco, ô Chaves! Não é me extorquindo desse jeito que você vai abater a dívida, não. Cento e cinquenta e olhe lá. (Toca a campainha) Pode entrar! Mais quinhentos mil-réis do quê? Que debutante? Não, hoje não chegou aqui nenhuma debutante. Aliás, a última mocinha que você teve a audácia de me recomendar, eu recusei. É, tava estragada. Pois é. Tem nada de quinhentos mil-réis. Essas tuas debutantes, de agora em diante, eu só recebo em consignação. (Toca a campainha) Eu vou ter que desligar, Chaves, a gente se fala depois. (Toca a campainha; Duran desliga o telefone e berra) Entra, porra! (O sininho toca novamente; Duran levanta-se e vai até a porta, que é uma porta giratória; sai por ela e volta empurrando uma jovem de aparência lamentável, muito magra e com a roupa esfarrapada) Não sabe ler, não? Não viu a placa escrito: entre sem bater?

FICHINHA
Não sei ler, não senhor. . .

DURAN
Ahn. . . Mas não me ouviu ali aos berros? Tá surda ou não limpou o ouvido hoje?

FICHINHA
Acho que tô meio surda, sim senhor.. . Mas me mandaram vir assim mesmo procurar o "seu" Durão.

DURAN
Durão, não. Duran! Fernandes de Duran! Quem foi que te mandou aqui, mulher?

FICHINHA
Foi na cadeia, sim senhor. Disseram pra vir na Rua das Marrecas 32, Agência de Empregos "A Brasileira"... "Seu" Durão é o senhor?

DURAN
Duran! Duran! E o seu nome, qual é?

FICHINHA
Raimunda Dias. Mas me chamam de Fichinha, sim senhor.

DURAN
Fichinha, é?

FICHINHA
Fichinha, sim senhor.

DURAN
E o que é que você foi fazer na cadeia, meu bem? Compras? 

FICHINHA 
"Seu" Durão, eu não sei por que é que me levaram pra lá, não. Eu não conheço a cidade, sabe? Eu sou do Norte. Eu nem queria descer pro Rio, não senhor. Eu tinha um namorado lá na Paraíba, um noivo, tinha até casamento marcado, aí, sabe como é, o noivo se precipitou, fez isso e aquilo, depois se alistou na FEB e me deixou sozinha. Aí minha família disse que eu não podia ficar mais lá assim toda desonrada do jeito que fiquei...

DURAN
Aí a coitada tomou um gaiola e veio procurar emprego no Sul, mas não conseguiu porque as pessoas só querem se aproveitar dela porque ela tá só e desprotegida e assim desprotegida ficou no meio-fio esperando condução ali pertinho da Praça Mauá, rodando a bolsa por causa dos mosquitos, quando passou o tintureiro e carregou com ela pro distrito, onde a inocente foi fichada como vadia, vagabunda e puta. . .

FICHINHA 
Não senhor, fui fichada como comunista. Porque tava muito mal vestida pra ser puta, foi o que eles disseram lá. E na confusão da tal da triagem me jogaram numa cela cheia duns sujeitos tudo de bigodinho e que ficavam gritando um negócio chamado anauê dentro do meu ouvido. Passei uma semana com eles berrando esse anauê e acho que daí é que fiquei meio surda e fui ficando louca e comecei a gritar também, com toda a força dos meus bofes, comecei a gritar que não era nada daquilo que eles pensavam, que eu não era comunista nem anauê, que eu era presa comum, queria tratamento de presa comum, e que eu era vadia, vagabunda e puta e que o Nordeste inteiro já me comeu, até o padre, até o baitolo, até o boi do bumba-meu-boi e é por isso que me chamam de Fichinha... (Chora convulsivamente)

DURAN 
Puta, é?

FICHINHA 
Puta, é sim senhor.

DURAN 
E pratica há quantos anos?

FICHINHA 
Faz uns sete anos, sim senhor.

DURAN 
Doenças?

FICHINHA 
Umas dezoito ou dezenove, não lembro direito. . .

DURAN 
Cancro mole, mula, sífilis, blenorragia. . .

FICHINHA 
Sei não senhor. . . Tive todas essas doenças da vida, mas não sei o sobrenome delas não. . .

DURAN 
É, o que se há de fazer. As mulheres são engraçadas. Enquanto estão gozando saúde, a carne rija, a pele macia, tudo no lugar, elas ficam se entregando a qualquer um, no mato, atrás do tanque, de pé no banheiro, ficam se entregando a troco de nada, a troco duma goiaba, como se aquele corpo não valesse um tostão. Depois que elas começam a desmanchar, a cara cheia de pereba, muita celulite, pelanca abanando, cheirando mal, tudo podre e inflamado por dentro, aí é que elas se lembram de cobrar por esse corpo. . . É, infelizmente, minha cara Fichinha, eu já estou com os quadros completos. São mil quatrocentas e trinta e duas funcionárias com carteira assinada, salário-mínimo, assistência médica e oito horas de trabalho. É, infelizmente. . . Quantos anos você tem?

FICHINHA Dezessete, sim senhor.. .

DURAN Dá uma voltinha aí.

FICHINHA Dou, sim senhor.

DURAN 
Olha, Fichinha, eu sei que vou fazer asneira, mas o teu caso me comoveu. O que tem chegado de conterrânea tua ultimamente, não é brincadeira. E eu vou admitindo, até por uma questão de patriotismo. Tô dispensando as polacas que são ótimas, são saudáveis, mas andam mal acostumadas e fazem exigências absurdas. . . É, acho que vou te admitir como estagiária.

FICHINHA 
Como é?

DURAN 
Estagiária. Você faz um teste, trabalha umas noites e, se aprovar, passa a funcionária efetiva. Mas primeiro tem que pagar a taxa de inscrição.

FICHINHA 
Pagar? Eu não tenho nada. Me levaram até a bolsa...

DURAN 
Bem, assim também fica impraticável. Eu tô querendo ajudar, mas assim. . . Você tem que fazer uns exames, tem que fazer tratamento nessa boca, enfim, só pra começar precisa importar um caixote de penicilina. E quem vai pagar? Tem graça. . . Ora. . . Vá lá, vá lá. Vou te dar um salvo-conduto provisório pra entrar na ronda. Sobre cada dez mil-réis que você receber, a agência cobra cinco de comissão, certo?

FICHINHA 
Certo, sim senhor.

DURAN 
E mais dez por cento pelos acessórios.

FICHINHA 
Acessórios?

DURAN
Claro, minha filha. Ou você pensa que vai arranjar homem com essa carcaça que o diabo lhe deu? Precisa dar um toque aqui, um retoque ali, umas proeminências, umas protuberâncias, um não-sei- quê que satisfaça as taras dos homens. Porque o sujeito que tá cansado do trabalho, cansado de voltar pra casa, cansado do arroz, do feijão, com o saco cheio da mulher, querendo esganar os filhos, você acha que esse sujeito vai parar na zona a fim de quê? De fazer papai e mamãe? Ora, pombas! É por isso que o meu ofício está cada dia mais ingrato. E ao mesmo tempo mais fascinante, por- que tem que estar sempre criando um novo apelo que desperte o sexo exausto da humanidade! (Abre uma cortina mostrando uma vitrine repleta de objetos) Seios de paina, bunda de borracha, bota de sargento, avental de babá, hormônio, foliculina, gumex, pomada japonesa, vibradores, consoladores, chicotes, diafragmas laminados, isto é ciência! E as minhas funcionárias entram com a arte! (Grita) Vitória! Vitória! Venha ensinar a arte a esta jovem!

VITÓRIA
(Descendo as escadas com passo firme) Que isso? Esmola outra vez? Isso já está virando um abuso, já é debochar da caridade cristã! Por onde foi que você entrou? Vai, vai, vai, passa lá na cozinha e pega um naco de pão. Se a gente dá dinheiro, vai tudo pra cachaça. 

DURAN 
Não, Vitória, calma. . .

VITÓRIA
É sim, se fosse pra comer eu dava. A gente tem coração e não sabe negar esmola. Domingo passado, na saída da missa, eu dei cinco tostões prum desgraçado que estava estrebuchando na sarjeta. Na mesma hora o homem ficou bom e correu pro botequim. É cachaça e jogo do bicho, gente ignorante! Sai, sai, sai, eu não dou mais um tostão!

DURAN
Vitória, deixa eu falar.

VITÓRIA
Pois fala, que é que tá esperando?

DURAN
Não é mendiga não...

