quarta-feira, 31 de julho de 2019

O Brasil Nação - v2: § 65 – Os escravocratas submergidos - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim


O Brasil Nação volume 2




SEGUNDA PARTE 
TRADIÇÕES



À glória de
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução


capítulo 7
as revoluções brasileiras



§ 65 – Os escravocratas submergidos




A emancipação dos escravos nos dá o único ensejo, de políticos brasileiros situados, e que se negam a votar qualquer que se apresenta de acordo com os desejos do imperador. Homens que aceitaram a responsabilidade do crime contra o Paraguai, opuseram-se à lei de 28 de setembro!... Evidentemente, Pedro II estava acima deles. E é na Abolição que se encontra, ainda, esta monstruosidade: a política governamental, que até então combatera o abolicionismo por todos os seus meios covardes, ao sentir o irresistível triunfo da causa, meteu-se na cauda da revolução, e tenta amparar-se nela, a título de legalizá-la. Assim se fez da Abolição – uma revolução legalizada à última hora, quando já rompera todas as cercas, para que dos currais escravocratas se derramem as ondas de submergidos, prontos a fazerem a Abolição, contanto que ainda lhes seja dado respirarem na política... À última hora, a Regência a soltar escravos; os meninos-príncipes a atar, com as suas versalhadas, rabos de papel no casaco ministerial de Cotegipe... E Cubatão, ostensivo quilombo que não será tomado, obrigando o mesmo Cotegipe a largar-se do Governo, para que venha um ministério que ainda não sabe o que fará, e cuja vida precipitada acabará transmutando os ferrenhos escravocratas – Antonio Prado, Ferreira Viana, Rodrigues Silva... em abolicionistas radicais. 

A primeira campanha abolicionista, nascida de Tavares Bastos e Castro Alves, logo adotada por Luiz Gama, Rui Barbosa, Saldanha Marinho, José Bonifácio, o moço... teria feito a redenção dos cativos, se não fora o passe de 1871, que, desiludindo uns, acalentando outros, desorientando todos os abolicionistas, suspendeu a propaganda por uns cinco ou seis anos; não de todo, que Rui Barbosa, na Bahia, em 1874, pronuncia aquelas duras palavras contra o embuste de 1871. Dali mesmo parte, com o pronunciamento de Jerônimo Sodré, em 1879, o movimento que, logo propagado, e distintamente conduzido, veio até a vitória definitiva;


... do movimento abolicionista de 1879-88... Jerônimo Sodré foi quem pronunciou o fiat... O movimento começou na Câmara, em 1879, e não... na Gazeta da Tarde, de Ferreira de Menezes, que é de 1880... Esse pronunciamento vem resolvido da Bahia, e rebenta na Câmara como uma manga d’água repentinamente... Ao ato de Sodré, continua Nabuco, filia-se cronologicamente a minha atitude dias depois... Mais tarde é que entraram Rebouças, Patrocínio, Gusmão Lobo, Ferreira de Menezes, Joaquim Serra...[1] 

[1] Minha Formação, págs. 230-231.


Essa data – 1879, notada, assim, nos fulminantes efeitos que se lhe seguem, só tem um valor: mostrar que, antes, apesar do aparente silêncio, a ideia difundia-se e iluminava os corações. De outro modo, como explicar que o efeito daquela simples referência – Já é tempo de tratarmos, de novo, da emancipação... bastasse para desencadear a campanha que bateu os escravocratas? Fala Sodré em meados de 1879; em 1880, funda-se a primeira Sociedade Brasileira contra a escravidão, cujo presidente é Joaquim Nabuco, com expressiva presidência de honra do antigo abolicionista Saldanha Marinho. No dia seguinte, 10 de julho, sai a Gazeta da Tarde, de Ferreira de Menezes e Joaquim Serra, e que já é um ostensivo clarim de batalha. Pelo mesmo tempo, na Gazeta de Notícias, o jornal das grandes simpatias cariocas, José do Patrocínio solta a sua voz, que será, por toda a campanha, a mais potente e revoltada. Nesse mesmo mês de julho chega ao Rio de Janeiro Carlos Gomes, em plena glória, e o seu prestígio sobre as almas brasileiras é sabiamente aproveitado pelos abolicionistas, que combinam as festas em sua honra a manifestações em favor dos escravos. Os jornais tratam dessas festas sob a rubrica – festas da liberdade. A campanha abolicionista é nimiamente orgânica; já está adotado o processo de formarem-se pecúlios para libertação imediata de cativos apontados à simpatia pública: faz-se coleta no desembarque do grande maestro, e, na sua primeira gala de teatro, Carlos Gomes entrega a carta de liberdade ao escravo Tito... Como característica do movimento, este se divide em: emancipação, como o pretende Nabuco, seguido pela generalidade dos políticos mais liberais; e abolição, imediata e incondicional, como o entende Patrocínio e os mais ativos na propaganda de imprensa. Multiplicam-se as sociedades libertadoras, que, em vista do radicalismo da Gazeta da Tarde (já de Patrocínio), logo se dividem também, em simples emancipadoras e as abolicionistas radicais. Para acentuar bem os propósitos e distribuir razoavelmente os esforços, os abolicionistas, que já se estendem em associações por todo o Brasil, criam a sua confederação abolicionista, cuja alma era Patrocínio, completado pela ação segura e impávida de João Cllap. Nabuco, bem inspirado, desiste do simples emancipacionismo, e junta-se aos abolicionistas. 