VITÓRIA
Ah, é a arrumadeira? Trouxe referências? Não? Sem referências eu não aceito mais não. A última que empreguei, se lembra, Duran, foi roubando um garfo, foi surrupiando uma colher, quando fui ver tinha sumido um faqueiro completo de prata. Tem namorado, moça? Com namorado então, nem se fala! A gente é compreensiva, dá um pouco de confiança, a empregada aproveita e passa o dia no portão. . . E o suflê pegando fogo dentro do forno. É por isso que não para empregada na minha casa.

DURAN
Essa é Fichinha, Vitória. Funcionária nova.

VITÓRIA
Funcionária de quem?

DURAN
Vai estagiar na butique dos Arcos.

VITÓRIA
Você ficou maluco, Duran? Tá doente? Botar essa mulher pra trabalhar na butique? Quer dizer, mulher é força de expressão. Isso aí é um equívoco. Isso é um aleijão! Não, não, não eu não posso acreditar.

DURAN
Vitória, eu tenho que trabalhar. Vê aí os acessórios pra ela.

VITÓRIA
Mas isso é um absurdo! Brincadeira de mau gosto... Você vai ver só. Vem cá, moça. . . (Leva Fichinha para trás de um biombo) Vamos tentar o impossível. (Alto) Ih, Duran, essa mulher pelada tá pior do que antes! Encolhe essa barriga d'água, vamos. Barriga. . . Isto é uma moringa cheia de ameba. (Alto) Que comissão você tratou, Duran?

DURAN
A de sempre, cinquenta por cento.

VITÓRIA
Cinquenta por cento? Mas isso é comissão de catarina, loura e de olhos azuis. Não, mocinha, se você quer trabalhar pra gente tem que pagar sessenta, certo?

FICHINHA
Tá certo, sim senhora.

VITÓRIA
Não dá, não dá, isto é uma desgraça. Vê lá se isto é bunda que se apresente. Esta vala nunca foi bunda, nem aqui nem no Nordeste. É, você me desculpe mas não vai dar pra garantir salário-mínimo. Só de enchimento postiço, pintura, proteína, você vai me consumir uma barbaridade! Olha, além dos sessenta tem quinze por cento de acessório, tá?

DURAN
Cadê a tua filha, Vitória?

VITÓRIA
Teresinha ainda deve estar sonhando com os querubins! Aliás, nem sei a que horas ela chegou esta noite. Só sei que o capitão ficou de levar ela ao Cassino da Urca, olha só. . .

DURAN
Capitão? Que capitão?

VITÓRIA
Ora, Dudu, eu já lhe falei do capitão. Ele tem saído muito com a Teresinha ultimamente.

DURAN
Não é aquele bêbado. . .

VITÓRIA
Que nada, Dudu, como você tá desatualizado! O capitão é da pontinha! Parece mesmo um cavalheiro de tradição, família e quiçá propriedades em Petrópolis. Sempre tão elegante, usa luvas de vidro.

DURAN 
E não se corta? Um aperto de mão mais violento e deve voar caco pra tudo quanto é lado. Ha ha ha. . .

VITÓRIA
Que ignorância, Duran! Não sabe que luva de vidro é como a gente chama essas luvas daquele tecido novo, importado, como é que é mesmo? É náilon, isso, luvas de náilon, náilon autêntico, importado dos Estados Unidos.

DURAN
Esse capitão é viajado, é?

VITÓRIA
E não! Só dá gorjeta em dólares. Está vendo esse rapé? É da Bolívia. Ele que mandou pra mim, pela Teresinha. Olha, eu não quero tomar partido não, mas pelos agrados que vem fazendo, sei não, acho que o capitão está mesmo bem intencionado.

DURAN
O que você quer dizer com bem intencionado?

VITÓRIA
E se eu conheço alguma coisa do pensamento feminino, a tua filha também tá bem intencionada pra chuchu.

DURAN
Espera aí, Vitória. Você tá falando de caso ou casamento?

VITÓRIA
E por que não casamento? Tua filha já completou vinte e três anos, você sabia?

DURAN
Vitória Regia! A tua filha é uma galinha! Atraca aí um marinheiro de merda e, só porque sabe falar alô, OK e good night my boy, já fica a putinha achando que topou com o Rockefeller. E a vaca velha por trás, só incentivando.

VITÓRIA
Você é bem grosso, hein? Se há uma coisa no mundo de que você não pode me acusar é de saber pouco de homem. Certo, me enganei uma vez e de maneira fatal. Com você!

DURAN
Escuta, Vitória, eu dou toda a independência à tua filha. Ela tem até entrada independente pra ir e vir com quem quiser. Mas daí a casar vai um passo multo grande. Já mexe com a minha vida! Interfere no meu patrimônio!

VITÓRIA
Mas, Dudu, é inevitável que ela se case um dia, que tenha filhos, um lar, tudo isso que faz uma mulher se sentir realizada. Assim como eu. . .

DURAN
Teresinha é o nosso maior investimento, Vitória! Ninguém aqui criou essa menina pra mulher de malandro não! O que a gente aplicou nela, é pra futura mulher de ministro de Estado, pelo menos. E quando ela arrumar um ministro de Estado, que o traga pela porta da frente e me apresente a ele, entendido?

VITÓRIA
Te apresenta como, se você nem fala com ela?

DURAN
Eu? Ela é que não fala comigo.

VITÓRIA
Vocês dois são tão parecidos! Tão cabeçudos!

DURAN
Ela não sabe se valorizar. Se tivesse um mínimo de tino comercial, saberia que cinquenta quilos de carne não se dão assim pra qualquer um comer de graça não. Ah, se eu tivesse o corpo dela!

VITÓRIA
Você tá subestimando a cabecinha da tua filha, Dudu. Eu que falo com ela, e muito, sei que ela não há de aceitar proposta de casamento sem estar muito bem coberta. Aliás, ela gosta muito de imitar essas moças de sociedade que saem no jornal de domingo. Teresinha gosta de levar vantagem em tudo. Já disse e repito, Duran: ela é a tua cara!

DURAN
Queria acreditar nisso, Vitória, mas eu tenho medo. Em nossa família não pode caber um sanguessuga.

VITÓRIA
Pode deixar que ela não vai prejudicar a gente. Eu ponho a mão no fogo pela honestidade da minha filha. Fichinha sai de trás do biombo, irreconhecível

FICHINHA
Licença. . .

VITÓRIA
Olha só, Duran! E não é que você tinha vazão?

DURAN
Mas é claro, mulher! Quando é que você vai parar de duvidar dos meus milagres? Fichinha, você está uma tetéia! Agora dona Vitória vai-lhe ensinar como é que se faz pra viver do amor.


Vitória canta "Viver do Amor"


Pra se viver do amor
Há que esquecer o amor
Há que se amar
Sem amar
Sem prazer
E com despertador
— como um funcionário
 
Há que penar no amor
Pra se ganhar no amor
Há que apanhar
E sangrar
E suar
Como um trabalhador
 
Ai, o amor
Jamais foi um sonho
O amor, eu bem sei Já provei
E é um veneno medonho
 
É por isso que se há de entender
Que o amor não é um ócio
E compreender
Que o amor não ê um vício
O amor ê sacrifício
O amor é sacerdócio
Amar É iluminar a dor
como um missionário


VITÓRIA
Vai, minha filha. Deus te abençoe.












Viver do Amor ( Lucinha Lins) 
- Ópera do Malandro 2003 







continua...


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NOTA 

O texto da "Ópera do Malandro" ê baseado na "Ópera dos Mendigos" (1728), de John Gay, e na "Ópera dos Três Vinténs" (1928), de Bertolt Brecht e Kurt Weill. O trabalho partiu de uma análise dessas duas peças conduzida por Luís Antônio Martinez Corrêa e que contou com a colaboração de Maurício Sette, Marieta Severo, Rita Murtinho, Carlos Gregório e, posteriormente, Maurício Arraes. A  equipe também cooperou na realização do texto final através de leituras, críticas e sugestões. Nessa etapa do trabalho, muito nos valeram os filmes "Ópera dos Três Vinténs", de Pabst, e "Getúlio Vargas", de Ana Carolina, os estudos de Bernard Dort ("O Teatro e Sua Realidade"), as memórias de Madame Satã, bem como a amizade e o testemunho de Grande Otelo. Contamos ainda com a orientação do prof. Manoel Maurício de Albuquerque para uma melhor percepção dos diferentes momentos históricos em que se passam as três "óperas". E o prof. Luiz Werneck Vianna contribuiu com observações muito esclarecedoras. Esta peça é dedicada à lembrança de Paulo Pontes. 

Chico Buarque Rio, junho de 1978


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Leia também:

Chico Buarque - Ópera do Malandro (prefácio e nota)
Chico Buarque - Ópera do Malandro (introdução)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / 1o. Ato - Cena 1 (1a)
Chico Buarque - Ópera do Malandro / 1o. Ato - Cena 1 (1b)

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Chico Buarque - foi musicando o poema "Morte e Vida Severina", de João Cabral de Mello Neto, encenado pelo grupo universitário TUCA, que Chico Buarque se revelou como compositor, dois anos antes do sucesso de "A Banda", "Roda Viva", sua primeira peça, teve uma carreira tumultuada: estreou no Rio, em 1967, com um sucesso que desgostou a muita gente; em São Paulo, os atores foram espancados durante o espetáculo e, em Porto Alegre, sequestraram a atriz Elizabeth Gasper. A peça acabou proibida pela censura.
Chico só voltou ao teatro em 1972. OU melhor: tentou voltar.. Depois de muito tempo e dinheiro gastos com ensaios e produção, "Calabar - O Elogio da Traição", teve sua encenação vetada. E a censura foi além: proibiu a imprensa de fazer qualquer referência à obra, aos autores e até ao próprio Calabar. Mas, transcrita em livro, a peça esgotou-se rapidamente.
No ano seguinte, outro sucesso de venda: "Fazendo Modelo - Uma Novela Pecuária". E, em 1975, apesar de inúmeros cortes, "Gota d'Água" chegou aos palcos de Rio e São Paulo, onde ficou por dois anos. Agora, aí está a "Ópera do Malandro", que estreou no Rio  a 26 de julho de 1978, e que é mais uma prova do gênio de Chico Buarque de Hollanda.


O Brasil Nação - V2: § 88 – Sob a ignomínia política, a miséria do povo - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim



O Brasil Nação volume 2



SEGUNDA PARTE 
TRADIÇÕES



À glória de
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução


capítulo 8


A Revolução Republicana



§ 88 – Sob a ignomínia política, a miséria do povo


Na luz ofuscante da terra pátria, como fundo vivo de tradições constantemente contrariadas, um povo apagado, deprimido sob um século de esperanças mortas, singela melancolia, que só o coração aviventa. É a própria substância da nação brasileira. Em reverso de miséria, o estado da massa popular explica-se pela degradação dos dirigentes: fúria de desejos materiais, sugestões de cobiça, embate de egoísmos grosseiros... depressão de apetites saciados, ou desfalecimentos de vontades, no despeito de ambições insatisfeitas... deposita-se em vasa, onde afundou toda a nobreza das consciências dominantes, e sobre a qual há de decantar-se um povo esgotado, pois que a vida lhe tem sido o perpétuo labor de pariá, a nutrir a renascente infecção. Nesse trama em que o mantêm dominado, o povo brasileiro dá ideia de qual humanidade larvar, que um destino mau retém, a não deixar elevar-se para as formas realmente humanas, socialmente evoluídas. No entanto, na sua espontânea cordialidade, esses humildes irradiam vida. Não têm formas para impô-la; não sabem, mesmo, que têm o supremo direito a uma existência superiormente definida; não lhes veio, ainda, a legítima ânsia de reivindicação; mas, na expansão afetiva lhe palpita a própria essência da vida social. Mantê-lo, ainda, na ignomínia; acreditar que é possível negar-lhe eternamente o caminho na insofismável ascensão; esse é o crime estúpido, por que os nossos dirigentes pagarão caro. Pobre povo! Tão naturalmente simples na grandeza destas paisagens! Pobres gentes, essencialmente boas, para aceitar a secular espoliação que as avilta! Na sua tranquila cordialidade de agora, esse pobre povo apenas insinua implícita súplica de viver: mas, será eternamente assim?... E não se sentem infamemente criminosos, tais dirigentes, que só podem governar sobre o absoluto amesquinhamento das populações?...

Feito nos transes do doloroso cativeiro de duas raças, aproveitadas pelo senhor até para dar-lhe prole, o povo, nesta pátria, ainda teve coração para ser o ambiente de meiguice em que fomos recebidos e ainda vivemos. No entanto, fusão de martírios, a esse povo veio a consciência como percepção do domínio mais hediondo, pelos mais odientos mandões de que a espécie humana tem sofrido; e as almas se definiram, então, na reação de afetos contra o cativeiro. E o coração brasileiro, ferido pelo mal, foi generoso e bom. Por isso mesmo, na contemplação desse povo inexoravelmente deixado à insuficiência, à ignorância e ao atraso; e, ainda assim, sugado sempre, cada vez mais tiranizado e desprezado pela bestialidade dominante; fremem todos os nervos, e esvai-se o coração, já condoído, já revoltado. De fato, por fora dos governantes, que são os brasileiros? Politicamente, serviço e prestígio de São Paulo e Minas; economicamente, insuficiência de meios, para um labor que mal permite viver, entre a fiscalidade escorchante, o mercantilismo de ultramar, e as multiplicadas grandes empresas a que o Brasil foi doado. Então, na sombria perspectiva traçada nos dirigentes, o povo nem aparece. No entanto, realidade de sempre, ele é uma grandeza, a única esperança para os que ainda admitem um futuro digno. Sim: trinta e seis milhões de criaturas, que, finalmente, são as que trabalham... Isto é alguma coisa. Mal se explica o amesquinhamento atual; mal se explicaria, se não soubéssemos como até agora, esse povo, que é a própria nação brasileira, tem sido, apenas, o manso e ignaro rebanho, desleitado e tosquiado, pelos três ou quatro milhares de politicantes, e as centenas de mil outros parasitas, senhores da produção, carrapatos sobre a distribuição da mesma produção.

O amesquinhamento do Brasil é essa mesma degradação dos dirigentes, dominando o aviltamento do povo. As sociedades modernas valem pelo pensamento, para o bem, para o mal. E nós valemos como um país cujos dirigentes só se definem pela incapacidade, e cuja massa se conserva, sistematicamente, no embrutecimento preciso para a supremacia da mesma incapacidade. De tal sorte, só subsiste a nação, em nominal soberania, porque a condição de ser americana a garante. Fosse outra a sua situação no mundo, em imediata competência com os povos válidos, e teríamos perdido até o nome. O Brasil é um mundo fechado à verdadeira atividade social e de pensamento, isolado, sequestrado num mentalismo arcaico, na inumana aridez de um coimbrismo regredido da própria Coimbra de 1800. Temos vivido em constância de governos garantidos pela placidez das populações, dirigidos numa política depravada na exploração da mesma placidez, e que, assim depravada, há um século intenta fazer uma nação sem povo, para perpetuidade do bragantismo que nos dirigentes se continua. Em verdade, a massa da nação brasileira é uma, e a gestão política é outra, nunca em relação de existência com a alma nacional. Nem o concreto da vida popular existe para os dirigentes, que ignoram o próprio povo, como tudo o mais, indispensável para fazer o conveniente governo do país. E por que sejam em tudo domínio torpe, eles ainda malsinam e infamam essa pobre população de quem são feitores, prontos a fuzilá-la, quando ela se mostra na única atividade social que lhe é deixada: a do cangaceirismo. Koster, que tão bem conheceu aqueles humildes valentes, periodicamente levantados em jagunços e fanáticos, logo o notou: “São as más instituições feitas às gentes, as más paixões, desencadeadas em correrias”. De fato: o cangaceirismo é a reação, mórbida, se quiserem, mas inevitável, numa população forte e a quem a ordem normal nenhuma possibilidade oferece de boa atividade social e política. Nas suas insulsas e insinceras parolagens, eles, dirigentes, insistentemente falam do povo, mas tudo não passa de expressão vazia, ou ensejo de menosprezo, pois que, de fato, eles só pensam em povilhéu-escória, apenas ubre que os nutra. Não lhe perdoariam qualquer pretensão a ter voz efetiva na gerência do Estado, e, menos ainda, o desejo de reivindicar direitos, em vista da justiça. Nem compreenderão como um simples filósofo da história pode definir: “Sob o nome amesquinhado de povo, expande-se, livre de qualquer tara, a coleção que um dia formará a humanidade superior” (Coste).