Em 1883, já tudo isto está assim distribuído, e prossegue a campanha, que degenerará em franca batalha. Tudo que era pensamento vibrante e livre, na nação brasileira, estava, em cheio, com a Abolição – de Luiz Delfino a Raul Pompeia e Bilac, de Ferreira de Araújo a Julio de Castilhos... Não tardou que os exploradores da escravidão percebessem o perigo, para logo tratarem de organizar-se em sociedades de resistência ao movimento conduzido por Patrocínio: o expressivo Centro do Café, aliado ao Centro da Lavoura, presidido pelo característico negociante Ramalho Ortigão, aceitou a incumbência de dispor os grupos dessa resistência... Foi debalde, apesar de que a política imperial estava ostensivamente com a mesma resistência. Fase única, na vida do Brasil: foi quando se viu bem a nação distinta, e tomada de asco dos seus ignóbeis dirigentes. Sucedem-se os ministérios, ironicamente liberais, para resistir ferrenhamente ao esforço pela libertação, e, com isto, mais se avoluma o movimento: Saraiva (1880-81), não cogita da questão servil; Martinho de Campos – (1881), ensoberba-se de ser escravocrata da gema; Paranaguá (1881-1883), já é forçado a transigir com a propaganda, e admite um imposto sobre vendas de escravos, com a proibição do tráfico entre as províncias (medida reclamada, aliás, pelos senhores do Norte); Lafaiete, 1883-84 – reage como pode contra a propaganda, reduzindo o imposto de transmissão de escravos à insignificância de cinco tostões... Enquanto isto, a vaga, alastrada a todo país, já tem lavado completamente o Ceará – 24 de março de 1883, e, logo a seguir, o Amazonas – 24 de maio. Para que fique patente o ânimo da política governamental, Alminio Afonso, funcionário fiscal, porque representa uma sociedade abolicionista cearense em festa pública, é demitido pelo gabinete de então; Teodureto Souto, que se acha como presidente do Amazonas, na data da libertação, e comparece às respectivas festas, é também demitido, pelo ministério Lafaiete; o Coronel Madureira, diretor da Escola Militar, porque recebe ali, solenemente, o célebre jangadeiro Nascimento, uma das energias da libertação do Ceará, é demitido pelo ministério Cotegipe. 

Não seriam tais valentias que deteriam a revolução a precipitar-se, e Pedro II, sempre acima da generalidade dos que o serviam, chamou ao governo o conselheiro Dantas, chefe liberal, emancipador de prestígio, um dos poucos sinceros entre os políticos dirigentes. O imperador bem o disse: pretendia fazer um ensaio, isto é, se Dantas conseguisse do parlamento a aceitação do seu projeto – libertação dos sexagenários, esse reforço de emancipação seria um novo passo – a solução adiada, por quantos anos, ainda?... Mas o parlamento do Império, nem essa miséria de liberdade quis conceder... Acreditava-se que Pedro II, como fizera com Paranhos, sustentava de fato o gabinete Dantas, e foi a ocasião, então, de, sem nenhuma consideração, Ferreira Viana desfechar o seu tão repetido quarenta anos de usurpações... de liberdade constitucional suprimida... Cesar Caricato... [2] Todo o seu latim não lhe dava, a Ferreira Viana, para sentir a realidade; o imperador estava sondando as coisas, ao mesmo tempo que dava uma qual satisfação à ideia emancipadora: “Por mim estou pronto... Mas, veem? – o parlamento não quer...” E, com isto, não dando a dissolução a Dantas, ele preferiu descer do conceito em que ainda o tinham os abolicionistas, mesmo os republicanos, [3] e veio nivelar-se aos ideais de Paranaguá, Meira e Vasconcelos, Camargo, Fleury... Foi quando Rui Barbosa se sentiu com razão para clamar: “Eis que de novo o africanismo sobe os degraus do trono, para mais uma vez sentar-se entre as instituições do país...” Depois, à Câmara que votou contra Dantas, ele repetiu a formidável apóstrofe de Wendel, aos escravocratas norte-americanos: “Um capitólio cheio de covardes e traidores, para oprimirem e arruinarem os homens de bem!...” Como já se esperava, Saraiva, chamado para emancipar, reduziu a mínima emancipação anunciada àquela ímpia liberdade aos inválidos de 65 anos: os senhores, que desfrutaram deles toda uma existência de trabalho, achavam-se, depois disto, desobrigados de mantê-los e de enterrá-los. E como ainda era preciso dar alguma coisa de bem explícito aos senhores, a nova lei de Saraiva manda fazer nova matrícula onde se incluísse como escravo alguém que houvesse escapado da primeira, ao mesmo tempo que elevava a um conto de réis a multa contra quem açoitasse escravos... Eles supunham dar, com isso, o grande golpe nas instituições abolicionistas que facilitavam a fuga de cativos. Era assim a coisa; no entanto, um Sr. Cons. Antonio Prado ainda se opôs a esse projeto, e propunha restrições. Fracos de imaginação aqueles homens não descortinavam nem os próprios destinos: Prado e Ferreira Viana não previram que viriam a ser os abolicionistas radicais e absolutos apenas dois anos depois! Cotegipe dizia-se, com mais pitoresco do que precisão – a junta do coice da política nacional; mas em face à Abolição, como se precipitava em 1887-88, a junta do coice afrouxou e, sobretudo, desnorteou. Por um lado recorria ao processo falho, apenas útil aos propagandistas, de mandar despedaçar jornais abolicionistas, e mantinha autoridades estreitamente reacionárias (rapa-coco), sem adotar uma política possível na corrente das ideias que, literalmente, avassalavam a nação. 