No entanto, este é bem o nosso caso. Então, já não se trata de conceder, como em generoso perdão, que o povo brasileiro aspire a viver em livre justiça, mas de reconhecer que a essência da nacionalidade está nele, representando, com isto, o supremo direito nesta pátria. Três séculos de bestial exploração, através de dores incompensáveis, sob a ignomínia da estupidez má: isto, sim, é que há para ser perdoado. E só a infinita compaixão de quem conhece todas as formas de sofrer, poderá lançar o perdão necessário. Uma pátria existe em consciências que a incorporam; uma nação vive numa massa, coletividade pensante, tradicionalmente solidária, e cujos sentimentos lhe definem o caráter. Ora, o Brasil só aparece nos seus dirigentes, mas, estes, patentes, sobretudo, de incapacidade, são vazios de significação humana, nulos como caracterização nacional. Destarte, se há um Brasil, humanamente definido, é na alma popular que o encontramos. Inconscientemente heroico, em face da mísera condição da existência a que o condenam, esse povo, inspirado do coração, será grandeza quando tiver a plena consciência da sua força, em luz de pensamento. Amesquinhado em pariá, desacompanhado de toda sistemática ação educativa, apenas tentado pelo exemplo de dirigentes túrgidos no gozo, ainda ele guarda a imperecível tendência de aperfeiçoamento, virtude que, em contraste com a política governante, o leva a elaborar sentimentalismo nacional, essencial energia da alma de um Brasil que deve perdurar.

E, paradoxo alucinante: quando de cima o afundam, com ele aviltando a nação, o anônimo brasileiro, em espontânea reação, eleva e apura os afetos em torno desta pátria, apesar de representada na torpeza dominante. Com isto, ele tem de realizar um esforço que já é sacrifício: sente intensamente a alma da nação, e deve alhear-se da sua vida política. É essa mesma indiferença a que o condenam, e que, sendo indiferença, tanto dói, como pesa a neutralidade em que o abandonam, como sagrado direito de ter uma opinião. E a vida pública, sombria escola de pessimismo para os sinceros, deixa como resíduo melhor essa névoa de melancolia em que nos arrastamos.

Há decênios, já, que a nação brasileira lateja nesse desalento, temperado ou compensado, apenas, pelos materialismos, caros aos dirigentes: pode, um tal viver perpetuar-se? Assim abandonado, o povo nada espera dos que governam, senão o mal; não admite virtude nos homens públicos, nem conhece neles outro valor, além do que os mantém na exploração do mando. Resultado: o povo, tanto quanto compreende a vida política, condena-a, e com toda a abundância da alma despreza o mundo dos dirigentes. É a justa e fatal reação contra o desdém em que o amesquinham. Ora, uma nação não pode fazer verdadeiro progresso quando são esses os seus constantes influxos sociais e políticos, tudo condensado num generalizado desprezo pela obra dos governantes, desprezo que já é asco, e que, amanhã, será absoluta incompatibilidade. No entanto, nesse povo, cuja fórmula psicológica ainda não foi bem definida, tal desprezo chega a ser dignificante, promissor... Não se prevêm, ainda, os processos, mas, a última esperança está, já o notamos, nessa mesma energia virgem da massa anônima. Há sessenta anos, gritou-lhe o poeta: Sansão! derroca as colunas!... Sansão continua cego, e como a sua força tem de ser luz, há que abrir-lhe os olhos; a sua frouxidão de desprezo será arrojo de realização e, como vida a refazer-se na própria essência, veremos subir o fluxo de energia popular, intacta e pura, bondade forjada no sofrimento, a fazer a legítima política da cordial solidariedade. Nem se compreende que, na terra americana, possa existir a plenitude de uma nação, sem tirar vida das camadas fecundas, em legítimas forças sociais. Resta apenas, para tanto, que se revelem essas mesmas energias: abrir os olhos a Sansão.

A República é uma mentira porque não há povo, todos o repetem. Sim. E a democracia não é possível porque a massa da nação não a compreende, para saber realizá-la. Nem teremos liberdade, enquanto não houver uma maioria com o preparo e a educação política precisas num regime efetivamente livre; nem se farão legítimas campanhas em prol da justiça, se ainda não é possível, ainda, concebê-las e defini-las. Justa apreciação e sincero aproveitamento da espontânea bondade do povo, uma instrução fecunda, que lhe atice a natural inteligência e a guarneça, e teremos o Brasil que afrontará, confiante, todas as vicissitudes. Para tanto, porém, é preciso uma direção política superior aos materialismos e outros critérios vis. Se faltam cidadãos para uma República, se faltam, ao país, homens em valor humano, procuremos formá-los. É a suprema virtude da educação: pode sempre, de uma criatura normal, fazer um indivíduo inteligentemente produtor e moralmente disciplinado para uma vida livre. Contemos, no entanto, que não é em resignação que se fará essa obra regeneradora; é, sim, extraindo dos caracteres toda força de que são dotados, e pedindo à inteligência a grande e miraculosa força do pensamento. Síntese de todas as energias que nos impressionam, o pensamento é o fiat no progresso humano. Cada ciência, um potencial à nossa disposição; e assim se justifica o aforismo de Ed. About: “Quanto mais sabemos, mais podemos...” De fato, só desse modo assistido, pode o homem enfrentar o destino, e lutar vantajosamente contra o próprio peso das materialidades. Então, os tempestuosos desejos, em ânsia de vida, sublimam-se para o inesgotável das esperanças, vivazes apesar das inevitáveis desilusões, como íntima harmonia de aspirações em que o homem se eleva da animalidade.




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"Manoel Bomfim morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."

Cecília Costa Junqueira

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Bomfim, Manoel, 1868-1932  
                O Brasil nação: vol. II / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 392 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 31).


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Leia também:

O Brasil nação - v1: Prefácio - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: Prefácio - Manoel Bomfim, o educador revolucionário
O Brasil Nação - v2: Prefácio - Manoel Bomfim, o educador revolucionário (fim)
O Brasil Nação - v2: § 50 – O poeta - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 51 – O influxo da poesia nacional - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 52 – De Gonçalves Dias a Casimiro de Abreu... - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 53 – Álvares de Azevedo - Manoel Bomfim
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O Brasil Nação - v2: § 59 – O novo ânimo revolucionário - Manoel Bomfim
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O Brasil Nação - v2: § 61 – A Abolição: a tradição brasileira para com os escravos - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 62 – Infla o Império sobre a escravidão - Manoel Bomfim
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O Brasil Nação - v2: § 64 – O passe de 1871 e o abolicionismo imperial - Manoel Bomfim
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O Brasil Nação - v2: § 67 – A propaganda republicana - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 67 – A propaganda republicana (2) - Manoel Bomfim
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O Brasil Nação - v2: § 69 – Mais Dejanira... e nova túnica - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - v2: § 70 – A farda na República - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 71 – O positivismo na República - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 72 – A reação contra a República - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 73 – A Federação brasileira - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 73-a – Significação da tradição de classe  - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 74 – A descendência de Coimbra - Manoel Bomfim
O Brasil Nação - V2: § 75 – Ordem... - Manoel Bomfim

OS SERTÕES, Euclides da Cunha - O Homem: III ... Religião mestiça

OS SERTÕES 


Euclides da Cunha

Volume 1



O HOMEM




Religião mestiça

Insulado deste modo no país que o não conhece, em luta aberta com o meio, que lhe parece haver estampado na organização e no temperamento a sua rudeza extraordinária, nômade ou mal fixo à terra, o sertanejo não tem, por bem dizer, ainda capacidade orgânica para se afeiçoar a situação mais alta.

O círculo estreito da atividade remorou-lhe o aperfeiçoamento psíquico. Está na fase religiosa de um monoteísmo incompreendido, eivado de misticismo extravagante, em que se rebate o fetichismo do índio e do africano. É o homem primitivo, audacioso e forte, mas ao mesmo tempo crédulo, deixando-se facilmente arrebatar pelas superstições mais absurdas. Uma análise destas revelaria a fusão de estádios emocionais distintos.

A sua religião é, como ele — mestiça.

Resumo dos caracteres físicos e fisiológicos das raças de que surge, sumaria-lhes identicamente as qualidades morais. É um índice da vida de três povos. E as suas crenças singulares traduzem essa aproximação violenta de tendências distintas. É desnecessário descrevê-las. As lendas arrepiadoras do caapora travesso e maldoso, atravessando célere, montado em caititu arisco, as chapadas desertas, nas noites misteriosas de luares claros; os sacis diabólicos, de barrete vermelho à cabeça, assaltando o viandante retardatário, nas noites aziagas das sextas-feiras, de parceria com os lobisomens e mulas-sem-cabeça noctívagos; todos os mal-assombramentos, todas as tentações do maldito ou do diabo — esse trágico emissário dos rancores celestes em comissão na terra; as rezas dirigidas a S. Campeiro, canonizado in partibus, ao qual se acendem velas pelos campos; para que favoreça a descoberta de objetos perdidos; as benzeduras cabalísticas para curar os animais, para amarrar e vender sezões; todas as visualidades, todas as aparições fantásticas, todas as profecias esdrúxulas de messias insanos; e as romarias piedosas; e as missões; e as penitências... todas as manifestações complexas de religiosidade indefinida, são explicáveis.





Fatores históricos da religião mestiça

Não seria difícil caracterizá-las como uma mestiçagem de crenças. Ali estão, francos, o antropismo do selvagem, o animismo do africano e, o que é mais, o próprio aspecto emocional da raça superior, na época do descobrimento e da colonização.

Este último é um caso notável de atavismo, na História.

Considerando as agitações religiosas do sertão e os evangelizadores e messias singulares, que, intermitentemente, o atravessam, ascetas mortificados de flagícios, encalçados sempre pelos sequazes numerosos, que fanatizam, que arrastam, que dominam, que endoudecem — espontaneamente recordamos a fase mais crítica da alma portuguesa, a partir do século XVI, quando, depois de haver por momentos centralizado a História, o mais interessante dos povos caiu, de súbito, em decomposição rápida, mal disfarçada pela corte oriental de D. Manuel.

O povoamento do Brasil fez-se, intenso, com D. João III, precisamente no fastígio de completo desequilíbrio moral, quando “todos os terrores da Idade Média tinham cristalizado no catolicismo peninsular”.

Uma grande herança de abusões extravagantes, extinta da orla marítima pelo influxo modificador de outras crenças e de outras raças, no sertão ficou intacta. Trouxeram-na as gentes impressionáveis, que afluíram para a nossa terra, depois de desfeito no Oriente o sonho miraculoso da Índia. Vinham cheias daquele misticismo feroz, em que o fervor religioso reverberava à candência forte das fogueiras inquisitoriais, lavrando intensas na Península. Eram parcelas do mesmo povo que em Lisboa, sob a obsessão dolorosa dos milagres e assaltado de súbitas alucinações, via, sobre o paço dos reis, ataúdes agoureiros, línguas de flamas misteriosas, catervas de mouros de albornozes brancos, passando processionalmente; combates de paladinos nas alturas... E da mesma gente que após Alcácer- Quibir, em plena “caquexia nacional”, segundo o dizer vigoroso de Oliveira Martins, procurava, ante a ruína iminente, como salvação única, a fórmula superior das esperanças messiânicas.

De feito, considerando as desordens sertanejas, hoje, e os messias insanos que as provocam, irresistivelmente nos assaltam, empolgantes, as figuras dos profetas peninsulares de outrora — o rei de Penamacor, o rei da Ericeira, errantes pelas faldas das serras, devotadas ao martírio, arrebatando na mesma idealização, na mesma insânia, no mesmo sonho doentio, as multidões crendeiras.

Esta justaposição histórica calca-se sobre três séculos. Mas é exata, completa, sem dobras. Imóvel o tempo sobre a rústica sociedade sertaneja, despeada do movimento geral da evolução humana, ela respira ainda na mesma atmosfera moral dos iluminados que encalçavam, doudos, o Miguelinho ou o Bandarra. Nem lhe falta, para completar o símile, o misticismo político do sebastianismo. Extinto em Portugal, ele persiste todo, hoje, de modo singularmente impressionador, nos sertões do Norte.

Mas não antecipemos.





Caráter variável da religiosidade sertaneja

Estes estigmas atávicos tiveram entre nós, favoráveis, as reações do meio, determinando psicologia especial.

O homem dos sertões — pelo que esboçamos — mais do que qualquer outro está em função imediata da terra. É uma variável dependente no jogar dos elementos. Da consciência da fraqueza para os debelar, resulta, mais forte, este apelar constante para o maravilhoso, esta condição inferior de pupilo estúpido da divindade. Em paragens mais benéficas a necessidade de uma tutela sobrenatural não seria tão imperiosa. Ali, porém, as tendências pessoais como que se acolchetam às vicissitudes externas e deste entrelaçamento resulta, copiando o contraste que observamos entre a exaltação impulsiva e a apatia enervadora da atividade, a indiferença fatalista pelo futuro e a exaltação religiosa. Os ensinamentos dos missionários não poderiam exercitar-se estremes das tendências gerais da sua época. Por isto, como um palimpsesto, a consciência imperfeita dos matutos revela nas quadras agitadas, rompendo dentre os ideais belíssimos do catolicismo incompreendido, todos os estigmas de estádio inferior.

É que, mesmo em períodos normais, a sua religião é indefinida e vária. Da mesma forma que os negros hauçás, adaptando à liturgia todo o ritual iorubano, realizam o fato anômalo, mas vulgar mesmo na capital da Bahia, de seguirem para as solenidades da Igreja por ordem dos fetiches, os sertanejos, herdeiros infelizes de vícios seculares, saem das missas consagradas para os ágapes selvagens dos candomblés africanos ou poracês do tupi. Não espanta que patenteiem, na religiosidade indefinida, antinomias surpreendentes.

Quem vê a família sertaneja, ao cair da noite, ante o oratório tosco ou registo paupérrimo, à meia-luz das candeias de azeite, orando pelas almas dos mortos queridos, ou procurando alentos à vida tormentosa, encanta-se.

O culto dos mortos é impressionador. Nos lugares remotos, longe dos povoados, inumam-nos à beira das estradas, para que não fiquem de todo em abandono, para que os rodeiem sempre as preces dos viandantes, para que nos ângulos da cruz deponham estes, sempre, uma flor, um ramo, uma recordação fugaz mas renovada sempre. E o vaqueiro que segue arrebatadamente estaca, prestes, o cavalo, ante o humilde monumento — uma cruz sobre pedras arrumadas — e, a cabeça descoberta, passa vagaroso, rezando pela salvação de quem ele nunca viu talvez, talvez de um inimigo.

A terra é o exílio insuportável, o morto um bem-aventurado sempre.

O falecimento de uma criança é um dia de festa. Ressoam as violas na cabana dos pobres pais, jubilosos entre as lágrimas; referve o samba turbulento; vibram nos ares, fortes, as coplas dos desafios, enquanto, a uma banda, entre duas velas de carnaúba, coroado de flores, o anjinho exposto espelha, no último sorriso paralisado, a felicidade suprema da volta para os céus, para a felicidade eterna — que é a preocupação dominadora daquelas almas ingênuas e primitivas.

No entanto há traços repulsivos no quadro desta religiosidade de aspectos tão interessantes, aberrações brutais, que a derrancam ou maculam.





A “Pedra Bonita”

As agitações sertanejas, do Maranhão à Bahia, não tiveram ainda um historiador. Não as esboçaremos sequer. Tomemos um fato, entre muitos, ao acaso.

No termo de Pajeú, em Pernambuco, os últimos rebentos das formações graníticas da costa se alteiam, em formas caprichosas, na Serra Talhada, dominando, majestosos, toda a região em torno e convergindo em largo anfiteatro acessível apenas por estreita garganta, entre muralhas a pique. No âmbito daquele, como púlpito gigantesco, ergue-se um bloco solitário — a Pedra Bonita.

Este lugar foi, em 1837, teatro de cenas que recordam as sinistras solenidades religiosas dos Achantis. Um mamaluco ou cafuz, um iluminado, ali congregou toda a população dos sítios convizinhos e, engrimpando-se à pedra, anunciava, convicto, o próximo advento do reino encantado do rei D. Sebastião. Quebrada a pedra, a que subira, não a pancadas de marreta, mas pela ação miraculosa do sangue das crianças, esparzido sobre ela em holocausto, o grande rei irromperia envolto de sua guarda fulgurante, castigando, inexorável, a humanidade ingrata, mas cumulando de riquezas os que houvessem contribuído para o desencanto.

Passou pelo sertão um frêmito de nevrose...

O transviado encontrara meio propício ao contágio da sua insânia. Em torno da ara monstruosa comprimiam-se as mães erguendo os filhos pequeninos e lutavam, procurando-lhes a primazia no sacrifício... O sangue espadanava sobre a rocha jorrando, acumulando-se em torno; e afirmam os jornais do tempo, em cópia tal que, depois de desfeita aquela lúgubre farsa, era impossível a permanência no lugar infeccionado.

Por outro lado, fatos igualmente impressionadores contrabatem tais aberrações. A alma de um matuto é inerte ante as influências que a agitam. De acordo com estas pode ir da extrema brutalidade ao máximo devotamento.