[2] Andrade Figueira, com todo seu monarquismo, chegou a ameaçar o trono, com uma desforra como a do parlamento inglês contra... o coroado que perdeu coroa e cabeça. 
[3] Ao anunciar a liberdade do Ceará, o abolicionista republicano João Cordeiro telegrafou aos companheiros do Rio: “... Cientifique o imperador, cujo abolicionismo respeitamos, que, apesar da perseguição do governo, o Ceará está livre”. Rui assentava a sua figura de retórica num edital pelo Diário Oficial, onde se anunciava a venda, em hasta pública, entre caldeirões furados e vacas magras, de vários africanos que, pela idade, não podiam ter chegado às nossas costas antes de 1831, isto é, eram legitimamente homens livres.

As sociedades abolicionistas disseminadas, bem organizadas, em perfeita solidariedade, repetiam os processos de libertação imediata e de sublevação da opinião. O Rio Grande do Sul também se libertara; cada capital de província, cada cidade importante, era um centro de multiplicada atividade abolicionista, até que, em 1887-88 a nação brasileira se assoberba na preamar da libertação. Os escravos abandonavam desassombradamente as casas dos senhores, cientes de que na primeira esquina, na primeira volta de caminho, encontrariam o refúgio seguro, a sonhada alforria, e que já não se chamava senão – liberdade, como as criaturas não se tratavam de escravos, mas de escravizados. Finalmente, é em São Paulo, cujas fazendas dão o tom a essa política – de El-Rei Café, como pitorescamente a crismou Rui Barbosa, que as próprias fazendas de café se despovoavam de cativos, levantados em busca de Cubatão da profecia do seu poeta. O governo Cotegipe desatina de mais em mais; já está no caminho a célebre questão militar, e os homens da ordem lembram-se de mandar batalhões do Exército – apanhar negros fugidos... Qualquer que seja a ideia que se tenha de governo e ordem, é de convir que, naquele momento, ninguém podia esperar cumprimento de tais determinações: os militares se negaram a prender as criaturas que a nação brasileira queria livres, e foi o fim da escravidão, revolucionariamente, em última instância, por desobediência do Exército, desobediência provocada pelos dirigentes – estonteados, espavoridos... E Cotegipe abandonou o poder. 

Veio João Alfredo, com fumaças de emancipador, que, em rapaz, fora do gabinete Paranhos. Havia uma imprensa escravocrata – junta do coice; João Alfredo é recebido aos gritos de: protetor... suspeito, e desnorteia também. No seu gabinete, há Ferreira Viana, Antonio Prado, Rodrigues Silva, escravocratas de papo amarelo, dizia-se. Os príncipes já fazem acrósticos contra Cotegipe, mas, de fato, a regente não sabe que fazer; nem mesmo o governo. A 7 de março, a pingo de chamar João Alfredo, o trono não tem ideia justa da situação. O mesmo João Alfredo fora intransigente adversário do ministério Dantas, assim como apoiara em tudo o gabinete Cotegipe; chamado a substituir o seu chefe Cotegipe, não trazia nenhum pensamento de fazer abolição imediata. Afirma o Sr. Nabuco, em meados de abril (menos de um mês antes), que ninguém sabia a resolução definitivamente assentada... Nem era possível que o soubessem: João Alfredo ainda estava a deslindar-se das palavras que pronunciara um ano antes:

“...todas as razões de Estado, os interesses econômicos, os interesses industriais, aconselham que se faça (a emancipação) com a máxima prudência, com o mínimo de prejuízo das fortunas adquiridas em boa-fé”. 

O Sr. Antonio Prado, segunda cabeça do ministério, andava lá por São Paulo, a bestuntar uma forma possível de abolição, respeitando isto mesmo que preocupava João Alfredo, tanto que, no dia 7 de abril publicaram os jornais do Rio o telegrama: “O projeto do conselheiro Prado determina que, ficará positivamente extinta a escravidão no dia 25... do corrente ano”. Quanto à regente, estava nas vascas de um caso de consciência que pôs em jogo ou duelo o prestígio e a habilidade diplomática de Joaquim Nabuco e de Cotegipe: compreendeu aquele que para levar a augusta princesa a decidir-se pelos infelizes escravos seria preciso a intervenção do Santo Padre, condenando a instituição; foi a Roma e arranjou a coisa; mas, desde que teve notícia do caso, pela própria fanfarronice de Nabuco, a junta do coice pôs em ação o seu valimento, e tanto fez demorar a manifestação de S. S. que ela só veio depois do 13 de Maio, cujo comovente pitoresco teve de guardar a irrisão – Ferreira Viana, o de 1885, beijando um negro escravo...