Vimo-la, neste instante, desvairada pelo fanatismo. Vejamo-la transfigurada pela fé.





Monte Santo

Monte Santo é um lugar lendário.

Quando, no século XVII, as descobertas das minas determinaram a atração do interior sobre o litoral, os aventureiros que ao norte investiam com o sertão, demandando as serras da Jacobina, arrebatados pela miragem das minas de prata e rastreando o itinerário enigmático de Belchior Dias, ali estacionavam longo tempo. A serra solitária — a Piquaraçá dos roteiros caprichosos — dominando os horizontes, norteava-lhes a marcha vacilante.

Além disto, atraía-os por si mesma, irresistivelmente.

É que em um de seus flancos, escritas em caligrafia ciclópica com grandes pedras arrumadas, apareciam letras singulares — um A, um L e um S — ladeados por uma cruz, de modo a fazerem crer que estava ali e não avante, para o ocidente ou para o sul, o eldorado apetecido.

Esquadrinharam-na, porém, debalde os êmulos do Muribeca astuto, seguindo, afinal, para os outros rumos, com as suas tropas de potiguaras mansos e forasteiros armados de biscainhos...

A serra desapareceu outra vez entre as chapadas que domina...

No fim do século passado, porém, descobriu-a um missionário — Apolônio de Todi. Vindo da missão de Maçacará, o maior apóstolo do Norte impressionou-se tanto com o aspecto da montanha, “achando-a semelhante ao calvário de Jerusalém”, que planeou logo a ereção de uma capela. Ia ser a primeira do mais tosco e do mais imponente templo da fé religiosa.

Descreve o sacerdote, longamente, o começo e o curso dos trabalhos e o auxílio franco que lhe deram os povoadores dos lugares próximos. Pinta a última solenidade, procissão majestosa e lenta ascendendo a montanha, entre as rajadas de tufão violento que se alteou das planícies apagando as tochas; e, por fim, o sermão terminal da penitência, exortando o povo a “que nos dias santos viesse visitar os santos lugares, já que vivia em tão grande desamparo das cousas espirituais”.

“E aqui, termina, sem pensar em mais nada disse que daí em diante não chamariam mais Serra de Piquaraçá, mas sim Monte Santo.”

E fez-se o templo prodigioso, monumento erguido pela natureza e pela fé, mais alto que as mais altas catedrais da terra.

A população sertaneja completou a empresa do missionário.

Hoje, quem sobe a extensa via sacra de três quilômetros de comprimento, em que se erigem, a espaços, vinte e cinco capelas de alvenaria, encerrando painéis dos passos, avalia a constância e a tenacidade do esforço despendido.

Amparada por muros capeados; calçada, em certos trechos; tendo, noutros, como leito, a rocha viva talhada em degraus, ou rampeada, aquela estrada branca, de quartzito, onde ressoam, há cem anos, as litanias das procissões da quaresma e têm passado legiões de penitentes, é um prodígio de engenharia rude e audaciosa. Começa investindo com a montanha, segundo a normal de máximo declive, em rampa de cerca de vinte graus. Na quarta ou quinta capelinha inflete à esquerda e progride menos íngreme. Adiante, a partir da capela maior — ermida interessantíssima ereta num ressalto da pedra a cavaleiro do abismo — volta à direita, diminuindo de declive até à linha de cumeadas. Segue por esta segundo uma selada breve. Depois se alteia, de improviso, retilínea, em ladeira forte, arremetendo com o vértice pontiagudo do monte, até ao Calvário, no alto!

À medida que ascende, ofegante, estacionando nos passos, o observador depara perspectivas que seguem num crescendo de grandezas soberanas: primeiro os planos das chapadas e tabuleiros, esbatidos embaixo em planícies vastas; depois as serranias remotas, agrupadas, longe, em todos os quadrantes; e, atingindo o alto, o olhar a cavaleiro das serras — o espaço indefinido, a emoção estranha de altura imensa, realçada pelo aspecto da pequena vila, embaixo, mal percebida na confusão caótica dos telhados.

E quando, pela Semana Santa, convergem ali as famílias da redondeza e passam os crentes pelos mesmos flancos em que vaguearam outrora, inquietos de ambição, os aventureiros ambiciosos, vê-se que Apolônio de Todi, mais hábil que o Muribeca, decifrou o segredo das grandes letras de pedra, descobrindo o eldorado maravilhoso, a mina opulentíssima oculta no deserto...





As missões atuais

Infelizmente o apóstolo não teve continuadores. Salvo raríssimas exceções, o missionário moderno é um agente prejudicialíssimo no agravar todos os desequilíbrios do estado emocional dos tabaréus. Sem a altitude dos que o antecederam, a sua ação é negativa: destrói, apaga e perverte o que incutiram de bom naqueles espíritos ingênuos os ensinamentos dos primeiros evangelizadores, dos quais não tem o talento e não tem a arte surpreendente da transfiguração das almas. Segue vulgarmente processo inverso do daqueles: não aconselha e consola, aterra e amaldiçoa; não ora, esbraveja. É brutal e traiçoeiro. Surge das dobras do hábito escuro como da sombra de uma emboscada armada à credulidade incondicional dos que o escutam. Sobe ao púlpito das igrejas do sertão e não alevanta a imagem arrebatadora dos céus; descreve o inferno truculento e flamívomo, numa algaravia de frases rebarbativas a que completam gestos de maluco e esgares de truão.

É ridículo, e é medonho. Tem o privilégio estranho das bufonerias melodramáticas. As parvoíces saem-lhe da boca trágicas.

Não traça ante os matutos simples a feição honesta e superior da vida — não a conhece; mas brama em todos os tons contra o pecado; esboça grosseiros quadros de torturas; e espalha sobre o auditório fulminado avalanches de penitências, extravagando largo tempo, em palavrear interminável, fungando as pitadas habituais e engendrando catástrofes, abrindo alternativamente a caixa de rapé e a boceta de Pandora...

E alucina o sertanejo crédulo; alucina-o, deprime-o, perverte-o.





Os “Serenos”

Busquemos um exemplo único, o último.

Em 1850 os sertões de Cariri foram alvorotados pelas depredações dos Serenos, exercitando o roubo em larga escala.

Aquela denominação indicava companhias de penitentes que à noite, nas encruzilhadas ermas, em torno das cruzes misteriosas, se agrupavam, adoudadamente, numa agitação macabra de flagelantes, impondo-se o cilício dos espinhos, das urtigas e outros duros tratos de penitência. Ora, aqueles agitados saíram certo dia, repentinamente, da matriz do Crato, dispersos, em desalinho — mulheres em prantos, homens apreensivos, crianças trementes — em procura dos flagícios duramente impostos. Dentro da igreja, missionários recém-vindos haviam profetizado próximo fim do mundo.

Deus o dissera — em mau português, em mau italiano e em mau latim — estava farto dos desmandos da terra...

E os desvairados foram pelos sertões em fora, esmolando, chorando, rezando, numa mândria deprimente, e como a caridade pública não os podia satisfazer a todos, acabaram — roubando.

Era fatal. Os instrutores do crime foram, afinal, infelicitar outros lugares e a justiça a custo reprimiu o banditismo incipiente.





continua 062...


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Leia também:

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OS SERTÕES, Euclides da Cunha - O Homem: III ... Religião mestiça
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - O Homem: IV ... Antônio Conselheiro, documento vivo
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Os Sertões, de Euclides da Cunha

Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante). 

Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.


Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um Complô (XIII)

 Livro II 


Ela não é galante,
não usa ruge algum.

Sainte-Beuve



Capítulo XIII

UM COMPLÔ




Palavras soltas, encontros fortuitos transformam-se em prova de última evidência aos olhos do homem de imaginação, se ele tem algum fogo no coração.