__________


"Morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."


Cecília Costa Junqueira



_______________________


Bomfim, Manoel, 1868-1932  
                O Brasil nação: vol. II / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 392 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 31).


_______________________

Download Acesse:

http://www.fundar.org.br/bbb/index.php/project/o-brasil-nacao-vol-ii-manoel-bonfim/


_______________________




Leia também:






O Brasil Nação - v2: § 52 – De Gonçalves Dias a Casimiro de Abreu... - Manoel Bomfim

O Brasil Nação - v2: § 53 – Álvares de Azevedo - Manoel Bomfim

O Brasil Nação - v2: § 54 – O lirismo brasileiro - Manoel Bomfim

O Brasil Nação - v2: § 55 – De Casimiro de Abreu a Varela - Manoel Bomfim

O Brasil Nação - v2: § 56 – O último romântico - Manoel Bomfim

O Brasil Nação - v2: § 57 – Romanticamente patriotas - Manoel Bomfim

O Brasil Nação - v2: § 58 – O indianismo - Manoel Bomfim

O Brasil Nação - v2: § 59 – O novo ânimo revolucionário - Manoel Bomfim

O Brasil Nação - v2: § 60 – Incruentas e falhas... - Manoel Bomfim

O Brasil Nação - v2: § 61 – A Abolição: a tradição brasileira para com os escravos - Manoel Bomfim

O Brasil Nação - v2: § 62 – Infla o Império sobre a escravidão - Manoel Bomfim

O Brasil Nação - v2: § 63 – O movimento nacional em favor dos escravizados - Manoel Bomfim

O Brasil Nação - v2: § 64 – O passe de 1871 e o abolicionismo imperial - Manoel Bomfim

O Brasil Nação - v2: § 66 – Abolição e República - Manoel Bomfim


histórias de avoinha: boca fechada não erra

mulheres descalças


boca fechada não erra  
Ensaio 127Bo – 2ª edição 1ª reimpressão



baitasar




A Mãezinha pode me alcançar um copo d’água?

Água benta, ela retruca sem munta força, é uma muié qui carrega as palavra escondida nas entranha da solidão mal-amada, mais num dá tempo do siô augusto respondê seu desabafo destravado – um desafogo contido e mimoso –, levanta e vai inté a janela oiá pra praça qui num esvazia, E logo, logo, vai ficar às escuras, volta passo a passo, murmurando, Desse jeito, quando a praça ficar às escuras acabam com o negro, Não acabam nada, vosmecê está muito cismática, Dá dó de ver os pés descalços, as feridas vivas. Só pode ser covardia tantos fazerem maldade em um só. A praça se encheu com os canalhas da Villa.

E a água, Mãezinha?

A pressa melhor faz...

os dois levô um susto com mais esse desafogo, o siô augusto achô mais meió mudá o rumo das palavra qui tava lhe voltando

Vosmecê estragou a Chiquinha, o siô dono de tudo na casa num esbugáiô usóio, falô sereno, liso, parecido com as poesia casta e decente qui encharca a vida sem surpresa, sem drama, é assim e pronto, num parecia catando as erva daninha pela casa, mais o contra-ataque tava ali, num fazia recuo, às veiz, num dá pra vê pruqui o capim dos disfarce é alto e o monstro da casa se faz de morto pra usá sapato novo

a mesma história de sempre, Vosmecê não soube educar a minha filha... a fera espreitando o capim, só uma boa surra vai lhe fazer admitir isso, um bêbado da violência num consegue se dá bem quando tá sereno, fica frôxo e impedido de se assanhá pra muié ou pra hôme, vou me subir em vosmecê! Duvida?

Eu não, a dona rosinha, mulata muntu bem disfarçada, voltô pra sua cadêra sem o copo d’água, se tem alguma coisa errada com a Chiquinha foi vosmecê, quase soltô as palavra qui ele merecia escutá, sentô no seu lugá do silêncio, e num disse mais nada, sabia as palavra qui podia saí da boca do marido, conhecia as marca delas forte e descontrolada nas carne do seu corpo

a sua chiquinha era mais uma cicatriz dessa brutalidade, o uso da força na suas carne, nunca entendeu pru qui ele precisava pegá com fúria e coação uqui ela tava disposta entregá

aceitava o próprio caladismo pruqui na boca fechada num entra as mosca nem sai a língua pegajosa qui gruda nas mosca, tinha pavô das mosca, mas num se danava com as barata

mais dia ou menos dia, ela sabia qui havia de decidí acabá com aquele caladismo, havia de chegá a hora de agarrá o destino e enfiá de volta na boca qui maltrata e se esconde atráis da máscara de marido, Boca fechada não erra, minha filha.

ela sabe duqui fala, nem o cautelismo exagerado com um qui otro comentário tem segurança segura, pode acontecê qui as palavra saída da comentarista cuidadosa num caí bem nos ouvido do siô gonzaga

Lá vem, vosmecê, parô as palavra e balançô a cabeça, parecia querendo organizá uqui ainda num saiu da cabeça, mais era só mais um costume pra atormentá dona rosinha, com essa mania de me acusar de mimar a menina... isso está beirando para os lados da teimosia.

pronto, ela sentiu o arrepiu e o rebuliço na cabeça do siô gonzaga, conhecia os aviso, as palavra azeda dele pareceu roucá como as carreta dos boi, isso qui ela num disse uqui tava no seus pensamento cuidadoso de mãe

as lição é duramente aprendida e num pode sê esquecida




____________________

Leia também:

histórias de avoinha: praça pública é lugar de vagabundo!
Ensaio 127B – 2ª edição 1ª reimpressão

histórias de avoinha: praça pública é lugar de vagabundo!!
Ensaio 127Bb – 2ª edição 1ª reimpressão

histórias de avoinha: praça pública é lugar de vagabundo!!!
Ensaio 127Bc – 2ª edição 1ª reimpressão

histórias de avoinha: praça pública é lugar de assombração!
Ensaio 127Bd – 2ª edição 1ª reimpressão

histórias de avoinha: dono de gente
Ensaio 127Be – 2ª edição 1ª reimpressão

histórias de avoinha: ele abre as portas do céu
Ensaio 127Bf – 2ª edição 1ª reimpressão

histórias de avoinha: rainha silenciosa do lar
Ensaio 127Bg – 2ª edição 1ª reimpressão

histórias de avoinha: um novo refúgio
Ensaio 127Bh – 2ª edição 1ª reimpressão

histórias de avoinha: a dô dotro pode sê esquecida?
Ensaio 127Bi – 2ª edição 1ª reimpressão

histórias de avoinha: Toque, minha filha.
Ensaio 127Bj – 2ª edição 1ª reimpressão

histórias de avoinha: Onde está a gaiola do Venuto?
Ensaio 127Bk – 2ª edição 1ª reimpressão

histórias de avoinha: Deus te abençoe, minha filha
Ensaio 127Bl – 2ª edição 1ª reimpressão

histórias de avoinha: um corpo febrento e para sempre culpada
Ensaio 127Bm – 2ª edição 1ª reimpressão

histórias de avoinha: a dança dos dedo
Ensaio 127Bn – 2ª edição 1ª reimpressão

histórias de avoinha: os pé e as bota de garrão 
Ensaio 128A – 2ª edição 1ª reimpressão

histórias de avoinha: Oh!... prugunta pra todas criança
Ensaio 128B – 2ª edição 1ª reimpressão

histórias de avoinha: o medo dos inferno
Ensaio 128C – 2ª edição 1ª reimpressão

histórias de avoinha: Sinto-me tão só
Ensaio 127Bp – 2ª edição 1ª reimpressão


domingo, 28 de julho de 2019

esse paraíba de Garanhuns, Pernambuco

José Domingos de Morais - Dominguinhos





Vem amor, vem cantar 
Chora sanfona sentida
Quanto mais chora 
Fico querendo chorar






Sanfona Sentida (Dominguinhos e Anastácia) 
Sanfona: Dominguinhos; triângulo: Mariana Aydar; zabumba: Duani.



Sanfona Sentida

Vem amor, vem cantar 
Pois meus olhos 
Ficam querendo chorar 
Deixe a mágoa pra depois 
O amor é mais importante a dois.

Chora sanfona sentida 
Em meu peito gemendo 
Vai machucando 
E o meu peito de amor vai morrendo

Quanto mais chora 
Me entrego todinho ao amor 
E teu gemido disfarça 
Em minh'alma essa dor




Stendhal - O Vermelho e o Negro: Desgostos de um funcionário (XXIII - 1)

Livro I 

A verdade, a áspera verdade. 
Danton 


Capítulo XXIII -1

DESGOSTOS DE UM FUNCIONÁRIO




Il piacere di alzar la testa tutto l´anno è ben pagato da certi quarti d´ora che bisogna passar. 

CASTI



MAS DEIXEMOS ESSE HOMENZINHO com seus temores; por que admitiu ele em sua casa um homem corajoso, quando precisava da alma de um criado? Não sabe escolher seu pessoal? O procedimento comum do século XIX é que, quando um indivíduo poderoso e nobre depara com um homem corajoso, ele o mata, o exila, o aprisiona ou o humilha de tal maneira que o outro comete a tolice de morrer de dor. Por acaso, aqui não é ainda o homem corajoso que sofre. A grande infelicidade das cidadezinhas da França e dos governos por eleições, como o de Nova York, é não poder esquecer que há no mundo indivíduos como o sr. de Rênal. Numa cidade de 20 mil habitantes, esses homens fazem a opinião pública, e a opinião pública é terrível num país que tem a constituição. Um homem dotado de uma alma nobre, generosa e que foi vosso amigo, mas que habita a cem léguas, vos julga pela opinião pública de vossa cidade, a qual é feita pelos tolos que o acaso fez nascerem nobres, ricos e moderados. Infeliz de quem se distingue! 

Logo depois do almoço, tornaram a partir para Vergy; mas daí a dois dias Julien viu toda a família voltar a Verrières. 

Não havia transcorrido uma hora quando, para seu grande espanto, ele descobriu que a sra. de Rênal fazia-lhe mistério de alguma coisa. Interrompia as conversas com o marido assim que ele se aproximava e parecia quase desejar que se afastasse. Ele tornou-se frio e reservado. A sra. de Rênal percebeu e não buscou explicações. Vai ela dar-me um sucessor?, pensou Julien. Ainda anteontem, tão íntima comigo! Mas é assim, dizem, que essas grandes damas agem. São como os reis, amáveis mais que nunca com o ministro que, ao voltar para casa, encontrará sua carta de exoneração. 