SCHILLER


NO DIA SEGUINTE, ele voltou a surpreender Norbert e a irmã, que falavam dele. À sua chegada, fez-se um silêncio de morte, como na véspera. Suas suspeitas não tiveram mais limites. Teriam esses jovens amáveis resolvido zombar de mim? Cumpre reconhecer que isso é muito mais provável, muito mais natural do que uma suposta paixão da srta. de La Mole por um pobre coitado de secretário. Antes de mais nada, terão eles paixões? O forte dessa gente é mistificar. Têm ciúmes de minha pobre superioridade verbal. Ter ciúmes é ainda um de seus pontos fracos. Tudo se explica nessa hipótese. A srta. de La Mole quer convencer-me de que me distingue, simplesmente para oferecer-me como espetáculo a seu pretendente.
Essa cruel suspeita mudou toda a posição moral de Julien. Ela não teve dificuldade de destruir um começo de amor em seu coração, amor que se fundava apenas sobre a rara beleza de Mathilde, ou melhor, sobre suas maneiras de rainha e seu vestuário admirável. Nisto, Julien portava-se ainda como alguém que subiu na vida. Uma mulher bonita da alta sociedade é, ao que dizem, o que um plebeu inteligente mais admira, quando chega à primeira classe. Não era de modo nenhum o caráter de Mathilde que fazia Julien sonhar nos dias precedentes. Ele tinha juízo suficiente para compreender que não conhecia em absoluto esse caráter. Tudo o que dele percebia podia ser só uma aparência.
Por exemplo, por nada no mundo Mathilde teria faltado à missa num domingo; quase todos os dias acompanhava a mãe até lá. Se, no salão da mansão de La Mole, algum imprudente esquecesse o lugar onde estava e se permitisse a alusão mais distante a um gracejo contra os interesses verdadeiros ou supostos do trono ou do altar, Mathilde assumia no mesmo instante uma seriedade glacial. Seu olhar, geralmente tão provocador, readquiria o orgulho impassível de um velho retrato de família.
Mas Julien sabia com certeza que ela tinha sempre em seu quarto um ou dois dos volumes mais filosóficos de Voltaire. Ele próprio furtava com frequência alguns tomos da bela edição magnificamente encadernada. Afastando um pouco cada volume de seu vizinho, ocultava a ausência daquele retirado, mas ele logo percebeu que outra pessoa andava lendo Voltaire. Recorreu a um truque de seminário, pôs alguns fios de cabelo nos volumes que supunha poderem interessar a srta. de La Mole. Eles desapareciam durante semanas.
O sr. de La Mole, aborrecido com seu livreiro que lhe enviava todas as Memórias apócrifas, encarregou Julien de comprar as novidades mais picantes. Mas, para que o veneno não se espalhasse pela casa, o secretário tinha a ordem de guardar os livros numa pequena biblioteca situada no próprio quarto do marquês. Ele logo descobriu que, por menor que fosse a hostilidade desses livros novos aos interesses do trono e do altar, eles não tardavam a desaparecer. Certamente, não era Norbert que os lia.
Exagerando esse fato, Julien atribuía à srta. de La Mole a duplicidade de Maquiavel. Essa suposta perfídia era um encanto aos olhos dele, quase o único encanto moral que ela teria. A aversão à hipocrisia e às declarações de virtude lançava-o nesse excesso. Ele era mais excitado pela imaginação do que arrastado por seu amor.
Era quando perdia-se em devaneios sobre a elegância do porte da srta. de La Mole, sobre o gosto excelente de seu vestuário, sobre a brancura de sua mão, sobre a beleza de seu braço, sobre a desenvoltura de todos os seus movimentos, que ele sentia-se apaixonado. Então, para completar o encanto, imaginava-a uma Catarina de Médicis. Nada era bastante profundo ou bastante pérfido para o caráter que lhe atribuía. Era o ideal dos Maslon, dos Frilair e dos Castanède, por ele admirados em sua juventude. Em uma palavra, era para ele o ideal de Paris.
Houve alguma vez algo de mais divertido do que supor profundidade ou perfídia ao caráter parisiense?
É possível que esse trio esteja zombando de mim, pensava Julien. Conhecemos muito pouco seu caráter se já não vemos a expressão sombria e distante que seus olhares adquiriram ao responderem aos de Mathilde. Uma ironia amarga repeliu as demonstrações de amizade que a srta. de La Mole, surpresa, ousou arriscar duas ou três vezes.
Ferido por essa extravagância súbita, o coração dessa jovem naturalmente frio, entediado, sensível à sutileza tornou-se tão apaixonado quanto sua natureza lhe permitia ser. Mas havia também muito orgulho no caráter de Mathilde, e o nascimento de um sentimento que fazia depender de um outro toda a sua felicidade foi acompanhado de uma sombria tristeza.
Julien já havia progredido bastante desde sua chegada em Paris para perceber que essa tristeza não era aquela, seca, do tédio. Em vez de ser ávida, como outrora, por festas, espetáculos e distrações de todo tipo, ela os evitava.
A música cantada por franceses aborrecia mortalmente Mathilde; no entanto, Julien, que se impusera o dever de assistir à saída do Teatro da Ópera, observou que ela se deixava levar até lá com mais frequência. Acreditou perceber que ela perdera um pouco da medida perfeita que brilhava em todos os seus atos, respondendo às vezes aos amigos com gracejos ultrajantes, à força de energia mordaz. Pareceu-lhe que ela visava especialmente o marquês de Croisenois. Esse rapaz deve amar furiosamente o dinheiro para não abandonar essa moça, pensava Julien. Quanto a ele, indignado com os ultrajes feitos à dignidade masculina, redobrava de frieza para com ela. Várias vezes chegou a dar-lhe respostas pouco polidas.
Contudo, por mais decidido que estivesse a não deixar-se enganar pelos sinais de interesse de Mathilde, estes eram muito evidentes alguns dias, e Julien, cujos olhos começavam a abrir-se, achava-a tão encantadora que às vezes ficava embaraçado.
A habilidade e a firmeza de ânimo dessa gente da alta sociedade acabariam por triunfar de minha pouca experiência, pensou; é preciso partir e pôr um termo a tudo isso. O marquês acabava de confiar-lhe a administração de uma série de propriedades e casas que possuía no baixo Languedoc. Uma viagem era necessária: o sr. de La Mole consentiu, pesaroso. Exceto para os assuntos de alta ambição, Julien tornara-se um alterego para ele.
No final das contas, eles não me pegaram, dizia-se Julien ao preparar sua partida. Quer os gracejos feitos pela srta. de La Mole a esses senhores sejam reais ou apenas destinados a inspirar-me confiança, diverti-me com eles.
Se não há conspiração contra o filho do carpinteiro, a srta. de La Mole é inexplicável, mas ela o é tanto para o marquês de Croisenois quanto para mim. Ontem, por exemplo, seu mau humor era muito real, e tive o prazer de ver constrangido, em meu favor, um jovem tão nobre e rico quanto sou pobre e plebeu. Eis o mais belo de meus triunfos, que me alegrará na viagem, percorrendo as planícies do Languedoc.
Ele fizera de sua partida um segredo, mas Mathilde sabia muito bem que ele ia deixar Paris no dia seguinte, e por muito tempo. Sob pretexto de uma forte dor de cabeça, que o ar abafado do salão aumentava, ela saiu para o jardim, e fez gracejos tão mordazes contra Norbert, o marquês de Croisenois, Caylus, de Luz e alguns outros jovens que haviam jantado na mansão de La Mole, que os forçou a retirarem-se. Ela olhava para Julien de um jeito estranho.
Talvez esse olhar seja um fingimento, pensou Julien; mas essa respiração apressada, toda essa agitação! Ah!, disse a si mesmo, quem sou eu para julgar essas coisas? Eis aqui o que há de mais sublime e de mais fino entre as mulheres de Paris. Essa respiração apressada, que esteve a ponto de tocar-me, ela a terá estudado em Léon tine Fay, que tanto aprecia.
Os dois ficaram a sós; a conversa esmorecia evidentemente. Não! Julien nada sente por mim, dizia-se Mathilde, realmente infeliz. No momento em que ele se despedia, ela apertou-lhe o braço com força:

– Você receberá esta noite uma carta minha, disse-lhe com uma voz tão alterada que era quase irreconhecível.

Essa circunstância sensibilizou imediatamente Julien.

– Meu pai, ela continuou, tem uma justa estima pelos serviços que lhe presta. Você não deve partir amanhã; encontre um pretexto. E afastou-se, correndo.