Julien notou que nessas conversas, que cessavam bruscamente à sua aproximação, era seguidamente mencio​nada uma grande casa pertencente à comuna de Verrières, velha, porém ampla e cômoda, e situada defronte à igreja, na parte mais comercial da cidade. Que pode haver de comum entre essa casa e um novo amante?, pensou Julien. Em sua mágoa, ele repetia estes belos versos de Francisco I, que lhe pare​ciam novos porque fazia apenas um mês que os ouvira da sra. de Rênal. Então, por quantos juramentos, por quantas carícias ela não os havia desmentido! 

Mulher a todo instante varia, 
Muito louco é quem nela se fia. 

O sr. de Rênal partiu para Besançon na carruagem do correio. Essa viagem foi decidida em duas horas, ele parecia muito atormentado. Ao voltar, jogou um grande pacote coberto de papel cinza sobre a mesa. 

– Eis aí essa coisa estúpida, disse à mulher. 

Um hora depois, Julien viu o afixador de cartazes levar esse grande pacote; seguiu-o com empenho. Saberei o segredo na primeira esquina. 

Impaciente, esperava parado atrás do homem que, com o pincel, passava cola no verso do cartaz. Assim que este foi instalado, a curiosidade de Julien leu o anúncio detalhado da locação, por leilão público, daquela velha casa mencionada com frequência nas conversas do sr. de Rênal com a mulher. A adjudicação do arrendamento estava marcada para o dia seguinte às duas da tarde, no salão da comuna, depois de apagada a terceira vela. [5] Julien ficou bastante desapontado; o prazo parecia-lhe um tanto curto; de que maneira todos os concorrentes teriam tempo de ser avisados? Mas, de resto, esse cartaz, datado de quinze dias antes e que ele releu por inteiro em três lugares diferentes, nada lhe esclarecia. 

Foi visitar a casa a alugar. Não o vendo aproximar-se, o porteiro dizia misteriosamente a um vizinho: 

– Qual! Trabalho perdido. O sr. Maslon prometeu-lhe que a teria por 300 francos; e, como o prefeito relutasse, foi notificado a comparecer no bispado, pelo vigário-geral de Frilair. 

A chegada de Julien pareceu perturbar os dois amigos, que logo se calaram. Julien não deixou de ir ao leilão. Uma multidão reunia-se numa sala mal iluminada e todos se mediam de um modo singular. Julien notou que os olhares dirigiam-se a uma mesa onde, num prato de estanho, havia três tocos de vela acesos. O leiloeiro gritava: 300 francos, senhores! 

– Trezentos francos! É muito bom, disse um homem em voz baixa ao vizinho, e Julien estava entre os dois. Ela vale mais de 800; vou cobrir esse lance. 

– É cuspir para cima. Que ganharás tendo às costas o sr. Maslon, o sr. Valenod, o bispo, seu terrível vigário-geral de Frilar e toda a corja? 

– Trezentos e vinte francos, disse o outro, gritando. 

– Seu estúpido!, disse o vizinho. E olha aí, justamente, um espião do prefeito, acrescentou, mostrando Julien. 

Julien voltou-se vivamente para punir o insulto, mas os dois já não davam atenção a ele, o que fez que se acalmasse. Nesse momento apagou-se o último toco de vela, e a voz arrastada do leiloeiro adjudicava a casa, por nove anos, ao sr. de Saint-Giraud, chefe de departamento na Prefeitura de ***, e por 330 francos. 

Assim que o prefeito deixou a sala, começaram os murmúrios. 

– Lá se vão trinta francos que a imprudência de Grogeot custa à comuna, dizia um. 

– Que infâmia!, dizia um homem gordo à esquerda de Julien. Uma casa pela qual eu teria dado 800 francos para minha fábrica e teria feito bom negócio. 

– Qual!, respondia-lhe um jovem fabricante liberal, o sr. de Saint-Giraud não é da Congregação? Seus quatro filhos não têm bolsas? Coitado! A comuna de Verrières terá de dar-lhe um auxílio suplementar de 500 francos, eis tudo. 

– E dizer que o prefeito não pôde impedi-lo!, observava um terceiro. Pois ele é conservador, quando lhe convém, mas não rouba. 

– Não rouba? replicou um outro. É porque é trouxa quem rouba. Tudo isso vai para uma grande bolsa comum e é partilhado ao cabo de um ano. Mas olha aí o pequeno Sorel; vamos embora. 

Julien voltou para casa de mau humor; encontrou a sra. de Rênal muito triste. 

– Está vindo do leilão?, ela perguntou. 

– Sim, senhora, onde tive a honra de passar por espião do sr. prefeito. 

– Se ele tivesse acreditado em mim, teria feito uma viagem. 

Nesse momento, o sr. de Rênal chegou. Estava muito sombrio. Durante a refeição ninguém falou nada. O sr. de Rênal ordenou a Julien que acompanhasse as crianças a Vergy. Foi uma viagem triste. A sra. de Rênal consolava o marido: 

– Você deveria estar acostumado a isso, meu amigo. 

À noite sentaram-se em silêncio em volta da lareira; o estalido da lenha inflamada era a única distração. Era um desses momentos de tristeza que acontecem mesmo nas famílias mais unidas. De repente, uma das crianças exclamou com alegria: 

– A campainha! A campainha! 

– Com os diabos! Se é o sr. de Saint-Giraud que vem apoquentar-me sob pretexto de agradecimento, disse o prefeito, ele ouvirá o que merece; é demais. O Valenod é o responsável e sou eu que me comprometo. E se os malditos jornais jacobinos se apoderarem dessa anedota e fizerem de mim um bobo? 

Um homem muito simpático, com grossas suíças ne​gras, entrava nesse momento acompanhando o criado. 

– Sr. prefeito, sou o signor Geronimo. Aqui está uma carta que o cavaleiro de Beauvoisis, adido na embaixada de Nápoles, mandou-me entregar-lhe em minha partida. Isso faz apenas nove dias, acrescentou o signor Geronimo, olhando com uma expressão alegre a sra. de Rênal. O signor de Beauvoisis, vosso primo e meu bom amigo, senhora, disse que sabeis italiano. 

O bom humor do napolitano transformou a triste noitada numa noitada alegre. A sra. de Rênal fez questão de oferecer-lhe uma janta. Pôs toda a casa em movimento; queria a todo preço fazer Julien esquecer o qualificativo de espião que, por duas vezes na jornada, ressoara em seus ouvidos. O signor Geronimo era um cantor célebre, homem de boas maneiras, e não obstante muito divertido, qualidades que, na França, já não são compatíveis. Depois da janta, cantou um pequeno dueto com a sra. de Rênal. Contou histórias encantadoras. À uma da madrugada, os meninos protestaram quando Julien propôs que fossem dormir. 

– Mais uma história, disse o mais velho. 

– É a minha, signorino, respondeu Geronimo. Há oito anos eu era, como você, um jovem aluno do conservatório de Nápoles, quero dizer, tinha a sua idade; mas não tinha a honra de ser o filho do ilustre prefeito da bela cidade de Verrières. 

Essa frase fez o sr. de Rênal suspirar. Ele olhou para sua mulher. 

– O signor Zingarelli, continuou o jovem cantor, exagerando um pouco seu sotaque que fazia rebentar de rir as crianças, o signor Zingarelli era um mestre excessivamente severo. Ele não é amado no Conservatório, mas quer que ajam sempre como se o amassem. Sempre que eu podia, saía para ir ao teatro de San-Carlino, onde ouvia uma música dos deuses. Mas, ó Deus! como fazer para conseguir os oito vinténs do ingresso na plateia? Quantia enorme, disse ele, olhando as crianças que continuavam a rir. O signor Giovannone, diretor do San-Carlino, ouviu-me cantar. Eu tinha dezesseis anos: Esse menino é um tesouro. 

– Queres que te contrate, meu caro amigo?, ele me perguntou. 

– E quanto o senhor me dará? 

– Quarenta ducados por mês. Senhores, isso representa 60 francos. Acreditei ver os céus abertos. 

– Mas como obter, disse eu a Giovannone, que o severo Zingarelli me deixe sair? 

Lascia fare a me

– Deixe comigo! disse o mais velho dos meninos. 

– Justamente, meu jovem senhor. O signor Giovannone me disse: Caro, primeiro um pequeno contrato. Eu assino, ele me dá três ducados. Nunca tinha visto tanto dinheiro. Depois ele me disse o que eu devia fazer. 

No dia seguinte, peço uma audiência ao terrível signor Zingarelli. Seu velho mordomo me faz entrar: 

– Que queres, sacripanta? disse Zingarelli. 

– Maestro, arrependo-me de minhas faltas; nunca mais sairei do Conservatório passando por cima da grade de ferro. Serei mais aplicado. 

– Se eu não temesse estragar a mais bela voz de baixo que jamais ouvi, te poria na prisão a pão e água por quinze dias, descarado. 

– Maestro, continuei, serei o modelo de toda a escola, credete a me. Mas peço-lhe um favor: se alguém vier pedir-me para cantar fora, recuse. Por favor, diga que não. 

– E quem faria tal pedido a um safado como tu? E acaso eu permitiria que deixasses o Conservatório? Estás querendo zombar de mim? Fora daqui! disse ele, tentando dar-me um pontapé no traseiro, e lembra do pão seco e da prisão. 

Uma hora depois, o signor Giovannone chega à casa do diretor: 

– Venho pedir-lhe para fazer minha fortuna, concede-me Geronimo. Se ele cantar em meu teatro, no próximo inverno caso minha filha. 

– Que queres fazer com esse sacripanta? disse-lhe Zingarelli. Não concedo, não o terás; e, mesmo que eu consentisse, ele jamais deixará o Conservatório, acaba de jurar-me isso. 

– Se depende apenas da vontade dele, disse gravemente Giovannone, tirando do bolso meu contrato, carta canta! Aqui está sua assinatura. 