Seu corpo era encantador. Era impossível ter um pé mais bonito, ela corria com uma graça que arrebatou Julien. Mas podemos adivinhar qual foi seu segundo pensamento depois que ela desapareceu completamente: ele ficou ofendido com o tom imperativo com que ela dissera a palavra deve. Também Luís XV, no momento de morrer, ficou vivamente ofendido com a palavra deve, inabilmente empregada por seu primeiro médico, e Luís XV não era alguém que subiu na vida.
Uma hora depois, um lacaio entregava uma carta a Julien; era simplesmente uma declaração de amor.
Não há muita afetação no estilo, pensou Julien, buscando por suas observações literárias conter a alegria que lhe contraía as faces e o forçava a rir contra a vontade.
Enfim, eu, exclamou de repente, a paixão sendo demasiado forte para ser contida, eu, um pobre camponês, tenho uma declaração de amor de uma grande dama!
Quanto a mim, comportei-me bem, acrescentou, comprimindo sua alegria o máximo possível. Soube conservar a dignidade de meu caráter, nunca disse que a amava. Pôs-se a examinar a forma das letras; a srta. de La Mole tinha uma bela escrita à inglesa. Ele tinha necessidade de uma ocupação física para distrair-se de uma alegria que chegava quase ao delírio.
“Sua partida me obriga a falar... Estaria acima de minhas forças não tornar a vê-lo.”
Um pensamento assaltou Julien como uma descoberta, interrompendo o exame que fazia da carta de Mathilde e redobrando sua alegria. Levo a melhor sobre o marquês de Croisenois, exclamou, eu, que só digo coisas sérias! E ele é tão bonito! Tem bigode, um lindo uniforme; sempre encontra para dizer, no momento certo, uma frase inteligente e fina.
Julien teve um instante delicioso; vagava ao acaso pelo jardim, louco de felicidade.
Mais tarde, subiu a seu escritório e fez-se anunciar nos aposentos do sr. de La Mole, que felizmente não havia saído. Provou-lhe facilmente, mostrando-lhe alguns papéis selados chegados da Normandia, que o cuidado dos processos normandos o obrigava a adiar sua partida para o Languedoc.

– Fico muito contente que não parta, disse-lhe o marquês, quando terminaram de falar de negócios, gosto de vê-lo. Julien saiu; essa frase o constrangeu.

E vou seduzir a filha dele! Tornar impossível esse casamento com o marquês de Croisenois que é o encanto de seu futuro! Se ele não vier a ser duque, ao menos a filha terá um assento junto ao rei. Julien chegou a pensar em partir para o Languedoc apesar da carta de Mathilde, apesar da explicação dada ao marquês. Esse lampejo de virtude não tardou a desaparecer.
omo sou bom, pensou; eu, plebeu, ter piedade de uma família dessa condição! Eu, que o duque de Chaulnes chama um criado! De que maneira o marquês aumenta sua imensa fortuna? Vendendo títulos de renda, quando toma conhecimento no palácio de que, no dia seguinte, pode haver um golpe de Estado. E eu, lançado à última posição por uma Providência madrasta, eu, a quem ela deu um coração nobre e privou de renda, isto é, de pão, exatamente falando, de pão; eu, recusar um prazer que se oferece! Uma fonte límpida que vem estancar minha sede no deserto ardente da mediocridade que atravesso com tanta dificuldade! Por Deus, não serei tão tolo; cada um por si nesse deserto de egoísmo que se chama a vida.
E lembrou-se de alguns olhares cheios de desdém a ele dirigidos pela sra. de La Mole e sobretudo por suas amigas damas.
O prazer de triunfar do marquês de Croisenois veio completar a derrota daquele lampejo de virtude.
Como gostaria que ele se zangasse!, disse Julien; com que segurança eu lhe daria agora um golpe de espada. E fez com a mão o gesto do golpe. Antes disso, eu era um fâmulo que abusava de um pouco de coragem. Depois dessa carta, sou seu igual.
Sim, dizia a si mesmo com uma volúpia infinita e falando lentamente, nossos méritos, do marquês e meus, foram pesados, e o pobre carpinteiro do Jura venceu.
Bem!, exclamou, aqui está a assinatura de minha resposta. Não vá pensar, srta. de La Mole, que esqueço minha condição. Farei que compreenda e sinta claramente que é pelo filho de um carpinteiro que trai um descendente do famoso Guy de Croisenois, que acompanhou são Luís na Cruzada.
Julien não conseguia conter sua alegria. Sentiu necessidade de descer até o jardim. Seu quarto, onde se encerrara à chave, parecia-lhe demasiado estreito para respirar.
Eu, um pobre camponês do Jura, ele não cansava de repetir, eu, condenado a vestir sempre este triste hábito preto! Ai! Vinte anos mais cedo, teria usado o uniforme como eles! Naquele tempo, um homem como eu era morto ou virava general aos trinta e seis anos de idade. Aquela carta, que ele mantinha apertada na mão, dava-lhe o porte e a atitude de um herói. Agora, é verdade, com este hábito preto, aos quarenta anos de idade tem-se um ordenado de mil francos e a condecoração da fita azul, como o bispo de Beauvais.
Pois bem!, disse, rindo como Mefistófeles, tenho mais inteligência que eles; sei escolher o uniforme do meu século. E sentiu crescer sua ambição e seu apego ao hábito eclesiástico. Quantos cardeais de origem mais humilde que a minha e que governaram! Meu compatriota Granvelle, por exemplo.
Aos poucos, a agitação de Julien acalmou-se, a prudência voltou à tona. Disse a si mesmo, como seu mestre Tartufo, cujo papel sabia de cor:

Pode haver nessas palavras um artifício honesto.
(...)
Não confiarei em declarações tão doces
Até que algum de seus favores, pelos quais suspiro,
Venha assegurar-me do que elas me disseram.

Tartufo, ato IV, cena V.

Tartufo também foi iludido por uma mulher, e ele valia tanto quanto outro qualquer... Minha resposta poderá ser mostrada... para isso tenho um remédio, acrescentou, pronunciando lentamente e com o acento da ferocidade contida; começaremos pelas frases mais vivas da carta da sublime Mathilde.
Sim, mas quatro lacaios do sr. de Croisenois lançam-se sobre mim e arrancam-me o original.
Não, pois estou bem armado, e sabem que costumo disparar contra os lacaios.
Pois bem: um deles tem coragem, precipita-se sobre mim. Prometeram-lhe um bom dinheiro. Mato-o ou firo-o, é o que eles querem. Jogam-me na prisão muito legalmente; sou entregue à polícia correcional e enviado, com toda a justiça e a equidade dos juízes, a fazer companhia, em Poissy, aos srs. Fontan e Magalon. Lá, deito-me ao lado de quatrocentos miseráveis... E terei piedade dessa gente?!, exclamou, levantando-se impetuosamente. Essa frase foi o último suspiro de seu reconhecimento pelo sr. de La Mole que, contra sua vontade, o atormentava até então.
lto lá, senhores fidalgos, conheço esse traço de maquiavelismo; o padre Maslon e o sr. Castanède do seminário não teriam feito melhor. Os senhores me furtarão a carta provocadora e serei uma nova versão do coronel Caron em Colmar.
Um instante, senhores, vou enviar a carta fatal num envelope bem lacrado ao abade Pirard. É um homem honesto, jansenista e, nessa qualidade, imune às seduções do dinheiro. Sim, mas ele abre as cartas... é a Fouquet que devo enviá-la.
É preciso admitir: o olhar de Julien era atroz, em sua fisionomia medonha transparecia o crime em estado puro. Era o homem infeliz em guerra contra toda a sociedade.

– Às armas!, exclamou Julien. E, num salto, desceu os degraus da escadaria da mansão. Entrou na quitanda do escrivão da esquina. Copie, disse-lhe, entregando a carta da srta. de La Mole.

Enquanto o escrivão trabalhava, ele próprio escreveu a Fouqué; pedia-lhe para conservar-lhe um depósito precioso. Mas, pensou, interrompendo-se, a censura do correio abrirá minha carta e vos entregará, senhores, aquela que procuram... Não. Ele foi comprar uma enorme Bíblia num livreiro protestante, escondeu com muito cuidado a carta de Mathilde na capa, mandou embalar tudo e seu pacote partiu com a diligência, endereçado a um dos operários de Fouqué, cujo nome ningém conhecia em Paris.
Feito isso, retornou alegre e lépido à mansão de La Mole. Agora nós! exclamou, trancando-se à chave no quarto e despindo-se de seu hábito.
“Como! senhorita”, escreveu a Mathilde, “é a srta. de La Mole que, pelas mãos de Arsène, lacaio de seu pai, manda entregar uma carta muito sedutora a um pobre carpinteiro do Jura, certamente para divertir-se com sua simplicidade?...” E transcreveu as frases mais claras da carta que acabava de receber.
A dele seria digna da prudência diplomática do cavaleiro de Beauvoisis. Não eram ainda dez da noite; Julien, ébrio de felicidade e do sentimento de seu poder, tão novo para um pobre-diabo, foi assistir a uma ópera italiana. Ouviu seu amigo Geronimo cantar. Nunca a música o exaltara tanto. Ele era um deus.



continua página 227...

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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.

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Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.

Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.

Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.

"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.

Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.

Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.

Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.

Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.

O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.

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Leia também:

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um Complô (XIII)