Zingarelli, furioso, imediatamente pendura-se à campainha: 

– Expulsem Geronimo do Conservatório! bradou, fervendo de cólera. Assim fui expulso, rindo às gargalhadas. Na mesma noite cantei a ária del Moltiplico. Polichinelo quer casar-se e conta nos dedos os objetos que precisará em sua casa, e nesse cálculo atrapalha-se a todo instante. 

– Ah! Cante-nos essa ária, senhor, disse a sra. de Rênal. 

Geronimo cantou e todos choraram de tanto rir. O signor Geronimo só foi deitar-se às duas da madrugada, deixando a família encantada com suas boas maneiras, sua complacência e sua alegria. 

No dia seguinte, o sr. e a sra. de Rênal entregaram-lhe as cartas que ele precisava para a corte da França. 

Assim, por toda parte a falsidade, pensou Julien. Eis aí o signor Geronimo que vai a Londres com 60 mil francos de ordenados. Sem a perspicácia do diretor do San-Carlino, sua voz divina talvez só viesse a ser conhecida e admirada dez anos mais tarde... Palavra que eu preferia ser um Geronimo do que um Rênal. Ele não é tão honrado na sociedade, mas não tem o desgosto de fazer adjudicações como a de ontem, e sua vida é alegre. 

Uma coisa espantava Julien: as semanas solitárias passadas em Verrières, na casa do sr. de Rênal, haviam sido para ele um período de felicidade. Só tivera desgostos e tristes pensamentos nos almoços que lhe ofereceram; nessa casa solitária, não podia ele ler, escrever, refletir sem ser perturbado? Em nenhum momento era arrancado de seus devaneios brilhantes pela cruel necessidade de estudar os movimentos de uma alma mesquinha, a fim de enganá-la por atitudes ou palavras hipócritas

Estaria a felicidade tão perto de mim?... A despesa de uma vida como essa é pequena; posso escolher casar-me com a srta. Elisa, ou associar-me a Fouqué... O an​darilho que acaba de escalar uma montanha íngreme senta-se no topo e encontra um prazer perfeito em repousar. Mas seria ele feliz se o forçassem a repousar sempre? 

O espírito da sra. de Rênal chegara a pensamentos fatais. Contrariando suas resoluções, ela confessara a Julien o negócio da adjudicação. Assim ele me fará esquecer todos os meus juramentos, ela pensava. 

Ela teria sacrificado a vida sem hesitar para salvar a do marido, se a visse em perigo. Era uma dessas almas nobres e romanescas para as quais perceber a possibilidade de uma ação generosa e não fazê-la produzia um remorso quase igual ao do crime cometido. Contudo, havia dias funestos em que não podia afastar a imagem do excesso de felicidade que teria se, ficando de repente viú​va, pudesse desposar Julien. 

Ele amava seus filhos mais do que o pai deles; apesar de sua justiça severa, era adorado por eles. Ela sentia que, desposando Julien, teria de deixar Vergy, de cuja sombra dos arvoredos tanto gostava. Via-se vivendo em Paris, continuando a dar aos filhos aquela educação que todos admiravam. Seus filhos, ela, Julien, todos perfeitamente felizes. 

Estranho efeito do casamento, tal como o produz o século XIX! O tédio da vida matrimonial faz seguramente morrer o amor, quando o amor precedeu o casamento. No entanto, diria um filósofo, ele gera em seguida, nas pessoas bastante ricas para não trabalharem, um cansaço profundo de todos os gozos tranquilos. E somente as almas secas, entre as mulheres, não buscam de novo o amor. 

A reflexão do filósofo faz-me escusar a sra. de Rênal, mas não a escusavam em Verrières; sem que ela suspeitasse, toda a cidade só se ocupava do escândalo de seus amores. Por causa desse grande caso, naquele outono as pessoas aborreceram-se menos que de costume. 

O outono e uma parte do inverno passaram muito depressa. Foi preciso deixar os bosques de Vergy. A boa sociedade de Verrières começava a indignar-se de que seus anátemas causassem tão pouca impressão no sr. de Rênal. Em menos de oito dias, pessoas graves, que compensam sua seriedade habitual pelo prazer de cumprir tais missões, insinuaram-lhe as suspeitas mais cruéis, mas servindo-se dos termos mais comedidos. 

O sr. Valenod, que procedia com cautela, colocara Elisa numa família nobre e muito considerada, onde havia cinco mulheres. Temendo não achar emprego durante o inverno, ela pedira a essa família apenas dois terços do que recebia na casa do sr. prefeito. Espontaneamente, essa moça tivera a excelente ideia de confessar-se com o ex-cura Chélan e ao mesmo tempo com o novo, a fim de contar detalhes dos amores de Julien a ambos.


continua...



_____________________


[5] Sistema utilizado nos leilões para determinar o tempo dos lances. (N.T.)


_____________________



ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.


_______________________




Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.


Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.

Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.

"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.

Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.

Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.

Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.

Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.

O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.



_______________________

Leia também:

Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Primeiro Adjunto (XVII)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um Rei em Verrières (XVIII)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Pensar faz sofrer (XIX)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: As Cartas Anônimas (XX)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Diálogo com um Mestre (XXI - 1)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Maneiras de Agir em 1830 (XXII - 1)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Maneiras de Agir em 1830 (XXII - 2)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Desgostos de um funcionário (XXIII - 1)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Desgostos de um funcionário (XXIII -2)